Jogo privado de espelhos, primeiro capitulo

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JOGO PRIVADO DE ESPELHOS Lucas Silva


Conforme as políticas públicas passam a pontuar sua atuação em determinadas partes da sociedade, devido à falta de verba pública, mas também gerando um índice maior de aceitação para o governo em atuação, começa a se tornar muito comum os Governos Estaduais aprovarem leis para a terceirização administrativa de certas regiões de seus “domínios”. Principalmente nas áreas mais antigas das capitais, como é conhecido o centro velho de São Paulo. Empresas privadas nacionais e internacionais de segurança, transporte, saneamento etc. são contratadas para fornecer os serviços antes de responsabilidade do governo do Estado. Esses locais são chamados de Áreas de Fragilidade Econômica. Parágrafos contidos nessas leis para o incentivo do mercado econômico brasileiro deixam margem às empresas privadas nacionais terceirizarem, já em seu contrato, a outros grupos empresariais menores. Fazendo estes processos de terceirização, quarteirização e assim por diante, essas empresas grandes recebem abate no imposto e em certas taxas de importação e exportação. Existe um grande grupo empresarial que é fragmentado em várias empresas privadas que atua nessas áreas pelo país, chamado de Reorganização Particular de Títulos para Privatização, conhecido como Repartição. Devido às muitas empresas de pequeno porte que a Repartição usa para terceirizar seus serviços, há acusações de que essa instituição seja uma fachada para a lavagem de dinheiro de origem criminosa. Muito desse mito vem do fato de especulações a respeito da verdadeira origem de seus fundadores.


Essa história é terceirizada em pequenos contos Assim como o mundo que ela é ambientada Todos eles se passam dentro de uma semana. Em um futuro só registrado em nuvens digitais. Com um passado diluído e de curta duração Nas falhas relações humanas daquele presente.

...Talvez como ocorra com esse tipo de serviço privado. A trama poderá se perder um pouco nessas linhas Mas não se preocupe. Logo ela retornara.


Acertando os Pontos no Fimose Quarta feira

A camisa de João era molhada por gotas de água morna que espirravam dos canos expostos do teto do Fimose, um bar pequeno no centro de São Paulo, que ficava nos fundos de um antigo prédio comercial no vale do Anhangabaú. O espaço do bar era onde se localizava o restaurante do edifício; o azulejado azul claro das paredes parecia um extenso tabuleiro de damas. Algumas peças haviam caído por inteiro, outras ainda continham pequenos fragmentos grudentos, por causa da gordura das chapas que encardiu o concreto nu das falhas. Essas chapas disfarçavam o cheiro de mofo das caixas empilhadas no corredor de entrada do edifício. Eram caixas estufadas por históricos de financiamento de uma empresa de contabilidade que fora aberta no começo da década de 2020, sendo fechada por uma investigação da Policia Federal sobre superfaturamento de uma empresa de tijolos que fazia trabalhos terceirizados para a Repartição. João ainda frequentava o Bar do Fimose, pelo respeito que tinha por seu Aldebaran, que em sua época de vício, sempre quando podia, dava-lhe um salgado e um copo de café, sem cobrar nada. Estava longe da cocaína há oito anos e há cinco do crack. Não conseguiu largar o cigarro nem a cachaça, mas estava trabalhando para isso. Não tinha tomado nenhuma gota ainda, e não estava sentindo falta. O pedido de um grande copo americano cheio de café espantou o seu Aldebaran, “Oxi homi, toma café a essas hora?”, disse o senhor, com um tom de indignação, pois já tinha ido para o fundo com um copo para retirar o líquido de uma das várias garrafas empoeiradas de cachaça misturada com fruta, que só João bebia. Mas talvez gostasse de o ver tomando café, pensou João, em vez de uma dose, em plena tarde de quarta-feira. A frase dita com espanto por aquele senhor baixinho, de cabelos loiros e penteados para o lado, era o seu jeito de mostrar que estava feliz com o pedido de João. Seu Aldebaran passava um pedaço de pano cinza no balcão de alumínio, enquanto flertava com Sonia, uma transexual morena que fazia ponto na esquina do


