InfatiCidades - Pelo Direito a Brincar

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s e d a d i C i t n a f In Pelo direito a Brincar Maria José Araújo Hugo Monteiro João Teixeira Lopes

Edição: ESE-P.Porto



Maria José Araújo Hugo Monteiro João Teixeira Lopes

InfantiCidades Pelo direito a brincar

ESE - P.Porto Março de 2019


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Ao Francisco e ao Gaspar que, a caminho de se encontrarem com a Camila,vão brincar a não ter medo de mudar o mundo.

Ficha Técnica Título: InfantiCidades: pelo direito a brincar Autores: Maria José Araújo, Hugo Monteiro, João Teixeira Lopes Capa: Francisco Soeiro Fotografias: Inês Carvalho Edição: Escola Superior de Educação – P. Porto ISBN: 978-972-8969-26-4 Março de 2019

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Índice

Abertura. Infanticidades: saberes e cidadanias.

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AS CRIANÇAS E A CIDADE - Uma reflexão sobre usos e contra-usos no espaço público

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João Teixeira Lopes

BRINCAR NO BAIRRO - descobrir o Lazer no Tempo Livre através da sociabilidade nos espaços de logradouro

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Maria José Araújo

CRIANÇAS À ESPERA? - Um ensaio sobre participação na cidade

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Hugo Monteiro & Maria José Araújo

Pequeno Insultuário

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Sobre os autores

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Abertura. Infanticidades: saberes e cidadanias. De entre os muitos preconceitos instalados quanto às pedagogias e quanto a quem delas se ocupa, talvez o mais errado e mais capcioso seja o de que a pedagogia desvaloriza os saberes. Aumenta de intensidade o preconceito quando, de súbito, esta pretensa desvalorização dos saberes passa também a tomá-los como opressores, escravizadores, simbólicos carcereiros. E fica insuportável o peso do preconceito, quando são os seus próprios alvos que começam a acreditar nele, perpetuando-o até ao infinito. Comecemos então por desassombrar a questão. A ideia de que o saber escraviza ou oprime é uma ideia perigosa, enviesada, inquinada. É perigosa por muitas razões, mas principalmente porque, sem que se saiba (lá está!), ela vem confirmar o obscurantismo que, na história de muitos séculos e até hoje, recusou olhar para a realidade de frente em nome de qualquer coisa que esse olhar frontal pudesse contradizer. Nada de mais errado e – antecipemos – nada de menos infantil. O saber nunca oprime, nunca escraviza. Sempre o saber mais é um acrescento, também como produto natural de uma busca efetiva e de uma procura sequiosa. Algo há a dizer, porém, acerca do modo como se chega ao saber, ao estreito critério que por vezes comanda esse processo. É

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que somos tantas vezes reduzidos a vias únicas, a estradas já percorridas, a caminhos já conhecidos, que esquecemos ou invalidamos itinerários diferentes ou percursos distintos. Nesta negação de alternativa, sem saber (lá está!), acabamos por recusar também os múltiplos sentidos e as múltiplas linguagens em que o tal (nunca desvalorizado) saber se dignifica, se dissemina e se multiplica. *** Assim se passa com as crianças. Grande parte do discurso sobre a infância não só é excludente como é prescritivo, imposto e moralizador. Impõe a sua via única e avança cedo demais para uma orientação da qual só ele tem a bússola. Bem cedo e desde cedo, aponta para uma via de crescimento que a razão adulta, isolada na sua soberania, impõe como salutar. Com muita frequência veda discursos e impede alternativas, coloniza espaço e tempo em nome de uma “sensatez” exclusivamente produzida e validada em território adulto. Trata-se portanto, e frequentemente, de uma primeira imposição de hierarquia, em que a subjugação “porque sim” da voz da criança – não apenas sobre o seu saber, mas fundamentalmente sobre o seu trajeto – se faz em benefício de uma vontade maior, cujo único fundamento está em provir de uma voz adulta. Digamos com toda a seriedade, com toda a coloquialidade: é preciso brincar-se com as palavras. Infanticidades resulta de uma brincadeira, de um desejo de criar um espaço linguístico comum entre infâncias e cidades, um tempo comum entre criança e urbe, um espaço partilhado entre infância e civilidade. Ora para brincar é preciso saber que brincamos, pelo que a primeira questão a garantir está em sondar o alvo da brincadeira. E ele é claro: há uma distância e um desequilíbrio entre a criança e a cidade, como se vivessem de

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costas voltadas, uma ao abrigo e a destempo da outra, uma sem a outra. E é preciso juntá-las. Toda a cidade exige infanticidade. *** Escreveu Almada Negreiros, em A Invenção do Dia Claro: Pede-se a uma criança. Desenhe uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém. Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa direcção, outras noutras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase não resistiu. Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era demais. Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: Uma flor! As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor! Contudo, a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor! (Negreiros, 1990: pp. 171-172)1

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Negreiros, A. (1990). Obras Completas - Poesia. Lisboa: INCM. 7


Várias formas de ler e de brincar a partir deste texto poético. Enfrentemos desde já a que nos interessa: o desencontro entre o saber de um mundo adulto, onde tudo está já completo e estabelecido, e um mundo infantil, onde tudo é criatividade e construção. Não queremos, como é óbvio, dar qualquer conotação a este “Deus” que não tenha a ver com uma metáfora poética – com uma metáfora para a ação criativa sem regras do próprio brincar. Este Deus é, antes de mais, o lugar de uma epistemologia que não se deixa comandar pela estruturação vinda do exterior, como é o caso da pedagogia tradicional, mas antes aquela que vê, conhece e habita o mundo a partir de si mesma, ainda que não se limite a si mesma. Esta epistemologia, se quisermos, é também uma forma de inventar novamente os lugares que frequentamos. É também uma nova Geografia. Ora esta Geografia, como nos diz o poema, vive exposta ao risco de uma certa desadequação. Ela expõe, e não tem medo de expor, aquilo que pode ser considerado desadequado ou despropositado – aquilo que, em nós, não cabe. Ela assume uma diferença entre o pedido (adulto) e a resposta ao pedido (da criança), em que esta desenha criando “contra todos os modelos que os adultos propõem” (Eiras, 2016: p. 131)2. Esta Geografia reclama infanticidades, insistindo na cidade como espaço brincável, na procura pelo direito ao brincar.

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Eiras, P. (2016). Como se inventa a infância. In Constelações 2. Ensaios comparatistas (pp. 129–136). Porto: Afrontamento.

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AS CRIANÇAS E A CIDADE Uma reflexão sobre usos e contra-usos no espaço público João Teixeira Lopes

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Pensar as crianças na sua relação com o espaço público leva-nos a questionar duas dimensões cruciais: em primeiro lugar, as margens de agenciamento das crianças numa sociedade de adultos; em segundo lugar, as lógicas hegemónicas de produção urbanística. Em ambas as dimensões discutimos as vivências das crianças nos espaços urbanos e a relação que se vai estabelecendo entre dois sistemas de valores e representações: de uma banda, as culturas de infância e a espacialização dos seus quotidianos através de práticas sociais relativamente autónomas e específicas; de outra banda, o capital pericial de quem produz espaços fortemente especializados. Raramente estes saberes comunicam (e, para muitos, apelidar as práticas espacializadas das crianças de «saberes», constituirá ainda uma injustificável heresia…) No primeiro caso, defenderei a ideia da existência de uma agência infantil. O termo pode parecer algo provocatório, uma vez que infantil é habitualmente um adjetivo depreciativo, que remete para uma entidade inacabada, destituída de “maturidade” (e mesmo de “identidade”), uma espécie de “ainda não”…Ora, o decisivo papel da pesquisa sobre crianças tem demonstrado quer a existência de “culturas de infância”

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(Sarmento e Cerisara, 2004), com princípios estruturadores de relações sociais relativamente autónomos; quer a recorrência de uma “reprodução interpretativa” nos quotidianos infantis (Corsaro, 2005), em que a reprodução das estruturas sociais está longe de ser passiva (uma mera duplicata ou reflexo inerte), expressando, antes, uma incorporação seletiva e transformadora; quer, ainda, a pluralidade da ordem doméstica (Lahire, 2001), em que, ao contrário do que uma visão monolítica poderia sugerir, se comprova que a criança se encontra, desde que nasce, sujeita a um feixe de forças e princípios socializadores bem mais heterogéneo do que uma visão desfasada poderia supor, dadas as recomposições de papéis e modelos familiares, dada a porosidade cada vez maior do “lar” face ao exterior e dada ainda a diversidade intrínseca ao agregado (o pai, a mãe, os avós, os irmãos não pensam e agem todos da mesma forma, nem se adaptam aos contextos de modo absolutamente idêntico).

A agência infantil é infantil? A ideia de uma agência infantil bebe, desde logo, nas propostas de Giddens contidas na teoria da estruturação e na célebre hipótese da dualidade da estrutura. Esta, para além de conciliar as teorias da ação e as da estrutura busca superar o dualismo da estrutura por uma dualidade em que as estruturas e as ações se constituem mutuamente: "(...) as regras e os recursos utilizados na produção e reprodução da ação social

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são ao mesmo tempo os meios da reprodução sistémica” (Giddens, 1994: 81). Por outras palavras, O objeto da teoria da estruturação é, então, a produção e reprodução das práticas sociais no espaço-tempo, enfatizando a matricial importância da consciência prática (practical consciousness) como fonte de conhecimento e de orientação na vida quotidiana e o carácter espácio-temporalmente situado da ação humana. Se as crianças são agentes, ainda que limitados por constrangimentos múltiplos (de classe, de género, de etnia e, no seu particular caso, de idade), nem por isso podem ser reduzidas a seres inertes, passivos, marionetas do adultodemiurgo, uma vez que sabem como prosseguir (“how to go on”) para além das indicações e prescrições dos adultos, evidência particularmente visível na intersubjetividade e na intensidade de quadros de interação que estimulam a estruturação de normas tácitas entre pares, forjando, então, culturas de infância com uma materialidade própria, isto é, com um espaço-tempo específico, ainda que sujeito ao entrelaçamento de modos de dominação (mormente os que se estabelecem na e pela idade) e da distribuição desigual de recursos. Atuando na e pela prática, mobilizando, em contextos mais favoráveis, competências reflexivas (de um modo diferente do dos adultos – valeria aliás a pena refletir igualmente sobre os processos e dispositivos de uma

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reflexividade infantil), as crianças assumem-se como sujeitos sociais fazedores de relações e culturas. Em suma, as crianças contribuem ativa e decisivamente para a construção de uma sociedade infantil que se enquadra, em espaços-tempos dotados de uma certa margem de autonomia e especificidade, na sociedade global, ainda que não prescindindo de certo coeficiente de singularidade próprio das culturas de infância.

