Catálogo - Corpos Virtuais

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maleabilidade é uma característica primordial do ser humano. Ao longo da era moderna, por exemplo, os projetos humanistas foram burilando essa substância dócil por meio da educação e da cultura. Como os homens nasciam “incompletos”, eram infinitas as possibilidades contidas na folha em branco do futuro. A partir do substrato biológico, seu fundamento “natural”, cada homem podia ser construído, esculpido, polido e retocado. Conforme as mais reluzentes narrativas cosmológicas, porém, já não é necessário delegar tais processos aos métodos lentos e imprecisos da educação e da cultura. Longe disso, os novos saberes de inspiração digital pretendem levar adiante um programa bem mais radical e efetivo de formatação. Como? Interferindo diretamente nos códigos genéticos, cujos ingredientes se apresentam como os fatores determinantes da grande maioria das características humanas, tanto físicas quanto psíquicas. A pósevolução aparece, assim, como uma nova etapa na longa história de produção humana da sociedade ocidental. Esse processo sempre foi anônimo, uma criação sem criadores porém guiada por interesses bem determinados; um impulso biocultural e cronologicamente variável, uma estratégia histórica sem estrategistas à vista. Mas há um outro detalhe que costuma permanecer solapado em nosso turbulento século XXI: a possibilidade de opor resistência a tais processos é inalienável. Embora hoje pareça uma ambição antiquada (ou desvairada), sempre será possível alterar o curso da história, modificar seus rumos, redirecioná-los - enfim: reinventar o que somos. A construção de corpos e subjetividades sempre foi um processo dinâmico, fruto de intensas lutas nas redes de poder, com diversos interesses e forças se enfrentando sem cessar. Paradoxalmente, em uma época que decreta o fim da natureza, propondo a sua substituição pelo gigantesco laboratório tecnocientífico cujos muros ruíram para abarcar o planeta inteiro, aquelas questões cujas origens e eventuais soluções antes eram consideradas políticas ou sociais agora são postuladas como naturais. Assim, naturalizados, tais problemas se apresentam como congênitos ou genéticos, inscritos na própria essência dos corpos e das almas. E, curiosamente, a receita para “corrigir” eventuais “falhas” apela para as intervenções tecnocientíficas na programação da vida. Com a perturbadora aceleração de todos os fenômenos e processos, os velhos mecanismos da Natureza parecem ter ficado definitivamente obsoletos. Por isso, a reconfiguração tecnocientífica dos organismos vivos já não obedece – pelo menos, não exclusivamente – àquelas ordens arcaicas e vagarosas da evolução natural descrita pelos biólogos do longínquo século XIX. E, é claro, o homem não está à margem dessa atualização tecnocientífica compulsória que vigora para todos os seres vivos. Definidos como organicamente obsoletos, os corpos humanos devem se submeter às tiranias (e, por que não, também às delícias) do upgrade constante - tanto do seu hardware corporal como do seu software mental. Mas tanto as metas como os limites dessas reformatações têm uma fisionomia bem precisa: as tirânicas (e sedutoras) diretrizes do mercado se encarregam de demarcá-los e redesenhá-los constantemente. A intenção deste trabalho é modesta e bastante clara: desnaturalizar todas estas questões, desnudando sua raiz nitidamente

política e histórica. Ou seja: inventada, e portanto mutável. Assim como algum tempo atrás o mundo era pensado em termos mecânicos, como sendo um grande relógio que podia (e devia) ser azeitado e aperfeiçoado em seu funcionamento regular, hoje o universo é compreendido em termos informáticos: como um imenso programa de computador que pode (e deve) ser editado e atualizado permanentemente, em nome da eficiência e de outros valores mercadológicos. Nada disso é casual ou “inocente”, e tudo tem implicações de peso. Longe de serem conseqüências naturais do progresso tecnocientífico ou decorrências inevitáveis do destino, por assim dizer, os processos aqui comentados respondem a escolhas históricas bem concretas, que envolvem sérias decisões políticas. Obedecem, portanto, às necessidades de um determinado projeto de sociedade, que hoje vigora em boa parte do nosso planeta globalizado e se ocupa de gerar determinados tipos de saberes e poderes (e não outros), provocando determinados problemas e propondo determinadas soluções (e não outras). Um mundo, enfim, que incita à configuração de determinados tipos de corpos e subjetividades, ao mesmo tempo em que sufoca outras opções igualmente possíveis. Uma imagem já perfeitamente assentada em nosso imaginário pode ajudar a compreender esta transição. Imerso no ambiente fabril da era industrial, há quase um século de distância, o personagem de Charles Chaplin adquiria gestos mecanizados e se contagiava dos ritmos das máquinas no filme Tempos Modernos. Era um corpo claramente compatível com as engrenagens do mundo industrializado. Um corpo que hoje está ficando rapidamente obsoleto. Pois em nossos tempos pós-modernos, já não são esses os ritmos, os gestos e os atributos mais bem cotados no mercado de trabalho - e nem em qualquer outro. Mas quais seriam, então, as formas humanas que se desenvolvem e se estimulam atualmente? Uma das respostas possíveis é simples, embora tenha arestas extremamente complexas: devem ser, sem dúvida, aquelas que demonstram uma melhor adaptação aos circuitos integrados do capitalismo global, aquelas que a presente formação sócio-histórica requer para poder funcionar corretamente. Ou seja: aqueles tipos humanos capazes de propiciar a reprodução opulenta e complacente da sociedade atual, reduzindo o mais possível a produção de bugs, falhas e problemas de qualquer índole. Nada melhor, para isso, do que digitalizá-los. Isto é: processar, estimular, adereçar e aditivar seus corpos e suas subjetividades para torná-los compatíveis com toda a parafernália teleinformática que hoje comanda o mundo. 1

EIGEN, Manfred. O que restará da Biologia do século XX?. In: MURPHY, Michael; O’NEILL, Luke. (Org.). “O que é a vida?” 50 anos depois: Especulações sobre o futuro da Biologia. São Paulo: UNESP, 1997. p. 13-33. Paula Sibilia nasceu na Argentina e graduou-se em Antropologia e em Comunicação pela Universidade de Buenos Aires (UBA). É mestre em Comunicação pela UFF e doutoranda em Comunicação e Cultura pela ECO (UFRJ) e em Saúde Coletiva pelo IMS (UERJ). Publicou o livro O Homem Pós-Orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002).


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