Catalogo Mitsp 2018

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Rio de Janeiro, 2 de janeiro de 2018. Julian, Esta não é uma carta. Você não me conhece; eu não te conheço. Também não conheço Boris Nikitin nem os músicos que tocam em Hamlet. Nunca tinha ouvido falar do trabalho de vocês antes que Daniele Avila me mandasse o link que começo a ver agora numa noite quente de verão. Os músicos saem do palco ou assim parece. Você entra com uma máscara de lobo. Depois de tantos outros, cansado de ser humano, Hamlet agora quer ser um animal? Pergunta apressada. Você tira a máscara. Magro, de jeans, cabelos e sobrancelhas raspados. Uns olhos que se movem num rosto impassivo. Uma máscara dentro de outra máscara. As pernas parecem inseguras quando anda, dando ao corpo um certo desequilíbrio, uma certa instabilidade. A voz afetada. Mesmo não sabendo alemão a voz parece afetada. Ela continuará assim, monocórdica, sem variações. Irritante para os que procuram modulações emocionais na voz ou padrões bem constituídos do masculino e do feminino. Nem distanciamento nem envolvimento. O tom de voz que indiferencia tudo e tudo torna igualmente relevante ou irrelevante? Ou, simplesmente, a afetação como uma forma de fala, para além dos limites do real, do verossímil? Um Hamlet queer?

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Você acaba de aceitar minha amizade no Facebook. Nos poucos momentos em que seu retrato aparece no canto da tela paro de pensar no que vejo e troco umas palavras. Digo que estou escrevendo, tentando escrever, sobre o “Hamlet” de vocês. Mas nada de Hamlet aparece, no início. Você se apresenta, diz que é músico. Diz que há textos e canções. Há fragmentos de uma (sua?) estória... Do pai que morreu. Sinal Hamlet aceso. É o fantasma do pai que assombra o início ou somos todos fantasmas ou órfãos nesta noite? Pausa. Você de fronte para o público. Eu na sua frente. Eu te vejo. Você não me vê. Acabo de dizer que vou escrever sobre este trabalho. Agora. Acho. Vou ter que escrever. Mesmo sem saber se tenho algo que seja importante a dizer. Vou ter que me virar. Esta não é uma carta. Não escrevo em alemão. Imagino que não entenda português. Não vou mudar agora para inglês. Talvez a organização da MITsp possa traduzir este texto. Se valer a pena. Ainda não sei. Um sinal do Facebook. Será você? Sua imagem não apareceu. Deve ser outra pessoa. Vou conferir. Era você. Disse que estava escrevendo uma carta para organizar minhas impressões. Mas não sei, mesmo, se quero organizá-las. Você. Digo. Seu personagem refletido também num telão no fundo da sala. No fundo da tela do meu laptop. Por que me interessaria pela sua estória? São tantas hoje na televisão. Na internet. Tantos depoimentos. Por que continuaria a ver você, ouvir sua estória e não a de outro? Seria uma paródia dos solos e testemunhos, do teatro documental? Todos não fazem espetáculo de suas vidas e imagens nas redes sociais, no YouTube? Por que ficar? Por que fico? Fico porque é Hamlet? Fico porque sou gay que gosta de experiências e corpos gays em cena? Fico porque algo me intriga e que não sei dizer o quê? Novo sinal do Facebook. Acho que deve ter dito algo. Você me diz que eu poderia te escrever por e-mail.


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