Mosaico Social - 2017

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ISSN: 1980-8933

Mosaico

Social

ANO XV N. 9 2017


UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS CURSO DE GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS Coordenador da edição Tiago Daher Padovezi Borges Editor Executivo Iann Endo Lobo Coeditor Alan Guilherme Comitê Editorial Alan Guilherme, Iann Endo Lobo, Tiago Bahia Losso e Tiago Daher Padovezi Borges Capa e arte Iann Endo Lobo Diretor do Centro de Filosofia e Ciências Humanas Paulo Pinheiro Machado Coordenador do Curso de Graduação em Ciências Sociais Tiago Bahia Losso Chefe do Departamento de Antropologia Oscar Calavia Sáez Chefe do Departamento de Sociologia e Ciência Política Marcia da Silva Mazon Apoio Universidade Federal de Santa Catarina Coordenação do Curso de Graduação em Ciências Sociais Expediente Centro de Filosofia e Ciências Humanas – CFH Campus Universitário – Trindade Cx. Postal 476 88040-900 – Florianópolis – SC – Brasil E-mail: mosaicosocial@contato.ufsc.br | Telefone: +55(48) 37219508


Introdução

introdução Tiago Daher Padovezi Borges1

No fim desse turbulento ano de 2016, repleto de incertezas sociais e políticas, temos uma excelente notícia: a publicação de uma nova edição da Revista Mosaico Social. Trata-se de uma importante iniciativa dos alunos de graduação do curso de Ciências Sociais, da Universidade Federal de Santa Catarina, que nos apresenta um pouco da produção discente, apontando algumas tendências e desafios. Não é exagero afirmar que a produção aqui reunida nos diz muito sobre os interesses de pesquisa dos alunos do curso e, possivelmente, aponte direções de futuras iniciativas nas pósgraduações. De modo geral, salta aos olhos, além da qualidade dos trabalhos, a heterogeneidade das inquietações contidas nessa edição, tratando tanto de temas empíricos quanto de outros mais teóricos. Em relação ao primeiro grupo, é possível identificar, em dois artigos, preocupações com o associativismo e a participação política da sociedade civil. Trata-se de um dos principais temas da Sociologia e da Ciência Política nos últimos anos, tendo profunda interferência no debate sobre a democracia brasileira, sobre a organização do Estado e a produção de políticas públicas. Outra questão de grande centralidade no debate atual, contemplado na presente edição, é a compreensão das desigualdades de gênero em nossa sociedade. E, um terceiro tema empírico, presente nas páginas seguintes, fundamental nas discussões sobre a criação e a implementação de políticas públicas, é a influência do poder público na gentrificação nas cidades. Além dos estudos empíricos, os nossos campos de conhecimento também foram objetos de investigação, com trabalhos que trataram das características da evolução do pensamento antropológico e da contribuição das “narrativas literárias” à pesquisa social. Assim, tal inclinação teórica também aponta a necessidade de revermos a produção de nosso conhecimento, mapeando suas características e incorporando contribuições de outras áreas em nossos esforços de pesquisa.

1

Professor Adjunto do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina.


Portanto, como fica claro, é possível identificar a ausência de uma unidade clara entre os artigos contidos nessa edição, o que mostra uma rica diversidade de preocupações. Trata-se de uma característica que pode ser pensada como uma virtude, natural em um curso repleto de pluralidades, mesmo no interior de cada Ciência Social. E, claro, longe de conclusões, os estudos mostram agendas e caminhos para serem perseguidos em estudos futuros.


Perspectivismo ameríndio e literatura: por uma sociologia menor

Perspectivismo ameríndio e literatura: por uma sociologia menor

Ivan Tadeu Gomes*

Resumo: O texto que segue refletirá não somente sobre a potência contida nas narrativas literárias como suporte às pesquisas do cientista social, mas discutirá sobretudo como isso pode ser feito. Inúmeros trabalhos já tiveram na literatura o suporte para discussões de temas diversos que orbitam o mundo social. Devido sua flexibilidade, tais narrativas são utilizadas com diversas finalidades. O sociólogo Norbert Elias está entre aqueles que não se furtam a se valer da literatura para vir ao auxílio de suas reflexões e análises. Em seu ensaio Sobre o tempo, o sociólogo se pauta ao romance A flecha de Deus, do escritor nigeriano Chinua Achebe, a fim de analisar o tempo social além da dicotomia natureza/cultura. Contudo, a forma de olhar que dirige ao texto, tem leves – porém perceptíveis - contornos etnocêntricos e narcísicos – tomando emprestada a concepção que o antropólogo Viveiros de Castro dá ao termo freudiano. O presente ensaio pretende discutir a possibilidade de mirarmos a literatura menos como um espelho a refletir nossos objetos de pesquisa, mas concebendo-a como antropologia especulativa: que contém a potência para execussão da difícil tarefa de alteração do próprio ponto de vista a partir da subjetivação do/no outro – e não sua objetificação. Visando, dessa forma, contribuir para a ampliação das categorias de análise científica e do pensamento. Palavras-Chave: Ciências Sociais. Literatura. Norbert Elias. Perspectivismo ameríndio. Antropologia especulativa.

