REVISTA PREA N 16

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Natal, RN - N° 16, Janeiro/Fevereiro, 2006

Umarizal Efervescência e diversidade cultural

São Miguel do Gostoso Na rota de Gaspar de Lemos

Entrevista Poeta Iracema Macedo

Ensaio fotográfico “Os Cão”

Família Saturno Paixão e devoção pelo circo se sucedem há três gerações



A palavra da casa FUNDAÇÃO JOSÉ AUGUSTO Rua Jundiaí, 641 - Tirol - CEP 59020-120 Fone/fax: (84) 3232.5327/3232.5304 Governadora Wilma Maria de Faria Presidente François Silvestre de Alencar

A Preá está na Internet: www.fja.rn.gov.br

Diretor José Antônio Pinheiro da Câmara Filho PREÁ - REVISTA DE CULTURA DO RIO GRANDE DO NORTE ISSN 1679-4176 ANO IV Nº 16 JANEIRO/FEVEREIRO/2006 DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

PERIODICIDADE BIMESTRAL EDITOR TÁCITO COSTA tacitocosta@estadao.com.br EDITOR ASSISTENTE GUSTAVO PORPINO DE ARAÚJO gporpino@hotmail.com ESTAGIÁRIOS DAVID CLEMENTE E MICHELLI PESSOA PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO LUCIO MASAAKI infinitaimagem@infinitaimagem.com.br (84)8805-1004 REVISOR JOSÉ ALBANO DA SILVEIRA CAPA FOTO: ANCHIETA XAVIER axphotographer@gmail.com

François Silvestre

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ste número da Preá traz um encarte com a prestação de contas das nossas ações nestes três anos do Governo Wilma de Faria. A prestação é nossa; o julgamento e a comparação ficam por sua conta, caro leitor. Nenhum governo do Rio Grande do Norte, em todos os tempos, investiu tanto na infra-estrutura cultural quanto o atual. Digo e cobro a negação desta assertiva. O segundo lugar começa a ficar quase invisível no retrovisor. Após o fracasso das revoluções sociais e políticas, tanto a burguesa quanto a socialista, nós enfrentamos um momento de perplexidade e de angústia ideológica. O que sobrou dessas revoluções? A revolução burguesa, que prometia liberdade, igualdade e fraternidade foi derrotada pela ganância e criou a perversidade capitalista. A revolução soviética, que preconizava de cada um, conforme a capacidade, e para cada um de acordo com a necessidade, foi destruída pela violência política e pela burocracia estatal. O que sobrou? Sobraram o poder e o vazio. Do vazio, não temos a divina capacidade de tirar proveito. Sobra-nos o poder. Esse ente dialeticamente antagônico. Afirmação e negação dele mesmo. Dele, saem duas vertentes principais. Na negação, o poder usado para o domínio dos poucos que o usufruem. É a sua perversa face de desumanização. Na afirmação, o poder pode transformar-se no instrumento de contenção desse abismo. Pelo controle social da repartição. Não se confunda isso com assistencialismo. Não. Esse controle deverá ser feito pela própria sociedade não detentora do comando econômico. Como? Pelo aprofundamento da prática democrática. Do exercício cotidiano e continuado da Democracia. É fácil? Claro que não. É um aprendizado penoso. Lento e indelegável. Para o aprofundamento desse processo o povo não pode tirar férias. E ainda do poder, na sua face de afirmação, há duas vertentes. Uma, da transformação. Outra, da conservação. A transformação tem de atacar os bolsões de miséria, da pobreza e da violência. É sua obrigação política. A conservação tem como objeto a identidade cultural e a paisagem. O que chamo de paisagem não é apenas o cartão-postal. É o conjunto do meio ambiente com o bom nível de vida em cada lugar. A identidade cultural é o único veículo capaz da condução à dignidade humana. Quem não se identifica culturalmente será humanamente incompleto. Por isso vamos tirar do poder o que ele ainda pode dar. Taí a Preá número dezesseis. A Preá Leão!


O palhaço Pára-choque segue a carreira do avô e do pai e não deixa o circo se acabar. Nova geração de artistas circenses acredita que o circo ainda tem muito a oferecer

Í n d i c e

O premiado fotógrafo Fernando Pereira assina ensaio sobre o famoso bloco carnavalesco “Os Cão”, que sai na Praia da Redinha, em Natal

Expediente / A palavra da casa

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Cartas

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Circo Saturno - Hoje tem espetáculo? Tem, sim senhor!

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Volonté - “Do poeta falam tudo”

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Ensaio fotográfico - “Os Cão”

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“Pessoal do Tarará” leva arte à periferia

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Deífilo Gurgel - “Escrevo com o coração”

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O filme

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Músicapoesia - Leito de saudades e lembranças

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Fogo contra Fogo

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Poesia Potiguar - Elí Celso de Araujo Dantas da Silveira

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O escritor pernambucano Fernando Monteiro escreve sobre um mito do cinema, a atriz Greta Garbo

Í n d i c e

O jornalista Gustavo Porpino (primeiro à direita), em texto de despedida e balanço, fala sobre as reportagens que fez no interior do Estado para a Preá. À esquerda, o fotógrafo Anchieta Xavier, e ao centro, o motorista Érico Alves

AGENDA - 13 POR 1

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Foco Potiguar - Dois festivais

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Descobertas e aprendizado pelas veredas do RN

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O pensamento vivo de Guimarães Rosa

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“Greta Garbo, quem diria, acabou de se sentar...”

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O anjo terrível

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Tratado das intenções com entrelinhas de sabotagem

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Umarizal - Efervescência e diversidade cultural

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Entrevista - Poeta Iracema Macedo

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São Miguel do Gostoso - Na rota de Gaspar de Lemos

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PS

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C A R T A S Pesquisa

Apreensão

Orgulho

Recebi com apreensão “A palavra da casa” na PREÁ 15. Pareceu-me um misto de pedido de socorro, explicitação de uma situação de abandono e uma despedida. Assim, externo minha preocupação com a existência em si da PREÁ, de poder perceber, nas entrelinhas, a vulnerabilidade e a transitoriedade dos subsídios que a mantém. Considero a PREÁ um patrimônio do RN. Até quando a elite governante não perceberá que o investimento do Estado em cultura é a mesma coisa que o investimento de um pai na educação de um filho, pois é necessário, custoso, em longo prazo e a fundos Albimar Furtado perdidos... Porém, absolutamente imprescindível. A PREÁ é uma das poucas (Diretor-Geral do Diário de Natal) coisas positivas que vi em toda minha vida, entregue graciosamente pelo ente ******************** público. Por favor, não deixem acabar Viagem com a PREÁ!!! Já tornei-me um leitor assíduo da PREÁ, Aristóbulo Lima pela excelente qualidade de suas reporta(Advogado – Currais Novos-RN) gens. Entendo que essa revista tornou******************** se uma leitura obrigatória daqueles que “fazem” a cultura. Fiquei bastante emo- Patronímico cionado ao ler a reportagem “São José Li, com o agrado de sempre, a entrevisdo Campestre: a borborema potiguar” ta com Ariano Suassuna, na PREÁ 14. (PREÁ 14). Campestre é a minha terra Quanto à etimologia do patronímico natal! Essa reportagem levou-me ao túnel Suassuna, prefiro ficar com as raízes no do tempo, através do texto bem elabora- nheengatu, sendo suassuna: o bicho do e das belas fotos. Foi uma verdadeira grande. O veado é chamado suaçu, por“viagem” às minhas origens. que é bicho grande. Chega às minhas mãos a PREÁ 14, editada por essa Fundação. Tive oportunidade de apreciar outros exemplares e, diante da qualidade do trabalho, encaminhei à redação para auxiliar nos trabalhos diários dos repórteres. Porém, gostaria de poder agregar o produto ao acervo do Setor de Pesquisa do Diário de Natal. Para tanto, tomo a liberdade de consultá-lo sobre a possibilidade de adquirir a coleção de revistas já publicadas. Quero deixar o meu registro parabenizando a Fundação José Augusto pela excelente produção da revista PREÁ.

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Parabéns a toda equipe pelo alto nível de informação, divulgação e resgate da cultura e do orgulho que esta revista desperta nos nordestinos com quem tenho contato e que tiveram acesso a alguns números. Parabéns também pela agilidade da resposta, insisto na sugestão que no rodapé das imagens e/ou fotos, o leitor de fora ou distante possa localizar/saber que por exemplo: o casarão do tempo de “mil novecentos e vote”, que a imagem da santa tal, que o cruzeiro das almas de tal, está em tal cidade, povoado, sítio e etc.

Ana Lúcia (Educadora – Brasília-DF)

******************** Nordeste Acabo de ler com prazer e interesse a PREÁ 14. E aqui venho para felicitar toda a equipe pela excelência da revista. Sem falar na entrevista de Ariano Suassuna, sempre hors-concours, gostei sobremodo das reportagens sobre cidades potiguares, como São José de Campestre e Rodolfo Fernandes e sua capela das “meninas das covinhas”. Elas despertam minha curiosidade pelo Nordeste, que é inesgotável, e mostram que em todos os recantos o brasileiro luta pela sua afirmação como povo.

Jerônimo Rafael Medeiros

Ítalo Suassuna

Enéas Athanázio

(Diretor do Museu Câmara Cascudo/UFRN

(Médico – Rio de Janeiro-RJ)

(Balneário Camboriú-SC)

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leção tão procurada pelas pessoas que Desconhecimento freqüentam esta Biblioteca. Nem temos Agradeço mais uma vez pela revista Navegando dia desses, encontrei-o. palavras para agradecer-lhe. Deus lhe PREÁ, mormente o maravilhoso preOxente, pensei, peraí: esse é bicho da pague! sente da edição número 14, que traz a terra, do mato; não é bicho do mar. Biblioteca do Centro de Estudos entrevista com Ariano Suassuna. Aqui, Mas ele estava lá, melhor dizendo, ela, Geográfi cos e Agrários fico pasmo de verificar o quanto não são a PREÁ. Adorei a entrevista com o ge(Votuporanga-SP) mostrados valores como ele nas nossas nial Ariano Suassuna. Sou de Martins e escolas, porquanto de dez amigas de mimoro em João Pessoa-PB há 15 anos. Pa******************** nha filha, todas adolescentes, nenhuma rabéns pela excelente e belíssima PREÁ. Design e conteúdo sabia quem era Ariano Suassuna. Porém, Corajosa. Inovadora. Independente. Sem pedantismo, mas também sem falsa Sou pesquisador da cultura popular após mostrar e ler para elas, com certeza modéstia. É, sem dúvida, uma das me- e autor de cordel. Há 2 anos tive contato que jamais esquecerão deste maravilhoso lhores nesta área. com a PREÁ e o que me chamou logo escritor. a atenção foi o design gráfico, e depois, Ademir Neves Francisco Júnior Damasceno Paiva claro, o conteúdo, diga-se de passagem, (Jornalista-São Paulo-SP) (Professor de Filosofia – João Pessoa-PB) maravilhoso. Moro em São Paulo, ca******************** pital, a cidade mais nordestina fora do ******************** Nordeste. Identidade Divulgação Bicho da terra

Vocês da PREÁ estão de parabéns. Fiquei maravilhada com o conteúdo da revista. Cheguei a divulgar através de trabalhos da universidade as técnicas utilizadas por vocês. Gostaria de me manter mais informada sobre a cultura do meu estado e também de contribuir para o engrandecimento desse meio de comunicação.

Edson Luiz Tenho recebido com regularidade os (São Paulo-SP)

******************** Ariano

Recebi o n° 14 da bem-elaborada PREÁ (nome curioso, sui generis). Excelente entrevista com o fora-de-série, Ariano Suassuna. Fotos lindas... Enfim, uma Bartira M Coutinho, publicação cultural excelente, bem ela(Estudante de Jornalismo – Ipueira/RN) borada. São Paulo carece de uma revista de cultura deste porte. Magnífica, sem ******************** porquês... Ótima. Quem sabe um dia teColeção remos? Afinal, temos duas secretarias de Recebemos o grande presente para 2006. cultura, Estadual/ Municipal. Chegaram os sete primeiros volumes da Renato Braga revista PREÁ para completar nossa co(São Paulo-SP)

exemplares da PREÁ, que a cada número se apresenta melhor e mais interessante! Para quem está fora do Brasil, ler bons textos em português e manter o contato com a própria cultura é essencial para preservar a identidade brasileira e suprir a “saudade” das nossas coisas. Portanto, agradeço a vocês por essa alegria que aqui chega! Que a PREÁ continue o seu caminho de sucesso.

Silvia Costola (Roma-Itália)

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Hoje tem espetรกculo? Tem, sim senhor!


Palhaço Pára-choque (Naelson Abreu da Silva) segue os passos do pai e do avô

Circo Saturno Tácito Costa Fotos: Anchieta Xavier

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“camarim” onde Naelson Abreu da Silva se transforma no palhaço Párachoque é também o local onde ele dorme, em um colchão de solteiro, com o irmão, o trapezista Nadelson Saturno de Carvalho. O local, uma cobertura de lona, imitando uma barraca de camping, é tão apertado que mal cabe uma pessoa. E para completar ainda está abarrotado de caixas e um baú com objetos do Circo Saturno. O calor, mesmo à noite, faz qualquer um que se demore lá dentro alguns minutos começar a suar. É sentado no colchão que Naelson, segurando um minúsculo espelho e com gestos rápidos e certeiros, em menos de dez minutos se apronta para entrar em cena.

O espetáculo está marcado para começar às 21 horas. A velha Kombi passou o dia anunciando pelo bairro. Mas chega o horário previsto para o início do espetáculo e o público não aparece. Do lado de fora do Circo Saturno, armado no antigo e popular bairro das Rocas, em Natal, em frente à Oficina de Zé de Alaíde, na rua Luiz Joaquim de M. Filho, dois rapazes e uma moça conversam sob os fios de alta tensão de um poste, de onde saem faíscas a intervalos intermitentes, que eles ignoram solenemente. O pessoal do circo aparenta tranqüilidade e cada um faz o seu trabalho. A bilheteira, que é a partner do atirador de facas, está a postos desde às 20h30. O engolidor de fogo cuida da portaria. Na entrada, já estão montadas duas mesinhas, com pipocas, algodão-doce e um freezer com água mineral e refrigerantes. O algodão e a pipoca custam 1 real, cada.

A garrafinha de água fica também por 1 real e o refrigerante 1 real e 50 centavos. Tudo é muito simples e feito com devoção e seriedade. A dignidade está presente nos menores gestos. Uma das principais atrações do espetáculo, “Sheik”, aguarda tranqüilo a sua vez de entrar em cena. Pela aparência robusta, deve receber mesmo tratamento de estrela. O salário é pago por semana e depende dos números que cada artista apresenta, mas não ultrapassa os 100 reais. Em alguns casos, quando o artista tem família, para melhorar a renda, ele pode negociar com o dono a venda de produtos, como “maçã do amor”, pipocas, picolés e outras mercadorias, no interior ou nas proximidades do circo. Naelson Abreu da Silva, 23 anos, o Párachoque, filho do dono, vai lá fora conversar. Já são 21h10. Ele explica que o público só sai de casa depois da novela. Jan/Fev 2006

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José Nazareno Saturno e o bode “Sheik”

José Nazereno (centro) e os filhos. Os dois mais velhos já atuam no circo. Naelson Abreu da Silva (à direita) é o palhaço Pára-choque; Nadelson Saturno de Carvalho (à esquerda) é o trapezista

O que se comprova em seguida. Em 15 minutos as pessoas começam a chegar. Às 21h30 o espetáculo inicia com casa cheia. Para uma terça-feira, depois de duas semanas de espetáculo, é uma bilheteria surpreendente. Umas 300 pessoas lotam o Saturno, que tem capacidade para receber, segundo o seu dono, cerca de 400 espectadores. Os preços são convidativos. A entrada para a arquibancada custa 1 real. Já para as cadeiras o ingresso sai por 2 reais. Mas o bom do circo é mesmo a arquibancada, dividida entre crianças, adultos e idosos.

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Uma família de artistas As condições gerais do Saturno são boas. Ele é todo coberto. A lona é nova e foi adquirida recentemente. Custou 4 mil reais. É uma lona vistosa, amarela, azul e branca, as cores da bandeira brasileira. A arquibancada, aparentemente, é segura. As cadeiras é que estão um pouco gastas. Mas nada que impeça o espectador de sentar e desfrutar com tranqüilidade o espetáculo. O perigo, talvez, venha do alto, onde o trapezista faz seu número sem nenhuma rede de proteção. O Saturno é um circo tradicional, que tem na família, sua razão de existir. Sua história não é muito diferente da história de centenas de pequenos circos que percorrem as cidades do interior e as periferias das capitais e cidades maiores. O seu dono, José Nazareno Saturno da Silva, 43 anos, cinco casamentos e sete filhos, nasceu em Açu e, salvo alguns pequenos períodos de sua vida, sempre esteve ligado ao circo. Em um desses momentos, por exemplo, trabalhou como figurante no filme “O Cangaceiro Trapalhão”, de Renato Aragão, rodado no Ceará. Ele herdou o amor ao circo do pai, Manoel Saturno da Silva, que em 1965 deixou o Açu em um circo. Tocava guitarra, mas depois aprendeu a ser palhaço.