edifício. Ele desabotoava os primeiros botões da camiseta listrada azul e branca, fazendo saltar um ramo de pelos do peito – “Que carne, hein minha filha?” – disse, passando o pano cinza no pescoço. Sonia olhou com desdém para o velho, com suas lentes de contato azul, dando um gole no suco de laranja artificial. O velho deu uma risada e um tapa no braço de um senhor bem gordo, que estava sentando ao lado de Sonia: “Tu parece uma Mulher Fruta que tinha antigamente! Né, não? Fala aí, Melancia!” O homem apenas fez um grunhido e ficou todo vermelho. Melancia parecia uma rã usando uma peruca de cabelos brancos e encaracolados, vestindo uma camisa social branca, amarelada na parte de baixo dos braços. Mirava, com os olhos cerrados, as pernas grossas e duras, por baixo daquele vestido curto de cor preta. Era fato que Sonia estava bem mais bonita do que quando viajou para a Alemanha, há seis anos. Vendo aquela cena, enquanto bebia seu café, João sentia uma tontura, talvez fosse o remédio para dor que tomou de manhã, antes de ir trabalhar na obra ali perto, fazendo efeito. Havia alguns dias que estava sentindo fortes dores no estômago e tonturas estranhas. Enfiou a mão por dentro de sua camisa verde, toda molhada de suor e pela água do encanamento que pingava nas costas. Passou a palma morena e toda estourada em sua barriga. Quando a tirou, estava brilhante de suor e ele a limpou passando em sua calça marrom desbotada, que agora ficou com uma mancha escura fraca. Talvez fosse a Depressão Ansiolítica lhe atacando, doença que sempre desconfiou ter. Percebeu que Aldebaran cessara o riso, encolhendo seus olhos e colocando seu maxilar grande para frente, quando João olhou para traz viu que Rafael entrara no corredor, fazendo um frio passar pelo corpo. Era um homem alto, usando uma jaqueta de couro muito velha e folgada, que estava com quase todo seu forro de cor cinza a mostra. Tinha um nariz grande, bem avermelhado, que o fazia não combinar com seu rosto pálido. Vinha andando devagar, passando pelas caixas de papel no corredor. Parou ao lado do elevador e acendeu um cigarro; a primeira batida no isqueiro revelou seus óculos escuros de lentes redondas que usava. O cabelo era de um louro claro que, pela sua idade, se misturava com os vários fios grisalhos. Estava penteado para trás e ele fez cair alguns fios, quando abaixou um pouco a cabeça para acender o cigarro. Rafael passou pelo balcão, fazendo o cheiro de maconha subir forte ao seu nariz. “preciso falar com ele hoje!” pensou João


ansioso, quando o homem parou para dar um beijo no pescoço de Sonia, que deu uma risadinha, mostrando seus dentes perfeitos de um consultório odontológico caro da Alemanha. ─ Rafael! – disse João, levantando os cabelos escuros, que caiam sobre o balcão. ─ Fala cacique... – respondeu Rafael, que passou por Melancia e entrou em uma porta velha e úmida, ao fim do corredor do balcão, sem dar tempo de João dizer outra palavra. A porta bateu e fez um barulho abafado de madeira mole e mofada. João olhou para Seu Aldebaran, que ainda sério balançou a cabeça em negativa. Estava lavando copos nesse momento, passando as pontas do dedo nas bordas engorduradas de saliva. Sentiu o ódio subindo, de algo que estava há dias planejando e fora cortado por um gesto rápido. Precisava daquele dinheiro, mas não iria entrar ali, pois Rafael poderia tentar dar-lhe sete pedras de crack para quitar a divida, e João não se sentia forte para resistir; na verdade achava que não, mas era provável que nunca se tentaria novamente. Rafael era aposentado da Policia Militar havia vinte anos e sempre se vangloriava de ter feito seu trabalho, não importasse o que acontecia. Tinha levado um tiro no rosto nos primeiros anos de serviço, quando foi fechar um forró, no meio de uma madrugada no Bixiga. A bala, ainda alojada em sua maçã direita do rosto, era um troféu, o motivo pelo qual sempre se gabou. “Quando a mente é forte, até bala para!”, dizia para qualquer um que lhe confrontasse. Aquela bala pensava João, tornou-se sua religião, seu tônico, pois, pelo que ouviu, Rafael se tornou alguém sem escrúpulos. Fez contatos e conexões e, alguns anos depois de seu “acidente”, estava aposentado por desgaste emocional. Isso o fez passar por vários ramos de trabalho: de leão de chácara de puteiro a gigolo pelas ruas do centro velho. Quando soube que Magrinho, antigo dono da boca de fumo do Fimose, estava marcado pela Repartição, por usar mais do que vendia, esquematizou com seus antigos contatos na policia, que agora trabalhavam na empresa de segurança privada Recon, e mexeu os pauzinhos para que Magrinho fosse queimado em pneus. Estava longe do centro, escondido dentro de um apartamento de classe média no litoral sul. Dada a sua contribuição, assumiria a boca do Fimose, pois