.esboçando o contorno Toca a cada uno forjar su escritura-método. Renovar la escritura de las ciencias sociales no consiste pues en abolir toda regla, sino en darse libremente nuevas reglas. (JABLONKA, 2016, p.18)

O vasto e amplo mundo das ciências humanas, guarda em seu núcleo a potência de extrapolar as linhas epistemológicas que dividem os campos produtores de conhecimento. Extrapolar – veja bem – sem suspendê-los. É importante que haja algum grau de especificidade. Mesmo toda a crítica com relação à especialização e compartimentalização da produção de conhecimento não deve se render à sedução do caos a todo custo. Algum sentido a de se ter – ou se dar; pela lâmina da reflexão. E por mais difícil que seja imprecisar as linhas limítrofes que separam cada campo de conhecimento – pelo risco de abusos, incompreensões e até mesmo do ridículo -, a *

Bacharel em Ciências Sociais (UFSC)


2 possibilidade – mesmo que mínima - de fazer surgirem novas perspectivas, capazes de ampliar, refigurar e estilizar o conhecimento, já é motivação o suficiente para dar ritmo à dança sob as linhas divisórias. O presente ensaio propõem discutir não apenas as potencialidades inerentes entre o encontro dos saberes literários e das ciências sociais. Isso já está implícito e não carece de qualquer defesa – apesar de não haver exageros em fazê-lo. O que se busca neste texto diz mais respeito ao como fazê-lo. Em outras palavras, como as ciências sociais podem se servir das narrativas literárias para refletir categorias que são do seu interesse. Essa questão por si mesma já é bastante ampla, cabendo perspectivas diversas e com um vasto campo de possibilidades reflexivas. Para afunilar a discussão, a fim de fincar margens que permita ao pensamento fluir em seu ritmo, escolhi partir do caso específico da apropriação que Norbert Elias faz do romance A flecha de Deus, que dá parcial suporte para sua reflexão Sobre o tempo. Antes de tudo, não posso deixar de registrar que: ao evocar uma narrativa ficcional, a fim de servir de ponto de apoio para suas reflexões sobre o tempo, Elias já diz muito sobre o encontro dos dois tipos de narrativa – a saber, ficcional e histórica - e sobre o lugar em que os coloca. Entretanto, o seu como exige um olhar mais demorado, uma ruminação sobre suas consequências e limitações. Mais do que criticar e evidenciar as perspectivas do sociólogo, é em direção à forma de olhar das ciências sociais que se dirigem as argumentações que seguem. Tendo em vista que não penso que a simples aproximação dos campos de saber possuem valores positivos em si. É preciso interpretá-los em intensidade, reconhecendo as potencias e limitações de cada campo do conhecimento. Dessa forma, o debate ganha corpo e aproximação de ciência sociais e literatura extrapola o patamar de mera aventura reflexiva para ganhar densidade e, assim, dar vazão a sua potência. Em meu auxílio nesta difícil e sinuosa tarefa, busco uma série de categorias de reflexão, de diversos saberes: que vão da literatura - sobre o conceito de ficção, antropologia especulativa, mímesis – à antropologia – perspectivismo ameríndio, multinaturalismo – passando pela filosofia: desterritorialização da linguagem, literatura menor. Correndo riscos, transito entre estes campos do saber em formato ensaístico – por sentir nesta modalidade de expressão uma hospitalidade maior à tentiva de pensar o pensamento com um pouco mais de espaço ao movimento proposto – sem com isso Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano XIV, n. 08 – 2016