Assim é que o palhaço Pára-brisa é também o atirador de faca e se apresenta ao lado da grande estrela “Sheik”; o trapezista, Nadelson Saturno de Carvalho, 17 anos, também filho de Nazareno, se traveste para apresentar o personagem televisivo conhecido como “Lacraia”, o número mais ovacionado pela platéia; a bilheteira vira partner do atirador de facas; o engolidor de fogo (o “Homem Vulcão”) cuida da portaria e Luiz Eduardo Júnior, o equilibrista, fiscaliza a cerca de arame para impedir que as pessoas entrem sem pagar. É este grupo, de seis pessoas, que conduz o espetáculo durante 1 hora e 30 minutos. José Nazareno Saturno conta que começou a trabalhar em circo aos 14 anos, como o palhaço que saía pelas ruas, em pernas de pau, chamando o povo para o espetáculo. Depois deixou o Açu e foi encontrar com o pai na Bahia, que tinha montado um circo. A experiência durou pouco, ele trocou a Bahia pelo Ceará e somente em 1976 retornou ao Rio Grande do Norte, onde montou em 1988 o circo Noveon. O nome é uma homenagem ao

cantor e compositor Raul Seixas, autor da música “Novo Aeon”. Três meses depois de criado, o circo estava armado em Upanema, no Oeste Potiguar, quando atearam fogo e o que restou foram apenas os ferros. “Fiquei com as mãos na cabeça, sem lenço e sem documento”, relembra Nazareno. Estava chegando ao fim o sonho de ter a sua própria companhia e ele voltou a trabalhar de empregado em outros circos, como o Fantástico Circo, Circo Real Madrid, American Circus, Diorama Circus, Circo Europeu, Circo Califórnia, Circo Hatari, Circo Kaoma, Arca Circus e Circo Mágico Nelson, entre outros. Neste último foi onde nasceu o palhaço Pára-choque. Em 1996, junto com os irmãos, fundou um novo circo, o primeiro Saturno, que uma ventania intensa, em 2003, quando estava armado em Ipanguassu, reduziu à tábua e ferro. O novo Saturno foi montado este ano, em sociedade com Devaldo Freitas de Souza, e estreou nas Rocas, onde Devaldo, que já trabalhava com locação de som, mora. É a segunda vez que Nazareno trabalha junto com os filhos. Ele conta que irá percorrer os bairros da cidade e municípios próximos, de forma que os filhos possam continuar estudando. Da arte circense ele manja tudo. “Sou do tempo em que tinha teatro no circo, com ‘ponto’ atrás da cortina”.

Circo Saturno

Nascia aí a tradição de palhaços na família Saturno, que agora chega à terceira geração. Nazareno é o palhaço Pára-brisa. Ele se apresenta na segunda parte do espetáculo e o filho, Naelson, o palhaço Pára-choque, na primeira. Mas como a equipe de artistas é pequena todos se revezam fazendo outros números. Quando não estão no palco, de terra batida, vigiam a cerca para os moleques não entrarem sem pagar, cuidam do som, da portaria e da bilheteria e ajudam na venda dos refrigerantes.

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como a Internet, cita Chaplin, Mr. Bean e os Três Patetas, como modelos que faSer palhaço, para ele, é uma das mais zem rir com simplicidade e que devem difíceis profissões. “Palhaço não tem ser adotados. pai nem mãe, pode ter morrido a mãe, mas ele tem de se apresentar com um É possível notar a influência “modernisorriso estampado no rosto”. Nazareno zante” de Naelson antes mesmo de coconta que não orienta nenhum filho a meçar o espetáculo, quando o sistema de seguir carreira no circo. “Não pode ser som do circo toca o CD da banda Kid o pai que destina o filho, ele deve estu- Abelha e na abertura das apresentações, dar primeiro e depois seguir a carreira quando um locutor faz um resumo didáque escolher”, diz ele, que não chegou a tico da história do circo. É visível o esterminar o primário. O apelido de Pára- forço dele em apresentar um espetáculo brisa surgiu num dos primeiros circos de qualidade. Idéias visando isso ele tem em que trabalhou, ainda menino, fa- e cita duas: patrocínios privados ou Leis zendo figuração no “Táxi maluco”, que de Incentivo à Cultura. Mas enquanto acabava desmontado em meio a muitas isso não é viabilizado, o espetáculo é montado com o que se pode e tem. palhaçadas.

Palhaço não tem pai nem mãe

Ao contrário dele, Naelson, o Pára-choque, lê e escreve com desenvoltura. Trabalhou recentemente dois anos como cinegrafista de uma TV de Natal e se mostra antenado com ferramentas modernas 12

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público; depois paga uma promessa, de joelhos; dá umas cabeçadas em uma bola e mostra como se guia um bêbado. Sucesso estrondoso. “Sheik” tem dez anos e foi comprado ainda novo no Alto Oeste potiguar. Nazareno conta que descobriu a vocação do bode para “artista”, quando viu o animal brincar de bola com um dos filhos. Começou, então, a treinar o bicho para se apresentar no picadeiro.

O espetáculo prossegue com o palhaço Pára-choque; o equilibrista Júnior, no “Cilindro Oriental”; a personagem televisiva “Lacraia”; Pára-choque dubla o cantor italiano Andrea Bocceli; o atirador de facas faz o seu número temerário, A noite abre com o bode “Sheik”, anun- convidando uma pessoa da platéia; o traciado no microfone como “o único do pezista; o engolidor de fogo; e o palhaço Pára-brisa encerra a noite. Brasil que joga futebol”. “Sheik” faz a sua parte. Seu treinador, Nazareno, man- O público é um espetáculo à parte. da e ele levanta a pata e cumprimenta o Grita e ri o tempo todo, alguns dizem


Circo Saturno palavrões, mas também surgem tiradas hilariantes, como por exemplo, um anônimo que chama a “banda” que acompanha a música de Andrea Bocceli, dublada por Pára-choque, de “Banda Diarréia”. É uma platéia politicamente incorreta. Uma moça um pouco acima do peso, cai na besteira de aceitar o convite do atirador de facas, para participar do número. Ouve poucas e boas da platéia. Sai rindo! O espetáculo se encerra por volta das 23 horas, com o bordão, pronunciado de forma engraçada, pelo palhaço Pára-brisa: “Gente, volte amanhã”. Dali a instantes é hora de contar o apurado, comentar as atuações, avaliar o que saiu errado e o que pode melhorar e cada um se recolher ao calor de suas barracas, para tentar dormir como pode. Porque no dia seguinte tem espetáculo, sim senhor!

Origens do circo

um porto importante, faziam seu espetáculo, partiam para outras cidades, descendo pelo litoral até o rio da Prata, indo para Buenos Aires. O circo brasileiro tropicalizou algumas atrações. Por exemplo, o palhaço brasileiro fala muito, ao contrário do europeu, que é mais mímico.

Alguns estudiosos afirmam que o circo surgiu na Grécia Antiga e no Império Egípcio, onde já havia animais domados. As Olimpíadas, que começaram por volta do século VIII a.C., contavam com números circenses. Nos anos 70 a.C., O Dia do Circo, no Brasil, 27 de marem Pompéia, no Império Romano, haço, está relacionado ao nascimento em via um anfiteatro usado nas exibições de Ribeirão Preto (SP) do palhaço Piolin, habilidades incomuns Abelardo Pinto “Piolin” (27.3.1897A versão do circo que conhecemos – 1973). Filho de artistas circenses, Piolin com picadeiro, lona, desfile de animais foi um dos mais queridos palhaços bra– é recente e foi criada pelo suboficial sileiros. inglês Philip Astley, por volta de 1770. Outro grande palhaço é George Savalla Na época, ele montou um espetáculo Gomes, o Carequinha, que nasceu em com cavalos, que contava com saltadores Rio Bonito, RJ, em 1915. Começou a e palhaços. trabalhar como palhaço aos cinco anos O circo com suas características, em ge- de idade, passando por vários circos naral itinerante, existe no Brasil a partir dos cionais e até um internacional, o Circo fins do século XIX. Desembarcavam em Sarrazani. Jan/Fev 2006

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VOLONTÉ Por Gustavo Porpino Fotos: Areta Luna

Sou um mulato democrático do litoral a gente precisa ver o luar (Volonté)

Quem conhece Volonté? Manoel Fernandes de Souza Júnior, 49 anos, natalense das Rocas, é uma das figuras humanas mais populares de Natal. O poeta Volonté faz parte da Natal mais provinciana, em que quase todos compartilhavam as mesmas amizades, batiam papo nas calçadas do centro e brincavam no carnaval de rua de Petrópolis à Ribeira. A Natal, pacata e boêmia, dos anos 70 e os jogos do escrete de 70, despertaram em Manoelzinho o gosto pela poesia. O garoto do Areial, nas Rocas, aceitou ser poeta e, desde então, espalha seus versos curtos e cortantes nas esquinas de Natal. O pseudônimo “Volonté”, que ele diz já ter explicado a origem “umas cem vezes”, é uma homenagem ao ator italiano Gian Maria Volontè, ator principal do filme “Giordano Bruno”, dirigido por Giulia14

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no Montaldo. “É talvez um dos maiores O meu amor e eu nascemos um para o outro atores da história do cinema”, salienta. agora só falta quem nos apresente Volonté é irrequieto, crítico, às vezes impaciente, leitor voraz de jornais e obser- O poeta andarilho é solitário. Gosta de vador do cotidiano natalense. Sabe como caminhar pelas ruas como se estivesse à ninguém ler as entrelinhas das colunas procura de si mesmo. O artista plástie artigos e tem sempre uma opinião co Dorian Gray Caldas desvenda bem formada. Não suporta os bajuladores e Volonté no prefácio do livro “Proemas”, tem sempre uma crítica dirigida aos que publicado em 2004. Segundo Dorian, chama de “canalhas”. Para ser amigo de “o poeta está sempre em trânsito, semVolonté, ou pelo menos ser respeitado pre com um livro consultando, lendo, por ele, tem que ter opinião, como disse discutindo o texto ou passando a poesia certa vez o poeta mineiro Cacaso no iní- para alguém”. cio do poema “Face a face”. Há 15 anos mora sozinho numa quitinete na Cidade Satélite. Passa longas horas ouvindo música, lendo e telefonando São as trapaças da sorte sem ser importunado. Adora telefonar são as graças da paixão para jornalistas e alguns poucos amigos. pra se combinar comigo “A melhor conversa que tem é por teletem que ter opinião fone”. Na simplicidade da sua morada, rabisca seus versos em pedaços de papel. “Só escrevo com lápis, tenho medo de A obra do poeta e ensaísta Antônio computador”. Carlos de Brito (1944-1987), o Cacaso, parece ter influenciado Volonté. O poe- A figura de cabelos já grisalhos, cortata potiguar admira a “poesia marginal” dos bem curtos, sandálias havaianas, de Cacaso e também faz uso da crítica calça jeans com a bainha dobrada e casocial nos seus poemas. Outros versos miseta, tem seus pontos de parada fado poeta mineiro casam perfeitamente voritos. Quando não está em casa ou na sede da Fundação José Augusto, de com Volonté.


“Do poeta falam tudo”

onde é funcionário, pode ser facilmente encontrado no sebo Letra e Música, Café Cirol ou tomando cerveja no Beco da Lama. “Gosto muito de andar a pé. De ônibus e de carro é uma tortura. O trânsito de Natal está um câncer quase incurável”. Os sebos exercem um fascínio sobre os poetas. Volonté freqüenta os principais sebos de Natal. Vai sempre ao Sebo Vermelho conversar com o livreiro Abimael Silva, gosta dos sebos de Jácio e Amorim, mas é no “Letra e Música”, do amigo Ary Ramalho, que Volonté parece se sentir em casa. A música de boa qualidade acalma o poeta, tem sempre um jornal guardado à sua espera e a companhia de Ary para trocar idéias sobre música entre um e outro cigarro. Música, poesia e cerveja são três grandes paixões na vida do poeta. Os Beatles, preferencialmente interpretado por Sarah Vaughan, Bob Dylan, Led Zeppelin, Chat Baker, Luís Gonzaga, Vital Farias, Lenine e Paulinho da Viola formam o universo musical de Volonté. No mundo das letras é igualmente exigente. Perde facilmente a paciência com textos mal escritos. Conta que já passou dez anos sem ler. De 1988 a 1998. Entre os anos de 1991 a 1995 viveu a fase mais difícil. “O percalço da vida”, como define. Diz ter sido salvo por alguns amigos como os médicos Elmano Marques e Napoleão Paiva. Vencida a fase de imersão, retomou o olhar sobre os poemas de Cacaso, Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Fernando Pessoa e Mário Faustino. Também elogia a “dura poesia concreta dos irmãos Campos (Haroldo e Augusto de Campos)”. Jan/Fev 2006

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VOLONTÉ O culto à cerveja Volonté exerce, preferencialmente, no Beco da Lama, reduto de boêmios no centro de Natal, e aceita até a sofisticação dos shoppings, desde que o chope seja bem gelado. Antes mesmo de publicar o primeiro livro, “Antecedentes criminais” (1979), Volonté já freqüentava o Beco da Lama na companhia do poeta Bosco Lopes, já falecido. Mais recentemente, gosta de dividir mesa nos bares do Pedrinho e Nazaré com o músico Carlança.

Poesia potiguar Volonté acompanha de perto a produção poética nas terras potiguares. É figura certa nos lançamentos de livros e saraus poéticos. Elogia muitos e desconversa sobre outros. Os poemas dos potiguares Napoleão Paiva, Demétrio Diniz, Adriano de Sousa, Alex Nascimento, Plínio Sanderson, Moacy Cirne, Nei Leandro e Sanderson Negreiros são celebrados por Volonté. A explicação pela escolha é simples. “É gente que escreve bem”, diz. “Inclua na lista também a fotografia poética de Giovanni Sérgio”.

nem de escolher rótulos para si mesmo. Acha até que “não há definição para o ser humano”. Poetas, então, são ainda mais complexos. “Nem Octávio Paz conseguiu definir o poeta”, diz, recorrendo ao ensaísta mexicano de quem é admirador assumido. Mas alguns poemas de “Cara a cara”, livro reeditado em 2005 com ilustrações do sobrinho João Felipe, 11 anos, falam por Volonté.

Pelé, Rivelino e companhia encantou tanto Volonté que no ano seguinte nasciam os primeiros poemas. Marcados também pela crítica social ao regime da ditadura. “Vi a Copa todinha na antiga Confeitaria Atheneu”, relembra. Alguns anos depois, Volonté fez parte do grupo fundador do “Comitê norte-rio-grandense pela anistia”.

Do poeta falam tudo e sei que o mel lambuza hipocrisia

A paixão de Volonté por carnavais de rua vem da infância no Areial. “Quando eu era criança, esperava sempre a ‘Bagunça do PV’ passar”. O bloco de rua do carnaval das Rocas arrastava os canguleiros pelas ruas do bairro e criava em Volonté o gosto pela folia. Já crescido, o poeta passou a acompanhar a Bandagália e relembra antigos foliões do carnaval de Natal. “Eugênio Cunha, Jácio Fiúza, Olinto Rocha, Laércio Bezerra, Ary Ramalho, todos eles, seguiam as bandinhas de rua do Tob’s bar, em Petrópolis, até a Peixada Potengi, na Ribeira”.

Volonté acha mesmo é que “a pessoa é mais persona”. O poeta pretende apresentar algumas destas figuras “mascaradas” em “Perfídia”, livro de crônicas sobre Natal e alguns personagens da cena natalense. “Mas utilizo nomes de cidades americanas e fictícios para as pessoas”, avisa. O novo livro ainda não tem data para ser lançado.

Copa e carnaval

A Copa de 70 foi “o primeiro alumbramento” de Volonté. “Foi um momento O poeta andarilho prefere falar dos ver- sem igual entre poesia, arte e autenticisos alheios, de elogiar os outros poetas. dade da malandragem brasileira”, desNão gosta de comentar sua própria obra, creve. O futebol-arte de Tostão, Gérson, 16

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Enquanto os antigos carnavais de Natal não voltam, como deseja Volonté, o poeta segue andando por aí, colhendo versos do cotidiano, telefonando para uns, encontrando outros e espantando os dândis.


“Do poeta falam tudo”

DOIS POEMAS INÉDITOS DE VOLONTÉ Um dia de torres gêmeas Acordo pela manhã Acendo um cigarro Vejo a cor do sol Diferente Entre guerras e torres E terrorismo Manhattan não será mais a mesma Somente um começo de século E milênio Viajando para o infinito E meu velho amigo de tantos anos Esfumaçando meu pensamento

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Tenho um passado Dentro de mim A lira lampeja Minha poesia Em versos soltos Nosferatu Jan/Fev 2006

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“OS CÃO” “Os Cão” é um tradicional bloco carnavalesco da praia da Redinha, em Natal, que sai às ruas uma vez por ano, com os foliões recobertos da lama do mangue.

FERNANDO PEREIRA Fernando Pereira é jornalista e fotógrafo freelancer. Participou de várias exposições e ganhou concursos de fotografia no RN, como “Revele a Vila”, “Visões da Redinha” e “Eu Fotografei as Kengas”. Porém, seu maior feito veio do Japão, com o concurso fotográfico promovido pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – 1994/95. Participaram do evento 19.491 fotógrafos, oriundos de 153 países, concorrendo com 44.039 trabalhos. Desses, apenas cem imagens foram selecionadas para compor o catálogo, entre elas a sua foto “Earthen Men” (“Homens de Barro”). Contatos: (84) 3641-1949, 9984-0899.

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Sérgio Vilar Fotos: Anchieta Xavier

“Pessoal do Tarará” leva arte à periferia

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com o ideal de disseminar arte ao público da periferia que o grupo de teatro de rua “O Pessoal do Tarará”, de Mossoró, começou suas atividades. Música, circo, máscaras, barulho, ideologia, arte, enfim, tudo aquilo que tem cor, vida e contrasta com o conceito de que as ruas são meros fluxos econômicos de uma cidade, está presente no teatro de rua do Tarará. São nesses espaços cinzentos que o artista fala com seu semelhante de forma direta e pura. Tudo começou em novembro de 2002, com um par de tênis doado. Quando

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se cogitou fazer uma rifa para angariar dinheiro e conseguir o figurino e artefatos para as primeiras apresentações. O apurado foi pouco, mas quem conhece a realidade de “O Pessoal do Tarará” reconhece que com o pouco se faz muito. O grupo iniciou os ensaios, nas praças de Mossoró e em um espaço emprestado por amigos, que funciona como sede improvisada. O primeiro espetáculo encenado foi o “Sanduíche de Gente”, do poeta mossoroense Crispiniano Neto. Ficou um ano em cartaz e ganhou, inclusive, as ruas de Natal.

tante para montar o segundo espetáculo: “O Inspetor Geraldo”, uma livre adaptação de “O Inspetor Geral”, de Nicolai Gogol, autor de clássicos da literatura russa. “Adaptamos à nossa linguagem, à nossa cultura, com os costumes da nossa terra”, explica o roteirista do espetáculo, Dionízio Cosme Neto, o Dionízio do Apodi. Sentida as dificuldades de locomoção do primeiro espetáculo, o grupo decidiu comprar bicicletas para cada componente e facilitar o transporte das indumentárias dos shows aos locais de apresentação.

coloridos, em cortejo pelas ruas de Mossoró. Na frente, o ator Jarllon Azevedo, 20, segura um alto-falante, a chamar todos ao espetáculo: “Pra você que está com nome sujo no SPC, está com insônia, vem para cá que você vai ser um novo moço, uma nova moça. É o grupo Tarará...”. E no improviso, acompanhado por apitos, buzinas e chocalhos dos outros componentes, o jovem ator guia um grupo de dez bicicletas até chegar à travessa Riacho Doce, no bairro Barrocas, periferia de Mossoró. Era lá a apresentação do dia.