Crianças em espaços públicos Na perspectiva aqui adoptada afastamo-nos parcialmente da concepção habermasiana de espaço público, uma vez que o autor alemão (Habermas, 1980 ) define, antes de mais, a emergência de uma esfera pública burguesa e de uma «sociedade civil» abstracta e formal constituída primordialmente no e pelo discurso. Aproximamo-nos, assim, das críticas feministas quando referem que a racionalidade universal abstracta veiculada por Habermas carece de uma política da diferença, assente na extensão dos direitos liberais da modernidade a uma miríade de grupos sociais excluídos, maxime, invisíveis e inexistentes pela classificação e percepção hegemónicas. Nessa exclusão, figuram as crianças. Simultaneamente, não existe um discurso ou um agir comunicacional sem um corpo socializado e respectiva performance espácio-temporal. Falta, na proposta de Habermas, sensibilidade para pensar a espacialização das

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práticas sociais quotidianas em cenários de interacção concretos e vividos (Lopes, 2008): uma teoria do corpo no espaço-tempo. É como se retomássemos a célebre frase de Foucault: o espaço é tido como o morto, o fixo, o não dialéctico, o imóvel... Ou Lefèbvre, que critica asperamente as representações que o enunciam como «um meio vazio», «um contentor sem conteúdo» (Lefèbvre, 2000: XVII). Ou ainda, da banda da geografia, o reparo de Edward Soja à «silenciada espacialidade do historicismo» (Soja, 1999: 13). A esfera pública de Habermas jamais seria capaz de conter os espaços públicos das e com as crianças, uma vez que se baseia no uso crítico e abstrato de uma razão crítica “superior”. Aliás, falta a esta noção uma concretização espacial. Edward Soja, geógrafo marxista contemporâneo, quando aborda o conceito de terceiro espaço (Soja, 2000) enquanto espaço vivido, “simultaneamente real-e-imaginado, atual-e-virtual, locus da estruturação da experiência individual e coletiva e da agência” (Idem: 11), para além do espaço percecionado e planeado, pretende, precisamente, assim o creio, recuperar a ideia de agência para pensar nos modos de relação com o espaço. Assim, para além da perceção do espaço (e importa aqui considerar que o espaço não é liso; é pelo contrário pleno de “rugas”, de obstáculos, de encruzilhadas…) e da forma como ele é concebido e planeado pelos “produtores do espaço”, em particular aqueles que são dotados de competências e poderes periciais (urbanistas, arquitetos,

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engenheiros, pedagogos…), importa compreender os modos de apropriação infantil dos espaços, máxime dos espaços públicos, uma vez que as apropriações são interpretações baseadas na experiência, com inevitável carga transformadora. Ora, compreender exige necessariamente abordagens qualitativas, estratégias próximas (Ferreira, 2002) e pesquisa de terreno sobre e com as crianças, nos seus natural settings (Corsaro, 2005), com implicação etnográfica. Compreender, como insiste ainda Bourdieu (1993), requer um exercício espiritual (e acrescentaria: corporal) ao ponto de vista do outro, neste caso das crianças, prescindindo ao máximo da violência simbólica (e dentro desta, da sua componente de violência linguística) em favor de uma escuta (acrescentaria: observação, mirada) atenta, cuidada, prolongada e metódica.

Domesticação, insularização, usos hegemónicos Como refere Ana Nunes de Almeida (2009), o processo de modernidade surge acoplado, no que às crianças se refere, aos dispositivos de privatização e familiarização. Por conta da sua representada vulnerabilidade, dependência e incompletude, as crianças são confinadas ao espaço doméstico, sob forte controle familiar e os próprios lares, pese embora a desigualdade de capitais, são fortemente investidos de aparelhos da galáxia audiovisual (som, luz e imagem) e cibernética, com componentes interativas de ocupação intensiva dos tempos livres.

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Por outro lado, existe uma sobreocupação das crianças (Araújo, 2009), associada à modalidade hegemónica do ofício de aluno (que coloniza mesmo o jardim de infância), sobreescolarizada e amputadora da realidade de uma criança plural, isto é, dotada de vários papéis sociais e movendo-se em contextos igualmente diversos. A versão vigente desse aluno individualiza precocemente as crianças, associa lazeres a trabalho e aprendizagem, procura disseminar lógicas de competição, formata disposições de capital humano e esquece, por isso, que a criança é sobretudo muito mais do que o estudante ou o futuro profissional. A domesticação dos tempos livres diminuiu por isso a sua variabilidade, empobrece os seus conteúdos relacionais, reduz o seu potencial de imaginabilidade e retira agência às crianças. Como refere Maria José Araújo, até um certo ponto “se a criança não escolhe a sua brincadeira, já não é ela que brinca” (Araújo, 2009: 15). A domesticação, por seu lado, associa-se à predominante domesticidade das práticas culturais. Esta tendência não significa automaticamente um nivelamento por baixo ou uma uniformização dos lazeres. O contexto doméstico permite muito mais do que a panóplia habitual das práticas doméstico-recetivas ligadas aos velhos e novos media. Mas a socialização da criança enriquecer-se-á com a complexidade das experiências e esse traço requer a abertura nómada aos espaços públicos da cidade, até para que se sinta como profícua a tensão abertura/fechamento, público/privado.

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Finalmente, as representações dominantes sobre o espaço público e a disseminação mais ou menos generalizada de um sentimento subjetivo de insegurança, reforça o medo da cidade, evitando os espaços públicos ou incluindo-os nos circuitos das crianças apenas sob estrita supervisão e mediante um conjunto de usos programados e estandardizados. As crianças saltitam de “ilha segura” para “ilha segura”, numa configuração de arquipélago que traduz uma cartografia dos medos dos adultos. Muitas vezes, essa circulação cria um mapa mental profundamente amputado das cidades que existem na cidade. No entanto, o espaço público, na sua radical definição, exige a multiplicação de possibilidades de conhecimento e confronto da diversidade (de classe, de género, de etnia, de estilos e modos de vida...), no jogo da indeterminação, da aleatoriedade e da surpresa. Por outras palavras, espaços públicos controlados, homogéneos e altamente previsíveis diminuirão as possibilidades de uma socialização na e pela diferença – diferença que acrescenta, interpela, cruza e enriquece repertórios, inclusive linguísticos. Para além desta limitação, os espaços públicos i) raramente são concebidos para estimular o fecundo confronto da diferença, tendo em vista a hibridação cultural, generalizando-se as fórmulas da “praça seca”, do território de circulação ou passagem, de “tabula rasa”; ii) amiúde difundem a fórmula da “cidade genérica” (proposta pelo arquiteto Rem Koolhaas), sem história e sem centro, caindo, tantas vezes, na

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estandardização, na repetição, no urbanismo de espétaculo e de ficção; iii) escasseiam os espaços públicos para crianças, acontecendo, quando muito, a conceção de “cantos”, com ou sem equipamento, face aos quais as crianças nunca são ouvidas (e ouvi-las pode significar observá-las com sistemacidade; dar conta dos seus modos de brincar e de fazer sociedade; dos seus circuitos próprios; das configurações relacionais; da gestão social e cultural do corpo, da distância e da proximidade; etc.).

Contra-usos Assim como a cultura dos pobres não tem de ser – e não é – uma cultura pobre, os espaços públicos para as crianças devem superar a lógica infantil da subalternização dos seus habitus como sujeitos plurais, dotados de agência e relativa autonomia. Em vez de meros espaços para as crianças (ou, nos piores casos, para agir sobre as crianças, condicionando-as e controlando-as), poderiam ser, cada vez mais, espaços com crianças, implicando-as desde o seu planeamento (envolvendoas num diagnóstico etnográfico dos seus modos de habitar e forjar os espaços-tempos), até à avaliação do seu impacto socializador. Espaços potenciadores de diferença (logo abertos ao confronto de idades, gerações, classes, etnias, géneros…) e educadores para a diferença. Espaços, além do mais, plásticos, contendo em si usos potenciais como apelo à participação e à criatividade.

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Como escreveu Samy Lansky, arquiteto-etnógrafo brasileiro que estuda os usos das crianças de equipamentos públicos urbanos, “penso que não é possível nem mesmo desejável prever todos os usos que os espaços podem receber” (2012: 288). Ou ainda: “…em espaços considerados escolares, de lazer, esportivos, comerciais, etc., acontecem muito mais coisas que os planejadores imaginam. Suas barreiras são atravessadas e, portanto, poderia considerar que os espaços especializados não existem quando observados de perto” (idem: 288). A questão resideria, pois, em obstaculizar ou favorecer, desde o início, desde o planeamento de espaços e equipamentos, essa superação de barreiras. De alguma forma, seriam espaços abertos e propositadamente incompletos; espaços à espera de serem feitos, mobilizados, atualizados, fruídos, reconstruídos. Espaços permanentemente em emergência. Nesse sentido, é de prever – e estimular – o acionamento de contra-usos (não previstos, contrahegemónicos, frequentemente não intencionais), desde que protejam a autonomia, a integridade e a segurança das crianças. Nas geografias reais incrustrar-se-iam assim geografias imaginárias. Da sua confluência resultaria o espaço vivido, o tal terceiro espaço de que fala Soja. Não se pense que este espaço é uma espécie de reino que pertence a outro mundo. Pelo contrário: ele induz experiências, relações, modos de lidar com constrangimentos e possibilidades, possui, em suma, uma materialidade própria que produz efeitos nas culturas da infância.