3 tomar o devido cuidado em manter uma certa forma que não destitua os argumentos apresentados de alguma substância. A forma, aliás, como não poderia deixar de ser, é largamente influenciada pelos saberes que evoca, sobretudo por pensar, junto com o historiador Ivan Jablonka, que: El investigador tiene todo el interés en escribir de manera más sensible, más libre, más justa. En este caso, la justeza, la liberdad y la sensibilidad están asociadas a la capacidad cognitiva, como cuando se dice que una demonstración matemática es "elegante". Una cronologia o unos anales no producen conocimento, y la idea de que los hechos hablan por sí mesmos es una muestra de pensamiento mágico. Muy por el contrario, la historia ([SIC] assim como as ciências sociais) produce conocimento porque es literaria, porque se despliega en un texto, porque cuenta, expone, explica, contradice, prueba: porque es un escribir-veraz. (JABLONKA, 2016, p. 18)

.borrando o contorno

Certo, queremos a verdade: mas por que não, de preferência, a inverdade? Ou a incerteza? Ou mesmo a insciência? Friedrich Nietzsche, Além do bem e do mal, p. 09

As Ciências Sociais têm, como qualidade e característica, constantes crises epistemológicas. Para muitos, uma fragilidade que as destitui de propriedade e, consequentemente, de mais espaço no rou de discursos científicos. Assumindo como potência essa capacidade plural de interpretação do mundo social, outros mergulham nesse vazio e o manejam como terreno fértil para novas criações de olhares e interpretações sobre a vida. A aproximação entre as narrativas literárias e sociológicas pode resultar num vórtice catalizador da produção de conhecimento e das formas de ver o mundo social. Ambas lidam com elementos comuns: a fabulação e o imaginário social. Teoria e ficção, romance e vida misturam-se no olhar interpretativo das narrativas sociais – não para enclausurar a literatura nas jaulas conceituais, mas para inspirar-se na aura de liberdade que a ronda. Así como el investigador puede encarar una demonstración en un texto, el escritor puede desplegar un razonamiento histórico, sociológico,

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4 antropológico. La literatura no es necessariamente el reino de la ficción. Adapta y a veces anticipa los modos de investigación de las ciencias sociales. El escritor que quiere decir el mundo se erige, a su manera, en investigador. (JABLONKA, 2016, p. 12)

“La literatura no es necessariamente el reino de la ficción”. Não necessariamente o reino, mas pertence a uma mesma classe. Independente do lugar onde é colocada a ficção na literatura, penso que uma é indissociável da outra1. Não vejo necessidade em querer aproximar o caráter ficcional da literatura ao caráter da (suposta) realidade daquilo que as ciências sociais se propõem a estudar. Isso porque não concebo a ficção como antagônica àquilo que é objetivo, mas sim como seu suporte – um suporte sem pretensão ao status de Verdade. Ao mesmo tempo em que não a vejo adentrar o campo do falso, concordando com Juan José Saer, quando diz que: Podemos, portanto, afirmar que a verdade não é necessariamente o contrário da ficção, e que quando optamos pela prática da ficção não o fazemos com o propósito obscuro de tergiversar a verdade. Quanto à dependência hierárquica entre verdade e ficção, segundo a qual a primeira possuiria uma positividade maior que a segunda, é desde já, no plano que nos interessa, uma mera fantasia moral. (2009, p.02)

A ficção tem a qualidade de mesclar o empírico ao imaginário. O romancista, como o pesquisador, apreende os acontecimentos sociais que o cerca e, a partir de seu método particular, cria uma narrativa sem pretensão de expor o – problemático conceito de – real propriamente dito. Por outro lado, podemos dizer que sua obra pode ser mais um olhar sobre o mundo social. Essa característica confere ao romance um ponto de partida para a pesquisa que tem legitimidade e potência para trabalhos no campo das Ciências Sociais. Penso que esse encontro pode ser de grande contribuição para ambas as áreas de conhecimento, chegando mesmo a movimentar os limites impostos que as separam, frutos de uma cultura científica que reflete o compartimento dos saberes desde há muito. A interpretação do social tende a se tornar mais verossímil na união desses diversos olhares e modos de apreender a vida. A aproximação num mesmo tecido entre a prosa das ciências sociais com as narrativa literárias, tendem a ampliar a compreensão das narrativas humanas como um todo – sem, contudo, partir de uma hierarquia que é “mera fantasia moral”. Por isso: El problema, en consecuencia, no es"saber si el historiador debe o no hacer literatura, sino cuál hace". Se puede decidir lo mismo del escritor con las ciencias sociales: el problema no es saber si habla de lo real, sino si se da los medios de comprenderlo. (JABLONKA, 2016, p. 23)