Com a peça, o grupo concorreu ao Prêmio de Fomento à Cultura, patrocinado pela Petrobrás e prefeitura de Mossoró. Venceu e ganhou R$ 15 mil. Foi o bas-

A necessidade virou marca do grupo. Chegada a hora da apresentação, lá vai “O Pessoal do Tarará”, em cima de bicicletas repletas de adereços variados e

A presença repentina e barulhenta do grupo causa surpresa aos moradores das redondezas. Ao contrário daqueles que acenavam para o grupo no meio do Jan/Fev 2006

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caminho, as pessoas agora ficam confusas com todos aqueles jovens, adultos e crianças com máscaras e pinturas no rosto, roupas espalhafatosas e um cenário simples, guardado dentro das maletas que seguem penduradas no bagageiro das bicicletas até o local da apresentação. Em cerca de 10 minutos o “palco” está montado. “Senhoras e senhores, respeitável público...”, anuncia o início do espetáculo o mais jovem componente do grupo, com apenas 12 anos, em cima de uma perna de pau.

grupo: as autoridades de uma pequena aldeia tomam conhecimento de que um inspetor do governo chegará incógnito em breve para investigar certos abusos. Por acaso, um aventureiro passa por ali e os poderosos do local, achando que ele é o inspetor, fazem de tudo para suborná-lo.

menção a alguma obra clássica, vai para o popular romance de Romeu e Julieta, escrito por “Xeiquespeáre”.

Alguns componentes do grupo já realizavam outros trabalhos ligados ao teatro amador, mas a maioria se dividia em atividades distintas e aguardava, mesmo sem muito acreditar, o desejo de um dia No entanto, o status de alguns perso- trabalhar com teatro de rua. É o caso de nagens foi modificado. O aventureiro é Bené Tavares, o mais velho do grupo, um engraxate, que carrega toda a malí- com 46 anos. cia e o jeitinho brasileiro de se dar bem Bené largou a atividade de professor para em qualquer situação, e aproveita-se do entrar no grupo Tarará. Lecionava Filosuborno para dias de luxo. Para não ci- sofia e Sociologia no Colégio Geo. E veio tar o poeta russo, Punchin, no meio do do Ceará para Mossoró só para isso, em O espetáculo roteiro, o grupo prefere os bons nomes 1993. Sempre aficionado pelo teatro de A trama da peça original, “O Inspetor da terra, como Antônio Francisco. A lin- rua, ao ver a passagem do pessoal do TaGeral” é respeitada na livre adaptação do guagem empregada é a de rua. E se há rará, um velho sonho de juventude redi26

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mensionou conceitos na mente de Bené. “Tenho aprendido com essa juventude a renovar minha mentalidade. Não vejo idade quando estou aqui (nos ensaios e nas apresentações). Vejo, sim, espírito e força de vontade. E isso ajuda até na formação dos meus filhos”, revela. Mesmo tendo largado a atividade pedagógica por completo, Bené ainda consegue tempo para dedicar-se ao rádio, aonde conduz o programa “Cantada Brasileira”. Na verdade, foi numa rádio em Icó, interior do Ceará, que Bené tomou gosto pela arte teatral, ainda com 15 anos. Ele participava da Companhia Vassoura de Arte, que encenava apresentações na rádio. A temporada foi curta, mas a magia do teatro improvisado per-

maneceu no jovem artista. Hoje, Bené do Apodi, diretor do Tarará, para inteinterpreta a mulher do prefeito, na peça grar o grupo. “O Inspetor Geraldo”. É ele quem arran“Estamos sempre aprendendo com as sica as maiores risadas do público. tuações das ruas; o improviso leva a isso. Euzimário Macário, 19, é outro exemplo Às vezes tem bêbado atrapalhando, é um de dedicação ao ofício. Ainda morador cachorro que não pára de latir... Mas é do sítio Juvenal, no distrito de Baraúna, tudo em nome da arte”, conclui. Euzimário vem diariamente a Mossoró para o colégio e os ensaios com o Tarará. Com apenas três anos de existência, “O Por vezes, dorme na sede improvisada do Pessoal do Tarará” já conseguiu gravar grupo, devido às distâncias. Mas mesmo um documentário sobre a rotina do gruantes de entrar para o grupo e interpretar po, desde os ensaios, à saída da sede e os protagonistas das peças, Euzimário já apresentações na rua. O documentário estudava teatro no grupo Arruaça, tam- foi premiado no Festival do Vídeo Pobém de Mossoró. “Mas quando o Tara- tiguar. Além do documentário, foi feito rá passou, me chamou atenção o modo o filme “Um Chão de Esperança”, de 45 como trabalhava”. Ao deixar o grupo Ar- minutos com roteiro e direção de Dioníruaça, recebeu um convite de Dionízio zio do Apodi. Jan/Fev 2006

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DEÍFILO GURGEL

David Clemente Fotos: Anchieta Xavier

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eífilo Gurgel, 79 anos, é um dos mais respeitados estudiosos do folclore no Rio Grande do Norte. Mas quando perguntado sobre sua profissão, responde simplesmente: “aposentado do Estado”. No entanto, essa classificação é vaga demais para quem publicou livros de poesia e sobre folclore, estudou Direito, foi bancário, professor, diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura Municipal do Natal e diretor do Centro de Promoções Culturais da Fundação José Augusto. Um currículo considerável para ser resumido apenas a “aposentado do Estado”. O pesquisador da cultura popular nasceu e viveu toda a infância na cidade de Areia Branca, a 330 km de Natal. Ele conta que seu pai era rigoroso em muitas 28

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coisas, mas quando se tratava de amizade, não havia restrições. O menino, que mais tarde seria folclorista, recorda que costumava brincar de “touro passa” e “barquinho passará”. As brincadeiras não influenciaram sua carreira, pois ele só veio a se interessar profissionalmente por folclore a partir dos 44 anos. Antes disso, sempre teve ligação afetiva com a cultura. Era poeta. Sua poesia está em quatro livros de versos inéditos e um quinto em que reúne os melhores poemas dos livros anteriores. O primeiro foi intitulado “Cais da Ausência”, publicado em 1961. O segundo chamava-se “Os Dias e as Noites”, publicado em 1979. Em 1983 nasceu “7 Sonetos do Rio e Outros Poemas”. Em 2002, publicou “Areia Branca, a Terra e a Gente”, no qual além de poesia há também história e antropologia e está, como diz o autor, “vendendo como cocada” porque consta no edital de um concurso da prefeitura da cidade. O

quinto livro, de 2005, ganhou o nome de “Os Bens Aventurados”. Em 1967 ele recebeu o diploma de bacharel pela Faculdade de Direito de Natal. Mal teve tempo de praticar sua formação, pois em 1971 aceitou dirigir o Departamento de Cultura do Estado do RN. Foi quando nasceu seu interesse pelo folclore. Ao se instalar no novo local de trabalho, encontrou cadernos com cantigas folclóricas. Primeiro ficou curioso, depois apaixonado e pôs-se a procurar mais registros culturais como aqueles. “Entrei com toda a força para o universo do folclore”, diz Deífilo que até ensaia uma comparação com o conterrâneo Câmara Cascudo: “Ele estudou todos os países. Eu me centrei aqui no RN”. E quando volta ao assunto do diploma, ele diz não muito preocupado: “deve estar numa dessas gavetas da minha casa”.


“Escrevo com o c o ra ç ã o”

No mesmo ano em que tomou posse no seu novo cargo, o governador do Estado, Cortez Pereira, realizou uma grande festa para celebrar o natal. E lá estavam as tradicionais apresentações de Pastoril, Bumba-meu-boi, Chegança e Fandango. Numa delas, em São Gonçalo do Amarante, Deífilo ficou deslumbrado com a dança e as marradas do Boi. “Comecei a comprar livros para estudar o folclore e hoje tenho uma biblioteca”. Aquele era o elo entre o antes e o depois. A partir de então a poesia foi deixada de lado, pois era a vez do folclore. Apesar disso, ainda publicou livros de poesia. Em 1979 vieram dois novos desafios para Deífilo. Num deles teria que administrar, no outro, lecionar, ambos ligados à cultura. Nesse ano ele tomou posse como diretor do Centro de Promoções Culturais da Fundação José Augusto e como professor de Folclore Brasileiro, na UFRN.

Dois anos depois começavam os lançamentos dos seus livros sobre folclore. Respectivamente, Danças Folclóricas do RN; João-Redondo - Teatro de Bonecos do Nordeste; Romanceiro de Alcaçuz; Manual do Boi-Calemba; Espaço e Tempo do Folclore Potiguar.

tante. “Sempre escrevo com o coração. Mas nesse livro foram uns três ou quatro corações para escrever”, diz o autor.

Além de todas as profissões, Deífilo também atende pelo substantivo de pai para 9 filhos, o de avô para 15 netos e de bisavô para quatro bisnetos.Todos frutos de um único matrimônio com Zoraide O livro com que Deífilo mais se em- Gurgel, para quem ele compôs o poema polga para falar é, sem dúvida, Areia “Musa”, em 1996. Branca, a Terra e a Gente. Somando todas as fases, o autor investiu 15 anos para terminar a obra. Dos O folclorista cidadão quais, dois para concluir a primeira O lado pesquisador do folclorista, por parte e treze para a segunda, que trata vezes se confunde com o cidadão. Deída árvore genealógica das famílias da filo conta que muitas de suas fontes de cidade. “Para desvendar a genealogia pesquisa são pessoas comuns, mas que areia-branquense, foi necessário visi- guardam na sua memória canções, vertar casa por casa para ver as famílias”, sos e costumes folclóricos quase extintos. diz. E conta orgulhosamente que no São geralmente pessoas tão comuns que lançamento, o professor Vingt-un sequer sabem o valor que essa memória Rosado disse que dentro de 50 anos tem para a cultura. Para o pesquisador da o RN não verá outro livro tão impac- cultura popular, não é correto pesquisar, Jan/Fev 2006

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DEÍFILO GURGEL registrar e sumir. “Não é justo. Eles dão tanto para todos que eu tenho procurado ajudar”. O primeiro caso que ele relata é do cantador Chico Antônio. Quando o coquista foi redescoberto, a TV Globo o chamou e o Ministério da Cultura lançou o filme “O Herói com Caráter”. Mas ele queria algo para o artista. Conseguiu, então, uma aposentadoria de três salários mínimos. Em São Gonçalo do Amarante, na Grande Natal, mora Dona Militana (Militana Salustino do Nascimento), 80 anos, mais uma artista nata que Deífilo descobriu e a classifica como “fenomenal”. Dona Militana, que recebeu das mãos do Presidente Lula a Ordem do Mérito Cultural, é considerada a mais importante romanceira do Brasil por conhecer diversas canções dos romanceiros ibéricos e brasileiros. Algumas delas datam da época da descoberta do Brasil. No mundo globalizado de hoje em dia, as músicas consideradas “da moda” também chegam aos ouvidos do dedicado pesquisador de cultura popular. E Deífilo admite que “música, seja ela qual for, há sempre canção boa”, dos Beatles aos forrós estilizados. E admite também que nem todas as cantigas de folclore são tão boas assim. “Algumas são monótonas, chatas e só têm valor histórico. Mas há outras belíssimas”. A proposta do professor para as apresentações é que sejam selecionadas as melhores como forma de agradar o público.

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Folk-lore A palavra “folclore” é derivada da junção dos termos ingleses “folk” e “lore”. O primeiro significa povo e o segundo significa saber. Portanto, Folk-lore quer dizer sabedoria de um povo. Com o passar do tempo a palavra perdeu o hífen (folklore) e depois adaptou-se ao português e passou a ser escrita folclore, como conhecemos hoje. Ultrapassando a grafia, Deífilo destaca a definição do professor paulista Racine Tavares, quando explica que Folclore é a ciência que estuda a cultura espontânea da gente do campo e da cidade. Não é adquirida em escolas e nem em faculdades, pois atinge desde analfabetos até doutores. Outra forma de entender o que é folclore é conhecer sua história. O professor Deífilo explana que no RN, em determinada época, o estudo nessa área era menosprezado, pois começou com brincadeiras de escravos e pessoas que não tinham acesso à cultura erudita, quase sempre importada da Europa. Depois os próprios eruditos passaram a estudá-la e descobriram que naqueles versos espontâneos havia história e costumes descritos.


O filme

Para um livro-em-progresso Moacy Cirne

sou Caicó, sou Natal. Sou o filme que me completa. Nas sombras do cinema. Nas sombras das vozes. Nas sombras do futuro. C’est à Nevers que j’ai été le plus jeune de toute ma vie... Jeune-à-Ne-vers. Jeune-à-Ca-i-có. Oui, Jeune à Caicó. Et puis aussi, une fois, folle à Natal. Viajo nas minhas idéias, nos meus sentimentos, nas minhas angústias; o filme me fascina, me consome, me embriaga, me destrói. Me diz tudo, tudo, tudo. Et la Loire? C’est un fleuve sans navigation aucune, toujours vide, à cause de son cours irrégulier et de ses bancs de sable. En France, le Seridó passe pour un fleuve très beau, à cause surtout de sa lumière... tellement douce, si tu savais. O que fazer da saudade que tenho do Seridó, da sua luz quando cheio de barreira a barreira? O que fazer das minhas desilusões? Das minhas esperanças desbotadas? O que fazer do amor que se perdeu no tempo e no espaço? Não o esquecerei, jamais. Jamais. Je t’oublierait! Je t’oubli déjá! Regarde, comme je t’oublie. Regarde-moi! Hi-ro-shi-ma. Hi-ro-shi-ma. C’est ton nom. Depois de tudo, a música. Depois do fim, o silêncio. Estou exausto. Dilacerado. Desnorteado. Escuto as pessoas que se levantam de suas poltronas. Algumas vozes, alguns vazios. Tomo a minha bengala e começo a tatear, devagar; não tenho pressa. O encarnado e o azul há muito que me escaparam da memória. Há muito que deixei de sentir os crepúsculos e as cores do Seridó. Não vejo mais do que alguns poucos fiapos de sombras, alguns restos de pequenas certezas. Não vejo mais do que o nada e uma certa náusea. Moro perto, já disse. Sei voltar sozinho para casa. E hoje prefiro voltar sozinho.

Encontro-me na primeira fila, sentado, à espera do início da sessão. À espera do filme, qualquer filme de categoria, desde que brasileiro, espanhol, italiano. Ou francês. Só que o de hoje não é um filme qualquer. Agrada-me ficar na primeira fila; sinto com mais intensidade a luz que vem da tela, o som que me envolve de forma quase sensual. Aos 35 anos, continuo amando o cinema, sempre amei. Desde os tempos de Caicó, no interior do Rio Grande do Norte. O Paissandu, hoje, é a minha segunda casa, moro aqui perto. Depois das sessões, gosto de discutir com amigos ou conhecidos nas mesas do Oklahoma, molhando as palavras sem maiores preocupações, sem maiores ilusões. Mas com muita paixão sobre o último Godard, o último Glauber, o último Antonioni, o próximo Nelson Pereira, o próximo Joaquim Pedro, o próximo Luiz Rosemberg. Ou a última sacanagem do governo. Às vezes, aparece uma amiga que me acompanha até o meu apartamento, na Senador Vergueiro. Mas eis que a sessão começa. Depois dos primeiros minutos, complementos inúteis, inicia-se o filme, um filme ansiosamente esperado por mim, que ainda não o conhecia, por incrível que pareça. Aliás, eu era o único da turma que não o conhecia. E o filme se desenrola, nobre e solene. Com sua música. Seus ruídos. Seus diálogos. Tu n’as rien vu à Hiroshima. Rien. J’ai tout vu. Tout. Non, tu n’as rien vu à Hiroshima. Ainsi l’hôpital, je l’ai vu. J’en suis sûre. L’hôpital existe à Hiroshima. Comment aurais-je pu éviter de le voir? Sim, a dor me toca, o passado não me consola, o presente me abstrai, a paz já não existe em minhas [ in A palavra e outras palavras, a sair memórias. Sou Hiroshima, sou Nevers, em 2006 ] Jan/Fev 2006

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Leito de saudades e lembranças Carlos Gurgel Poeta Acho de extrema importância se constatar, que na cena cultural da cidade, existem grupos que escolhem a poesia como base dos seus trabalhos. Aliás, é importante que se frise: pronunciar o poema, não é para qualquer um. Acredito, inclusive, que é necessário dispor de elementos cênicos, para que a coisa aconteça. Desse ângulo, é preciso que a interpretação, a expressão corporal e a técnica vocal, aqueçam e consolidem o ritmo de empatia com o que se quer mostrar. Falar poesia é difícil. Tem a escolha a ser feita dos poemas. Tem o ritmo de cada poema, a química de cada palavra (ao lado da outra). E tem (o que eu considero o mais importante), o sentimento, a emoção, o coração. É imprescindível que se tenha consciência que toda essa manufatura que se estabelece, ela é urdida por entre muitas noites de sonhos, e na maioria das vezes, uma constante e verossímil ampulheta que separa com suas lentes, o imaginário do factual. É como uma energia que alivia e retempera a verdade que cada palavra encerra. Ainda mais, se tudo que foi escrito, for dito por quem escreveu. É o que podemos chamar, a foz autoral. O próprio poeta dando o tom do seu sentimento. Do seu ar. Da sua temperatura. Esses meninos do “Elegia e seus Afluentes”; Drika (vocal e poesias), Letto (violão, voz e arranjos), Maíra (percussão), Rita (percussão) e Jennifer (flauta transversal, arranjos), estão suando e experimentando recados. EmolduFoto: Augusto César Bezerra - Arte digital: Venâncio Pinheiro