mereceu tais recomendações e ainda por viver quase sua vida toda naquela região do centro. A boca do Fimose dava um bom dinheiro, pois era a única entre três quarteirões, pegando dois viadutos e um prédio, ocupados por moradores de rua, fregueses constantes, quando o dinheiro da esmola dava o suficiente. Porém, em meio a tudo isso havia um problema: Magrinho, que fora conhecido de João desde os tempos da cocaína, devia-lhe dinheiro, uma boa quantia que dava para João fazer o que queria há muito tempo: sair dali, daquela cidade. Rafael agora que devia para João, pois fora ele que, em um telefonema desesperado de Magrinho, lhe entregou onde estava escondido. Tudo isso era por crédito de João. Claro que Rafael ganhou a fama, pois foi ele que o entregou pessoalmente à Repartição. “Mano não esquenta, te pago o que o Magrinho te devia e ainda te dou uma par de pe.... quer dizer um bom bônus pela confiança!”, disse a João, tentando esconder a euforia, depois que passou o local do esconderijo, duas semanas atrás, na esquina do Fimose. Rafael levou apenas um par de algemas cheias de ferrugem, um rolo de Silver Tape laranja e uma pistola FN Five Seven, seu xodó dos tempos de policial e que João sempre via em um coldre de couro velho e batido, que Rafael revelava quando cumprimentava seu Aldebaran, mostrando a coronha toda envolta em esparadrapo encardido. João se sentia o maior covarde do mundo, por não ter coragem de entrar ali, naquele espaço fétido e perturbador. O medo de perder seu controle, que custou tantos dias de sanidade, deixava-lhe fraco. Sentiu lá no fundo, enquanto estava sentado naquele banco desconfortado com a cabeça baixa, vontade de chorar, talvez apenas um choro rápido como um espirro, uma espécie de ataque de birra, em que iria se espernear e cair no chão, mas depois voltaria ao normal e iria para casa. ─ Quer que eu te esquente um salgado no micro-ondas, filho? – Disse seu Aldebaran, que parecia ler a mente de João, que decidiu esperar que Rafael saísse para comer alguma coisa. ─ E me vê uma latinha de Noronha laranja – João tirou uma nota velha do bolso, colocando-a em cima do balcão de alumínio.


Seu Aldebaran abaixou e lhe entregou a lata de refrigerante toda amarela, e fosca pelas cascas de gelo. ─ Vou ligar a TV aqui pra nóis ver! – Colocou uma coxinha pálida no microondas encardido do século passado e ligou um pequeno aparelho de LCD no lado esquerdo; os pixels queimados pareciam pequenas janelas de apartamentos na escuridão. Na Televisão, uma repórter negra com grandes olhos verdes, falava na frente de um complexo de prédios chiques de cor cáqui: – Já é o terceiro dia do sequestro de Ryan Moura Baumler, filho do Empresário de web telecomunicações Alex Baumler. Ryan, de 10 anos, foi raptado quando saia da Escola Ann Cotton child center em Moema, região nobre de São Paulo. Os sequestradores roubaram o carro do segurança particular do garoto, que também está desaparecido...