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5 Partindo do ponto de vista de que todo romance é uma ficção mimética; que, segundo Aristóteles, em sua Poética, a “mímesis supõe um ato de adequação ou correspondência entre a imagem produzida e algo anterior que o guia” e que “(…) a mímesis aristotélica adquire um acentuado grau de liberdade quanto a este algo anterior (…).” (LIMA, 2014, p. 31), penso que o mímema tem um caráter de imbricamento com os acontecimentos sociais ou existenciais que pretende reproduzir – tenha ela maior ou menor grau de liberdade quanto à forma de expressá-los. Ela (a mímesis) apenas não é moldada pelo princípio da semelhança senão que pelo vetor da diferença, em suas diversas formas (…). Por mais radicais que sejam as formas de diferença, elas sempre mantêm um resto de semelhança, uma correspondência, não necessariamente com a natureza mas sim com o que tem significado em uma sociedade, com a maneira como a sociedade concebe a própria natureza. (LIMA. 2014, p. 46, grifo meu)

Não à toa, sociólogos com trabalhos científicos notadamente reconhecidos já se utilizaram das prosas ficcionais para poder dar lastro aos seus argumentos, ou mesmo servir de documento para suas hipóteses sociológicas. É o que faz Norbert Elias em seu ensaio Sobre o tempo.

.o narcisismo de Elias Em seu ensaio, Norbert Elias busca olhar para o dispositivo2 tempo com o estranhamento necessário para que este seja descolado do tecido social. Em outras palavras, o transforma em objeto, utilizando um método genealógico para analisá-lo, a fim de tentar demonstrar as arbitrariedades contidas no decorrer da formulação e da construção dos conceitos e concepções de tempo. Nesse árduo trabalho de desnaturalizar o tempo, mostrando-o como um elemento sociocultural construído ao longo de gerações, o sociólogo descreve como os fenômenos naturais foram, em determinado momento, essenciais para o desenvolvimento da demarcação do tempo como é hoje concebida nas sociedades Ocidentais modernas. Em um trecho do ensaio, a fim de “encontrar lembranças autênticas da vida numa aldeia tradicional” (ELIAS, 1998, p.130) (grifo meu), com a finalidade de apreender a transição de poder desta mesma aldeia para o Estado (inglês) que então passava a colonizá-lo, o sociólogo diz que, para efetuar sua análise, “seremos obrigados Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano XIV, n. 08 – 2016


6 a nos apoiar essencialmente em fontes escritas” (ibidem). Como fonte de análise é escolhido o romance A flecha de Deus, do escritor nigeriano Chinua Achebe3. O livro narra os pontos de vista tanto do colonizador, como do colonizando: sobretudo de Ezeulu: sacerdote da divindade Ulu. O sacerdote de Umuaro é responsável por, entre outras designações políticas, definir as medidas de tempo no “calendário” das seis aldeias unidas sob a proteção dessa mesma divindade. Para isso, o sacerdote se valia de seus saberes adquiridos ao longo da vida, transmitidos a ele por seu pai – seu antecessor no podsto do sacerdócio -, para analisar o movimento da lua, a fim de definir o calendário4 desse conjunto de aldeias. São evidentes os motivos que levam Norbert Elias a resgatar as fontes presentes na narrativa (ficcional) do romance: delinear os contornos da violência, presente na coerção externa, utilizada para o disciplinamento dos corpos com relação à definição de uma determinada concepção de tempo; e se utilizar dessa demonstração como parte de sua reflexão sobre o tempo. É louvável seu esforço. Seu método nos coloca de frente aos mecanismos arbitrários de imposição de uma perspectiva sobre outra. E que, nesse caso, é focada na narrativa sobre o tempo: como os colonizadores ingleses se utilizaram de artimanhas para suplantar a perspectiva do colonizando. Contudo, a partir disso, poderíamos - com certa facilidade, diga-se - usar nossa imaginação para deslocar esse método a fim de desvelar as formas mais ou menos violentas em que as imposições de pontos de vista podem migrar para outros campos, outros costumes, outros mundos. A limitação do como Elias olha para seu objeto de estudo, tangencia justamente esta esfera: o ponto de vista. Um olhar mais atento, fortemente comprometido com a tentativa de mergulhar na arte política do deslocamento perspectivista5, nota, sem muito esforço, um certo grau de etnocentrismo na forma como o sociólogo descreve a forma do pensamento dos povos do romance – em outros termos, sua ontologia. Dostoievski diz que “o diabo mora nos detalhes”. E é nos detalhes da linguagem que o canhoto lambe os beiços – para o bem ou para o mal – ou além desta dicotomia. O fato de muitas denominações de objetos inanimados trazerem hoje a marca do masculino, em alguns casos, e a do feminino, noutros, talvez seja um vestígio de uma situação antiga na qual esses objetos eram percebidos como pessoas. (ELIAS, 1998, p. 135)