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ram com suas crenças e melodias, um li- E sobre as veias que insistem em saciar vro recheado de avisos e apelos. com seus encantos, trilhas e línguas da nossa fragilidade humana. Sobre os Quem simpatiza, acolhe e propaga versos aguapés de palavras e tons, instante onde e batuques e que esteja afinado como um se celebram pecados e promessas. Verões segredo do coração, é bom ficar atento. e quimeras. O “Elegia” com seu som acústico, sem E sobre estalos e sussurros, também. quase nenhuma distorção eletrônica, Sim, sobre estalos. Ou você se esquece permite que a poesia de Drika pouse que a maioria do que se fala, nada vale? como uma chuva de recados. É dessa forNada vale a pena. E é aí que a poesia enma que o grupo, com seus couros, vozes tra em cena. e sinos, abre espaço na cena da cidade para mostrar para que veio. Com sua Portanto, o que se fala sempre está lisensível veia poética, Drika assume com gado a estalos. Como se fossem filmes seu repertório, lugar de destaque na nova desconhecidos. Onde o cenário é nusafra de poetisas da cidade. vem. Onde não se tem conhecimento de nada. Feito a idéia de Buca Dantas, Com sua poesia, que chama todos nós que está filmando sem roteiro. O roteiro para o diálogo da escolha. Da escolha é feito na hora. Parecido com a língua, de permanecer passivo, indiferente ou com o verbo e com as idéias que nos indócil, ou mostrar-se de olhos abertos, tornam cúmplices do desenlace, de tacomo percebendo que a vida capitula, só tos e tratos. E que (também) nos eleva se quisermos. a mártires, e a salvadores de uma noção E assim também o som do “Elegia” aca- que nada sabemos. E assim somos nós. E ricia sambas, lamentos, manhãs, chuvas assim é a vida. e lágrimas. E ressuscita, como o arranjo Logo, quem, além da poesia, sobrevive de Letto, banhado por suas mãos, verbos com frases curtas (ou longas), a mesmie recados. Belezas e relíquias. ce das coisas? Quem, íntegro e inteiro, É como se fosse, rimas e sinos. A vazan- procura pela parte que lhe cabe nesse te de uma infinidade de possibilidades. latifúndio que nos resta? Quem há de Como uma flauta que se quer no meio possuir extensas lentes híbridas, e visda noite, e que aponta o caminho que a lumbram a vastidão da estrada que nos música segue, sempre procurando o me- abocanha? lhor inverno de letras. Sempre ao redor Poeticamente escrevemos. Poeticamende Maíra com seus cachos de sons, com te podemos falar. E poeticamente penRitinha com sua inabalável introspecção samos. A dança em que as palavras se letra/música, e de Jennifer, sincera e de mostram, os pensamentos que de tão extremo bom gosto. enormes e vadios, nos transformam em Eu sei, eu acredito na capacidade que códigos, sobrenomes, lembranças e teeles têm, de transformar o cotidiano em mores. pura arte. De irrigar com seus afluentes, A poesia tem disso. Ela arma senhas e a chama que alimenta o pão, a poesia, e procura saídas. Às vezes nem tão pródida sonoridade que liberta mãos e olhos. gas. Outras, o próprio paraíso. Pois é preciso cada vez mais acreditar em Pois a poesia, às vezes nua, às vezes enverdades e vontades poéticas. (Até na zona coberta por silhuetas, não tem meio terdesconhecida da criação). Como olhos mo. Ela, com sua língua, de saliva farta que investigam penumbras e sombras. e de longas abas, abocanha quem pensa Como um garimpo de suor, como uma que somos somente espelhos bizantinos lanterna que ilumina ao redor do nosso e movediços. mundo, a vontade de falar e de revelar o suspiro que reina entre rios e encostas...

E no nosso chão, bem na nossa frente, poesia e música se fundem. Unem e irmanam visões de tantos varais. Uma melancolia que nos salva, recuperando a janela do espírito tão esquecido. Tão essência. Tão poesia. Parecida com a calma que guardamos ao redor do sol e da espuma do mar. Que nos lava como se fôssemos ilhotas, prenúncios de vento e tanta luz. Por isso que o “Elegia” navega sem pudor nas margens dos olhos e nas águas que de tão profundas, desembocam silêncios e riquezas. E ao redor das palavras que vão se encaixando como desenhos, rascunhos, abrigos. E na lenha do son(h)o verbal, que ressuscita o quebradiço da vida, que de sã, aceita avulsos acentos. É como apalpar palavras, que nos querem próximas de uma avalanche de ritmos. Embalando a letra tão curva, tão lâmina e tão frágil, como os pilares de uma língua que não se parte. E que não se curva. À espera de um dilúvio de tristes e aromáticos jardins. Que não se esconde. Como possuída por lentas e intransponíveis pepitas. Que não se poupa, como o prenúncio da espera do que virá. Como o cordão que alimenta portos e estopins, vazantes e amantes. Assim, a elegia que escolhemos, não passa por nós como uma andorinha que fenece. Ela assina a vida como um corredor de fantasias, quermesse de lendas e truques. Maresias da fútil lembrança das nossas sombras. Passageiros somos todos nós. De uma eterna e preciosa lembrança do passado. Que passa por cima de morros. Aldeias. Cardumes. Varreduras. Assim somos nós. Hóspedes do passado. Parentes de lentas e tontas agonias. Parceiros da luz, que organiza circos. E da imaginação que nos exorta. E livre de toda e qualquer trapaça que ainda podemos passar. Guerreiros de uma louca e desavisada aventura chamada vida. Recheada de tapumes e dragões. E dos

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Fogo contra fogo 34

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ber mais sobre Vincent Hanna. Os dois se respeitam como os grandes times, os Juntar Al Pacino e Robert de Niro num mesmo filme generais de batalha. tem o peso de um duelo entre Patton e Rommel na 2ª Guerra Mundial. Ou, puxando meu cordão umbilical Até que marcam um encontro. Num com uma bola de futebol, a um confronto acima do bar. Tomando cafezinho. De frente um tempo e da lógica entre Pelé e Maradona. Um aos 22 para o outro. Perguntam, um ao outro, anos, disputando o título intercontinental pelo San- a receita para sobreviver até o juízo final tos contra o Benfica. Dieguito aos 26 na Copa do que será o clássico entre ambos, o duelo México, que ganhou sozinho. moderno do Curral O.K. Em “Fogo contra Fogo”, de 1995, Pacino vive um Hanna (Pacino) diz que não hesita policial atormentado por um péssimo casamento do quando a hora exige matar. Pensa nas víqual recebeu de dote uma enteada com tendências timas das mortes que investiga. Guarda suicidas, e De Niro é o maior bandido de Los Angeles e redondezas. Frio, sofisticado, inteligente. Pacino um ódio melancólico traduzido por seus imbatível como Vincent Hanna, o detetive de Homi- olhos de peixe com sono. E descarrega o ódio e o pente do seu fuzil com toda a cídios, De Niro implacável como Neil McCauley. força. De Niro (McCauley) chega a ser É um marco do cinema. Os dois também estavam na filosófico. Conta que não se deve apegar segunda parte da trilogia de “O Poderoso Chefão”. Mas não contracenaram. De Niro encarnou Dom a nada que não se possa largar em 30 Vito Andolini, Dom Corleone, pai de Michael, per- segundos. Tem o coração seco. Engata uma paixão por uma webdesigner. Essonagem de Pacino de crueldade invejável. canteada quando ele encontra a chance ”Fogo contra Fogo” é extremamente atual. Pela lede matar um delator. Um jura liquidar talidade das armas, pelo requinte dos crimes, pela o outro. brutalidade dividida entre policiais e bandidos, rajadas a granel pelas ruas movimentadas da metrópole. Só um dos dois sobra no fim. E é VinNinguém é respeitado nos tiroteios. É bala para quem cent Hanna. Mas de McCauley sobra a puser cara e focinho. maior lição sobre a raça humana: Não Pacino passa a pesquisar a vida de De Niro. Seus tru- confie nela. Se livre nos 30 segundos que ques e manhas. McCauley corrompe um tira para sa- lhe restarem.

Rubens Lemos Filho Jornalista


POESIA POTIGUAR O

poeta potiguar Elí Celso de Araujo Dantas da Silveira é Doutor em Teoria Literária pela UFRJ e Mestre em Tecnologia Educacional pela UFRN. Especializou-se em Filosofia e foi professor do Departamento de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Em 1991, em parceria com os poetas Iracema Macedo, Celso Boaventura Jr. e André Vesne, publicou poemas nas coletâneas Vale feliz, Gravuras (1995) e Ceia das cinzas (1998). Tem parceria só com Celso Boaventura Jr. - Reminiscências do Tártaro/Lamentações, respectivamente. É filho dos poetas Celso da Silveira e Myriam Coeli. Já foi premiado com o Othoniel Menezes e o Câmara Cascudo, entre outros. Em 2004, ganhou menção honrosa no Concurso de Poesia Luís Carlos Guimarães, da Fundação José Augusto. Os poemas que seguem foram publicados no livro 15 Poetas do RN, lançado no ano passado pela FJA, com os poemas vencedores do Concurso de Poesia LCG 2004. Como saíram com erros, decidimos publicá-los na Preá, como forma de minimizar o dano.

PEQUENA INTRODUÇÃO AO LOUCO Era da maior pureza vestia camisas brancas não comia carne ouvia pela casa uma música silenciosa de cornetas roucas e flautinhas fanhas que só ele ouvia diziam-no louco pois cuidava de gaiolas vazias desperdiçava guardados e ria mesmo dos pedintes por fim atravessava meia cidade com um ramo de jasmim na mão direita para jogá-lo no rio gastava uma tarde na margem fazia nada voltando para casa aceso o candeeiro o colocava sobre o alqueire para que iluminasse a treva da casa

O AFOGADO acordamos todos os dias eu e meu fantasma ele me confessa agora tudo depende de ti: ou imito o meu tempo ou fujo do teatro se canto o átimo ou as rendeirinhas canto contudo sem força mal dou meu corpo para o dia mal elaboro a falsa continuidade ...e logo as mesmas solidões beijam minha voz cansada meus braços bons as rosas pálidas dos jardins públicos os vasos de guerra mas seja porque já vai tarde ou se é por a flor lamentar a semente (se a que vem, se a que foi) passo a olhar nuvens as cidades armadas no céu o distante que houver e além dessa saudade de não saber de nada e que me rouba dum futuro absurdo e pretexta minha volta em golpadas arremessando de agora para frente no molhe da entrada da barra arremessando arremessando

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TÉDIO / ABPAXAΣ (linhas fecham círculos)

LIVRO DOS MORTOS em antigos jazigos plantaram três mortos sementes de trigo depois desses mortos depois desse trigo abriu-se um céu pão de paraísos jardim de perigos se a carne desceu mas se a carne ardeu a infernos comigo meu fruto venceu os fogos do trigo co’as minhas raízes cresceram abismos tapou-me os ouvidos um silo de nada num mundo sem cor uma boca fechada fechando meu grito às margens de nada negrura rehabito guardo pelo tempo terra e escuridão o ventre emproado a barca emprenhada num rio esquecido e sempre perdido coração de treva por raiz cerzido guardo, ... guardo aqui comigo

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nome e armas da família foram barco desse engodo no século dezoito um senhor de vassalos filho de D. Miguel da Guirlanda cujo filho ficou viúvo e alcoólatra consumado já vivia desordenadamente entre os seus servos gestas de enfado as bandeirolas da Casa serviam de guardanapo os lírios caíam ao chão eram vidro estilhaçado leões* perdidos em flores abriam-se no mundo errado os amores atravessavam espinhaços das senhorias de Vilanova de Tormes para desagüar no mar frio outubros abandonando-se em maios e os perfumes e os calafrios na flor que dorme pesada de pesaδeλoς suspensa em janeiros e em cravos de aço eram guirlandas de dor e seduções de março ô tia minha myséria este homem era eu elí de araujo o entediado defronte ao que não acaba por entre beleza e horror girei a rosa do calendário _________________ *o λις


DONJON/NEMÓLITO

ERRO (`Éρρω)

nome cálido, inferno branco ouro de neblina mina de menina abrindo-me ao flanco segredo de amador na confusão da flor te peço a pôr alma onde morte mia calma pelejando noite e enfado se sabes que é do lado que esse rio tem brotado da fonte tua na costa minha, nome a tal consolo dá-me um: sou tolo. nome de rio ou n’alma guardarei se morte ou fala. ah, menina do flanco aberto ao vento deserto, me inundo da neblina, nome cálido, inferno branco pois és só a que me toca pó é só o que me sina.

Tu és o cavaleiro que conquista. Que adentra meu castelo pela ponte levadiça Que me sobe ao torreão e abraça-me o peito ninho Mha senhor, que desespero eu tinha antes de ti ... Tu és a amazona que fere os alvos da minha carne e pele. Que me rouba de mim A de pretos cabelos de treliça Mha senhor, algoz desespero eu tinha antes de ti

ASTROLÁBIO O teu sexo é instrumento graduado que me leva às estrelas, me ensina O teu braço é um compasso que me afaga de leve e me fulmina O teu quadril é uma fera que me recoita marés e me rumina A tua ternura é um calor uma solidão sem dor me termina (o teu peito é o pêssego do mundo)

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Sou homem, dentro da minha barriga crio úteros fera fútil faço poemas gero assim sacrilegamente pães ou trufas selas de cavalo/ranúnculos meu olho é um bornal o pênis arsenal-arma os círculos concêntricos do coração milícia de involuções chocam arrecifes Sou homem, dentro da minha cabeça, num planeta balofo crescem zoológicos a varejo, colméias de pequenos anjos burocratas e um cristo humilhadíssimo

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PEQUENO GÊNESIS SEGUNDO ELÍ DE ARAUJO Onde dorme a mãe do homem? Entre os braços e os ossos do deus? A casa do deus é uma fotografia tomada a favor do sol em tarde antiga e pia A casa do deus tem a granulação dourada da rosa do deserto é numa encosta amarelada que se esboroa esboroa esboroa a casa do deus onde dorme a mãe do homem, flor que não murcha ave que não voa? A casa do deus é no firmamento numa ilha qualquer pendurada ao vento A habitação do homem é barro e pulmão e vazio e vento com um só pavimento a casa do homem é feita com traves de carnaúba nos subúrbios do tempo Onde mora a mãe do homem? A que se veste de noite e dias? Suas janelas, de vidro bisotado seu dentro de brita e cimento sua coluna de um ferro de mãe duras suas mãos de ungüento Por uma tristeza e um naufrágio se eu soubesse te diria mas me falta crer os amargos desses mitos e da cosmogonia


Agenda Michelli Pessoa (nyla_br@yahoo.com)

Site interessante Em seu blog (http://grandeponto.blogspot.com) Alexandro Gurgel publica notas, artigos, crônicas, fotos, poemas e reportagens sobre diversos temas. Cidade da Criança No dia 8 de abril a Cidade da Criança realiza o I Festival de Viola, com artistas da Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte. No mesmo dia e local será aberta exposição de gravuras de Alcides Sales. Mais informações: (84)3232-9757. Seis e Meia O projeto Seis e Meia será reiniciado no dia 21 de março com o grupo Delicatto, no Teatro Alberto Maranhão. Informações: (84) 3232-3669/3232-9704. Casas de Cultura Popular Em março, as Casas de Cultura de Macau, Currais Novos, Parelhas, Caicó e Campo Grande realizarão oficinas de teatro, música (flauta doce e coral), dança e artesanato. Em abril, a Casa de

Cultura de Martins oferecerá oficinas I Concerto Didático da OSRN; dias 30 de Câmara de Cinema e Vídeo (Projeto e 31, às 21 horas, comédia teatral “As Coroas”, com a Cia. Paraibana de Co“Cinema para Todos”). média e texto de Saulo Queiroz. Teatro Alberto Maranhão A programação de março do TAM é a seguinte: de 09 a 12, às 21 horas, o espetáculo “Aluga-se um Namorado”, com Eri Johnson e texto de James Scherman; dia 12, às 17 horas, espetáculo infantil “Rock Monstro”, com texto de Valeska Picado; dia 14, às 10h e às 15 horas, Projeto Escola - espetáculo “ A Princesa Engasgada”, com a Cia. de Teatro GRUTUM; dias 15 e 16, às 20 horas, espetáculo “Dom Casmurro”, com o grupo GRUTUM; dia 19, às 17 horas, espetáculo infantil “Chapeuzinho Vermelho”, com texto e direção de Geraldo Maia; de 24 a 26, às 21 horas, espetáculo “Beijos de Verão”, com Bruno Ferrari e texto de Domingos Oliveira; dia 26, às 17 horas, espetáculo infantil “O Gatinho Nicolau”, com o grupo Manacá de Teatro, texto de Mano Macário; dia 28, às 20h30, I Concerto da OSRN; dia 29, às 15h30,

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Centro de Formação Teatral O Centro de Teatro, da Fundação José Augusto, oferece em março e abril, oficinas de Iniciação Teatral, para a faixa etária a partir dos 14 anos, com os professores Lenilton Teixeira e João Júnior; oficinas de Jogos Teatrais para crianças, dos 8 aos 12 anos, com Titina Medeiros, João Júnior e Quitéria Kelly; Módulo II, com alunos de Iniciação Teatral em montagem de espetáculo no segundo módulo do curso com João Júnior e a Sala de Leituras, voltada para o exercício da fala, da palavra e da dramaturgia, com Henrique Fontes. Informações: (84) 3212-1663.

Programação de março do TCP A programação do Teatro de Cultura Popular, da FJA, para março é a seguinte: Dia 8, às 17 horas: “CANTART” - Arte e Poesia para as Mulheres; dia 17, às 15 horas: Espetáculo teatral “A Princesa Engasgada ou o Médico Camponês”, texto de Márcia Frederico e direção de Gilberto Brito, com o grupo de teatro de Mossoró GRUTUM; Dia 17, às 20h30, show de humor “Descasacando”, com “Casaca de Couro”; Dias 23 e 24, às 20 horas, espetáculo teatral “À Luz da Lua, os Punhais”, texto de Racine Santos, com o grupo de teatro do TCP e direção de Sônia Santos; Dias 25 e 26, às 19 horas, espetáculo teatral “Enquanto a Tempestade não Passa...”, com o grupo Cumbuca Teatral, texto e direção de Weid Sousa; Dia 27, às 13 e 20 horas, “À Luz da Lua, os Punhais”. Informações: 3232-5307.