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A calçada parecia uma esteira ligada na velocidade máxima; a neblina fraca salpicava as luzes amareladas dos postes quase ofuscados por velhos fios de gatos de energia, que as faziam cair sobre as ruas com finas linhas de sombras, batendo em prédios altos e encardidos, alguns repintados com tinta branca, que pegava um pouco da cor de ovo da iluminação. O ódio se enterrava e alcançava a superfície novamente na mente de João: como que, depois de tudo que fez, aquele filho da puta tinha coragem de dizer gritando para ele “Não me enche, porra! Já falei que te pago a semana que vem!”; a mesma coisa que havia lhe dito semana passada e retrasada, só que dessa vez fez voar grandes bolas de saliva espumosa junto com o bafo horrível, mistura de maconha e estômago vazio. Aquele grito lhe fez sentir vergonha. Lembrou-se do tempo do vício de crack, quando se agarrava no braço de alguém pedindo um trocado para um “pãozinho”.


Rafael lhe fez a pior coisa que podia: sentir-se como um viciado novamente. A cena fora tão violenta para a mente de João, que algumas imagens só eram percebidas agora. Seu Aldebaran, com a cabeça baixa no fundo do bar, enquanto mexia em seu tablet; Melancia dando uma risadinha de desprezo com o canto da boca. Narcisa, uma mulher grande e ossuda que frequentava o Fimose, quando terminava seu expediente como agiota, olhando assustada por baixo da touca azul escura que nunca tirava da cabeça. Tudo isso agora só ajudava a piorar seu estado mental, enquanto saía do Fimose a voz de Rafael gritando a respeito de sua bala no rosto, um ato de narcisismo tal como sempre via. Evitava passar por momentos assim, não queria ter que esperar eles sumirem dentro da cabeça, já que não havia mais nada que o ajudava a se esquecer mais rápido. A raiva era tanta que ele nem ligou quando um grupo de jovens passou ao seu lado soltando comentários de deboche que não conseguiram afetar João, afinal eram apenas jovens, usando aquelas horríveis roupas sonoras: macacões prateados que emitiam mudanças de cor, de acordo com os arquivos de áudio captados por eles. Tal roupa emitia fumaças de cores fortes, como laranja e rosa florescente, enquanto cantavam a batida alta da música. Os garotos, todos tatuados, tinham o cabelo parecendo a ponta de um pincel, raspado dos lados, com óculos e piercings de um verde vivo. João já fora assim, não com a mesma estética, mas já teve a mesma idade, fugindo da escola, para andar pelo centro e mexer com os mendigos e doidos na rua. Mesmo já fazendo muito tempo, ainda tinha apego àquela época para relevar o deboche dos garotos. Rafael era o problema, a grande pedra velha que incomodava. Parou em frente a um pequeno edifício de cor vermelha, cheio de tapumes de madeira pretos, nos quais estava escrito Propriedade da Reorganização Particular de Títulos para Privatização, pintado com uma tinta que tinha uma textura parecida com borracha. Abaixo, havia um pequeno papel, um pouco velho, escrito “Proibido pichação, sujeito a multa – Recon Segurança Privada”, estas ultimas três palavras riscadas com um canetão vermelho, com “morte” escrita por cima. João bateu três vezes, uma pequena luz vermelha piscou bem fraco em um pequeno interfone envolto em uma grade fosca, no meio de todo aquele preto do tapume. ─Quem é!? – uma voz de mulher saiu abafada no interfone.


─ Oi, aqui é o João, quero falar com o Rogert dos cinco C. – sua voz saiu junto com uma vontade de choro, resultado da raiva que estava sentindo. ─Só um momento, por favor – E uma musica tocou; João não teve tempo de tentar reconhecer o som, pois ela foi cortada rapidamente. ─Faaala mano! E aí o que pega? – a voz de Rogert soou tão reconfortante, pois palavras vindas de um amigo acalmavam a tensão. ─De boas..., então tem como eu subir? Tenho que trocar uma ideia com você. ─Opa! Aguarda um momento ai !- e a luz vermelha se apagou. Pouco tempo depois, um dos tapumes se abriu para cima e uma mulher apareceu. Usava um uniforme preto, com um colete a prova de balas cor de creme. Pequenos fios de cabelos ruivos escapavam da rede sob o boné preto. ─ Pode entrar, o porteiro já está te esperando pra abrir a porta.