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7 Norbert Elias, ao taxar tais vestígios como pertencentes a uma determinada “situação antiga”, está assinando o atestado de óbito do pensamento dessas coletividades. Se não matando, jogando-os na vala comum do que foi superado, do que não merece atenção - que não seja com a utilidade de um espelho onde nossa moderna cultura Ocidental possa mirar-se para poder olhar para si mesma, num estranhamento do Outro para reafirmar o Mesmo. Inúmeras palavras do texto de Elias chamam minha atenção pelo forte teor evolucionista e teleológico. Sobretudo quando coloca de frente a cultura da tribo nigeriana do romance com a “nossa” moderna sociedade Ocidental. Dicotomias como “estágios anteriores ou primitivos” em oposição a “estágios posteriores”, são repetidas constantemente ao longo do ensaio, mostrando que “(...) o etnocentrismo é, como o bom senso (...), a coisa do mundo mais bem compartilhada”(VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 35). Na falta de uma percepção objetiva do enorme aumento da segurança que é característico das sociedades dos estágios posteriores, com a concomitante redução da incerteza e da angústia, é impossível nos conscientizarmos do alto grau de incerteza e perigo experimentado pelas sociedades dos estágios anteriores. (ELIAS, 1998, p.137) (grifos meus)

Não entrarei no mérito da afirmação desse trecho – que, a meu ver, é, por si só, questionável. O que cabe a esse ensaio é evidenciar para discussão a forma como a perspectiva do Outro pode ser apropriada pelo discurso do Mesmo nessa postura narcísica. Antigos e posteriores determinam um local em uma perversa e preexistente seta teleológica do tempo. Apesar de o sociólogo dizer que ao fazer uso de termos que remetam à ideia (ou ideal) de progresso, está apenas utilizando-se de um método de análise que se vale de “uma abordagem sociológica evolucionista, que tome por regra a simples evidência dos fatos” (ELIAS, N. 1998, p. 75), a leitura que faz da ontologia dessa coletividade africana, dita primitiva, narrada no livro de Chinua Achebe, evidencia que: (…) supor que todo discurso “europeu” sobre os povos de tradição não europeia só serve para iluminar nossas “representações do outro” é fazer de um certo pós-colonialismo teórico a manifestação mais perversa do etnocentrismo. (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p.21)

As marcas desse etnocentrismo - desse apego ao seu próprio ponto de vista, sem qualquer esforço para desloca-lo para adentrar e entender o ponto de vista do Outro são visíveis não apenas nas dicotomias e nas armadilhas verbais de Elias. Na genealogia do tempo que o sociólogo desenvolve, parte-se do acúmulo de saber que a moderna Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano XIV, n. 08 – 2016


8 sociedade Ocidental lança mão, ao longo de gerações, para que o tempo viesse a se tornar esse objeto despersonificado o bastante para habitar os calendários e relógios de pulso de forma tão natural e onipresente – além de totalitária. Em contraposição a essa forma de apreender o tempo, Elias elege o multinaturalismo6 presente na cultura dos povos do romance como exemplo da forma de apreensão do tempo de “sociedades em estágio primitivo”. Objetos como a lua ou o sol eram apreendidos como uma espécie de pessoas (por esses homens dos estágios anteriores) (…). Ao primeiro surgimento da lua nova, as pessoas tinham o costume de saudá-la devidamente, como convinha, com palavras como “teu rosto que se encontra com o meu”. Esse exemplo ilustra com muita clareza um modo de experiência ingenuamente egocêntrico ou engajado. (ELIAS. 1998, p.136, grifo meu)