Marcos Ferreira

(escritor)

Romancista: José Humberto Dutra Poeta: Márcio de Lima Dantas Livro: Saudades, de Francisco Rodrigues da Costa Filme: Caldeirão do Diabo Diretor de cinema: Moacy Góes Ator/atriz: Carlos José (Contonete) Pintor: Fábio Eduardo Cantor/cantora: Genildo Costa Compositor: Danilo Guanais Música: Santo de Barro, de Iremar Leite Peça teatral: Chuva de Bala no País de Mossoró Intelectual: José Nicodemos Personalidade cultural do RN: Raimundo Soares de Brito Jan/Fev 2006

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DOIS FESTIVAIS

FOCO POTI GUAR

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Marcos Aurélio Felipe aurelio.felipe@uol.com.br http://focopotiguar.zip.net/

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uando, no último Festival de Cinema de Natal, me sentei na poltrona do Centro de Convenções, as expectativas ultrapassavam toda e qualquer noção de espaço e tempo – toda lógica e estética, todo o entendimento possível... Mas o fato é que todo e qualquer filme do diretor brasileiro Carlos Reichenbach entraria na minha lista como algo a ser esperado e, imediatamente, visto com muita expectativa, já que no mesmo evento e em uma projeção semelhante anos atrás tive o prazer diante da tela como há tempos não sentia na sala de cinema. Desde “Dois Córregos” (1999), quando não consegui conter meu entusiasmo após a sessão e percorri a cidade do Natal quase que de uma ponta a outra incorporando aquela atmosfera lírica e histórica, que aguardava outro filme seu com os nervos à flor da pele.

Porque a história de Hermes (Carlos Alberto Riccelli), que vive clandestino no Brasil ditatorial após participar da luta armada, chegou em um momento em que as coisas estavam sendo definidas. Eu tinha acabado de elaborar o projeto para a pós-graduação em educação, contactar alguns personagens da época do Regime Militar no RN e de ter acesso aos processos dos presos políticos no arquivo público do Estado. Afora que, em “Dois Córregos”, o lirismo que marca aquele piano, o silêncio daquele homem preso ao passado político e afetivo e as cartas que escrevia aos filhos mesmo sabendo que não seriam enviadas, já eram mais do que suficientes. Mas o fato é que o novo filme de Reichenbach não provocou, em mim, o mesmo entusiasmo que o seu cinema havia provocado anos atrás. Talvez porque “Bens Confiscados” (2005), ao assemelhar-se a um projétil estilhaçado, tenha seu núcleo dramático fragmentado demais, o que acarreta o deslocamento do seu foco sem muita precisão e propósito. Assim, o centro da câmera é dominado ora pela relação de


Serena (Betty Faria) e Luis Roberto (Renan Augusto) ou pela história do caseiro (Werner Schunemann) e sua jovem esposa, ora pelo núcleo que se forma em torno dos personagens do hotel (Marina Person e Eduardo Dusek) ou pelas relações entre Serena e Luis Roberto com os demais personagens – além do assessor e do político corrupto, que, invisivelmente, movem a história. Apesar de chegar uma hora em que é preciso perguntar sobre “quem?” ou “o quê?” é o filme, vemos a composição de inesquecíveis e belos momentos. A abertura de “Bens Confiscados”, assim como a cena final de “O Pântano” (2001, de Lucrecia Martel) com toda aquela atmosfera envolta da queda daquela escada, trás uma das cenas mais instigantes do cinema contemporâneo – a do suicídio da estilista amante do político corrupto em pleno centro de São Paulo. Quando, nessa cena, o foco sobre a relação personagem-espaço inverte seu ponto de vista para a relação personagem-história, a inversão em escala e ângulo da câmera justifica a si e ao próprio filme. De modo que, ao sair da

relação da personagem com a metrópole, o que então passa a interessar às suas lentes é a relação que os indivíduos estabelecem com suas vidas. Na escolha do movimento, da escala e do ângulo dessa tomada temos toda a história e o que sob suas cortinas decidem os personagens. Portanto, apesar da diversidade espacial, o que fica mais evidente são as decisões que afetam os destinos dos personagens. O que, em parte, justifica a fragmentação do foco dramático que, a cada deslocamento de espaço, inverte a noção de personagem principal e coadjuvante. Porque, assim como na vida, a ficção têm histórias particulares que também precisam ser consideradas. Mas a inversão mais significativa está no diálogo que “Bens Confiscados” mantém com “Dois Córregos”, quando, por exemplo, ausenta o Pai que antes estava presente; dar vida ao “Filho” e a “Mãe” e a Praia de Cidreiras–RS que apareciam somente em delírios; e quando, a partir dos mesmos ângulos, faz reviver imagens do filme anterior – como a estética de uma contínua e permanente evocação cinematográfica. Jan/Fev 2006

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Descobertas e aprendizado pelas veredas do Rio Grande do Norte Gustavo Porpino Foto: Anchieta Xavier

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riqueza cultural do Rio Grande do Norte é indiscutível. Muito se fala das danças folclóricas, poetas populares, violeiros, culinária típica e costumes peculiares ao sertanejo, mas são escassas as tentativas de dimensionar a cultura potiguar. A Preá tem cumprido seu papel de mostrar as muitas faces das regiões potiguares. Em três anos desbravando o Rio Grande do Norte foram mais de 15 mil quilômetros percorridos entre idas e vindas de Natal ao interior. Subimos serras, visitamos sítios arqueológicos, conhecemos dezenas de tipos populares e vimos manifestações folclóricas brotarem em todas as regiões visitadas. Comemos muito também! A tapioca feita na casa de farinha do Rosário, em Portalegre, é imbatível. A autêntica carne-de-sol de Pau dos Ferros, o bolo ligado de São Miguel, o caldo de camarão do Gargalheiras, em Acari, e o guiné torrado de Lagoa de Velhos ainda atiçam meu paladar. Queijeiras foram muitas. Experimentamos de tudo. O chouriço de Carnaúba dos Dantas, por exemplo, pode não ser atrativo visualmente, mas quem saboreia gosta. Às vezes parecíamos candidato a deputado em campanha pelo interior. Um convite para tomar um

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Anchieta Xavier (fotógrafo), Érico Alves (motorista e “faz tudo”) e Gustavo Porpino: quase 15 mil quilômetros rodados em busca da verdadeira cultura do RN

café com bolo ali, um doce de leite com queijo de manteiga acolá. E nas conversas com a gente simples do interior potiguar surgiam bons personagens e informações valiosas para enriquecer as matérias. Comprovamos a receptividade potiguar e fomos sempre bem recebidos. Depois da consolidação da revista, lá pela edição número 5, a chegada da equipe da Preá foi até motivo de festa em alguns municípios. Em São José de Campestre, tinha faixa de boas vindas ao lado da igreja e uma mesa farta com galinha caipira, feijão macassar, batata-doce, farofa e arroz de leite à nossa espera. O motorista Érico Alves e o fotógrafo Anchieta Xavier, gulosos assumidos, se deleitavam a cada banquete.

Paisagens surpreendentes foram muitas. A vista das serras de Portalegre e Martins no inverno encanta até mesmo a quem está acostumado a passar férias na Europa. A estrada de São Miguel a Venha Ver, também em época de chuvas, corta um vale de verde intenso e pequenas flores. Cenário bem diferente do interior nordestino estereotipado pela mídia. Em cada lugar visitado, uma surpresa. Personagens que ainda guardam a sabedoria do sertanejo e tem muito a contar. A primeira edição da Preá já trouxe uma destas figuras quase extintas pela massificação cultural. Dinho de Zé dos Santos, o poeta do caderninho azul, teve a primeira oportunidade de mostrar seus versos originais nas páginas de uma re-


vista. Descobrimos outros poetas populares, cordelistas, violeiros, rezadeiras e até cantadoras de incelências. Quase todos os artistas têm algo em comum. São pessoas simples e muito receptivas. Alguns vivem em condições de pobreza extrema como o poeta e violeiro mossoroense Luís Campos. Mas não lembro de ter encontrado gente infeliz. A alegria de Dona Aldizes Bessa, dançadeira de São Gonçalo, no sítio Pega, em Portalegre, foi marcante. Outras comunidades de negros também nos receberam muito bem. Em Patu, fomos surpreendidos pela riqueza cultural dos negros do Jatobá com sua louvação a São Benedito. Comprovamos também a vivacidade da dança dos Negros do Rosário de Caicó, e seus compadres nas proximidades de Parelhas.

Tivemos muitas conversas curiosas. Destaco, aqui, duas figuras pitorescas. O mestre Antônio da Ladeira, comandante do Boi-de-reis de Santa Cruz, e Anacreonte, um seridoense de Cruzeta, homem humilde e grande conhecedor da genealogia do povo da sua região. Vencemos a resistência dos dois em contar um pouco sobre suas vidas. Antônio é um autêntico cabra da peste. Durante a conversa, o mestre do Boi-de-reis não largou, em nenhum momento, um cacetete de madeira feito por ele. “Se vier com frescura, eu dano no pé do ouvido”, disse. Anacreonte, também desconfiado, não admitia ser fotografado. Para ele, a máquina era “coisa do cão”.

sítio Pintado. Foram várias descobertas e muito aprendizado. A entrevista com Ariano, no casarão do bairro Casa Forte, no Recife, foi uma aula de teatro e cultura popular.

Também resgatamos fotógrafos importantes da cena natalense como Jaeci Emerenciano, destaque da oitava edição, e convencemos Giovanni Sérgio, um verdadeiro poeta da imagem, a ganhar as páginas do número 11. Outro perfil, daqueles que todo repórter gosta de escrever, foi feito com o poeta “galado” Alex Nascimento. Criativo e sarcástico, Alex diz tudo que a gente gosta de ouvir. Quem não leu, pode conferir na Preá 14. Todas as edições estão disponíveis na páA Preá também acerta ao exibir em suas gina da FJA na internet (www.fja.rn.gov. páginas a riqueza dos sítios arqueológi- br). cos potiguares. O sítio Xiquexique, em Faria tudo de novo. Conheci o Rio Carnaúba dos Dantas, foi o que mais Grande do Norte e seu povo em sua pleme despertou interesse. Não esperava nitude. Vi uma terra culturalmente rica encontrar tantas pinturas rupestres ricas e de povo humilde. Faltou agradecer a em detalhes e tão nítidas, apesar da falta alguns pela oportunidade. Deixo aqui o de interesse do poder público em preser- meu agradecimento e a vontade de rever var estes locais tão ricos em história. O cada personagem. Vida longa à Preá! Lajedo Soledade, em Apodi, por ter mais fama e já receber investimentos públicos, não chegou a me surpreender tanto. Mas, obviamente, também é um lugar encantador que merece ser visitado.

Fomos bater na divisa de São Miguel com Pereiro (CE) para conhecer a dança de São Gonçalo feita por lá. Ouvimos cânticos preservados que atravessaram mais de um século e registramos também a arte da louceira mais antiga de São Miguel. Bois-de-reis foram vários. Uns feitos como antigamente, outros mais influenciados pela modernidade. Mas, como bem disse Ariano Suassuna, a cultura popular se transforma. Não temos Timbaúba dos Batistas, terra dos boro direito de querer que as manifestações dados, também superou nossas expectativas com suas inscrições rupestres no folclóricas permaneçam sempre iguais.

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O pensamento vivo de Guimarães Rosa 44

Nei Leandro de Castro Escritor

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m novembro de 1967, no meio do caminho de uma pesquisa que resultaria no meu livro “Universo e Vocabulário do Grande Sertão”, estive no Rio de Janeiro para conhecer pessoalmente João Guimarães Rosa.

Para os que não lêem Guimarães Rosa, sob o pretexto de que ele escreveu numa linguagem ininteligível, devo acrescentar que foi excluído desta pesSem combinar antes o encontro (falha imperdoável), fui à Di- quisa, propositadamente, todo trecho visão de Fronteiras do Itamarati, onde o escritor trabalhava, rosiano onde havia palavras não dilevando comigo parte da pesquisa. Guimarães Rosa, segundo a cionarizadas. secretária que me atendeu, estava em casa, às voltas com o seu As citações que se seguem foram exdiscurso de posse na Academia Brasileira de Letras. No momento traídas de “Grande Sertão: Veredas”, não recebia visitas. Adiada desde 1963, sua posse na ABL seria, “Corpo de Baile”, “Ave, palavra”, “Em finalmente, dali a dois dias, 19 de novembro. memória de João Guimarães Rosa” As pessoas não morrem, ficam encantadas, disse Guimarães Rosa no seu discurso de novo imortal, três dias antes de morrer. Vinte e oito anos depois desse “encantamento”, 50 anos depois do lançamento do “Grande Sertão: Veredas” reúno aqui uma pequena parte do pensamento do romancista mineiro, o maior que o Brasil já teve, em todos os tempos.

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(Livraria José Olympio Editora) e de “Literatura deve ser vida” (um diálogo de Günter W. Lorenz com JGR, em Gênova, 1965, publicado no católogo da Exposição do Novo Livro Alemão, em 1971).


Minha biografia, antes de tudo minha biografia literária, não deveria ser crucificada em datas. Aventuras são sem tempo, sem começo e fim. Meus livros são aventuras. Eles são minha maior aventura. Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço do infinito. Eu vivo o infinito, o instante não conta. Vou-lhe revelar um segredo: creio que já vivi uma vez. Naquele tempo, eu também era brasileiro e me chamava João Guimarães Rosa. Quando eu escrevo, repito aquilo que vivi anteriormente. E para essas duas vidas meu vocabulário não basta.

O sertão é onde manda quem é forte, O diabo vige dentro do homem, os crescom as astúcias. Deus mesmo, quando pos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. vier, que venha armado! *****

Goethe nasceu no sertão, como Dostoievski, como Tolstoi, como Flaubert e Balzac; ele foi, como os outros que eu admiro, um moralista, um homem que viveu com a língua e que pensou na eternidade. Eu acho que Goethe foi mesmo o único poeta da literatura mundial que não escreveu para o dia, que escreveu para a infinidade. Ele era sertanejo. Zola, ***** como exemplo oposto arbitrário, proviEu quero tudo: o mineiro, o brasileiro, o nha apenas de São Paulo. De cem escriportuguês, o latim – talvez até o esquimó tores, um é parente de Goethe, noventa e o tártaro. Queria a língua que se falava e nove de Zola. antes de Babel. ***** ***** Deus é paciência. O contrário é o O caráter do homem é seu estilo, sua diabo. língua. Isto deve soar naturalmente dou***** trinário, mas é apenas uma verdade simples da vida. Eu não entendo tampouco Eu sou místico, pelo menos eu acho. isso por elegância ou seleção de estilo da Que sou também cismador, aí não sei língua. Elegância demasiada também é se isso eu devo lamentar ou alegrar-me, suspeita, porque ela esconde um vazio. isso eu reparo no meu trabalho sempre de novo. Eu posso meditar muito tempo ***** sobre alguma coisa, posso ficar quieto e Todos que malmontam o sertão só alcanesperar. Nós sertanejos somos muito diçam de reger em rédea por uns trechos; que sorrateiro o sertão vai virando tigre ferentes das pessoas cheias de temperamento do Rio ou da Bahia, que não podebaixo da sela. dem ficar nem um minuto quietas. Nós ***** somos tipos especulativos, cismar nos dá O sertão é uma espera enorme. até prazer. *****

*****

***** Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera. ***** Saudade dos Gerais. O senhor vê: o remôo do vento nas palmas dos buritis todos, quando é ameaço de tempestade. Alguém esquece isso? O vento é verde. Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio e põe no colo. ***** Aprendi umas línguas estrangeiras só para enriquecer a minha própria linguagem. E porque existem demasiadas coisas intraduzíveis, pensadas em sonho, intuitivas, que só se podem encontrar no som original. ***** Viver é muito perigoso. ***** Sertão: é dentro da gente. ***** Nós temos de aprender de novo a dedicar muito tempo a uma idéia. Então seriam escritos de novo melhores livros. Livros nascem do pensamento: escrever é técnica e prazer no jogo com palavras.

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O pensamento vivo de Guimarães Rosa Eu não preciso inventar estórias. Elas vêm ao meu encontro, aproximam-se de mim, forçam-me a escrevê-las. Assim se passa comigo (...) de repente o diabo me cavalga, que, no caso, se chama inspiração. ***** Medo, não, mas perdi a vontade de ter coragem. ***** A lógica, meu caro, é a faca com a qual o homem ainda se matará um dia. Só quem supera a lógica pensa com justiça. Reflita pois uma vez: amor é sempre ilógico, mas todo crime é cometido segundo as leis da lógica. ***** Eu quero a paz, e pago-a com um fervor de guerra. ***** A morte é um corisco que sempre já veio. ***** Só o epitáfio é fórmula lapidar. *****

onde a palavra ainda está abrigada nas Mas, por cativa em seu destinozinho de entranhas da alma, para que eu possa chão, é que árvore abre tantos braços. dar-lhe a luz, segundo minha imagem. ***** ***** O pássaro que se separa de outro vai voO que não é Deus é estado de demônio. ando adeus o todo tempo. Deus existe mesmo quando não há. Mas ***** o demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, Quando chegamos cá no acampo, as ramas d’árvores já iam pegando o pó aí é que ele toma conta de tudo. da noite. ***** ***** O sertão é do tamanho do mundo. O amor? Pássaro que põe ovos de ferro. ***** ***** Mesmo, o espaço é tão calado que ali passa o sussurro da meia-noite às nove Noite redondeou, noite sem boca. horas. ***** ***** Dia da lua. O luar que põe a noite inO escritor é um descobridor, apenas o chada. bom escritor, naturalmente. O mau crí***** tico é seu inimigo porque ele é o inimigo dos descobridores, daqueles que partem Passarinho que se debruça – o vôo já está para mundos estrangeiros. Colombo pronto! deve ter sido sempre ilógico, do contrá***** rio não teria descoberto a América. O escritor deve ser um Colombo. Mas o Aí quando é tempo de vaga-lume, escrítico malévolo e não suficientemente ses são mil demais, sobre toda a parte: instruído faz parte daquela camarilha a gente mal chega, eles vão se esparraque quer impedir sua partida, porque ela mando de acender, na grama em redor contradiz sua chamada lógica. O bom é uma esteira de luz de fogo verde que crítico vai como piloto a bordo do navio. tudo alastra.

Eu não sou revolucionário da língua. As pessoas que afirmam isso não têm elas mesmas o sentido da língua, porque julgam segundo a pura aparência. Se é pre***** ***** ciso absolutamente uma classificação, eu Todo buritizal é florestal – ramagem e Só não existe remédio é para a sede do gostaria mais de que me chamassem de peixe. amar em água. reacionário da língua. Porque eu quero voltar cada dia à origem da língua, ali, ***** *****

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Toda saudade é uma espécie de velhice.

