Mitsp 2017 CATÁLOGO

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UM TEATRO NEGRO DO MUNDO (notas de uma conversa inacabada) José Fernando Peixoto de Azevedo

O que é que vocês esperavam quando tiraram a mordaça que fechava essas bocas negras? Que elas entoassem hinos de louvação? Que as cabeças que nossos pais curvaram até o chão pela força, quando se erguessem, revelassem adoração nos olhos? (Sartre, do prefácio para Anthologie de la poésie nègre et malgache)

1.

Para começar, e se no meio desta tormenta o Negro conseguir de fato sobreviver àqueles que o inventaram, e se, numa reviravolta de que a História guarda segredo, toda a humanidade subalterna se tornar negra, que riscos acarretaria um tal devir negro do mundo a respeito da universal promessa de liberdade e de igualdade de que o nome Negro terá sido o signo manifesto no decorrer do período moderno? (MBEMBE, 2014, p. 20-21)

Um espectro ronda a Europa – o espectro do Negro. Todas as potências da velha Europa, à sombra do Império, unem-se numa Santa-Aliança para conjurá-lo. 78

Eu disse que escravo não tem pátria. Não é verdade. A pátria do escravo é a revolta…Pode ser que meu lugar seja a forca, e talvez a corda esteja crescendo em volta do meu pescoço, enquanto falo com você em vez de te matar, a quem não devo mais nada além da minha faca. Mas a morte não tem significado, e na forca saberei que meus cúmplices são os negros de todas as raças; eu falo para os negros que são negros e para os negros que não são, cujo número cresce a cada minuto que você gasta no seu comedouro de escravos (MÜLLER, 2017, no prelo, grifo nosso)1

Negros de todas as raças, uni-vos! 2. Baseada no texto de Heiner Müller, de 1979, A Missão em fragmentos: 12 cenas de descolonização em legítima defesa é, antes de mais nada, uma espécie de contra peça, para usar um termo mülleriano: uma conversa instaurada com/contra o texto original. Em certo sentido, a encenação impõe-se como uma peça de aprendizagem. Em cena, os performers negros apresentam as regras de um jogo que incluirá a plateia numa “grande discussão”, deslocando para ela – provisoriamente? – o papel do branco, enquanto, na cena, num ringue que se quer também provisório, trata-se de dar um fim ao “teatro branco da revolução”. Mas numa peça de aprendizagem todos devem ser jogadores, e estes podem jogar todos os papéis. Nas tentativas de Brecht, como em A Medida, o momento do “acordo” era aquele em que uma figura, a partir de sua ação egoísta, colocava em risco a ação coletiva e deveria por isso acordar com a necessidade de sua supressão. Na Missão, o branco Debuisson resiste à sua morte, quer sobreviver, enquanto Sasportas, o negro, morrerá, mesmo quando sua morte já não pode em nada alterar o destino da missão. Na versão em Legítima Defesa, o rodízio de papéis inclui a plateia num trânsito, e ao fazê-lo, instaura uma conversa com o negro morto, fazendo-nos ouvir sua voz: lançada luz sobre a forca, resta à plateia decidir se jogará também este papel. Em suas notas de trabalho, Brecht anotava em 1938: 1 As citações do texto da peça de Heiner Müller são feitas a partir da tradução – no prelo – de Christine Röhrig, adaptada para a encenação.


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