Ora, Elias, não estaria o egocentrismo encharcando a forma com a qual você percebe o pensamento do Outro? Não quero insinuar com este questionamento que a lua deve ou pode ser encarada como uma potencial homicida7. Apenas penso que o perspectivismo ameríndio - como proposta epistemológica de Viveiros de Castro -, tem o potencial de contribuir não apenas para redesenhar enriquecedoramente a forma como as Ciências Sociais olham para aquele – no sentido mais amplo que essa palavra pode ter - que escolhe estudar, mas sobretudo como um catalizador do pensamento crativo, a partir da especulação possível por esse olhar perspectivado, quando dirigido ao Outro de forma anti-narcísica – sobretudo quando o pesquisador se vale da literatura como ponto de partida de sua pesquisa: A perspectiva da antropologia especulativa, assim, é a que deriva desse encontro – não é a perspectiva de um mundo ou de outro, mas a de sua tradução recíproca: uma entre-perspectiva, uma perspectiva caleidoscópica, composta e atravessada por mais de uma perspectiva, como talvez toda perspectiva, quando tornada corpo (textual ou xamânico), seja marca de um encontro de perspectivas: as técnicas corporais dos xamãs, o parentesco que o constitui, as relações interespecíficas que compõem a sua experiência, todos esses outros e suas perspectivas dão corpo à perspectiva xamânica ; assim como o ponto de vista do autor, do narrador, dos personagens, mas também os paratextos, a edição, a crítica e as interpretações, todas essas perspectivas dão corpo ao texto, constituem a perspectiva de uma ficção literária. (NODARI, A. 2015, p. 83)

.O Anti-Narciso Sublinho: proliferar a multiplicidade. Viveiros de Castro, Metafísicas Canibais, p. 28

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9 A formação acadêmica do cientista social é, via de regra, pautada em epistemologias objetivistas da modernidade Ocidental – sobretudo na sociologia e na ciência política. Ao longo do curso de graduação, em consequência disso, somos induzidos a pensar que: conhecer é “objetivar”. Nosso jogo epistemológico se chama objetivação; o que não foi objetivado permanece irreal ou abstrato. A forma do Outro é a coisa. (VIVEIROS DE CASTRO. 2015, p. 50, grifo meu)

O Outro é a coisa. Não só a lua e o sol, como se refere Elias, são objetos nessa análise. Também o são as sociedades dos estágios anteriores. Quando tratadas como objetos, é inevitável: forma-se o telos. A comparação, feita desse modo, com essa dicotomia evolucionista – mesmo que manifesta como destituída daquele valor Iluminista – ainda possui em si algum valor. O valor de espelho. O valor de objeto insuficientemente analisado. Como alternativa epistemológica, Viveiros de Castro nos apresenta o livro que nunca foi – e nunca será – escrito: O Anti-Narciso. Em Metafísicas Canibais, a proposição de uma outra forma de ver - a saber, o perspectivismo -, sugere um outro viés analítico. Não mais o Outro como espelho. Não mais a objetificação. Frente ao animismo ao qual Elias supõe praticarem aqueles povos por ele referenciados, o perspectivismo guarda um lugar para a personificação daquele que pretende interpretar. O xamanismo ameríndio é guiado pelo ideal inverso: conhecer é personificar; tomar o ponto de vista daquilo que deve ser conhecido. Ou antes, daquele; pois a questão é a de saber “o quem das coisas” (Guimarães Rosa), saber indispensável para responder com inteligência à questão do “por quê”. A forma do Outro é a pessoa. (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 50) (grifo meu)

Guardemos as devidas proposições: Viveiros de Castro fala do lugar do antropólogo amazonista; e quando fala, parte de seus estudos sobre os povos indígenas que fizeram derivar os conceitos de perspectivismo e multinaturalismo ameríndio – e não daquelas sociedades nigerianas do livro de Chinua Achebe. Entretanto, desterritorializar o conhecimento, tomando emprestado o que pode servir como potencializador para o que aqui discutimos - o método sociológico de análise de Norbert Elias -, nessa antropofagia deslocada, justifica o ato. A transversalidade de se fazer uso de uma narrativa literária para orientar determinada discussão sobre temas sociológicos, além de legítima, é fértil. As Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano XIV, n. 08 – 2016