Pobre tem de ter um triste amor à ho- Os castores – num jeito de quem conta dinheiro, murmuram segredos aos tronnestidade. ***** cos das árvores. ***** Coração da gente – o escuro, escuros. ***** Os sapos gritavam latejado. ***** Só o cintilante instante sem futuro nem ***** A gente estava desagasalhados na alegria, passado: o beija-flor. feito meninos. O sapo não fecha os olhos: guarda-os, ***** reentrando-os na caixa da cabeça. ***** A coruja não agoura: o que ela faz é saber ***** Vingar, digo ao senhor, é lamber, frio, o os segredos da noite. que outro cozinhou quente demais. Silêncio tenso – como pausa de araponga. ***** ***** ***** O poço nunca é do peixe: é do outro peiO vau do mundo é a alegria! xe mais forte. O peixe vive pela boca. ***** ***** ***** No combate velho do Tamanduátão: Perdoar uma cascavel: exercício de san- A zebra se coça contra uma árvore, tão limpamos o vento de quem não tinha de leve, que nem uma listra se apaga. tidade. ordem de respirar. ***** ***** ***** Hoje em dia, um dicionário é, ao mesmo Querer o bem com demais força, de in- Pela cascavel, por transparência, vê-se o tempo, a melhor antologia lírica. Cada certo jeito, pode já estar sendo se que- pecado mortal. palavra é na sua essência um poema. rendo o mal, por principiar. ***** Pense só na gênese delas. No meu cente***** Pantera negra: na luz esverdeada de seus nário, publicarei um livro, meu romance Amigo, para mim, é só isto: é a pessoa olhos, lê-se que a crueldade é uma loucu- mais importante: um dicionário. Talvez com quem a gente gosta de conversar, ra tão fria que precisa do calor de sangue o faça um pouco mais cedo. Isso será então a minha autobiografia. do igual o igual, desarmado. O de que alheio. um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase: e os todos sacrifícios. ***** Medo agarra a gente é pelo enraizado. *****

***** A cigarra cheia de ci. ***** Avista-se o grito das araras.

***** O prazer muito vira medo, o medo vai vira ódio, o ódio vira esses desesperos? O arrebol de um pavão. *****

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“Greta Garbo, quem diria, Fernando Monteiro Escritor Para Vicente Serejo

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oi essa a frase (“Greta Garbo, quem diria...”) que, há vinte anos, eu murmurei para a minha mulher, numa tarde de julho de 1985. Estávamos caminhando ao longo das margens do Hudson, num daqueles passeios arborizados que acompanham as amuradas do rio novaiorquino, quando Cristina propôs que sentássemos um pouco. Vimos um sólido banco de ferro, repintado de verde, e esperávamos ficar sós nele, na quietude daquela área onde os habitantes da megalópole podem tomar o sol esquivo entre choupos e tílias. Ali – mais ou menos da 51 para cima – eram ruas menos permeadas de turistas, naquela época, e, suponho, não parecíamos com eles, sem sacolas de compras e sentados não para os lanches improvisados dos cucarachas. Não me passou pela cabeça, então, a proximidade de um dos endereços mais gritantes de silêncio do cinema: o de Greta Lovisa Gustafsson, número 450 da rua

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acabou de se sentar”... 52 de passantes indiferentes uns aos outros, nos domingos e nos outros dias da semana (se você não for um daqueles vagabundos profissionais, olhando para o nada como se olhassem para as portas do fundo de alguma antiga vida). Foi então que veio sentar-se, no mesmo banco, uma senhora também cansada. “É ela. Eu juro. É ela, sim!” – foi o meu murmúrio seguinte, para a incrédula Cristina. “Quem?” “Greta. Greta Garbo.” Eu não podia me enganar com aquele formato do rosto e com a boca, embora o nariz... Não, não era nada que se pudesse apontar: seria, antes, a reminiscência de uma aura magnética, o resto do halo da “Divina”, naquela face devastada. Sei lá por que, mas algo da sua personalidade misteriosa estava ainda presente, e não deixava dúvidas sobre você estar diante da Estrela Absoluta dos Céus Frios da Perdida Idade de Ouro do Cinema, persistente nas retinas. Por falar em retinas, seus olhos – a prova definitiva – estavam infelizmente velados pelos óculos escuros, de modelo antiquado. Apoiava-se numa bengala preta,

e se aproximara com a leve hesitação de uma senhora bem-educada, para se sentar justo no nosso banco lustroso da tinta nova onde o ferro estivera, quem sabe, tão descascado quanto ela própria, Greta Garbo.

radas, calçada com uns tênis meio sujos nos pés talvez grandes demais para uma mulher.

Minha atenção era, portanto, fascinada e irreprimível. Ou mal-educada, numa palavra que são duas (você deixa de saber contar, diante do fantasma de uma “Greta Garbo?” Diva). E daí? Você só vai estar sentado Minha mulher não acreditava. Mas, era. junto de Greta Garbo uma vez – se é que Era a Garbo, aquela anciã em quem ninvai estar, alguma vez na vida. guém estava prestando atenção, exceto nós – com o cuidado extremo dos disfar- Ficamos ali, portanto, trocando olhares ces inúteis para olhos talvez implacáveis, oprimidos pela certeza de saber quem era aquela senhora pálida e descolorida como atrás daquelas lentes grossas. o casaco machucado que ela usava sobre o O canto esquerdo de seus lábios, num corpo antigamente escultural, com mais ricto, passou a fugidia impressão da pesum lenço desbotado na cabeça... soa que fica nervosa, ao se saber reconheQuando o tirou (para receber o sol atecida. nuado), eu tive, então, a mais plena cer“Não olhe assim!”. teza: era, de fato, a atriz retirada do ciCristina tinha razão. Eu estava a exami- nema há 44 anos, puxando do bolso um nar muito diretamente a estranha que saco de milho para dar aos pombos priviela tentava proteger da minha curiosi- legiados, alguns dos quais acostumados, dade. De pouco adiantava, entretanto: acercando-se para se alimentar das mãos qualquer um ficaria vidrado na figura de de dedos nodosos – como pequenos gacabelos escorridos, sem estilo (aparados lhos castigados – de um dos seres humapela própria?) e sem o brilho que, um nos mais belos e mais enigmáticos que já dia, havia ostentado na noite artificial nasceu sobre a superfície do planeta quados estúdios. Estava vestida com o des- se tão exausto quanto a solitária senhora leixo de quem saíra apenas para esticar de Nova York, quem diria, Greta Garbo, as pernas e caminhar ao longo das amu- 80 anos, acabou de se sentar...

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“Greta Garbo, quem diria, I want to be alone... Muitos garantiram que ela nunca disse isso, “eu quero ficar só”. Sua frase (a um jornalista), teria sido: I want to be let alone – “eu quero que me deixem sozinha”. Ou seja, em paz (ela que tinha horror de entrevistas e mexericos).

linhas devastadas pouco correspondiam àquelas imortalizadas em 24 quadros por segundo nas telas e no rio do tempo que faz escorrerem os minutos, as horas, os meses, os anos e as décadas sepultando tudo sobre a pedra-pome de Pompéia há séculos soterrada.

Foi Stiller quem a dirigiu num filme baseado num livro de Selma Lagërlof – A Saga de Gösta Berling – que chamou a atenção para a novata. Mauritz queria chamá-la “Mona Garbor”, nos letreiros Greta Garbo – então, você existe? E nas- onde você mesma escolheu chamar-se ceu de mulher, como se diz na Bíblia, no Greta Garbo (e não Garbor). dia 18 de setembro de 1905? Cresceu O sucesso de Gösta Berling a levou para num bairro pobre, a terceira filha de um as mãos do diretor alemão G. W. Pabst. gari de Estocolmo? Com ele, você fez o seu segundo filme

Eu sabia do reparo feito à frase tão famosa, e podia estar olhando, sendo indiscreto, até incômodo etc, porém jamais iria romper com as derradeiras regras da educação e apresentar-me como cinéfilo e perguntar a Greta Garbo: “Por que ra- Perguntas possíveis. As respostas – bem, zão a senhora abandonou o cinema, no as respostas poderiam variar um pouco, de acordo com o humor da jovem sueca auge da fama?” cujo primeiro emprego havia sido a mais Claro que era humanamente impossíque subalterna função de ensaboar os vel indagar isso, sem mais nem menos, rostos dos clientes de uma barbearia. à gentil alimentadora de pombos tristes entre seus pés (ela sorrindo à sombra da- Você ainda se lembra do seu primeiro quele sorriso iluminado pelos mais acla- filme longo? mados mestres da fotografia). Eu sei qual foi (caso você já tenha esqueTudo que eu fazia era olhá-la, sem ten- cido): Pedro, o Vagabundo, uma comédia tar virar o rosto ou disfarçar – como se dirigida por Erick Petschler, em 1922. olha para o busto da rainha Nefertiti, Com o pouco dinheiro que ganhou nesno museu egípcio de Berlim. Só que se filme ridículo, Senhora dos Pombos ali, próximo das águas do Hudson, es- da Paz Impossível, você foi estudar na tava uma contrafação da beleza imóvel Real Academia de Arte Dramática, onde da genial escultura da 18ª dinastia: um seu belo rosto anguloso logo chamou a rosto vivo, e não de pedra calcária, cujas atenção de Mauritz Stiller (1883-1928),

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cineasta nascido na Finlândia, e não na Suécia, como muitos imaginam.

– Rua das Lágrimas (1925) – porém Stiller a recuperou para si, quando recebeu, naquele ano, convite de Louis B. Mayer para trabalhar em Hollywood. Você se lembra? O seu descobridor impôs, ao produtor, uma única condição para viajar rumo à loucura da América: contratar também a “querida Greta”, com salário de 300 dólares por semana. Quantas “verdinhas” mais você terá ganhado, minha linda sovina, para aparecer em mais 24 filmes, na maioria grandes sucessos de bilheteria? O mordomo Gustav, serviçal na sua mansão de Beverly Hills, mais tarde iria revelar: “Eu nunca vi Miss Garbo comprar um vaso para a casa; ela me dava 100 dólares mensais para a comida e isso era tudo; se eu com-


acabou de se sentar”... prasse algo a mais, ela reclamava como E o fotógrafo inglês Cecil Beaton – que uma caixeirinha”. todos chamam de o seu “último amor” – poderia lhe dar prazer? Ele que, sim, É verdade, senhora? E é verdade, tampreferia os rapazes, mas viria a abrir exbém, que você nunca amou ninguém? ceção, em 1932, para amar uma única Nem o astro de A Carne e o Diabo, aquemulher em toda a sua longa carreira de le rapaz de bigodinho chamado John paixões masculinas? Pringle? Ídolo da tela com o nome de John Gilbert, ele chegou a comprar um Vocês dois nunca foram (todo mundo palácio em Los Angeles e um iate de 200 sabe) “apenas bons amigos”, por favor. mil dólares, para recebê-la na terra e no A senhora passou o final da guerra com mar. Deu em água: você desapareceu, Beaton, e, já envelhecida, fez cruzeiros em 1927, depois que ambos atuaram em seletíssimos com ele, nos mais luxuosos Love, a primeira versão de Ana Karenina. transatlânticos gregos. Até que acabou Gilbert ficou esperando, durante anos, (você acabou). até se afogar em uísque, depois de filmar Senhora Dureza, quantas vezes luziu Ana, de novo, consigo, oh Senhora Semo diamante do seu coração gelado do pre Sozinha! norte europeu? Cecil, o artista delicado, Você não amou nem sequer aquela fotografou-a como ninguém. Dizem que amiga íntima, Mercedes de Acosta, ro- você possui todas essas fotos fechadas teirista e aristocrata de luminosa inteli- num arquivo. E também dizem que Beagência? (Você admirava as mentes bri- ton, para os melhores amigos, reconhecia lhantes.) E, confesse, gostava mais das ser você “uma excêntrica e uma chata” mulheres do que dos homens. E mais que ele amara sem restrições, até sofrer dos jogos de espírito do que dos praze- um derrame em 1974, quando ficou seres do corpo? O que sentiu, no fundo, miparalítico e com a fala travada, na Inpor “Stoky”? (Se ninguém adivinha, glaterra. Um dia, anunciaram-lhe a visita esse foi o apelido que ela pôs no ma- de Miss Greta. Ele autorizou, e ela subiu estro Leopold Stokowski, seu amante as escadas de mármore, entrou no quarto vinte e três anos mais velho.) do doente, para uma conversa por sinais

e palavras truncadas do homem de robe de chambre na cama estilo Tudor. Depois, a atriz de Ana Karenina assinou o livro de visitas (que o educadíssimo Beaton disponibilizara no saguão repleto de obras de arte). E nunca mais se viram. Para se livrar de algumas dívidas, a sua amiga Acosta escreveu um livro de memórias que consta ter irritado a senhora profundamente, no seu retiro do apartamento da rua 52 aqui perto – isso procede? Você não desejava que fossem divulgadas coisas como a pequena Greta se ver como um “homenzinho”, desde a infância, quando se referia a si mesma na terceira pessoa, como “ele”... Enfim, minha cara senhora, quem é ou, melhor, quem foi você, mito vivo e incomodado com meus olhares insistentes? Mas ela já não estava ali. Com dificuldade que não pedia por qualquer ajuda, Greta Garbo havia se levantado do banco de ferro e partido, com seu caminhar inseguro, firmando a bengala para prosseguir rumo à solidão escolhida. Cinco anos depois, iria falecer num hospital de Nova Iorque, no dia 15 de abril de 1990, mais só do que jamais havia sido.

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Gustavo de Castro e Silva Poeta e escritor. Doutor em Antropologia, é professor da UCB e da UnB

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ão muitas as formas que a arte encontra para falar em nós. Rubem Alves diz que os verdadeiros artistas nunca são felizes, mas seres atormentados, angustiados, terríveis. “Os felizes, diz ele, não necessitam fazer arte. Têm de viver a sua felicidade”. De qualquer forma, os artistas – sejam eles felizes ou infelizes – são atores sociais ainda pouco pensados pelos acadêmicos e estudiosos de plantão. O historiador Victor Leonardi, no livro Jazz em Jerusalém (Ed. Nankim, 2001) — indispensável para quem quer investigar as razões da criação na arte e no artista — tentou investigar a produção social do artista através de uma história cultural da criatividade. Outra instância pouco pensada, sobretudo pelas ciências sociais, é a da arte enquanto produção social do protesto. A revolta parece ter sido um pouco esquecida pela arte contemporânea. E quais serão os motivos desse silenciamento? O Estado conseguiu, através das diversas leis de incentivo à produção artística, financiar obras de todos os tipos. Terá isso afetado o artista e a sua crítica social? Por outro

lado, os tempos atuais parecem resgatar o que Aristóteles chamou a seu tempo de “A Beleza do Feio” ou o belo do monstruoso. As obras parecem caminhar para uma estetização em que vale o que é pior, uma arte desconectada da elevação espiritual, do protesto social, da verticalidade subjetiva. Assim, vemos hoje a estetização da violência (Sin City e as obras de Quentin Tarantino), a cosmética da fome (termo criado pela pesquisadora Ivana Bentes para analisar a produção recente do cinema nacional), a estetização do êxodo e da migração (cujo principal representante é Sebastião Salgado), entre outros, sem que junto à estética venha a produção do pensamento. Mas, digamos em coro, para que pensar?! Os padres espanhóis da idade média cunharam até uma máxima que ficou famosa em seu país: “Malditos os que incitam ao pensamento”. Quem ama o conhecimento que trate de imbecilizar-se ou corre o risco de ficar sozinho. O jovem escritor francês, Martin Page, escreveu Como me Tornei um Estúpido (Rocco, 2005) como protesto à cultura do superficial. O livro conta a história de um personagem que, para não ficar ilhado culturalmente, decide iniciar um projeto de auto-imbecilização. Assim, começa a investir na bolsa de valores, compra todas as roupas da

moda, vai constantemente ao shopping, deixa de ler, de ir a museus, etc. A cena final é hilariante. Seus amigos, preocupados com ele, que estava realmente se tornando um imbecil, decidem seqüestrá-lo. Amarram-no com cordas e começam a ler Flaubert, Proust, Balzac, entre outros, numa tentativa desesperada de salvá-lo. E ele, finalmente, se recupera. Mas não é fácil escapar de tanto lixo cultural. Tanto lixo que, quando vejo o consumo desenfreado de pagode, axé, forró, funk, sertanejo, entre outras porcarias, imagino esses consumidores como porcos que chafurdam no lixo e na lama da cultura contemporânea. Talvez por isso é que o livro do escritor e professor universitário Alex Galeno, Antonin Artaud – A revolta de um anjo terrível (Sulina, 2005), seja um bálsamo contra a miséria cultural dos tempos atuais. Depois que terminamos de ler o livro, ficamos com dois sentimentos distintos: um pelo personagem do livro, outro pelo que o livro em si incita. No primeiro caso, somos levados pouco a pouco a conhecer a alma de um artista notável: escritor, poeta, desenhista, encenador, cenógrafo, pintor, que teve (e tem) papel decisivo na teoria da arte teatral. Nascido em Marselha, descendente de uma família de turcos, teve logo no

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início da sua vida, crises profundas. Por ser hipersensível, esteve sujeito à dor do mundo e padeceu por isto vida afora: a perda da irmã, as crises de depressão, a primeira internação num sanatório, aos 19 anos, o consumo de láudano e ópio, o misticismo, o eletrochoque que o fez perder os dentes. Ao chegar a Paris, em 1920, para tratar de sua saúde, rapidamente insere-se na cena parisiense. Escreve para uma revista de arte e literatura, conhece os surrealistas entre os quais se torna uma das principais referências do movimento. Monta e atua em diversas peças teatrais, faz cinema e é reconhecido internacionalmente como ator. Por quase vinte anos, tematiza a revolta, a peste, a crueldade, a injustiça, a revolução e a dor-do-mundo como arcabouço estético e conceitual. Não fez concessões ao pensamento em favor da estética, ao contrário, arriscou fama, carreira, prestígio, em favor da revolta e do protesto. Referindo-se à psicanálise (aliás, o livro Antonin Artaud – A revolta de um anjo terrível deveria ser lido por todos os psicanalistas), diz algo que vale para os que gostam do encarceramento das idéias, algo que vale também para a vida e que vai além da psicanálise: “fugirei de qualquer tentativa de encarcerar minha consciência em preceitos ou fórmulas, numa

