Revista MoV

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Revista MoV.Cidade nº 01 - O Vazio

Os traumas e as poéticas do Corpo-cidade (na pandemia) Nenhum corpo confinado é por definição um corpo sem liberdade. Por Lívia Rangel Lívia Rangel é historiadora e escritora, nascida nortefluminense, crescida e amparada em terras capixabas e estudante por alguns anos nas paragens mineiras e paulistas. Estudiosa das temáticas feministas na cultura, na política e nas artes. Publicou livros, como “Um capixaba entremundos” (2018), “Intelectuais fronteiriços” (2019), dentre outros.

A pandemia que confinou corpos também libertou mentes. Esse não é um fenômeno de métrica fácil. Para não parecer uma ideia leviana, há muito a ser considerado quando unimos as palavras corpo e liberdade. De quem é esse corpo, onde ele habita, por onde transita, quais suas marcas sociais e culturais? A liberdade é a da lei objetiva ou a da condição subjetiva da existência?

“A pandemia libertou mentes ao mesmo tempo que obrigou o confinamento dos corpos” Os corpos que seriam mais sacrificados se sabiam sentenciados à morte tão logo o isolamento entrou em vigor. Afinal, Brasil com ou sem pandemia não deixou de ser o país dos piores rankings no quesito direitos humanos: o que mais mata mulheres e homens negros, o que mais extermina povos indígenas, o que mais oprime e mata lgbtqia+, o campeão em feminicídio - o mesmo elitista e violento país. Há, portanto, dois desfiles acontecendo: o dos corpos que podem ser observados pelos calçadões das praias, pelos shoppings recém-abertos, pelos bares e restaurantes abarrotados; e o dos corpos marginalizados. Estes protagonizam um desfile menos glamouroso, esbarrando-se pelas coxias, num corre para lá e para cá invisível, obrigados a fazerem o luxo

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supérfluo e o estritamente essencial funcionar, a despeito da sua própria segurança e a de sua família. No entanto, gosto de pensar que o fenômeno das mentes libertas pela fenda aberta pela pandemia tem sido o efeito poético desse trauma, se é que pode haver algum. A possibilidade inimaginada ou adiada de reinvenção toma lugar. As pessoas acabaram encontrando, por esforço contínuo ou acaso, o caminho da exuberância criativa, da exuberância solidária, da exuberância implícita, da poética que se transforma em revelação de todo o olhar para dentro. O silêncio faz a gente prestar atenção.

“quando calam os ruídos de fora é que borbulham os ecos de nós mesmos. Isso porque não somos nem máquina, nem alma penada, mas Gente” Em campo aberto - comunitário, militante, social -, a inventividade sem fins lucrativos doou toneladas de alimentos orgânicos, criou nas favelas dinâmicas próprias de contenção da pandemia, acionou a extrema urgência das pautas antirracistas, mobilizou ações

independentes pela cultura, conectou pequenas editoras e leitores e colocou acento na crítica aos modos esgotantes e esgotados com que temos levado a vida. Numa escala mais subjetiva, muitas pessoas também estão recriando suas possibilidades. Desde esse lugar inusitado do não-sair, do não-encontrar, do não-viajar, do não-consumir, interpretado como um parêntese no estado de “normalidade” das coisas, muita gente começou a se livrar de alguns resíduos. Justo nesse nó abriram, na marra, uma espécie de terceira via (escrevem, leem, fotografam, arriscam versos, ampliam diálogos, cozinham, estudam, cantam). O que me faz pensar que nenhum corpo confinado é por definição um corpo sem liberdade.

“Enquanto a pandemia for um trauma, a cidade será a fratura, tão menos exposta quanto mais as pessoas se derem conta de que, ao invés de máquinas e almas penadas, são Gente.”


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