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Creio, aliás, que uma nova cultura de espaços públicos produzia novas dinâmicas no próprio domínio privado. Público e privado existem apenas em relação e as mudanças num repercutem-se no outro, com as necessárias traduções e mediações. Por outro lado, tais experiências infantis em espaços públicos assim concebidos – liminares, plásticos, porosos, indeterminados e emergenciais – poderão constituirse, se recorrentes e sistemáticas, na estruturação de disposições que valorizem a interculturalidade, o jogo de saber colocar-se no lugar do outro, de o imaginar em si, fora de si e no mundo. E tais saberes relacionais poderão ainda transitar para a domesticidade dos lazeres, transformando os cânones do jogo familiar indoors, bem como circular entre o real-real e o realvirtual, instituindo no ciberespaço lógicas de conhecimento e reconhecimento da diferença.

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Referências bibliográficas Almeida, A. N. (2009), Para uma Sociologia da Infância. Jogos de olhares, pistas para a intervenção. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais. Araújo, M. J. (2009), Crianças Ocupadas. Porto: Primebooks Bourdieu, P., dir. (1993), La Misère du Monde. Paris: Seuil. Corsaro, William (2005), The Sociology of Childhood. Thousand Oaks: Pine Forge Press. Ferreira, M. (2002), «A Gente Aqui o que Gosta Mais é de Brincar com os Outros Meninos!» As crianças como actores sociais e a (re)organização social do grupo de pares no quotidiano de um jardim de infância. Porto: Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto. Giddens, A. (1994), "Elements of the theory of structuration" in AAW, The Polity Reader in Social Theory.Gambridge: Polity Press. Habermas, J. (1984), Mudança Estrutural da Esfera Pública, Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro. Lahire, B. (2001), L’Homme Pluriel. Les Ressorts de l’Action. Paris : Nathan. Lansky, S. (2012), Na cidade, com Crianças. Uma etno-grafia espacializada. Belo Horizonte : Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais

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Lefèbvre, H. (2000), La Production de l’Espace, Paris : Anthropos. Lopes, J. T. (2008), “Andante, andante: tempo para andar e descobrir o espaço público” in LEITE, Rogério Proença, Cultura e Vida Urbana. Ensaios sobre a Cidade. São Cristóvão: Editora da Universidade Federal de Sergipe. Sarmento, M. J. e Cerisara, A., orgs. (2004), Crianças e Miúdos: Perspectivas Sociopedagógicas da Infância e Educação. Porto: Edições Asa. Soja, E. W. (2000), Postmetropolis: Critical Studies of Cities and Regions. Oxford: Blackwell Publishers. Soja, E. W. (1999), Postmodern Geographies. The Reassertion of Space in Critical Social Theory. London: Verso.

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BRINCAR NO BAIRRO descobrir o Lazer no Tempo Livre através da sociabilidade nos espaços de logradouro

Maria José Araújo

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O lazer no tempo livre é parte integrante de um ideal democrático que facilita o desenvolvimento pessoal e social de crianças e adultos. Baseia-se em práticas de sociabilidade geradoras de uma solidariedade e identidade grupal que assumem uma função de libertação ou evasão, em relação à pressão da rotinarização da vida quotidiana. As brincadeiras das crianças nos espaços de logradouro com o grupo de pares são exemplos de práticas que envolvem atividade física e que correspondem às necessidades lúdico-expressivas das crianças, com impacto direto na sua saúde e no seu bem-estar. De acordo com Vidal & Gonçalves (2011), o brincar e as praticas de jogo na "rua" enquanto práticas de sociabilidade urbana, são ainda potenciadoras de relações de vizinhança de habitantes de um mesmo contexto, de uma mesma comunidade. No entanto, especificamente em relação às crianças, o brincar e as trocas culturais nos usos da "rua" têm gerado um debate conflitual, na medida em que, por um lado, o espaço verde tem vindo a ser, gradualmente, substituído por complexos habitacionais que em muitos casos não têm previsto espaços de recreação ao ar livre onde as crianças possam brincar e jogar e, por outro, a intervenção dos adultos para minimizar o risco de perigo ou a insegurança tende a sacrificar a experiência da infância. Neste texto fazemos uma reflexão sobre o significado de viver e brincar no bairro de habitação social e a possibilidade de usufruto do espaço de logradouro entre crianças e adultos.

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Descobrir a infância sendo criança O tempo da infância é um tempo de descobertas e, para muitas crianças, o mais importante, poderoso e significativo de todos como referem Brougérè (2005), Sarmento & Cerisara (2004), entre outros. As crianças precisam de se movimentar e estão geneticamente predispostas a explorar o mundo que as rodeia com vontade de o compreender. A motivação para a descoberta do mundo prende-se com a relação que as crianças, mas também os adultos, estabelecem em contato com a natureza, enquanto ambiente natural que, hoje, está condicionado pelo crescimento na cidade e as propostas de alojamento. De acordo com o relatório das Nações Unidas (2014)3, mais de metade da população mundial vive na cidade. Isto significa que o espaço verde tem vindo a ser, gradualmente, substituído por complexos habitacionais que em muitos casos não têm previsto espaços de recreação ao ar livre onde as crianças possam movimentar-se, brincar e jogar. Paralelamente a estas questões quando os pais trabalham onde ficam as crianças? A criação de espaços e de ofertas específicas para responder à necessidade dos pais deixarem os seus filhos em segurança, quando estão a trabalhar, tem aumentado a quantidade de horas que as crianças estão em espaços fechados e são reveladores do tipo de inibições que se impõem às crianças, sobretudo por razões de controle e segurança. As crianças passam mais tempo em frente aos ecrãs, mais tempo a fazer atividades de tempo livre organizadas pelos 3

http://esa.un.org/unpd/wup/highlights/wup2014-highlights.pdf 25


adultos e passam menos tempo a socializar e a brincar ao ar livre (Araújo, 2012). Um entendimento do ambiente em que a criança se encontra é importante porque, antes de mais, esse ambiente indica à própria criança o que esta pode ou consegue fazer. Não está em causa a legitimidade dos pais quererem proteger os seus educandos, mas é importante compreender que as crianças precisam de se movimentar, correr, saltar e brincar umas com as outras em espaços amplos e que isso tem um grande impacto na forma como as crianças crescem e se desenvolvem tendo, inclusive, uma influência na vida adulta, como referem Kahn (2002), Dannenmaier (1998). O debate sobre o brincar e os espaços onde as crianças podem brincar, sobretudo nos grandes aglomerados urbanos, não pode esquecer os constrangimentos a que elas estão sujeitas, os contextos onde habitam, as preocupações educativas e escolares e assim todo o contexto social e cultural que as rodeia. Na verdade os espaços são aquilo que as pessoas fazem deles, ou seja, correspondem aos modos de vida daqueles que os constroem e habitam como referem Rémy & Voyé (1997). O “espaço externo, aquele que pertence à comunidade, é um espaço dominado enquanto que o espaço interno, o da vida familiar, é um espaço apropriado” (Lefebvre, 1974: 12). As lógicas de apropriação ajudam a compreender como o espaço funciona para determinado grupo social consoante a modalidade de uso social. No caso das crianças o uso do espaço público tem sido de direitos limitados.

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Neste texto - um pequeno ensaio de características etnográficas - fazemos uma reflexão crítica sobre brincar num bairro de habitação social na cidade do Porto, enquanto contexto onde as crianças podem sociabilizar com os seus vizinhos, mesmo que muitas vezes em condições adversas marcadas pelo discurso educativo e mediático que estigmatiza os seus habitantes e seus modos de vida. A nossa reflexão centra-se no conceito de tempo livre, nas representações que os adultos têm sobre a rua e o brincar ao ar livre, enquanto prática que promove uma linguagem corporal, cognitiva e afetiva essencial para o bem estar das crianças, mas também dos adultos que com elas convivem.

Lazer e tempo livre O estudo do “tempo livre” deve-se sobretudo a Joffre Dumazedier, para quem o lazer no tempo livre não se reduz ao tempo libertado pelo progresso económico e pela reivindicação social, mas é também criação histórica, fruto da mudança, do controlo institucional e da vontade individual (Araújo, 2012). A sociologia do lazer, analisando os problemas e a ambiguidade a que este tempo está sujeito, sublinha que o lazer pode ter, pelo menos, três funções: repouso, divertimento e desenvolvimento, cuja distribuição será proposta consoante as posições pedagógicas, políticas e sociais assumidas pelas instituições e pelas pessoas, o que torna o estudo deste tempo, sobretudo em relação às crianças e jovens, cada vez mais

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pertinente e necessário para esclarecer o seu papel na evolução social. Dumazedier constatou, assim como outros autores depois dele, que o tempo livre, valorizado em todas as classes sociais, enquanto fato social, incita a novos valores cujo reconhecimento tem vindo a ganhar visibilidade com a criação de espaços e de ofertas específicas que constituem um importante setor de atividade, nomeadamente económica. Os processos de afirmação das subculturas (de que são exemplo as subculturas juvenis) e das atividades instrumentais, expressivas, gratuitas ou de sociabilidade, explicam o fenómeno da diversidade cultural que este tempo oferece aos cidadãos. Para os mais novos, como refere Machado Pais (1990), o lazer no tempo livre assume uma importante função de resistência, libertação, rutura e evasão em relação a uma crescente banalização e rotinarização da vida quotidiana. Está necessidade de rutura é ainda mais forte nos territórios marcados por um grande stress social, como é o caso dos bairros sociais. A luta pelo aumento do tempo de descanso marcou o evoluir da nossa civilização e o tempo livre passou a ser entendido como um tempo social com características próprias, um novo direito, tendo a sua ampliação um sentido natural da evolução histórica e tecnológica. A expansão das práticas de lazer, leva a considerar a noção de tempo livre como fator capital e decisivo para compreender o sentido da mudança social que afeta a forma como o ser humano percepciona, organiza e usufrui do seu tempo. Sue (1980), propõe uma tipologia que distingue quatro tipos de tempos livres: tempos livres culturais — em que se destaca a televisão,