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A casa de Rogert era uma pequena sala de 15 metros quadrados sem janela. As paredes eram verdes claras, havia um sofá, uma televisão de alta definição na parede direita e montes de caixas de plástico de várias cores, empilhados na parede do fundo, ao lado da porta do banheiro, que estava um pouco escondida pela luz fraca que quase não chegava ali. Havia um pequeno fogão portátil e panelas sujas no chão de pisos cor de vinho. João sentou-se no sofá rosa de dois lugares, que tinha um cheiro de pinho. – Velho da próxima vez me manda uma mensagem no cel, que eu posso estar com visita, saca? – Disse Rogert com um sorriso amarelo. Fazia muito tempo que não tinha um celular, pois seu ultimo havia se transformado em cinco pedras de crack. Mas não tinha problema. Não havia ninguém de importante para ligar mesmo.


─ E ai, quer um goró? – Rogert tirou uma pequena garrafa redonda de plástico do meio das panelas. Usava uma camisa social cinza bem grande para seu corpo magro e branco, assim como suas calças de jeans desbotados, cuja “boca” caia em cima dos chinelos velhos. ─ Dá um corte aí, mano! – Rogert sentou-se ao seu lado e passou a garrafa com um líquido de cor vermelha para João, que deu um grande gole e o gosto azedo e forte desceu na garganta como água fervendo, o ódio o empurrado um pouco goela abaixo! Penteou os cabelos suados para trás – Velho tô precisando de um Chico doce seu emprestado. Rogert arregalou os olhos, copiando a ação de João, penteando os cabelos loiros enrolados para trás. ─ Maano! Tá querendo uma arma pra quê? ─ Resolver um problema aí - disse João, passando a garrafa – Um problema muito tenso. ─ Então cara, tô sem nenhum pra emprestar, tive que penhorar a 45 pra conseguir grana pro cristal do mês. ─ Ah, mano! – João voltou a sentir o ódio subir pela garganta – Não inventa cara, eu sei que você tinha duas peças, e a Glock? – Rogert ficou sem reação, deu um gole e depois lambeu os lábios – Vai mano, não inventa, depois dessa cota que a gente se conhece desde o tempo que você vivia no Fimose. Tô precisando memo! Rogert era amigo de João desde os tempos em que namorava Monique, auxiliar de seu Aldebaran, que morrera há alguns atrás em uma batida da Recon feita numa boca de fumo perto do largo São Bento. ─ Calma mano – Rogert enfiou a mão no meio do sofá, fazendo cara de confuso, puxou um cachimbo pequeno feito de alumínio – Cê tá meio nervoso, percebi desde a hora que você chegou; não tem ninguém na obra pra te emprestar? – Tirou um pedaço do que parecia vidro e colocou no cachimbo, já o acendendo com um isqueiro amarelo.


─ Não vou trabalhar mais lá! Essa obra da Repartição vai demorar muito. Mas então velho, tô precisando aí! – João estava impaciente, além da situação de horas atrás, a droga em sua frente estava gerando um pequeno incômodo. ─ Vish... – Rogert disse prendendo o ar cheio de metanfetamina no peito – Te empresto o bagulho sim, mas aí – Soltou a fumaça em direção às caixas no fundo – a Glock não dá não cara, também tô com uns problemas aí, muito pelego querendo me pegar e tô tendo que sair montado. E ta foda porque tem gente me cobrando de coisas que nem me lembro... Sabe como é, Transparência Mental, foda! Vi que chamam até de Alzheimer juvenil. Rogert se levantou e foi para os fundos, começou a fuçar em uma caixa laranja que estava embaixo de outra azul clara, a qual levantou um pouco, fazendo as calças folgadas caírem até mostrar uma boa parte do rego pálido. Voltou para o Sofá com uma sacola azul clara envolta em fita crepe. Rasgando a ponta da sacola, algo muito pesado caiu no sofá. – Você não me falou que tinha dado cabo da 45? – João olhou para a arma, enorme, quase ocupando a almofada do sofá inteira. – Então, mano; essa aqui é a 2012. Um camarada meu tinha baixado na Internet o projeto e Imprimido ela, mas ai não durou três disparos com ela sendo feita de plástico, então eu acabei levando os papeis pra um conhecido do meu avô que manjava um pouco de funilaria, soldagem e tal... Olhando melhor para o objeto, mesmo se parecendo uma 45, o tambor era um grande cilindro de aço, com pequenos desenhos tribais, pintados de vermelho. O cano da arma era um tubo grosso de cor dourada, que brilhava pouco pelas marcas de dedos e manchas de gordura. - Ela usa bala de calibre doze, ó – pegou a arma com a mão direita, que pareceu aumentar mais o tamanho sendo segurada por Rogert. Puxou o cano para baixo, que desceu junto com o tambor, João viu quatro rodelas de fundo dourado preenchendo os buracos. - Você tem mais munição? – João se lembrou da pistola Five Seven de coronha encardida de Rafael.