10 possibilidades que Norbert Elias desperdiça ao sepultar o pensamento daqueles povos, sob seu viés etnocêntrico, são sintomáticas: o esgotamento de nossas categorias de análise nas ciências sociais, por se privarem, muitas vezes, do mergulho profundo em outras formas de pensar. O conhecimento Ocidental contemporâneo, por mais que se faça valer da síntese de um enorme amontoado de saberes, perde em intensidade quando deprecia outras perspectivas ontológicas e as descarta rapidamente por entendê-las superadas. Para sua análise sobre o tempo, a forma como Elias se dirige à cultura daquele povo narrado no romance serve ao seu propósito: construir uma linha tosca e grosseira da evolução dos saberes. Mas não podem passar batidos os custos do projeto. Vejo nisso o quadro de toda uma tradição do conhecimento “europeu”. Olhar para o Outro e de sua forma de ver com altivez e soberba. Analisando o mesmo trecho citado por Elias (ACHEBE Apud ELIAS, 1998, p. 132), onde a lua é personificada pelos personagens, e descartando sua interpretação deste fenômeno como animismo – pautado numa concepção multiculturalista -, colocando em seu lugar a perspectiva do multinaturalismo proposta por Viveiros de Castro, percebemos menos uma forma primitiva de ver o mundo do que uma ontologia diferente. Esse reembaralhamento das cartas conceituais levou-me a sugerir a expressão “multinaturalismo” para designar um dos traços contrativos do pensamento ameríndio em relação às cosmologias “multiculturalistas” modernas: enquanto estas se apoiam na implicação mútua entre unicidade da natureza e multiplicidade das culturas – a primeira garantida pela universalidade objetiva dos corpos e da substância, a segunda gerada pela particularidade subjetiva dos espíritos e dos significados -, a concepção ameríndia suporia, ao contrário, uma unidade do espírito e uma diversidade dos corpos. (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 44)

Ao passo que o multiculturalismo como política pública pressupõe a tutela paternalista da tolerância, o multinaturalismo reconhece uma equivalência do “espírito”, relegando ao corpo o lugar da diferença, uma vez que “a diferença 'jamais' se anula completamente” (LÉVI-STRAUSS Apud VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 49). Onde o corpo: (...) é um conjunto de maneiras ou modos de ser que constituem um habitus, um ethos, um etograma. Entre a subjetividade formal das almas e a materialidade substancial dos organismos, há esse plano ventral que é o corpo como feixe de afetos e capacidades, e que é a origem das perspectivas. Longe

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11 do essencialismo espiritual do relativismo, o perspectivismo é um maneirismo corporal. (VIVEIROS DE CASTRO. 2015, p. 66)

Ao analisar desse modo a apreensão daquele coletivo com relação ao mundo – em suma, sua cosmopolítica -, Elias não está sendo somente etnocêntrico. Está também anulando boa parte da potência contida naquela forma de pensar, em nome da objetificação acadêmica do conhecimento. Está sendo raiz, ao passo que é o rizoma que nos interessa. .perspectivismo ameríndio: por uma sociologia menor É em intensidade que é preciso interpretar tudo. Gilles Deleuze & Félix Gattari, Anti-Édipo Aqui, para falar sobre pensamento nômade, devir e desterritorialização do pensamento, será preciso levar os passos desse ensaio dançarino até outro campo: o filosófico, nos servindo daquilo que disseram Deleuze e Guattari. Claro, além de dois desses termos estarem frequentemente presentes ao longo de seus trabalhos – clara ou subliminarmente -, as reflexões de Viveiros de Castro estão em afinações muito próximas a dos pensadores franceses. A epígrafe acima, que abre essa sessão, é a mesma que dá início ao Metafísicas Canibais. São inúmeras as referências ao trabalho de ambos ao longo do texto – de novo: clara e subliminarmente. Já que o presente ensaio é menos traço do que borrão, inicio seu fecho me referenciando a dupla de pensadores franceses: Uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior. Mas a primeira característica, de toda maneira, é que, nela, a língua é afetada de um forte coeficiente de desterritorialização. (DELEUZE & GATTARI. 2015, p. 35)

Quando Kafka escrevia em alemão na República Tcheca de seu contexto, descendente de família judia, fazia da desterritorialização da língua um ato político. Um ato solitário, mas que, ao fim e ao cabo, remetia ao coletivo. Ele podia falar sobre o conflito de pai e filho – como em Carta ao Pai -, mas nem por isso o texto deixava de ter um programa político. Nesse sentido, resgatar determinadas narrativas literárias – como Elias faz ao tornar A flecha de Deus uma referência de seu ensaio -, tem um certo