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as tecnologias de informação e comunicação, seguida do cinema, da música, da leitura, da rádio, das atividades artísticas, visitas a espaços e centros de cultura; tempos livres dedicados ao desporto — uma atividade de grande reconhecimento social e com grande adesão, vemos diariamente pessoas a fazer jogging, frequentar clubes e colocar os seus filhos em atividades coletivas; tempos livres de jardinagem e outros hobbies ; tempos livres para práticas sociais — convívios, práticas associativas, entre outro tipo de atividades coletivas de que hoje se destacam, também, as comunidades virtuais. Em Portugal e no que respeita às crianças e jovens, o tempo livre tem sido concebido como um tempo destinado ao desenvolvimento de atividades formativas. Esta perspetiva é suportada pelo conteúdo da LBSE DL nº 46/86 de 14 de Outubro, que refere, no artigo 3º, que o tempo livre deve “contribuir para a realização pessoal e comunitária dos indivíduos (...), pela prática e aprendizagem da utilização criativa dos tempos livres. A pedagogia dos tempos livres temse confinado às exigências políticas ou educativas, permanecendo em aberto a questão de saber qual a atividade ou atividades que melhor possibilitam o exercício da liberdade na ocupação desse tempo. Ora, é precisamente o respeito por esta liberdade que deveria caraterizar um tempo que se queira denominar como “tempo livre”. Autores como Rovira e Trilla (2004) entre outros, têm trabalhado sobretudo a partir do conceito e das práticas da animação sociocultural tendo como

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referencial a educação para o tempo livre como um movimento educativo, produto da evolução científica e social. Outros autores como (Belloni, 1994; Pinto, 2000), consideram que o estudo e a reflexão sobre este tempo que existe para além das atividades obrigatórias, e que tem sido objeto de constrangimentos vários, envolve dificuldades epistemológicas e metodológicas, uma vez que, na sociedade moderna, os espaços onde as crianças podem tomar as suas próprias decisões são praticamente inexistentes. Assim, e considerando que é sobretudo na relação com o tempo livre que a vida das crianças tem sido menos estudada, estes autores enfatizam, por um lado, a necessidade de reabilitar o sentido da atividade lúdica como componente essencial deste tempo e, por outro, a necessidade de se precisar o que significa este tempo correlativo da liberdade. As aprendizagens do quotidiano, atividades tantas vezes ignoradas, que parecem aos educadores desprovidas de interesse, como é o caso do brincar ou do jogo espontâneo, da corrida entre outras, são atividades que preenchem os tempos livres das crianças e jovens e que são fundamentais para o seu bem-estar.

O(s) bairro(s) e o quotidiano: um pé no chão e outro no pedal Os locais são muito diferentes quando se habitam por dentro ou se olham de fora. Quem não habita no bairro, dificilmente lhe conhece os sentidos. É preciso um olhar

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cuidadoso e respeitador para se compreender que a organização formal do espaço público é atenuada pelas normas da sociedade. Normas que são interiorizadas por cada grupo social de forma diversa, pois dependem das condições da sua produção. Os comportamentos são uma forma de interrogação interacional num espaço público de conflito de normas (entre a cultura dominante e as diferentes sub-culturas produzidas pelos diferentes grupos) e, assim, os episódios triviais da vida quotidiana podem ser uma dimensão central da pesquisa sociológica. É possível tornarmo-nos outro(s) e desempenharmos o seu papel, implicarmo-nos num jogo de circunstâncias, como refere Goffman (1993). Existe uma relação entre os indivíduos e os papéis por eles assumidos na interação, e essa relação é uma resposta ao sistema interativo, ao contexto em que esses papéis são desempenhados. Segundo a definição de Goffman, o contexto é o quadro local e percetivo no qual se desenrola uma atividade e em que se desenvolve uma conversa. Do ponto de vista ecológico, este termo designa o espaço em volta, espaço de logradouro, em que se interage de acordo com os recursos disponíveis. Do ponto de vista cognitivo, o contexto permite aos participantes fazer inferências sobre a ação ou sobre a conversa em curso, algo que pode e dever ser estimulado em todas as relações de sociabilidade. O bairro é, assim, um espaço onde vida pública e privada são coexistentes, onde se descobrem os pormenores da vida quotidiana, um espaço público onde se espera que as pessoas

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representem a sua vida privada. A forma como as pessoas se vestem, pela manhã, para trabalhar, levar os filhos à escola ou ir à padaria, testemunha o percurso diário, expondo cenas da vida doméstica. Do mesmo modo, como refere Prost (1991), passar do privado ao público é frequentemente brutal e, para alguns, começa logo de manhã, quando se sai de casa para o trabalho, ou para a escola, e essa passagem é marcada por diferentes constrangimentos e dependências (ser pontual, não perder o autocarro, não apanhar um engarrafamento). Os bairros são espaços de transição, com normas próprias, os bairros revelam um determinado número de particularidades de quem os habita. A heterogeneidade de populações, quer do ponto de vista do estilo de vida, quer da sua experiência e condições de vida, levanta questões que não se ligam somente com as formas mais convenientes de saber viver o dia-a-dia, mas também com o ajustamento do comportamento que é necessário fazer (Araújo, 2004). É importante referir que o bairro de habitação social - frequentemente acossado pelo discurso mediático, um discurso pautado por um senso comum pouco informado que não olha às particularidades e singularidades de quem o habita - é um espaço de construção de redes sociais (amizades e trocas culturais) que contrasta com as redes sociais virtuais, com outros espaços da cidade e até com muitos condomínios fechados em que as crianças têm pouca possibilidade de brincar ao ar livre em contato com outras crianças. O bairro é isto que você vê, é aqui, diz uma criança que

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joga à bola com os seus amigos, vizinhos e companheiros de escola. Uns fazem “casinhas” na entrada do bloco4 onde habitam, outros vão fazer um recado à loja, enquanto outros vão com as educadoras para o parque de diversões. Há muitas crianças a brincar no bairro. Os espaços de logradouro, espaços exteriores comuns de diferentes redes de interações, conforme os modelos culturais de referência, são para adultos, jovens e crianças locais de produção e desenvolvimento de sociabilidades e a sua frequência oferece a possibilidade de rutura com a rotina. Como refere Machado Pais (1990), o recurso a estes espaços constitui e conserva entre os habitantes de uma dada comunidade sentimentos de pertença identitários que têm a ver com a relação entre esses habitantes e o meio físico e social em que vivem, ajudando assim a reforçar o espírito de comunidade. Enquanto as crianças de “bike”5 conversam com um pé no chão e outro no pedal, outros empunham objetos de brincar que transformam de acordo com a brincadeira, correm, saltam à corda, jogam à macaca ou à bola, escondem-se e fantasiam esconderijos, havendo sempre um olhar de uma janela que controla ou vigia. O parque ou a entrada do bloco são os territórios preferidos pelos mais jovens para conviver: apreciam o ringue desportivo e muitas vezes juntam-se apenas para uma conversa, que por vezes é mediada pelas novas tecnologias. O movimento sente-se no bairro. Não 4

“Bloco” é a designação utilizada para uma habitação conjunta em prédios de vários andares, mas que inserido em bairros de habitação social veio a ganhar, na sua evolução semântica, uma conotação negativa. 5 Diminutivo de bicicleta, usado pelas crianças.

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só no seu interior, pela possibilidade de juntar os mais novos para uma atividade desportiva, coletiva, organizada por um voluntário que dedica a sua vida a estas causas do jogo, como pelos responsáveis da associação de moradores, que lembram a necessidade de melhorar as infraestruturas de apoio. Este movimento, real, é sentido pelos habitantes como normal mas muitas vezes criticado por quem olha de fora para dentro sem a compreensão e o respeito pelas pessoas que ali habitam e, sobretudo porque criticar é uma opção fácil. Os habitantes mais idosos que não têm uma ocupação organizada convivem uns com os outros e/ou ficam no banco do jardim à espera de quem passa para trocar "uma ideia" fazer uma pergunta ou mesmo só para cumprimentar e "apanhar ar". Quando o banco não existe, um pequeno muro serve de assento a esta distração: “ver passar”. “Ver passar” é uma ocupação por excelência nestes contextos, pois frequentemente quem vê passar sente-se responsável pelo bom andamento das coisas, comenta o que se passa nas diferentes instituições e até habitações. Vai deitando “os olhos” a uma criança que vai a um recado da mãe, nota e comenta as brincadeiras das crianças, dá conselhos, vê se as rotinas pessoais se concretizam, dá uma notícia ou comenta um qualquer acontecimento. Tudo se sabe e se pensa saber, tudo se esconde como um bom segredo que é para mais tarde toda a gente saber. Esta sociabilidade é essencial para as crianças, a sua sensibilidade e respeito pelos mais velhos começa nestas brincadeiras. Muitas vezes, os bancos do jardim convertem-se em mesas de jogo de azar,

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normalmente cartas, ou ainda em locais de leitura. Os idosos leem o jornal ou referem a pena que têm de não ter aprendido a ler. Comentam o futebol (campeonato ou liga dos campeões, tanto faz...), o que interessa é ter assunto. Um assunto de que, como outros, todos sabem, dos mais novos aos mais velhos. Este futebol não escolhe idades nem sexo e todos sabem falar, comentar e dar opinião. As paixões que os unem prendem-se com elementos simples: um jogador e o seu golpe de pé, uma estratégia de vida ou a persistência e a vontade de jogar, um passe bem feito ou um golo na altura certa. Tanto se elogia como se "deita abaixo", porque devia ter "chutado" e não conseguiu. O prolongamento do jogo para além do ecrã, do espetáculo imediato, propicia o convívio e o debate de ideias no tempo livre e arrasta muitas crianças e as suas bolas para o espaço do bairro. Não há quem negue esta necessidade que as crianças vão mostrando diariamente e que nem sempre encontra espaço e tempo para o seu exercício. Na medida em que as crianças se veem impossibilitadas de brincar dentro de casa (em virtude da exiguidade das áreas de construção e das formas de utilização desses espaços domésticos), a “rua” (do bairro) acaba por se tornar o palco privilegiado das suas brincadeiras. É na rua que as crianças, assim como os jovens, recriam as suas redes de sociabilidade, participando na vida social e convivendo com os adultos desde muito cedo, produzindo assim novas cognições. A proximidade das relações sociais, familiares, amigos e de vizinhança permite um grande espaço de convivialidade, uma vez que os

