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As vozes da terra

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Salada de Bacalhau

Salada de Bacalhau

Em 2019, Irene Marques, docente da Universidade Ryerson (Canadá) onde leciona Literatura e Escrita Criativa, ganhou o prémio Imprensa Nacional/Ferreira de Castro, com o romance “Uma Casa no Mundo”. Destinado aos portugueses residentes no estrangeiro e lusodescendentes, este prémio, além de homenagear Ferreira de Castro, pretende reforçar os vínculos de pertença à língua e cultura portuguesas.

Irene Marques nasceu no distrito de Vouzela, mas emigrou aos 20 anos. Entrou com um visto de babysitter, mas não tardou que tivesse concluído dois mestrados e um doutoramento em Literatura Francófona e Literatura Comparada, tendo-se especializado em Línguas Africanas.

Ao saber da notícia do prémio, apressei-me a adquirir a obra. Assim que mergulhei na leitura, surpreendeu-me o realismo com que Irene nos conduzia pelas vidas e ambientes das aldeias beirãs, como se tivesse o dom de congelar o tempo e continuasse a correr pelas serranias da sua aldeia natal. Num registo poético, e recurso a um vocabulário ligado a variadas atividades agrícolas eivadas de sabedoria popular, cada palavra lhe sai da alma.

A semana passada, Irene Marques colocou no seu mural do Facebook um documentário a que o realizador José Vieira deu o nome de “O Pão que o Diabo Amassou.” Assim que comecei a vê-lo, fez-se luz! Em quase uma hora de sons e silêncios, de luzes e sombras, de gente e animais, de terra lavrada e baldios, há um diálogo permanente com a natureza que lhe serviu de berço. Percebi logo de onde saíra “Uma Casa no Mundo”. Dali, da sua aldeia, onde o relógio se regula pelo nascer e pôr-do-sol e o calendário é balizado pelas estações do ano. Foi em Adsamo que sua mãe teve e criou

10 filhos, de que lhe restam oito. Irene e os irmãos nasceram naquelas negras casas graníticas, de pedras justapostas, a ladear ruas estreitas de terra batida, onde pouco espaço sobra para os carros de bois. Sobreviventes de um mundo desaparecido, como nos diz o autor, reconstroem um passado para enganar ausências. E nós visitamos esse passado, expresso em palavrões, cantigas e palavras com significados que já não existem. Em que “apupar” não é “vaiar” mas um chamamento “Ó Mariaaaa… hu… hu…. ”, que ecoa pelo vazio da montanha em busca de respostas que ninguém dá; em que “atrasado” não é defeito de quem chega tarde, mas uma forma de falar de um tempo que não se atrasa porque já passou; em que “enregar” e “desenregar” são verbos que só gente da terra usa, porque só ela sabe do que fala; em que os “vincelhos” tudo amarram, fazendo as vezes de cordas, sempre que a imaginação e a criatividade descobrem como usar o engenho e a arte; em que homens e mulheres sem rosto caminham carregados de molhos de carqueja e de mato; em que as mulheres, sem terem frequentado nenhuma agência de modelos, desfilam eretas e sem mãos que segurem os carregos à cabeça; em que as modas populares, cantadas por homens e mulheres, vão ao encontro do provérbio que diz: “Quem canta, seus males espanta”.

E as gentes de Adsamo sabem de que males falam: das migrações internas para o inferno do Alentejo ou para as fábricas da CUF, no Barreiro, onde definhavam antes do tempo por causa do ar contaminado que respiravam; da guerra colonial de que guardam sigilo, na crença de que o silêncio é a melhor forma de exorcizar os fantasmas; da solidão, porque se recusaram a palmilhar as rotas da emigração.

Reduzidos a poucos, continuam a rasgar a fertilidade da terra cantando:

“Ajudai-me ó camarada/ ajudai-me um bocadinho/ Nem um só boi puxa o carro/ nem um só pardal faz o ninho”, na esperança de que ela não morra.

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