-Tenho... – Rogert olhou desconfiado para João com seu rosto cheio de buracos. Enfiando a mão na sacola, tirou três capsulas cilíndricas, duas com o tubo amarelo, e uma de cor vermelha. -Beleza, isso vai dar, te devolvo amanhã – João pegou a arma no sofá e as capsulas da mão de Rogert e já ia se levantando, quando este colocou a mão em seu peito. – Calma ai mano, que que você vai fazer hein? - Resolver um problema ai, já te disse. - Achei que você já tinha resolvido todos eles mano– apontou para o canto esquerdo da Boca de João, a famosa “derretida”, cicatriz que o cachimbo de crack fez, que todo mundo zombada dele nos primeiros anos que começou a usar a droga. - Resolvi, mas o que vem depois é só correria e tristeza pra te lembrar dessas coisas que já passaram.

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João estava se sentindo ridículo andando com aquela jaqueta jeans ao avesso. O forro era feito de um pano xadrez laranja e roxo, pedira a Rogert um coldre ou algo parecido, e mais perto fora essa porcaria com bolsos grandes. Voltando pela mesma rua encardida que havia usado para chegar ao apartamento, algo lhe fez arrepiar. Um vulto preto pulou do parapeito de um prédio todo pichado que estava ao seu lado mais a frente, era um Rato, mas um rato muito grande. Olhou para João, o pobre animal tinha o rosto cheio de cicatrizes, e seu olho esquerdo estava baixo, e o outro olho bem arregalado. Aquilo fez João se esquecer da Jaqueta: o que estava indo fazer? O animal desapareceu correndo para o outro lado da rua, se enfiando numa fileira de carros abandonados. Estava indo matar Rafael ou apenas intimidá – lo? As patas do animal voltaram a aparecer andando acelerado pelos pneus velhos. E quanto a Seu Aldebaran? E se tiver mais alguém lá? Melancia não saia dali mesmo com apenas o corredor para a boca de Rafael aberta. Ouviu o barulho do animal sendo espantado por algum mendigo


do outro lado da rua, jogando latas ou algo parecido pelo som que fazia. Mas até chegar lá a maioria das pessoas já estariam fora e o Fimose fechado, e Melancia com certeza se jogaria no chão na hora que visse a arma. O animal desapareceu em meio a uma montanha de sacos de lixo que engolia um Ônibus laranja todo enferrujado. Não terá ninguém para se preocupar, nem mesmo Rafael, ira lhe entregar o dinheiro, deu uma risada, “é mesmo cara, pra que tudo isso?” pensou mais tranquilo. “Nossa. Como eu preciso dar um tiro...” 1.