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adultos dispõem frequentemente de tempo livre e é na rua que o gastam, invertendo a ordem das rotinas do cidadão urbano, em que o espaço de convívio é privado e, se localiza no interior das habitações (Araújo, 2004). De fato, comunidades deste tipo, em que o espaço de logradouro ainda é uma possibilidade de convívio, contrasta com outros espaços habitacionais da cidade, destinados à classe média, em que a dimensão dos prédios, a localização e a cultura tornam, muitas vezes, solitário e monótono o dia-a-dia das pessoas mais idosas, que acabam a participar na vida da cidade quase exclusivamente pela televisão. O debate sobre o perigos da tecnologia e da televisão para os mais novos - por dificultar a atividade física nem sempre tem em conta os seus contextos culturais e de vida. O bairro é esse palco onde se espera que as pessoas representem a sua vida privada como refere Prost (1991), todavia, é considerado um espaço perigoso o que se reflete na própria população que, por extensão, é alvo de rótulo: acabando por se desenvolver a crença da pouca viabilidade do destino coletivo. Esta crença tem um grande impacto na forma como os educadores se relacionam com as crianças e constitui o primeiro constrangimento. Desde logo, porque o espaço é planificado sem se ter em conta as necessidades das pessoas, e das crianças em particular. Os espaços públicos dos bairros são considerados pela sociedade em geral (através de um discurso reforçado pelas representações da comunicação social) como territórios hostis às atividades e brincadeiras das crianças

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(apesar de muitas vezes até mesmo os espaços mais improváveis serem apropriados de modo criativo por elas). Há frequentemente medos e visões negativas sobre o espaço público e sobre a rua, quer da parte dos educadores, quer das populações em geral, que os associam a sentimentos de insegurança. Este tipo de visões condiciona o modo como as pessoas se relacionam com o espaço e determina que muitas vezes se fechem as crianças em espaços exíguos, sem condições, considerando-os sempre preferíveis ao “perigo” da rua. O potencial da rua, das relações sociais que proporciona e que nela têm lugar (as interações entre vizinhos, os territórios de brincadeira, etc.) não é, regra geral, rentabilizado pelas instituições educativas (escola, ATL, etc.), que tendem a isolarse e a fechar-se relativamente ao bairro em que se inserem, limitando-se na maior parte das vezes a constituir-se apenas como local de guarda, não se integrando plenamente nas relações sociais e espaciais que quotidianamente fazem o bairro e constroem os lugares. Os responsáveis pelas instituições e os pais e encarregados de educação, muitas vezes, ignoram que os espaços exteriores são domínios inequívocos de crescimento e de aprendizagem promotora de bem-estar. Como refere Vidal & Gonçalves (2011), o exercício físico e a prática do desporto tem sido contrária a uma prática de rua que por natureza é pouco disciplinada. Parece haver uma forte oposição entre a informalidade da rua e a formalização das práticas desportivas. Esta temática tem despertado pouco interesse nos estudos do lazer que aparecem mais investigados em lugares específicos: os ginásios, os campos de jogos e não

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tanto nos espaços do quotidiano. Para uma prática educativa que se interesse por perceber os lazeres infantis no tempo livre, o sentido da brincadeira, do jogo, do espaço público e do contacto com a natureza, é preciso ter sempre presente o respeito pela ligação das pessoas aos espaços onde vivem.

Os jogos são precisos, mas a rua não é para brincadeiras Aos jogos de rua, jogos de exercício opõem-se as brincadeiras vigiadas e, assim, a um tempo votado ao acaso e à proximidade com o outro através do jogo e da brincadeira opõe-se um tempo organizado em espaços vigiados. A “rua”, território aparentemente preciso na sua nomeação física, mas ao mesmo tempo multíplice nos seus significados, é considerado perigoso. À ideia de nocividade não é alheia a prevalecente dicotomia entre a rigidez da organização temporal e espacial da escola, da casa, de outros espaços de acolhimento para a infância e a juventude e a flexibilidade e diversidade das vivências possíveis no espaço da “rua”. As ruas não são para brincadeiras, as casas dos pais ou dos avós cada vez menos têm jardim, os parques são das autarquias ou dos centros comerciais. Por contraste com os “condomínios fechados” e programados das instituições educativas, da escola e da casa, a “rua” pode afirmar-se com reforçada positividade, mesmo que tal possa parecer inverosímil para quem, nas suas funções pedagógicas, não tenha presente na memória esse tipo de

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referências e imaginário em que os espaços exteriores são domínios inequívocos de crescimento e de aprendizagem – em contextos, portanto, socialmente significativos. Não deveremos ignorar a ligação dos habitantes com as suas cidades e com o seu bairro, uma vez que é lá que vivem e é ali que são reconhecidos na sua identidade (que ali se constrói, também). No espaço da “rua” se exprimem constantemente múltiplas dimensões da vida que podem ser objeto de apropriação pelas crianças num contexto eminentemente lúdico e convivial. É através do jogo e das brincadeiras que o jogo permite que as crianças crescem e reconhecem o mundo que as rodeia (Araújo, 2004). Brincar é a atividade que as crianças melhor conhecem, de que mais gostam e está presente desde que se levantam até que se deitam, em todas as situações, mesmo que muitos adultos o ignorem. Como refere Sutton-Smith (2001), todos nós brincamos e todos nós sabemos como é. Brincar é a possibilidade que as crianças têm de desenvolver habilidades motoras, percetivas, cognitivas e sociais. A criança quando brinca comanda a situação, tem o controlo da sua brincadeira, percebe do que é e não é capaz e isso é essencial para a sua auto-estima e, assim, para a sua relação com os outros, em especial com o grupo de pares. A criança decide o que brinca e quanto tempo brinca porque, mesmo que tenha de interromper a brincadeira, pode voltar a ela quando quiser ou puder. Ao longo de toda a vida, as crianças precisam de atividades equilibradas; isso significa que têm necessidade de uma grande variedade de opções. Estas opções não se podem confinar a espaços fechados, nem mesmo a espaços exteriores

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formatados. A importância do contato direto com a natureza é irrefutável e não pode ser substituída pelo contato indireto (idas a museus, jardins zoológicos, etc.), nem pela experiência simbólica - observar a natureza através de programas televisivos, web sites, livros ou revistas, etc., por mais importante que possa ser. É na relação e na interação com o meio ambiente que a criança se deve desenvolver e crescer. Todos nós brincamos ocasionalmente e todos sabemos o que sentimos quando brincamos e jogamos, como refere Sutton-Smith (2001). Mas mais difícil é valorizarmos uma vida de jogo. Brincar aparece vulgarmente como atividade “gratuita” ligada à distração e irresponsabilidade das crianças. Mas a atividade, sendo aparentemente “inútil”, é absolutamente necessária para o bem-estar da criança e para o seu desenvolvimento pessoal e social. Embora “inútil” do ponto de vista imediato, tem uma enorme importância para a consolidação e aprendizagem das crianças em todos os contextos (Araújo, 2012). É no brincar com os adultos e com o grupo de pares que a experiência social das crianças atinge o seu máximo. Uma perspetiva que é também salientada por Montandon (1997) a propósito da importância da interação das crianças umas com as outras para o desenvolvimento da sua personalidade, na medida em que cada geração de crianças vive uma experiência coletiva muito particular. Tim Gill (2006), num estudo sobre os espaços de brincar ao ar livre, considera que a ansiedade dos pais sobre os lugares em que as crianças crescem e brincam se deve ao fato de os

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percecionarem como inseguros, o que não ajuda as crianças a perceberem e encontrarem os seus limites. Segundo este autor, é necessário que os pais ensinem os seus filhos a gerir as situações de risco como forma de garantir que as crianças percebem e controlam as suas ações nos diferentes locais de que podem usufruir. Esta questão é fundamental para que as crianças se desenvolvam de forma responsável e autónoma. A redução de oportunidades de desenvolvimento para a atividade física e para brincar está associada aos hábitos de vida, à alimentação e à forma como as crianças passam os seus tempos livres depois da atividade escolar, uma preocupação que é sublinhada pela Organização Mundial de saúde quando chama a atenção para a quantidade de crianças obesas devido, justamente, a hábitos sedentários. Os pais são muito sensíveis quando se trata de ter as crianças intelectualmente ativas, mas parecem ignorar a necessidade de criar condições de promoção da atividade física em espaços amplos e abertos, de modo a permitir aquisição de competências físico-motoras essenciais para o normal desenvolvimento da criança.

Considerações finais Todo o ser humano precisa de uma relação saudável com a natureza e com o espaço onde vive e constrói as suas relações de sociabilidade. Para as crianças que aprendem através do brincar e do jogo (dramático, corporal) a valorização dos espaços de ar livre, é ainda mais importante, pois permite

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um desenvolvimento global mais completo e saudável. Como refere Tim Gill (2007), a preocupação com a segurança e a ansiedade dos pais sobre os lugares em que as crianças crescem e brincam deve-se ao fato de os percecionarem como inseguros, o que não ajuda as crianças a perceberem e encontrarem os seus limites. Parece então necessário que os pais ensinem os seus filhos a gerir as situações de risco como forma de garantir que as crianças percebam e controlem as suas ações nos diferentes locais de que podem usufruir. Apesar das adversidades a que estão sujeitas, as crianças que habitam no bairro de habitação social têm a hipótese de construir relações de vizinhança, de correr e brincar o ar livre, se não tanto durante a semana, em que as ocupações escolares ocupam uma parte considerável do seu tempo, pelo menos nos fins de tarde, nos fins de semana, feriados ou férias, o que contrasta com outros espaços habitacionais onde essa prática parece mais difícil ou até interdita (Araújo, 2012). Na verdade, nunca é demais reforçar que jogar na "rua" não é uma realidade para a maioria das crianças e assim a criança, em vez de descobrir o jogo num ambiente favorável como a rua, tem vindo a ser confrontada com propostas de atividades que não respeitam os seus desejos e expectativas, nem muitas vezes se ajustam à sua capacidade física e mental (Wein, 2008). É neste sentido que dizemos que no espaço dos bairros sociais é possível e ainda habitual as crianças usufruírem da rua, como espaço de brincadeira, usufruto esse que tem vindo a ser limitado ou mesmo banido às crianças em

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quase todas as ruas da cidade. Prática que era bastante usual há poucas décadas na cidade do Porto. Uma prática educativa que se interesse por perceber os lazeres das crianças no tempo livre, o sentido da brincadeira, do jogo, do espaço público e do contacto com a natureza, necessita ter presente esta necessidade vital das crianças, o respeito aos espaços em que elas vivem e onde constroem a sua identidade e nela são reconhecidas.