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organização verbal qualquer” (p.68). É notável ver no livro a prepotência de Jacques Lacan ao lidar com o caso Artaud. Afirma inclusive que tentará desestimular algum aluno seu que desejar cuidar do caso. “O caso Artaud está resolvido”. Alex Galeno diz que Lacan não estava preparado para diagnosticar a lucidez da poesia e o desconcerto estético presentes em Artaud. De fato, não é fácil mesmo entender nem a poesia, nem a loucura. Elas têm às vezes muita sabedoria por trás para facilitar o entendimento. Têm sobretudo uma outra visão de mundo. Têm a força vulcânica do que não se enquadra. Não é fácil distinguir o que é clínico do que é místico, o obscuro do iluminado, o irracional do sapiencial, ou o que são ambas as coisas ao mesmo tempo. Sabemos, ao final do livro, que Artaud realmente sofria de problemas psíquicos, mas não deixamos de vê-lo como um gênio artístico. Não é fácil saber o limite das coisas. Deleuze e Guattari dirão, no Anti-Édipo, anos depois: “Artaud é a destruição da psiquiatria. É a realização da literatura precisamente por ser esquizofrênico e não por não o ser”. Se a poesia e a literatura não tivessem esse não-sei-quê de

coragem, loucura e lucidez não seriam o que são. Nem faria sentido sê-lo. Em janeiro de 1936, Artaud inicia uma viagem ao México, ao país dos Tarahumara. Conhece Diogo Rivera, prova o peiote, dá palestras em universidades, fica ali por quase um ano. Ao voltar, no ano seguinte, vai a Bruxelas e a Dublin, capital da Irlanda, vaga pelas ruas sem dinheiro, drogas, e com extrema dificuldade para falar inglês, desentende-se com os padres jesuítas, a polícia local, é preso e deportado para a França. Chega à França de camisa-de-força e é internado num hospital psiquiátrico. É o início de sua vida asilar, que durará nove anos. Daí em diante, Artaud é transferido de hospital em hospital. Isso não o impede de criar; o vemos sempre desenhando, escrevendo, pintando. Seus cadernos hoje valem uma fortuna e sua obra é motivo de contenda judicial entre a família e a editora Gallimard. No asilo, Artaud foi praticamente abandonado pela família. Após o final da guerra, em 1946, um grupo de intelectuais se une para tirá-lo do asilo. Contribuem Georges Bataille, Pablo Picasso, Jean Paul Sartre, Albert Camus, Simone de Beauvoir, entre outros. Em 1948, ele morre de câncer no reto, no hospital psiquiátrico de Ivry, nos


subúrbios de Paris. É encontrado aos pés sociedade, os esquecidos, os rebeldes e os da cama, segurando um sapato. inconformados. Bela escolha. A cena da morte de Artaud é, a propósito, a primeira imagem forte do livro de Alex Galeno. Ela alia-se a outras cenas desse livro-tese-ensaio que farão o leitor emocionar-se ao mesmo tempo que pensar. As cenas das relações sexuais de Artaud com Anaïs Nin são perfeitas. O livro do escritor e professor de Ciências Sociais da UFRN é resultado de uma pesquisa de doutoramento realizada na PUC de São Paulo, sob a batuta do filósofo e antropólogo Edgard de Assis Carvalho. A obra de Galeno, aliás, é o segundo sentimento que gostaria de ressaltar nesta crítica. Quanto a isso, sejamos sinceros: um livro que discute a revolta, a loucura, o tormento, o despedaçamento e o desassossego não é fácil de engolir em tempos que preferem os personagens doces e meigos, que buscam o entendimento sem debate, as facilidades da literatura água com açúcar, entre outras baboseiras. Galeno foi na direção contrária. Ao escolher um autor que se insere no seio dos malditos como Nietzsche, Rimbaud, Nerval, Van Gogh — os que não aceitam facilmente as mentalidades de sua época —, optou pelos que geralmente ninguém escolhe: os marginais, os suicidados da

Para construir sua obra, ele visitou um número considerável de textos, livros, documentos, teses, cartas e postais de e sobre o autor francês. Esteve em contato com pesquisadores na França, adquiriu catálogos pictóricos e fotográficos, viu filmes, leu e assistiu a peças teatrais, leu filósofos preocupados com a idéia da estrangeiridade e de estranhamento, e, sobretudo, ao final, conseguiu construir uma obra viva, no fundo, uma poética da revolta dramática, elemento que percebe desde os clássicos, como Sófocles, passando por Shakespeare, Dostoievsky até chegar a Artaud, Camus, entre outros. Talvez, realmente, como disse Rubem Alves, os verdadeiros artistas não sejam nunca felizes, mas atormentados, angustiados, terríveis. Talvez por isso consigam dizer mais profundamente. Talvez por isso fiquem como patrimônio artístico da cultura humana. Talvez por isso sejam Artistas! Quem vai ler Antonin Artaud – A revolta de um anjo terrível, se prepare para encontrar ali uma vida pulsante, uma escrita encarnada, uma obra, simultaneamente, leve como um anjo e terrível como um demônio. Assim como são as coisas belas da vida.

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Tratado das intenções com Josimey Costa Escritora Ilustração: Isaias Ribeiro

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eseje.

Deseje com força, com urgência. Busque extremos. Não: torne-se o extremo. Faça concessão nenhuma, principalmente em seu desejo. Só o melhor é o bastante para começar. As meias medidas, o meio de vida, a meia pataca, o médio oriente, o meio-fio, a meia-boca, jogue fora tudo isso. Rompa os limites, sim, vá além deles. Encha o êmbolo até o fim, beba até a última das gotas, mergulhe no mais fundo do poço, desça depois do quinto inferno... e aí você poderá pleitear o seu gozo. O gozo pleno é uma arte. Exige extrair, meticulosamente, a essência de todas as coisas. Macere, pois, os sentimentos para que sejam sumo e néctar, ácido e bálsamo, a luz mais cortante e a sombra mais compacta. Torne isso palavra e, com ela, engravide os atos. Tantos, tão profundos

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entrelinhas de sabotagem e verdadeiramente significativos – mas O seu desejo é mesmo tonto e cego. Não Mas você é flecha. Uma flecha não comelege alvos; aciona armadilhas. mesmo ainda há o desejo. porta um se. Você é eficiência e arte final. Assim, é preciso cuidado e distância. O Você é a decisão. Assim, olhe para o que deseja. terreno é instável; deve ser apenas meio Que seja antes de longe, e o desejo se ani- medido. As pausas são bons anteparos, Por isso, vá sempre para casa. nhará, completo. Abrace com o olhar e prioridades dão ótimo escudo. Qualquer Brinque com os extremos que você cotraga para mais perto o seu objeto de de- fervura não queima quando engole água nhece. Perca-se em si e todo estranhasejo. Ouça-o muito bem. Ouça a modu- fria. Evidentemente, há que inciar a fer- mento não ultrapassará os tecidos dos lação do seu som e ouça até o ar que não vura, isso o desejo impõe. O fogo, porém, seus órgãos. Distraia a dor, precisamente vibra quando nada é dito. Ato contínuo, deve ser lento e a água, contida. Desejo e essa dor. As outras, viva-as plenamente, cheire aquilo que deseja. Toque-o com paixão são uma alquimia de morte. Petite elas não arrancam você das suas próprias o seu olfato e decifre as mensagens que mort. Morte por sufocamento. mãos. Dê-se também o seu próprio pranem ele sabe que emite. Tatue na memó- Só se morre asfixiado quando algo ou al- zer. Quando, onde e como você quiser. ria de cada célula do corpo, do seu e do guém chega muito perto, tão perto que Se isso não for suficiente para aquietar o outro, o padrão desse desejo que, enfim, pressiona os sentidos, desacerta a pulse assume molecular. Fractal. Tão entra- sação e seqüestra a voz. Ah, mas isso só seu desejo, escolha uma armadilha pronpode vir por dentro. Como um vampiro, ta como alvo. Qualquer uma; os mecanhado que nem é mais desejo. É você. precisa de convite para entrar e não acei- nismos você adivinha só com o olhar. Agora, costure pele nesse desejo. ta nenhuma ordem para sair. Há perigo Depois, você poderá voltar para casa do O que antes o olhar abraçava, empunhe, e você não constrói discurso sobre isto mesmo jeito, com seu discurso pronto e sorva, deguste, invada, emaranhe, dedi- senão enquanto dor. O infinitamente na ponta da língua. próximo é também mortiferamente polhe, mordisque, respire, dissolva e desderoso. É esta a condição para fazer você Para mais do que isso, seria preciso você creva, esvaia e preencha. gozar como sonha. Como um animal se perder muito além de si e sem pressa alguma de se achar. Então, vá para casa. com alma. Um anjo. Demoníaco.

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UMARIZAL EfervescĂŞncia e diversidade cultural movimentam a cidade

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Sérgio Vilar Fotos: Anchieta Xavier

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marizal, a 405 km de Natal, ainda é uma jovem cidade. Não tem 50 anos. Somente emancipou-se de Martins em 27 de novembro de 1958. Muitos moradores, sobretudo os mais antigos, deixaram sítios e fazendas de criar e plantar das redondezas para morar na cidade, que prosperava amparada no ciclo algodoeiro. Talvez por isso, a receptividade sertaneja e pura, já escassa em alguns lugarejos, ainda resista em Umarizal. O município, que chegou à condição de terceiro em arrecadação do Estado, hoje vive em função dos empregos gerados por uma grande empresa fabricante de carrocerias. O ciclo do algodão ou a feira livre da cidade, que aglomeravam visitantes de todas as regiões são hoje apenas retratos de um passado rico.

O nome de Umarizal pode ter surgido em referência à grande quantidade de árvores chamadas umarizeiras. Hoje o que se encontra em cada quarteirão da cidade são as árvores sempre-verdes. São elas que emprestam alguma sombra às ruas. Mas Umarizal já colecionou outros nomes. Antes de se constituir Vila Divinópolis, em 1938, a região tinha o nome de Gavião. O nome vem da povoação que se formou às margens do riacho homônimo. Como escreveu o escritor Ma-

noel Onofre Júnior, a ocupação daquelas terras foi no início do século XVIII, quando foi concedido ao padre Manoel Pinheiro Teixeira e a Joseph Ferreira, terras situadas entre as serras da Mãe D’Água e Catolé, às margens do riacho Umari. Parte dessas terras pertenciam ao padre João de Paiva e ficava na nascente do riacho Gavião.

de Andrade, considerado o papa do Modernismo brasileiro, quando de passagem pelos interiores do Nordeste, em 1929, caracterizou os moradores do povoado de Gavião como “gente brigona, acangaceirada”. Mas a julgar pela simplicidade do empresário mais bem sucedido da região: Joaquim Suassuna Filho, 70, ou mesmo pelo silêncio das ruas nas noites Em 1902, escreveu Câmara Cascudo, de Umarizal, a verdade é outra. no livro Nomes da Terra, o povoado de O estilo pacato ou a riqueza também se Gavião já contava com cemitério, ca- encontram naqueles onde a simplicidapela e algumas casas de taipa e palha. E de foi oferecida como sina pelo destino. foi em volta do cemitério, puxada pela O violeiro e cantador Raimundo Praxemovimentação de uma feira livre que des é um destes. Considerado um dos reunia cantadores, violeiros, folhetos de nomes mais representativos da cultura cordel, comidas típicas e artesanatos vapopular de Umarizal, vive sem apoio riados em cerâmica lúdica, utilitária ou ou até estímulo para espalhar sua poedecorativa, que a cidade cresceu. A casia pelos recantos nordestinos, como a pela do Sagrado Coração de Jesus, hoje maioria dos poetas, cordelistas e cantaigreja matriz, também foi construída em dores populares. 1902, por iniciativa do padre Abdon Melibeu. Mas, como tantas outras, está A Umarizal de ruas largas, do senador distante da arquitetura original. O seu Zezito, ainda abriga outras expressões oratório tem pouca semelhança com os culturais. Mas, a decadência da antiga de estilos antigos. feira livre, vitrine para mostra e venda de No entanto, muito da história do mu- produtos artesanais e das artes plásticas nicípio está preservada na memória de da cidade, contribui para o anonimato moradores ilustres, como dona Telva desses personagens. A Casa de Cultura Menezes, de 98 anos. A irreverência em Popular instalada no município ainda conjunto com a valentia de seu povo serve de espaço para algumas exposições pode ser retratada pelos depoimentos, ou apresentações de grupos como o “Rerecordações e trejeitos de seu Felipe Go- lendo Araruna” e a companhia teatral mes de Souza, de 80 anos, e suas lem- “Arte & Riso”, sobretudo durante os branças de Lampião. O escritor Mário eventos da cidade.

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Pioneirismo, criatividade e trabalho A necessidade muitas vezes se faz manual de aprendizado. E no interior, ela alia-se à criatividade do sertanejo. O empresário Joaquim Suassuna Filho, cria do sítio Cajuais, no município de Riacho da Cruz e que adotou Umarizal como moradia a partir de 1978, construiu um império chamado Vicunha, a maior fabricante de carrocerias para camionetes, caminhões e carretas do Nordeste, com filiais em Fortaleza e Natal. A empresa é a maior fonte de renda de Umarizal.

A história do município em cordel Desde 2000, o vice-diretor da Escola Estadual 11 de Agosto, Francisco Praxedes, o professor Chiquito, 49 anos, tenta editar o livro que escreveu sobre a História de Umarizal, intitulado “A cultura nordestina chega ao terceiro milênio”. No livro, o professor resgata lembranças dos tempos da Umarizal de ontem e, embasado em pesquisas, conta a história de fundação e primeiras famílias do município. Muitas das histórias são contadas em versos de cordel. É que a convivência estreita do professor com as letras começa já na adolescência, quando produzia literatura de cordel com temas ligados à pedagogia ou sobre os fatos de Umarizal. Mas, os acontecimentos no sítio Poço Branco, em Caraúbas, também o influenciou. E não poderia ser diferente. “Os tempos de menino foram difíceis. Não tinha como esquecer”. O professor Chiquito chegou a Umarizal aos 15 anos. A mudança cultural, segundo ele, “travou um pouco a inspiração de um matuto vindo de sítio”. Só aos 25 anos iniciou na escrita do cordel. Foi também nessa idade que iniciou as pesquisas para o livro. “Existe uma carência de temas voltados para esse resgate da história local. E é importante deixar imortalizada e também divulgar essa história, essa cultura. É uma forma de deixar os moradores orgulhosos e conhecedores de sua história”.

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Como outros moradores antigos do município, a cultura ensinada nos sítios impregnou seu Joaquim de uma simplicidade sólida. O meio de transporte de que mais se utiliza é uma bicicleta Monark, já com 42 anos de estrada. Ao lembrar os tempos difíceis, no trabalho junto à madeira cerrada ou planada por duas máquinas confeccionadas pelo próprio empresário, seu Joaquim sorri. É que ele parece viver daquele tempo. Sua casa é semelhante a muitas outras do município. Mas seus bens tomam extensos quarteirões, onde são processadas todas as etapas de fabricação das carrocerias. “Vim para Umarizal por causa da educação dos meus filhos. E aqui tinha a vantagem da feira, que juntava muita gente. Umarizal estava se desenvolvendo”, lembra. Joaquim trabalhou por 12


Barba, cabelo, bigode e poesia Antônio Márcio Sobrinho, mais conhecido como Toinho de Otília, 63 anos, mistura duas profissões bem distintas. No salão em que trabalha desde 1979, ele faz barba, cabelo e também poesia. Toinho chegou a Umarizal vindo do sítio Traíra, em Apodi, no mesmo ano de 1979. Mas a “mania” de escrever começou há apenas dois anos, com músicas

anos em Riacho da Cruz. A tal necessidade, no início, obrigou também a sua mulher, Marlene de Amorim Suassuna, 65, a ajudar na produção das carrocerias. Ela fazia as pinturas, detalhadas em finos traços. O método foi improvisado, fruto da criatividade necessária: “Não usava pincel. Eu tirava a parte de dentro de uma seringa e deixava só a ponta. Pegava uma agulha mais grossa, cortava um pedaço e depois pegava uma lã de carneiro pra fazer um pincel na ponta da agulha. Depois, amarrava com uma linha. Ali, colocava a tinta, que ia ensopando a lã até chegar à ponta da seringa”.

para jovens da periferia foi formada. É o orgulho e o passatempo do empresário nessa altura da vida. A idéia surgiu ao ver crianças e jovens ao redor da fábrica em busca de restos de material. Por questão de espaço, são 22 alunos, selecionados por critério de idade (12 aos 17 anos) e média escolar. A oficina já dura 15 anos. Na produção dos jovens, predomina a fabricação de colméias, atividade em expansão no município. Mas há também garajaus (cestos) para proteção de plantas e cercas para jardins. Muitos alunos assumem hoje cargos gerenciais e de chefia na empresa. Outros saíram de A tecnologia da maquinaria domina lá para trabalhar em outras fábricas. “Do hoje os espaços dos muitos galpões de tolhimento da madeira se faz mil e uma Joaquim. Em um deles, uma oficina obras de arte”, comenta Joaquim.

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de forró e hinos evangélicos para o irmão que mora em São Paulo. Muitos clientes ainda desconhecem e até duvidam que o barbeiro, tão conhecido na cidade, deu pra poeta. Mas ele recebe com ironia a desconfiança: “Quando dizem: ‘você sabe fazer nada, homi’. Aí eu mostro o discurso da missa de primeiro ano de morte do sanfoneiro Chico de Kival. Aí o povo se admira”. Francisco de Assis dos Santos, o Chico de Kival (1965-2004), foi assassinado aos 38 anos. Era natural de Umarizal. O sanfoneiro chegou a tocar nas bandas de forró Saia Rodada, Linder Som e Cheiro de Menina. Era nome expoente na Zona Oeste. Em 16 estrofes, Toinho prestou homenagem ao seu primo. Alguns trechos: “Os passarinhos acordaram/ Ali ao romper da Aurora/ Em vez de cantar choraram/ Aquela triste sonora/ Dizendo um pro outro/ Nosso artista foi embora. Chorou toda região/ Inclusive Umarizal/ Toda família sentiu/ Aquele golpe fatal/ E a notícia se espalhando/ Morreu Chico de Kival”. E completa o barbeiro poeta: “Poesia, música, não depende do saber. As escolas até aperfeiçoam, mas se o cara não nascer pra aquilo, acabou-se”.