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Estava na rua do Fimose, o prédio onde ele ficava estava escondido pela escuridão do poste apagado a sua frente, apenas a luz da entrada revelava um pouco da calçada quebrada, com copos descartáveis fazendo papel de lanternas improvisadas também iluminadas pela luz da entrada do prédio, que olhando da direção que João estava vindo, faziam uma espécie de constelação, a “Ratazana maior” daquela galáxia encardida. A porta estava mais perto do que nunca agora, percebeu que estava suando, bom deus como precisava de alguma coisa. Isso! Iria entrar e pedir um copo de pinga com caju, beber ela e depois... ir para casa? Com certeza, era melhor resolver isso logo de manhã cedo, o dia foi muito puxado. È, deixar isso para amanhã, não passaria disso. A entrada do prédio tinha uma grande porta de ferro caída como tapete, olhou para trás, as estrelas feitas de copos descartáveis haviam sumido, a atmosfera pesada daquele lugar havia feitos elas irem embora. João nunca mais as encontraria. O corredor do Fimose nunca pareceu ser tão grande, mas porque estava assim? Iria tomar um trago e nada mais, sem essa de armas de fogos e toda essa baboseira. O bar estava cheio, só sua dimensão menor do que antes em sua memória, quase todos que frequentavam o bar estavam lá fazendo companhia para Seu Aldebaran e Monique: Melancia no mesmo lugar, Sonia com seu vestido curto, Narcisa usando aquela toca, até mesmo Rogert e Magrinho, sentados no canto esquerdo de costas para a entrada. Todo seu mundo junto ia ser legal sentar e conversar com eles, tomando um copo de cachaça, 1

Expressão usada para o uso de cocaína


com certeza alguém iria ter algo engraçado a dizer, ou haveria uma gargalhada geral quando Seu Aldebaran flertasse com Sonia, sendo Melancia o ultimo a cessar o riso.Só que talvez a dimensão do bar parecesse menor, porque aquele não era mais seu mundo. Se aproximando, a cabeça de Rafael surgiu atrás de Melancia, com seu nariz vermelho e costeletas grisalhas, deu um riso de desprezo quando o viu, o canto da boca subiu, acompanhando o furo no rosto da bala que ainda estava lá. A voz de rouca de Rafael apareceu em sua mente “Nossa, depois do esporro ainda cola aqui hoje, deve ter vindo pedir a divida em pedra.” Puxou a 2012, segurando-a com as duas mãos, a mira em cima da boca do cano em direção a cabeça de Rafael, a arma rugiu, ouviu os gritos misturados, o clarão da arma o deixou sem enxergar direito, a Five Seven disparou, rugindo do mesmo lugar que os gritos de Rafael. Disparou de novo e a voz de Rafael se calou abocanhada pelo rugido. João caiu no chão involuntariamente, disparou mais duas vezes, o clarão ainda estava lhe tapando a visão. Não ouvia mais nada, apenas um forte zumbido. Chacoalhou a cabeça, a luz estava sumindo, o corredor lhe apareceu, Sonia estava caída a poucos metros de seus pés com os braços para trás, os cabelos lisos escondendo o rosto que acabara de encontrar a morte, os fios negros se encontravam com a poça de sangue que começava a fluir. Sua perna direita estava jogada para a frente como uma boneca de pano, a sola descalça do pé que havia perdido os tamancos amarelos, a alguns metros dali. João se levantou apoiando o cano da 2012 no chão, havia sido atingido no ombro esquerdo, o forro xadrez da jaqueta começava a se tingir de um vermelho bem escuro. Os canos que passavam por cima do balcão agora espirravam água como uma chuva forte, João viu Seu Aldebaran. Estava imóvel, seu olhos fixo nele, pareciam ser maiores do que jamais viu em alguém. Não havia ninguém onde vira Magrinho e Rogert, apenas um dos tamancos amarelos de Sonia perdidos atrás de um banco caído. Mas Rafael não estava ali, podia ouvir junto a diminuição do zumbido, sua voz gritando de trás da porta mofada ao fundo. Abriu o tambor da 2012, jogou as capsulas