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CRIANÇAS À ESPERA? Um ensaio sobre participação na cidade6 Hugo Monteiro & Maria José Araújo 6

Artigo publicado na Revista Sensos Vol VI-Nº1-2016, uma revista do InED-Centro de investigação & Inovação em Educação editada pela Livpsic a quem agradecemos a cedência.

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Frequentemente, como refere Alderson (2010), os estudos sobre a participação das crianças consideram-nas em interação dentro de um grupo etário que partilha as mesmas atividades e em que comentam ou tomam decisões sobre políticas e serviços conduzidas por adultos. No entanto, as crianças são muito mais do que consumidoras e utilizadoras de serviços, são agentes que colaboram de forma ativa e competente nos assuntos que lhes dizem respeito, a diferentes níveis e para diferentes objetivos. Considerar a capacidade das crianças para o exercício de uma cidadania ativa, como direito reconhecido a nível mundial, pressupõe reforçar a sua participação em todos os assuntos da cidade. Este texto é um contributo sobre a necessidade de uma ética da participação que devolva a criança à cidade e a cidade à criança.

Abertura Em poema narrativo, já bastante comentado em contextos de investigação educacional, Helen E. Buckley descreve-nos os estados de alma de um rapazinho, quando confrontado pela primeira vez com a instituição escolar escola: uma criança pequena, numa escola muito grande. “Once a little boy went to school./ He was quite a little boy./ And it was quite a big school” (Buckley, 1970, p. 1).

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Trata-se de um texto de desproporções e de imposições. Entre a pequenez da criança e a grandiosidade da escola, pouco a pouco, vamos assistindo a um processo assimétrico de influência, em que a instituição sobreleva a pessoa e molda-a soberanamente: “And pretty soon/ The little boy learned to wait/ And to watch,/ And to make things just like the teacher./ And pretty soon/ He didn’t make things of his own anymore”( Buckley, 1970, p. 1). Nada de novo, propriamente. O que aqui se descreve, na doçura de um texto poético, é o processo truculento de uma imposição institucional, na tradicional e heteroestruturante modelagem pedagógica que, na já clássica formulação de Louis Not, vai agindo sobre a pessoa, convertida - desde tenra idade - em aluna/a, por infiltração (Not, 1981, p. 58). Entre a criança e a escola7, quando esta relação se concebe a partir deste modelo tensional, há uma dinâmica desproporcionada entre direitos e exigências, entre expressões e imposições que, na pior e mais comum das hipóteses, culmina com o predomínio das segundas sobre as primeiras. Sublinhe-se, neste processo, o encaminhamento ético-político, em que a instituição, entendida num sentido regulador e docilizador, se sobrepõe à possibilidade emancipatória da participação, necessariamente falsificadora da desproporção 7

Aqui referida em contexto lato. Vale a pena mencionar que é cada vez mais comum nos contextos educativos a referencia à "escola" tratando-se não de uma Escola mas de um Jardim de infância. Nos ambientes e contextos de pré-escola os educadores são referidos como professores, as crianças como alunas e os espaços como possibilidade de aquisição de competências formais, escolarizadas. Uma violência simbólica que negligencia a experiência lúdica tão importante para as crianças.

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entre a fragilidade da pessoa e a monumentalidade da organização. Tal como no poema, em que a direção da norma escolar vai impondo um caminho único ao ímpeto criativo da criança, assistimos a um processo que não se resume a dimensões unicamente cognitivas, curriculares, institucionais ou disciplinares. Assiste-se, sim, a um processo complexo em que pressupostos ético-políticos se intersecionam, modelando formas de habitação, de relação e de (não) participação a partir de um modelo pedagógico. Tudo se passa na naturalização de uma assimetria, em que a instituição modela e anula a pequenez da criança (ignorando-a como ator social competente), à medida que a converte em veículo de renovação e perpetuação da sua regra. Uma regra legitimada pelo conceito clássico de educação e socialização metódica das novas gerações tal como propunha Durkheim (2001). E a criança passa a representar, crescentemente, uma adulta norma escolar, ao anular as suas formas de participação, sistematicamente invalidadas pelo dispositivo escolar8 (Foucault, 2001, p. 299). Não apenas esta assimetria se torna índice físico de uma anulação mútua como se alimenta de uma configuração (espacial e temporal) fixa, rígida e avessa à fluidez de uma aprendizagem como vida (Oliveira-Formosinho & Andrade, 2011, p. 12). A introdução do ponto de vista da criança como ator social competente torna-se, assim, um fator crucial. 8

A escola enquanto instituição tem uma influência muito grande na forma como todas as outras instituições que trabalham com crianças pensam o seu próprio trabalho pedagógico. Exemplo disso é a pressão que a instituição escolar faz sobre o trabalho desenvolvido nos contextos de Jardim de infância e sobre o ATL- Atividades de Tempos Livres ou mesmo sobre as Ludotecas. Uma dificuldade que é acentuada pelo contexto social e ainda pela pressão dos pais e encarregados de educação (Araújo, 2009).

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Retoma-se o entrecruzamento entre pedagogia e cidadania, impedindo a ilusão positivista da neutralidade ideológica do pensamento educativo.

Cidadania(s): E se a cidade falasse? Todavia, no que diz respeito à desproporção entre a participação da criança e a rigidez da norma educativa, nem tudo se resume a uma configuração institucional. Há que considerar a dinâmica histórica e social, que singulariza e esclarece posicionamentos educacionais, muito para lá da sua impossível pureza teorética. Perguntemos, num esforço de imaginação: E se a cidade falasse? Atravessamos um tempo em que proliferam, em proporções nunca antes vistas, os preceitos de uma sociedade de mercado, conjugados com a evolução acrítica da tecnociência. Os efeitos repercutem-se na totalidade da Educação, tanto ao nível das representações pessoais e sociais em torno do educativo quanto no âmbito das políticas, das práticas e da produção científica. No que diz respeito à Educação de Infância – de uma forma geral, a toda a ideia de infância – uma abordagem educativa emancipatória, holística e integradora tem perdido terreno para padrões de eficácia imediatista, colhidos do léxico mercantil dominante, eivados de uma falsa e ingenuamente cândida neutralidade ideológica.

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Confrontamo-nos com a mais perigosa das atualidades, em torno do modelo hegemónico do cidadão, do cidadão adulto como modelo de um ideal regulador de poder. O cidadão é (homem/ jovem/ classe média/ educado/ branco/ heterossexual) adulto, de tal maneira que, de acordo com a história do conceito que o inclui, repele a criança do seu modo de ser cidadão. O cidadão é o contrário da criança, na tradição iluminista que o concebeu. Se conhecermos, por exemplo, a clássica definição de Iluminismo de Kant, admitindo a sua centralidade na construção europeia de cidadania, desde logo reparamos que a ilustração se constrói a partir do combate a uma espécie de criança sobrevivente no adulto, que não o deixa atingir um estado de “maioridade”. Nem precisamos conhecer as linhas gerais da Educação em Kant, onde a infância é aproximada a um estado de animalidade a combater (Kant, 2000, p. 94), para verificarmos como a construção e a inscrição de uma cidade se processa apesar da infância, senão mesmo contra ela. O próprio conceito de infância, neste sentido, parece regredir, regredindo com ele as práticas e conceções pedagógicas que norteia. As crianças são novamente consideradas como propriedade quase exclusiva da família, sendo que a própria instituição família retoma um padrão normalizado e nuclear. Com algum renovo, na capacidade de consumo como critério maior no panorama hodierno. Por outro lado, a criança é vista novamente como entidade isolada, secundarizando-se a sua socialização, a sua capacidade coletiva, a gestão autónoma dos seus afetos e da sua capacidade de habitar, confinada tantas vezes à idealizada

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sobreproteção da lógica de condomínio fechado. As questões sobre segurança e responsabilidade civil são fundamentais e de uma grande complexidade. No entanto, a criança, "guardada" traz em si uma ideia de proteção que é enganadora na medida em que parece ser sobretudo uma proteção dos próprios adultos e dos seus espaços. Quando "guardamos" as crianças no sentido mais lato, não seremos considerados negligentes, embora negligenciemos completamente as dimensões lúdicas e do interesse das próprias crianças, da exploração do tempo, espaço e da experiência estética de uma criança na cidade (Araújo & Sanches, 2015). Importa sublinhar, neste quadro genérico, o modo como vai contribuindo para a prevalência de uma “cidadania de procedimentos” como definidora do espaço vivencial da criança (Pereira, 2011, pp. 41-42). Uma abordagem procedimental, que retira à criança a possibilidade de organizar os espaços da sua pertença pessoal e coletiva, os seus tempos, a sua participação, numa urbanidade que a constitui e na qual se constitui. Mas a cidade é parte integrante da história da emancipação política. O aparecimento da cidade substitui, com os seus direitos construídos e assegurados coletivamente, o poder arbitrário e solitário do feudal. O “direito à cidade” passa pela reivindicação de direitos na cidade, como principal arena da Democracia. Este direito tem a ver com um conjunto de práticas e de vivências em que o sujeito se assume como sujeito, reconhecendo-se aí como cidadão. O que acontecia,