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12 caráter político e desterritorializante. O problema reside, como dito antes, no modo como é (re)tratada essa narrativa do Outro. O resgate das narrativas literárias tem a potência de mergulhar nas subjetividades e nas socialidades8 que perpassam o social, sem com isso perder em nada a qualidade do que – ou de quem – se interpreta. Nisso abrem-se inúmeras possibilidades ao pesquisador, a partir dessa etnografia ficcional. É por isso que “ler ficções é altrerar-se, mudar a própria posição existencial, re-situar a própria existência diante de uma nova inexistência descoberta”(NODARI, 2015, p. 82). Ou seja, “o eu, o aqui, o mundo se modifica diante de um novo eu-aqui: não se trata de relativismo, mas de perspectivismo” (Ibidem, p. 80, grifo meu). A fim de buscar nesse exercício o desenvolvimento da arte de ver, sugiro que se tome como fundamento o perspectivismo ameríndio de que nos fala o antropológo Viveiros de Castro: não o livro como objeto, espelho; mas como pessoa, “isto é, como manifestação individual de uma multiplicidade biossocial” (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p.46). Onde os personagens vão além da dicotomia entre real e falso. E que mesmo guardados em sua qualidade de subjetividades inventadas, carregam o potencial de serem absorvidos e observados a partir da troca de perspectiva entre eles e quem os lê – a saber: nós, leitores. A primeira vista, essa proposição pode ser bastante estranha à gama dos métodos sociológicos de fazer pesquisa. Mas é justamente contra a primeira vista que esse ensaio investe sua potência – a perspectiva da “primeira pessoa”: aceitemos a relevante tarefa proposta por Foucault, a de penser autament o pensamento - “pensar 'outramente', pensar outra mente, pensar com outras mentes” (ibidem, p.25). Ou seja, apropriar-se da reflexão que o antropólogo traz à sua disciplina, buscando afetar outras áreas do conhecimento com esse forte coeficiente de desterritorialização que vem do perspectivismo ameríndio. Elevando dessa forma a sociologia à qualidade de uma ciência menor, capaz de conceber os platôs que derivam da contingência resultante da troca entre diferentes perspectivas ontológicas.

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13 Notas 1. Vale ressaltar as discussões sobre a parcela ficcional que cabe até mesmo às narrativas autobiográficas – que numa perspectiva derridiana, são concebidas como otobiografias: ou seja, as ficções do discurso sobre si próprio. Não irei me aprofundar nas discussões sobre essa questão – que são muitas -, vale apenas trazer para esta reflexão esta perspectiva a fim de ilustrar que mesmo os textos que que comumente se concebem como narrativas “reais”, baseadas em fatos verídicos, têm, segundo as perspectivas pautadas na otobiografia, sua parcela de ficcão. 2. AGAMBEN, G. O que é um dipositivo? p. 09 In: outra travessia nº05, Ilha de Santa Catarina: 2º semestre de 2015. 3. Há disponível no Brasil uma edição traduzida do romance pela Companhia das Letras – que possuo e já li. Contudo, a fim de dirigir a análise deste ensaio somente ao trabalho de Norbert Elias, preferi referenciar apenas os trechos que o sociólogo se utiliza para construção de seus argumentos. 4. Aqui, calendário pode ser entendido simplesmente como “o momento de agir”. 5. Arte política do perspectivismo ameríndio em contraposição à arte política do multiculturalismo tutelar das modernas sociedades Ocidentais. Metafísicas Canibais, Viveiros de Castro, 2015, p. 49 e 50. 6. Para utilizar um conceito de Viveiros de Castro, em contraposição ao “animismo” que Norbert Elias lança mão para descrever ontologia do povo do romance. Metafísicas Canibais, Parte I, Capítulo 3: Multinaturalismo. 7. O povo de Umuaro separava a lua entre “Lua boa” e “Lua má” – onde aquela de qualidade perversa teria a capacidade de matar aquele ou aquela que para ela olhasse e incomodasse: ACHEBE, C. apud ELIAS, N. 1998, p.132 8. “(…) a socialidade como a ação criadora e subversiva dos atores sociais (...)”. (MAFFESOLI, M. apud SILVA, C. M. 2005, p. 186)

REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. O que é um dipositivo? p. 09 In: outra travessia nº05, Ilha de Santa Catarina: 2º semestre de 2015. DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2015. ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998. JABLONKA, Ivan. La historia es una literatura contemporánea: manifesto por las ciencias sociales. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2016. LIMA, Luís Costa História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano XIV, n. 08 – 2016


14 ______. Mímesis: desafio ao pensamento. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2014. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal: prelúdio para uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. SAER, Juan José. O conceito de ficção. Revista Sopro nº 15. Desterro: Cultura e Barbárie, 2009. SILVA, Cristina M. O romance da vida social: encontros entre ciências sociais e literatura. Revista Emancipação. v. 5, n. 1. 2005. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

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