Cadernos PROARQ 13

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...qual o benefício mais precioso da casa, diríamos: a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhado, a casa permite sonhar em paz. Gaston Bachelard, A poética do espaço. O presente texto visa à elaboração de um pensamento estético acerca da obra de arte contemporânea, tal qual criadora de um lugar dito hospitaleiro. O conceito de hospitalidade remete a diversas compreensões. Aqui, entretanto, preferi me ater ao termo desenvolvido pelo filósofo Jacques Derrida. A arbitrariedade da decisão, porém, parte apenas de uma necessidade acadêmica de formalização do pensamento, posto que é este mesmo filósofo que nos falará sobre as idéias de desconstrução e da hierarquização eminente causada pela determinação de um conceito. Opto pelo termo hospitalidade, o escolhido por Derrida para tratar da reflexão de Emmanuel Lévinas quanto à idéia de acolhimento. Como escrever sobre aquilo que não pode ser tematizado? Para Emmanuel Lévinas, em Totalidade e Infinito, hospitalidade e tematização opõem-se, ou seja, parte-se do princípio que a própria idéia de hospitalidade deve fugir da formalização, da descrição. Podemos ouvir aqui o eco da teoria da desconstrução, se o termo não for por si só um paradoxo, de Derrida, filósofo cuja fala se dispõe ao lado da de Lévinas. A desconstrução, para além de ser abordada nesse texto de forma epistemológica, será tangenciada como mero recurso teórico. Ante o combate a qualquer privilégio gramatical ou conceitual, tal como proposto por Derrida, partirei em simplicidade e em caráter de afeição pela impressão causadora das idéias desta escrita. Uma série de metonímias expressam a hospitalidade, o rosto, o acolhimento: tensão em direção ao outro, intenção atenta, atenção intencional, sim ao outro. A intencionalidade, a atenção à palavra, o acolhimento do rosto, a hospitalidade são o mesmo, mas o mesmo enquanto acolhimento do outro, lá onde ele subtrai o tema1. O desejo que se instala a partir da possibilidade de escrever sobre qualidade, paisagem e ambiente é o de seguir o rastro de cada uma das palavras da citação acima. Série, metonímia, expressam, hospitalidade, rosto, acolhimento, tensão, direção, outro, intenção, atenta, atenção, intencional, sim, palavra, mesmo, subtrai, tema. Seria necessário, entretanto, um deslocar-se absoluto, o esquecer impossível de toda relação anterior com qualquer uma dessas palavras, em 1

DERRIDA, J. Adeus a Emmanuel Lévinas. p. 40

Espelho Rápido. 2005. Pedra, concreto e aço inoxidável. 600x1000x2350cm. Orla do Guaíba. Porto Alegre.

um discurso infantil, bem como pioneiro, redundante até a abstração completa de qualquer significado. Fico com uma palavra apenas: hospitalidade. E lanço a pergunta: como um lugar de hospitalidade pode se criar a partir da instauração de uma obra de arte? Como de costume na literatura contemporânea, parto do princípio de que essa pergunta não será respondida. O que se apresenta aqui é a mera diferença entre não dizer nada e sussurrar algumas palavras no espaço, esperando que seu reverberar atinja um obstáculo qualquer. Temos, então, três caminhos: o lugar, a obra de arte e a hospitalidade. Com o intuito de traçar não um paragone, mas um rizomático entrelaçar de dados, trago à tona o devaneio sobre cada um, buscando o ponto pelo qual passem mais repetidas vezes. Ao falar de lugar refiro-me aqui ao espaço público citadino, ou seja, lugares cujo pensar sobre seja genuinamente arquitetônico. A cidade, ou a idéia da mesma, se preferirmos, é o local das trocas, das metamorfoses e dos fenômenos de regeneração (imagem), lugar ao qual o homem chega, carregado de si, para ser, então, tomado por outras coisas, ou pelas coisas de outros. Falo, sobretudo, ou ainda, especificamente, por mais arbitrária que a decisão precise ou pareça ser, das obras de arte que se colocam em espaços que fazem parte do cotidiano dos moradores de seu entorno. Poderia, porém, escolher aquelas que se encontram fora dos limites da cidade, ou ainda as que nem saíram do papel, mas, para fins metodológicos, utilizarei o recorte. Entendo o funcionamento da sugestão filosófica que apresento como o quando o artista se coloca disposto a encontrar e ativar um espaço, transformando-o em lugar. A transmutação de espaço em lugar pode parecer simples jogo gramatical, e é, mas vai além. Espaço é qualquer espaço, apenas geografia, no en15


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