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aliás, com a criança dos anos 1920. Uma cidade era a sua casa, espaço árduo de brincar e trabalhar, apropriado e reinventado, de construção de sociabilidade e relações de amizade e conflito (Nasaw, 1985). Na "rua", o cidadão espelha as regras do contrato que o tornam cidadão mas, fundamentalmente, ele recria as regras, brinca com elas e reinventa-as. A democracia urbana é tão mais intensa quanto mais reconstruível e, por conseguinte, brincável, na dimensão mais participativa que a palavra proporciona: “A rua pode ser o espaço do jogo, e portanto da educação, deambulação do ‘cliente’, máquina de sonhar para o ‘flanêur’, condensação diversa e respeitosa de múltiplas formas de trajecto” (Ansay & Schoonbrodt, 1989, p.44) Num texto clássico de Henri Lefebvre, este “direito à cidade” define-se como “forma superior” no plano dos direitos. Direito à individualização na socialização (particularmente importante hoje em dia), direito à habitação, mas principalmente “direito à obra (à participação) e o direito à apropriação (bem distinto do direito à propriedade)” (Lefebvre, 1989, p. 479) como direitos que se implicam no “direito à cidade” e, concretamente, no direito das crianças à cidade. A cidade é, enquanto fenómeno, uma espécie de revolução permanente. A cidade acontece, como fenómeno, no momento em que um espaço se apropria. Toda a história da cidade diz isto: ela passa sempre por um princípio público, por um processo quase infinito de tornar público um espaço que não o era. Daí que não haja cidade sem política, isto é, sem

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cidadãos/ãs. Daí também que, em Grego, a palavra “metrópole” dissesse, literalmente, “cidade-mãe” (Nancy, 2011, p. 95). Uma metrópole reinventável, como acolhimento e direito à participação cidadã. Imagine-se então uma metrópole que, como cidade-mãe que é, exigisse que nela se brincasse. Uma metrópole que, para poder acontecer como metrópole e como cidade, precisasse de crianças – de pessoas como crianças, independentemente da idade. Se a cidade, se esta cidade falasse, ela diria: - “Eu quero, eu preciso de ser “brincável”. E todos/as, homens ou mulheres, de toda e qualquer idade, não devem abdicar do direito à infância. A infância é necessária à cidadania!” Crianças e participação: brincar e intervir na cidade Não concebemos cidadania, ou educação para a cidadania, como mero produto instrumental de uma ação educativa. Ao contrário, sublinhamos a inerência relacional deste conceito, que pressupõe um sujeito que cria e regula, que diverge e contesta (potencialmente) no exercício da sua palavra (Taylor, 2006, p. 31), o que desde logo invalida o modelo desproporcional oferecido e criticado pelo poema de Helen Buckley. Não há verdadeiramente pedagogia da participação sem permeabilidade ao alcance disruptivo desta participação (Monteiro & Ferreira, 2011), que apenas forma cidadãos/ãs por pressupor que já o são, de pleno direito, à entrada da

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instituição. Tratar-se-á de procurar simetria e pertença: entre a instituição escolar, muito grande, e o rapaz, muito pequeno. Concomitantemente, trata-se também de retomar o âmbito especificamente infantil de um direito à cidade, pelo mesmo processo de anulação de grandeza de que decorre, necessariamente, toda e qualquer pedagogia realmente participativa. Tentemos, num esforço de memória ou de simples empatia, pensar os espaços em que nos movemos da perspetiva de uma criança. Deparamo-nos com contextos e percursos de direitos limitados: não se pode correr à vontade, gritar, escrever nas paredes, saltar, cantar alto, fazer barulho, subir às árvores, saltitar, nem sequer procurar um esconderijo para pensar. Na verdade os lugares de brincadeira e de resguardo, lugares que estimulam a exploração e a transgressão de todo o tipo de limites, possibilitando formas de transformar o mundo, estão em extinção. As ruas não são para brincadeiras, as casas dos pais ou dos avós cada vez menos têm jardim, os parques são das autarquias ou dos centros comerciais e até os brinquedos deixaram de ser para brincar, pois compram-se já feitos e destinam-se a escaparate. Tal cenário exige uma resposta capaz de conjugar prerrogativas educacionais – cujo debate se deve reanimar, contra os consensos artificiosamente assumidos no atual espaço público – com uma missão democratizadora, que importa pensar e perspetivar de modo afirmativo tendo em conta a criança na sua voz própria.

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Adotamos, na reflexão que se segue, um pressuposto concreto: É necessário reconsiderar politicamente o discurso da criança. Mas porquê politicamente? Qual o motivo da aceção política dada a um exercício que, principalmente no quadro do radicalismo ideológico que caracteriza a atualidade da Educação, se torna urgente em todas as aceções possíveis? A resposta, não sendo simples, tem uma primeira formulação na hipótese seguinte: a criança é um sujeito político particularmente menosprezado, arredado, com requintes de docilizadora malvadez, de todas as Ágoras do mundo. As políticas de cidade, de escola, de educação, mas também dinâmicas familiares e discursos tradicionalmente amigos das crianças constituem formas de propiciar e de ampliar tal docilização, que afasta as crianças, que as silencia, desconsiderando o seu discurso e capacidade decisória (Monteiro & Araújo, 2014).

Ideias de (anulação de) Infância: “Amigos/as” das crianças? De forma paternalista, advogando pela vida da criança que frequentemente não cuida de conhecer, e que por isso mesmo cristaliza num senso comum arreigadamente adulto, é frequente substituir-se o juízo e a participação da criança pelo argumento brandido “em seu nome”. Assim se declara, com atitude melíflua, mas nem por isso menos invasora, uma espécie de amizade pela infância que, a mais das vezes,

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substitui a criança enquanto sujeito do seu próprio caminho. A declaração de amizade pelas crianças, como tudo, contextualiza-se e argumenta-se. Não é na verbalização da amizade, como bem sabemos, que reside a sua virtude. Vulgarizam-se expressões de uso corrente que, em última análise, denunciam com uma acutilância verdadeiramente política o risco da banalização da palavra: temos os “amigos da onça” e do “alheio” – e quando desses estamos fartos, perguntamos sem originalidade mas com toda a justiça porque precisaríamos, então, de inimigos? É que, como por demais sabemos, temos “amigos das crianças” nas mais adultas vozes de todas as idades, nas mais repressivas instituições e nas mais austeras organizações. “Amigas”, na condição de que nunca se revele ou manifeste a sua diferença, que é justamente a sua condição mais infantil. Torna-se necessário que os/as amigos/as e as amizades não sejam meras parcelas de negócio ou simples componentes de sistema. O processo de partilha supõe um contexto que favoreça os encontros, as trocas, as iniciativas e as práticas conjuntas, assim como a apropriação de espaços, que permita a livre e equitativa expressão de todos/as os/as participantes: no direito a uma casa que também seja sua, de uma cidade onde não se ande escondido/a, uma escola onde se brinque... um lugar onde se seja reconhecido como "senhorio/a" e não somente como "inquilino/a". É paradoxal a forma como os modelos e instâncias de atendimento para crianças (Jardins de Infância, parques

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infantis, hospitais, museus, centros comerciais ou mesmo os MacDonalds ou IKEA), com os seus desenhos nas paredes, revistas e brinquedos, mobiliário e equipamentos adequados ao seu tamanho, são reveladores de como o espaço foi/é colonizado e marketizado, geralmente olhado como horizonte de bem-estar mas que, como sabemos, é mais um espaço de negócio. Um local organizado em função da necessidade de existir e não em função da existência das crianças. Convém lembrar que infância não é apenas uma fase da vida biológica, nem se apresenta linguisticamente como tal. Qualifica-se frequentemente por “infantil” o comportamento irrefletido, a atuação insensata, escavando um fosso moral entre um comportamento “adulto”, que se encoraja independentemente da idade biológica, e uma atitude “infantil”, que se conota negativamente, para lá de qualquer critério etário. É aliás o cumprimento de uma sentença já etimologicamente traçada, quando constatamos que “infância”, na sua raiz latina, é originariamente o ser que não tinha acesso a linguagem, estando como tal condenado a não ter razão. Daí a aliança entre infância e silêncio, que nos possibilita denunciar uma injustiça que ainda se não venceu, mas que é ao mesmo tempo a chave para uma reabilitação crítica já em curso. É que a língua, na sua criatividade insubmissa, precisa do silêncio sem condicionamentos que só uma infância, persistente em não se deixar condicionar no discurso pré-estabelecido, verdadeiramente acalenta. E é a possível aliança entre infância e criação, arte e invenção, ou o que na infância de um dia por inventar é reduto revolucionário. A partir da insanável rebeldia

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da infância giza-se o gesto do artista e do poeta, mas também do investigador que não é só um reprodutor, como de todo/a aquele/a que se assume como autor/a de uma história por fazer. Giorgio Agamben, por exemplo, numa longa e particular apropriação do conceito de infância, fala da necessidade do lugar da infância como forma de fuga à autoridade da palavra, da previsão e da objetividade, fatores que capturaram a noção moderna de experiência (Agamben, 2002, pp. 7-27). Não foi esta, todavia, a tendência dominante nos discursos que regeram a educação. O discurso educacional preponderante, ao contrário, foi amplamente alicerçado numa construção sólida e exclusiva da vida adulta como idade da razão. A idade adulta pensa-se, neste seguimento, como negação e recalcamento da infância, assim como a infância é tida como anteposta transgressão da idade adulta, com a educação como móbil desta superação. O adulto é visto como evolução da infância, evolução esta gerada, acelerada e possibilitada pelos processos de educação. A educação produziria o adulto, num processo de humanização que arranca o ser humano do estado de natureza, concretizado na criança que começa por ser. E assim se inventa o “ofício do aluno”, numa escolarização que, hoje, se repercute também em contextos de educação de infância. O aluno é uma espécie de estatuto profissional que recai na criança e que quase a substitui. Vai ganhando terreno, progressivamente, à criança em nome de uma responsabilidade que a escolariza de forma total. Veja-se a representação do/a “bom/boa aluno/a”,

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cuja definição está longe de se confinar ao critério generosamente mensurável, oferecido com candura paternal pela vulgata da atual equipa governativa. Ser-se “bom/boa estudante” excede o plano académico, para se estabelecer mais propriamente num plano moral e político:

i.