usadas enquanto pulava o corpo de Sonia, uma fumaça saída dos buracos como se João tivesse libertado algo muito ruim junto aqueles disparos. Melancia estava ainda lá imóvel, mesmo com as varias marcas de bala que tinha na barriga e no rosto, junto a um pedaço da orelha que fora parar em cima do balcão, estava igual sempre ficava, mesmo sem respirar. Narcisa estava no chão do corredor gemendo, se remexia de dor em uma poça de sangue, mas sua toca havia desaparecido, seus cabelos eram de um loiro muito bonito e cheiravam bem mesmo no chão, deveria usar eles mais daquele jeito. Pegou as outras três capsulas do bolso, os olhos grandes de Seu Aldebaran lhe seguiam, mas pareciam olhar dentro de sua cabeça, a algo muito sinistro que morava lá e havia saído. Estava na frente da porta agora, a adrenalina era tão grande que as partes que andava para cada canto desapareciam de sua memória, parecia que sua mente estava sendo editada pela situação. Colocou uma capsula de cor amarela, Rafael continuava a gritar algo de dentro da porta, mas era inaudível, o zumbido ainda não deixava ouvir tudo. A porta estava se abrindo devagar e como uma espécie de reflexo, atirou na porta, que fez um único buraco no meio que sugou a parte de baixo da porta para dentro dele. Agora conseguiu ouvir o grito de dor de Rafael A boca de Rafael era a antiga conzinha do Hotel, que havia sido reduzido por estante de alumínio encardida de sujeira a um corredor pequeno. As paredes eram brancas, mas quase marrons pela sujeira e bolor que vinham do chão, um carpete solto que João não se lembrava desde os tempos quando frequentava a sala, na época de Magrinho. Rafael estava encostado na segunda estante, os óculos escuros ainda no rosto, sua respiração era acompanhada de um pigarro do sangue que escorria pelos cantos da boca e pelos buracos do nariz, estava com a mão direita segurando a barriga aberta, que fazia pequenos córregos vermelhos vazarem entre os dedos. - Você andou comendo merda? – disse Rafael tentando se mexer, ficando de bruços no chão – Tem ideia do que você fez seu bosta? Hehehe!- jogou o corpo para o lado e encostou-se à parede, pegou um cigarro e acendeu com o isqueiro que tremia na mão esquerda. A Five seven estava a metros dele. – He!, Você se esqueceu de que quando a mente é forte até a bala para? Haha! - Soltou uma fumaça junto com a gargalhada em direção a João, que sentiu o cheiro da maconha passando para fora dali.


- Então. – Sua voz nunca havia soado tão bem, sem gaguejar ou tremer, parecia aquela que sempre ouvida nas discussões ganhas de Rafael que só existiam em sua cabeça. – Às vezes nem uma mente forte aguenta a pressão do mundo. Abriu o tambor, e colocou a capsula azul, Rafael começou a engatinhar em direção da arma, João pisou em suas costas, sentiu as costelas saírem pelo ferimento, Rafael começou a se espernear de dor. João pegou o segurou pelos cabelos grisalhos e colocou o cano no rosto de Rafael. Em cima da cicatriz da qual este sempre se gabou. Seus óculos caíram, e pela primeira vez viu os olhos cor castanho de Rafael, se mexendo em desespero. O clarão e o zumbido vieram juntos e João fora poupado do resultado. Quando saiu, encharcado em vermelho, Seu Aldebaran ainda estava lá, mas não olhou para o velho, nunca se virou para olhar, nem em seus sonhos futuros. Não achou nem a metade do que Magrinho lhe devia dentro da jaqueta e, nos bolsos de Rafael, havia poucos pinos de cocaína e quase nada de pedras de crack, o negócio não devia estar indo tão bem quanto Rafael pensou quando quis a boca para ele. Mas junto com o que tinha em casa foi o suficiente para fazer sua viagem e retirar a bala do ombro. Achou um Lfriend 5 novo, lacrado e na caixa em uma das prateleiras de alumínio. Era um aparelho multi funcional interativo para crianças, o ultimo que tinha sido lançado. Na caixa havia um bilhete colado que dizia “Para Vitório”. Mesmo não conhecendo Vitório, João era grato, pois aquele aparelho lhe rendeu um bom dinheiro. Viajou para o Peru de barco, foi para Pucallpa, arranjou um emprego de zelador em um bordel. Não devolveu a 2012 para Rogert. E aquela capsula amarela que sobrou deixou guardada, nunca a iria usar. Preferia agora que seus troféus ficassem amarrados em seu pescoço, em vez de serem cheirados, fumados ou cravados no rosto.


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