No plano moral, o/a “bom/boa aluno/a” (desde o pré-escolar) cumpre cabalmente as instruções do/a professor/a, (educadora) comporta-se docilmente com colegas (o que não quer dizer, de maneira nenhuma, que veicule atitudes colaborativas ou solidárias) e perante as normas institucionais. Espelha, no plano escolar e não escolar, uma espécie de tábua de comportamento impoluto. Antes ainda do/a aluno/a virtuoso/a, a criança virtuosa é, desde o primeiro contacto com a instituição educativa, alguém que se entrega a uma modelação moral e social que não construiu, mas que a requer cada vez mais cedo.

ii.

No plano político, esta pessoa assume uma cadeia hierárquica em que o adulto, que imita, é modelo e produtor de normas, sendo ao mesmo tempo o legitimador do poder. Daí que o/a bom/boa aluno/a obedeça, muito mais do que negoceie. Daí que se isente, em submissão

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voluntária, de ser agente político9. A criança é, além do mais, um elemento isolado e em competição com as outras crianças. Ela é o/a proto-empresário/a, a semente de uma instância produtiva que se prolongará nas novas exigências do trabalho, tal qual a atual configuração social determina este trabalho. A invasão do espaço da criança concretiza-se na colonização, tanto do seu espaço institucional quanto no plano do brincar. Não se estranha, pois, que este/a estudante virtuoso/a assuma o que, para o filósofo Jacques Rancière, se caracteriza como consubstancial desigualdade da pedagogia mais tradicional (Rancière, 2010b). Parte-se da desigualdade entre o adulto e a criança, desigualdade esta que, na versão mais generosa (e menos infantil), será reduzida e eliminada… pela anulação da criança no adulto.

Um discurso que seja seu… E o que se propõe é uma inversão clara neste pressuposto de desigualdade, recolhendo de Rancière a

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Principalmente ao entendermos a política, à maneira de Daniel Bensaïd, como “arte estratégica das mediações”, pressupondo, então, não apenas ausência de fundamento inquestionável (como é, na maioria das vezes, o argumento da autoridade do adulto) no modo como se delibera, como um registo de interlocução permanente no processo de negociação, que é uma aprendizagem (Bensaïd, 2009).

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abordagem do mestre ignorante, pela exploração do exemplo do pedagogo Joseph Jacotot. Jacotot, nos inícios do século XIX, era um modesto professor exilado nos Países Baixos, onde lhe confiam a missão de ensinar língua francesa a crianças que apenas dominavam o holandês. O problema residia no facto de Jacotot, por seu turno, não ter luzes mínimas de holandês, o que tornaria a comunicação um problema. Como ensinaria, se não havia plataforma de base? Está vedado a Jacotot a transferência de conhecimento ou o processo assimétrico da explicação… mas estará comprometida a função de se gerar uma competência? A resposta a esta questão suscetibiliza previsível crise neurasténica a todo um discurso educativo dominante e ministeriável. O que sucederá é que, não sem escândalo e achaque de consciências – num processo cujo desenvolvimento vale a pena seguir de perto, no processo argumentativo de Rancière –, o professor terá êxito na função de fornecer competências linguísticas sem transmissão, sendo assim mestre ignorante de alunos que terão sucesso na aquisição de competências numa língua com que contactaram, mas que não lhes foi transmitida. O ‘caso Jacotot’ permite-nos partir da igualdade, no sentido diametralmente oposto ao da pedagogia tradicional, que parte da superioridade de um ente sobre o outro. Os alunos de Jacotot ou, melhor dizendo, as crianças de Jacotot são convidadas a reconhecer e a responder a signos que não dominam, que deverão descobrir, exatamente como o seu

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mestre, movido por vontade e não pela autoridade do saber. O problema coloca-se a uma vontade e a uma relação igual de inteligências; a atitude correlativa é a resposta “como respondemos a qualquer pessoa que nos fale e não a alguém que nos faz um exame: sob o signo da igualdade” (Rancière, 2010 a, p. 17). Rancière oferece-nos um modelo que inverte a tradicional visão adultocêntrica. A criança, tratada como inteligência e vontade em ação, já não é encerrada num estado de menoridade, do qual teria que sair através da educação e seus poderes. A igualdade em ação na experiência da criança é, aqui, cumprida através da sua ação concreta e livre. A criança é um agente de conhecimento, uma detentora de vontade geradora de saberes, o que nos obriga a um reconhecimento epistemológico, apenas levado a bom porto se politicamente concretizado: conhecer deixa de ser apenas representar, mimetizar ou reproduzir. Ao contrário, todo o conhecimento inventa as formas da sua expressão, e todo ele negoceia com todos/as os/as outros/as agentes de conhecimento a sua maior e menor adequação. Não que não haja verdades, medidas do correto, critérios de falso ou verdadeiro, mas sempre emergindo de um fundo relacional, num plano de confrontação a que é preciso dar tradução institucional. Veja-se, a título de exemplo, o jogo do salto à corda coletivo. Este jogo coletivo da corda, que simboliza a brincadeira, o recreio, a atividade física e o ato de aprender, não é um jogo qualquer, é um jogo em que cada um dos

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jogadores é responsável pela decisão de entrar, mas também de sair. É um jogo que exige que as crianças tomem consciência da sua capacidade de participação enquanto a corda se movimenta. Um jogo que exige atenção, confiança no outro e perícia que, podendo ser individual, tem muito mais graça praticado com os/as amigos/as. Não é um jogo que se repete e reproduz. É um jogo que para os/as mais atentos/as, revela a competência das crianças nos assuntos que lhes dizem respeito. Põe em cena uma gestão autónoma, autossuficiente, numa organização do coletivo e da inscrição do singular no coletivo: uma política em ação. Para lá do exemplo concreto, atente-se na necessidade, tão frequentemente recalcada – mas tão “amiga”, no sentido disruptivo permitido ao conceito de amizade – de politização de uma infância que tão ludicamente se politiza. E é preciso que estejamos à altura da construção de novos agentes políticos, desde logo resignificando a amizade pelas crianças como ideia política em si mesma.

Para finalizar A necessidade deste ensaio sobre a possibilidade emancipatória de participação sente-se em quase todos os contextos quotidianos em que a criança habita. Parte-se da ideia de que a criança nasce num mundo de adultos e que, a estes, compete transmitir os valores e conhecimentos, as maneiras de ser e pensar que habilitam a criança a viver nesse

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mesmo mundo. Mas, na verdade, a criança não nasce num mundo de adultos, mas num mundo intergeracional, e integrase numa rede social já existente com quem interage. Nessa medida, vai contactando com adultos e com o seu grupo de pares alargando o seu conhecimento e ajudando a construir conhecimento. Deve facilitar-se, concomitantemente, um processo de socialização interpretativa, que permita à criança, através do brincar, reinventar uma cultura em que participe ativamente. Neste caso a criança é ao mesmo tempo produto, agente e ator dos processos sociais, processos recíprocos entre socializado e socializante, em que a criança não só participa ativamente mas é o seu elemento primordial (Corsaro, 2002). Ao longo deste texto tentamos também mostrar que a participação da criança começa, desde cedo, a ser subestimada nos contextos mais privados do ambiente familiar e, posteriormente, nos ambientes públicos, a sua participação formal em projetos não tem levado a uma mudança de ação (Araújo, 2009). Muitos educadores/as e investigadores na área da educação podem até dizer que consultam as crianças, enquanto grupo, mas será que as ouvem com a convicção de mudança? Ou olham-nas como consumidoras e utilizadoras de serviços? Limitar a participação das crianças ao critério da melhoria dos serviços, como refere Alderson (2010), deve constituir um limite para o conceito de participação? Neste sentido, não apenas se vai registando a contaminação neoliberal ao todo do sistema educativo, que se estende a todas as gerações, como se dissemina uma ideia

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precarizada de trabalho educativo, docilmente subalterno ao fatalismo do modelo economicista. Profissionais de educação, mais ainda educadores/as de infância, passam a ser entendidos/as como meros técnicos operatórios, “cujo trabalho é agir como transmissores neutros (reprodutores) de conhecimentos e valores, requeridos e predeterminados para as crianças”(Moss, 1999, p. 143). E assim, criança e cidade continuam à espera!

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Pequeno Insultuário Palavras que estão na cabeça e na boca dos adultos que menorizam as crianças e a infância:

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A canalha, hoje, é muito imatura. As crianças, hoje, só querem telemóveis. As crianças, hoje, são pouco responsáveis. As crianças de hoje não sabem brincar. Cresce e aparece. Deixa-te de criancices. És como as crianças! Eles chegam cada vez mais infantis à escola. És mesmo bébé! És sempre o mesmo “minorca” És um imaturo! És uma criança, não tens “quereres”! Estuda para seres alguém. Já a formiga tem catarro!!! Já não tens idade para essas coisas! Mas tu sabes alguma coisa, por acaso?! Não és um bebé para chorar! Não sejas criança. Não sejas infantil. Os alunos, hoje, são muito infantis, não sabem nada. Pareces uma criancinha a chorar! Pensas como um menininho. … 71


Sobre os autores Desde criança que nos interessamos pelo brincar, quer brincando quer pensando sobre o assunto. O modo como a cidade trata esta questão, como permite ou não que o brincar se desenvolva livremente, é algo a que dedicamos a nossa atenção. Somos cúmplices e tentamos arranjar mais cúmplices para este debate. Não perdemos a oportunidade de chamar outros e outras - de todos os tamanhos e idades - pelo que frequentemente debatemos, discutimos e argumentamos em escolas, em casa, no café, no museu, nas aulas, no parque, na rua, nos encontros e congressos, nos espaços possíveis da cidade. E, sempre que podemos, não ficamos pela discussão, brincamos mesmo, sobretudo se estivermos entre crianças. O interesse constante pelo assunto, a preocupação crescente com o modo como a cidade trata as crianças, o modo como as marginaliza, levam-nos a não desarmar enquanto não for reconhecido que o ser humano é mesmo Homo Ludens. Maria José Araújo - Escola Superior de Educação do P. Porto / CIPEM-Inet-md e InED-Centro de Investigação e Inovação em Educação Hugo Monteiro - Escola Superior de Educação do P. Porto / IFFLUP João Teixeira Lopes - Departamento de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto/Instituto de Sociologia da Universidade do Porto

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