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O homem que conheceu Lampião Felipe Gomes de Souza, 80, nasceu de sete meses. Mas nem precisava dizer. Apesar da idade, o pernambucano, nascido no município de Floresta, é ativo como um jovem, e espirituoso como os bons sertanejos de antigamente. Além de ter morado em várias cidades brasileiras, “por não conseguir parar em nenhuma”, seu Felipe guarda outra peculiaridade: em sua morada de infância, na Fazenda Betânia, entre os 4 e 5 anos de idade, em Pernambuco, o cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, aparecia com freqüência. O cangaceiro era tão íntimo da casa que apadrinhou dois irmãos de seu Felipe. “Lampião foi criado junto com meu pai”, recorda. Segundo suas lembranças, o cangaceiro era homem moreno, magro e simpático. Lampião passava até três dias na Fazenda. “Polícia num ia lá porque tinha medo”. Para a criançada da Fazenda, a presença daquele cangaceiro de bandoleira carregada de ouro entre uma ponta e outra, as vestimentas requintadas e brilhantes, embora tipicamente nordestinas, aguçavam o imaginário da molecada. “Todos nós queríamos ser iguais a ele”, conta. Outra recordação da presença do cangaceiro e seu bando na Fazenda também perdurou na memória de seu Felipe: “Maria Bonita foi a mulher mais bonita que eu


já vi. E era valente também. Ela seguiu Lampião porque o marido lhe deu uma surra. E ela num era mulher de aceitar surra de marido”, disse seu Felipe, meio encabulado ao elogiar a beleza de Maria Bonita ao lado de sua mulher, Raimunda Gomes de Souza, Passados 25 anos do casório, seu Felipe ainda lembra detalhes dos primeiros contatos, motivo pelo qual fincou morada no município. “Assim que cheguei em Umarizal, na casa de meu primo, ela estava lá e logo me ofereceu água. Depois, foi a primeira a me oferecer queijo. Aí pensei: Essa mulher tá me perseguindo”. Seu Felipe foi embora de Umarizal, mas sentenciou para dona Raimunda: “Eu volto aqui pra te buscar”. Voltou e ficou. E apesar de ter morado em São Paulo por 27 anos, onde trabalhou de pedreiro “pra ganhar o suficiente pra ficar dois meses sem trabalhar”, seu Felipe percorreu vários municípios Brasil afora. E deixou marcas em muitos: “Deixei nove mulheres com aliança, mas só casei mesmo com Raimunda”, orgulha-se. O casamento foi acertado através de carta escrita de São Paulo pelo escritor François Silvestre. Sem saber ler e escrever, seu Felipe pediu ao amigo para manter contato com a noiva, em Umarizal. Quando retornou a Umarizal para casar, não lembrava as feições da noiva e pediu a uma conhecida para apontá-la, porque temia confundi-la com a irmã.

Quadrinhos com sotaque nordestino As histórias dos super-heróis em quadrinhos ou da turma de Maurício de Sousa foram leituras quase obrigatórias para as crianças, sobretudo dos anos 80. Mas, para Rodrigo Fernandes, 26 anos, elas se mostraram caminho para a futura profissão de arte-finalista. Nascido em Umarizal, Rodrigo costumava desenhar por hobby já em tenra idade. Ao perceber um talento peculiar, começou a estudar arte seqüencial. Ele se julga um batalhador neste campo da arte. E não é para menos: Rodrigo precisa retirar do próprio bolso os custos para a publicação bimestral dos fanzines produzidos. O mercado de HQ’s em Umarizal ou nos interiores do Estado é praticamente nulo. Por isso, já aos 17 anos Rodrigo veio para Natal estudar e se profissionalizar. Passou quatro anos. Trabalhou nos estúdios Reverbo, de estórias em quadrinhos, e desenhando a arte-final da revista Brado Retumbante, com personagens de super-heróis locais. Uma cooperativa de artistas do gênero era responsável pela publicação da revista. Os cooperativados se reuniam na Fundação Capitania das Artes para discutir projetos e roteiros das estórias. Mas o campo de HQ’s, mesmo na capital, também é difícil. “Não tem mercado. A cultura local não favorece. Não fosse o lance da paixão pura já teria desistido”.

Em 2004, Rodrigo voltou a Natal para ensinar desenho artístico no ateliê de Ricardo Tinoco. Mas os planos do artista em produzir revistas e fanzines não avançavam. Voltou para Umarizal no ano seguinte. E desde então tem feito a arte seqüencial dos personagens do roteirista Francinildo Senna, como o herói chamado de Crânio. A tiragem é de 800 exemplares e já possui mercado em Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Mas o sonho mesmo de Rodrigo é ver seu personagem, o Bispo, estampado nos fanzines. A originalidade do personagem está no ambiente em que vive: uma Natal escu-

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ra, nas madrugadas sombrias e violentas da cidade grande. Na próxima edição do fanzine, a ser publicado este mês, o Crânio dividirá atenções com o Bispo. Ambos serão protagonistas do roteiro. O Bispo foi inspirado no famoso herói de Gotham City, Batman. Mas tem lá um quê de Lampião também. Sem superpoderes ou maiores incrementos vi-

suais, o Bispo é um vigilante revoltado pelo assassinato brutal de sua família. Ele vive pelas ruas, vigiando as madrugadas natalenses. “O Bispo não tem dinheiro como o Batman pra comprar automóveis ou armas. Ele combate na raça mesmo”. E nesse caso, criador e criatura se misturam em uma mesma intenção: vencer as batalhas na raça e na força de vontade.

A nostalgia de um velho agricultor Raimundo Galdino, 80 anos, é personagem cotidiano no centro de Umarizal. Todos os dias ele anda “uma légua”, do sítio Caiçara onde mora desde que nasceu, ainda nos limites do município, até as praças da cidade. No momento da reportagem, Galdino estava sentado em um costado de uma churrascaria. A expressão sonolenta e tranqüila, de observador passivo, denotava um homem de histórias guardadas.

As lembranças de Galdino remetem a o povo vai embora”, reclama o agricultor uma Umarizal próspera. Agricultor apo- de trajes e trejeitos rurais. sentado, ele lembra ainda do auge do cultivo do algodão e das famílias ricas do município. “O algodão acabou por causa do bicudo, que derrubou tudo, até as usinas. Em 1985 eu plantei algodão na propriedade dos Germanos. Em 1 ano colhi 14 mil quilos de algodão em 10 hectares de terra. Mas o bicudo atrapalhou tudo”, recorda.

Raimundo é dos poucos umarizalenses ainda moradores de sítio. Muitos apontam a praga do bicudo e a conseqüente falência da prática algodoeira como motivo maior do êxodo para a cidade. No censo de 1991, as pesquisas mostravam 533 casas na Zona Rural já sem condições de moradia. O abandono ocasionou também a falência de uma minindústria de castanha, mesmo com o produto ainda em abundância na região.

Casado há 53 anos, o agricultor de 14 filhos, “todos espalhados mundo afora”, 28 netos e 4 tataranetos não cansa de comentar as lembranças de outrora: “Trabalhei em 22 propriedades em Umarizal. Botei muita renda nessas famílias”, orgulha-se. Embora continue no campo, onde passou boa parte da vida, Galdino é saudosista também da feira livre do município. “Antigamente as feiras iam até de noite. Hoje, depois das 14 horas,

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O hobby que virou profissão Os trabalhos com cera e grafite são o forte do artista plástico Macson Antônio, 30 anos. A perfeição dos traços e formas de seus quadros e telas impressionam. E tudo o artista aprendeu na prática. As fisionomias e as paisagens predominam na obra de Macson. Como muitos artistas que lidam com desenhos, ele iniciou no mundo da arte como hobby. Aos 8 anos Macson já desenhava seus primeiros rabiscos. Segundo ele, a facilidade no manuseio com os lápis e pincéis logo chamaram atenção de todos. A profissionalização veio em seguida, assim como a desvalorização de seu trabalho devido à falta de apoio do poder público para os artistas locais. “Sinceramente, me sinto desestimulado. Já pensei em desistir”, comenta. Macson já expôs seu trabalho na Zona Oeste e ainda tem recebido algumas encomendas. “Mas é pouco. Desse jeito não dá para viver só da arte”.

“O sertão é tudo”, diz o trovador mundo Praxedes confirma que ninguém melhor que o cantador pode sentir a variedade de cenários do cotidiano sertanejo. A voz aguda de repentista confunde-se em afinação e harmonia com sua viola desgastada pelo tempo, já com dez anos de estradas nordestinas. Parecem cantar juntos. É ela quem acompanha as sextilhas do poeta, que também passeia pelos campos do galope beira-mar ou do martelo agalopado. Em suas canções e improvisações, Praxedes traz dos sertões para as cidades o retrato da natureza e do rigor que castiga peles e mentes. E que também alimenta costumes e cultura. “O caboré, um pássaro noturno e vigilante/ Quando é de meia-noite em diante/ Ele voa pra um morro de um sopé/ Dali passa a noite e num dá fé/ Que ele olha com muita ligeireza/ Uma muralha de pedra é sua empresa/ Ele olha e vê todo o movimento/ Discursa montado em rolamento/ O quanto é grande o poder da natureza”, canta Praxedes, em som misturado ao da viola, do cacarejo da galinha e do silêncio audível e místico do sertão em volta.

Raimundo Praxedes, 51 anos, é um daqueles artistas que mais parecem uma metáfora perfeita da poesia popular. Um sertão de pedras e pedregulhos, de horizontes extensos e cinzas, a dividir paisagem com o céu limpíssimo, habitam a cabeça do cantador. “O sertão é tudo”, afirma, como se nem precisasse adivinhar que cada um carrega mesmo um sertão dentro de si. A morada do cantador é simples. Fica no bairro Mutirão, quase zona E quando sentencia a universalidade do sertão, Rai- rural de Umarizal. O município ainda chamava-se Vila do Gavião

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quando Praxedes nasceu nessa casa de chãos de terra batida. Ali, ele planta e colhe, cria algum gado, porcos e galinhas. “Viver só da viola não dá”, lamenta, já acostumado e sabedor da sina dos poetas populares. Apenas enquanto viveu na região do Seridó, na década de 80, Praxedes conseguiu “viver da viola”.

e participou de vários programas de rádio. Acabaram com as cantorias nas rádios, que davam alguma notoriedade aos cantadores. Os desafios dos repentistas, antes vistos em praças públicas de forma costumeira, parece se esvair.

Os CDs independentes, gravados e copiados facilmente a preços baixos são hoje a mídia dos repentistas do interior. Ainda assim, PraO início na cantoria foi em 1978. O poeta e cordelista mos- xedes lamenta: “Até tenho um trabalho gravado, mas falta dinheiro soroense, Luiz Campos foi seu primeiro incentivador. Logo, para copiar”. E dessa forma o poeta segue seu ritmo de vida, vencenPraxedes trocaria Umarizal por Caicó, onde viveu cinco anos do obstáculos no improviso das necessidades e dos repentes.

“Relendo Araruna”: respeito à tradição

O grupo de danças Araruna é um dos representantes da cultura potiguar. O pessoal de Umarizal foi buscar inspiração nele para criar o grupo “Relendo Araruna”. A Sociedade Araruna de Danças Antigas e Semidesaparecidas, que tem à frente o mestre Cornélio Campina (enfocado em reportagem publicada na PREÁ nº 6 ), foi criada em 1956. O grupo “Relendo Araruna”, como o próprio nome confirma, é uma conseqüência do Araruna de Natal. A formação do grupo, com 20 integrantes, se deu na 1ª

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Mostra de Cultura Popular na Educação, promovida pelo Governo do Estado, em novembro de 2003. A mostra reuniu milhares de estudantes do ensino médio de escolas públicas vindos de 50 municípios do Estado. Nessa mostra cultural, cada cidade do RN era representada por um folguedo. O xaxado, caboclinho, pastoril, malhação do judas e fandango foram algumas danças apresentadas. Foi nesse evento onde os integrantes do “Relendo Araruna” conseguiram os figurinos de casacas e cartolas, e os longos vestidos de saias rodadas em preto e branco, a denotar um estilo aristocrático, influente na origem da Araruna. O aprendizado dos alunos para a Mostra ocorreu por meio de um vídeo onde coreografias da dança eram praticadas. A professora de artes Maria da Paz foi quem conseguiu a fita e orientou os alunos. A partir daí, outras coreografias foram montadas, sempre em respeito às normas da dança.


Os líderes do futuro

Arte & Riso faz a hora Em dezembro de 2001, as comemorações do natal promovidas pela fábrica de carrocerias Vicunha, de Umarizal, mudariam a vida de quatro jovens. Para animar as muitas crianças presentes, filhos de funcionários da empresa, a secretária da Vicunha procurou o estudante Emanuel Alves, 18 anos. Ela já conhecia o trabalho teatral de Emanuel na escola e achou que, se reunisse outros estudantes ligados a grupos teatrais, o improviso poderia dar sucesso. Estava criado ali o embrião para a “Cia. de Teatro Arte & Riso”. Os estudantes Jardel Amorim, Francisco Dias e José Neto foram os outros a entrarem no grupo para aquela primeira apresentação. Em princípio ela seria única, apenas para aquele natal. As rou-

O grupo de teatro amador Umaricatu ensaia suas apresentações baseado em roteiros enviados pela Internet. Os textos são do professor cearense Arnaldo Lima, responsável pela iniciação dos 25 componentes do grupo. Com apenas sete meses de atuação, o Umaricatu já participou de projetos de cultura pelo Estado, como o “Leitura de Texto”, de Racine Santos, e várias apresentações locais. O novo espetáculo chama-se “Hoje a banda não sai”, do cearense Severino Tavares.

pas foram confeccionadas pela empresa e emprestadas aos atores amadores. O show surpreendeu as crianças e o público em geral. Como pagamento, os jovens atores preferiram o figurino, até então emprestado pela empresa. A partir dali, a empresa apoiou o grupo em apresentações pela Zona Oeste e até em Natal e Fortaleza. O nome Umaricatu é uma junção do nome da Hoje, a companhia conta com cidade com a palavra caricatura. Os componentes têm faixa etária entre 12 e 21 anos. O oito integrantes. O teatro de rua grupo é vinculado à sociedade maçônica, resestá presente no repertório do ponsável por outros projetos sociais em Umarigrupo, mas é mesmo a arte circen- zal. Segundo o médico e maçom Roberto Alense que predomina nos espetácu- car, 33 anos, a idéia de patrocinar a atividade los. Imitações de personagens da dos jovens é a da preparação social de líderes cidade ou históricos, o malabares comunitários. “Queremos formá-los não só na tradicional, entre outras peças são arte, mas também pessoalmente, para que produzam obras sociais”, afirmou. apresentadas pelo Arte & Riso.

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flores e coroas de cetim, trabalhos com gesso e enfeites em miniatura. Como Aline, a artesã também procura vender seu produto em municípios vizinhos ou mesmo de porta em porta, procurando mostrar um pouco do artesanato e da força de vontade de Umarizal.

Artesanato: distração e renda O melhor meio que Aline Maria dos Santos, 25 anos, arranjou para se distrair em Umarizal foi produzir arranjos florais em meia de seda. Ela aproveitou um curso de artes oferecido em escola de Sumaré, São Paulo, onde morou e desde então tem produzido peças variadas e pequeninas, em sua maioria. O produto encontra boa aceitação em feiras e exposições de artesanato, afirma. Mas o motivo maior da venda, ressalta, é evidenciar o trabalho produzido. “Muita gente produz, mas guarda sua obra em casa ou tem preguiça de expor nas feiras. Cansei de colocar minhas peças à venda e ninguém comprar. Mas sei

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que elas foram vistas. Tem que ter iniciativa. Pretendo reservar o espaço da Casa de Cultura por uma semana para mostrar meu trabalho. É assim que se começa”, aconselha. Aline hoje se orgulha em ter seu trabalho comprado para ser revendido. “Os cursos incentivam a população a produzir arte. Mas vejo também que quando oferecem cursos por aqui, pouca gente freqüenta. É uma pena”. Alexandra Maria dos Santos, 28 anos, foi das poucas umarizalenses a participar do curso ministrado na cidade, em agosto de 2005, pela Estima Artesanato, de Recife. Hoje, ela produz um trabalho original no município, com artesanatos em


“grosso” do desenho ela faz com os dedos. Para os detalhes minuciosos da pintura, a artista usa palitos e algodão. Zenaide precisa viajar a Mossoró para comprar caixas de azulejos. Apesar do esforço da produção, ela afirma que acumula seus trabalhos em casa por falta de mercado. E lamenta só conseguir expor seu trabalho em escolas ou na Casa de Cultura de Umarizal. “Mesmo assim continuo pintando pra passar o tempo”.

Os azulejos coloridos de Zenaide Depois que Maria Zenaide de Souza, 30 anos, viu na televisão como pintar paisagens e desenhos variados em azulejos, decidiu dividir sua profissão de fotógrafa com a nova paixão artística. Com apenas um ano nessa atividade, ela já adquiriu agilidade na pintura. E se os muitos detalhes e a qualidade do trabalho impressionam, o tempo para completar o desenho também. Em apenas três minutos ela começa e dá os últimos retoques no azulejo. O material usado é a tinta acrílica, comprada por encomenda na Internet. O

Dona Aurélia luta para manter quadrilha Independente das discussões sobre a legitimidade da quadrilha estilizada como forma de manifestação da cultura popular, dona Aurélia Alencar, de 59 anos, segue sua labuta para perpetuar a quadrilha junina de Umarizal por longos anos. O figurino colorido – que lembra o folclore dos pampas gaúchos – dos 54 componentes é alugado. A maioria dos integrantes, afirma dona Aurélia, são pessoas humildes que precisam esperar apoio da iniciativa privada ou do poder público para bancar apresentações

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e viagens que o grupo faz para competir No início as quadrilhas eram matutas (ou em municípios vizinhos. caipiras). Foram criadas quando as coEm 2005 conseguiram recursos apenas memorações do São João eram espalhapara duas viagens. O dinheiro veio de das em cada bairro da cidade. Pequenas bingos e eventos. Foi o menor núme- quadrilhas improvisadas eram formadas ro desde que começaram há seis anos. e por ali festejavam o mês junino. Dona Nunca chegaram a vencer competições. Aurélia afirma sempre gostar de festas, “Com essa situação financeira não dá. O ou “filotê”, como chamam em Umarizal. apoio tem diminuído”, reclama Aurélia. Ela está sempre envolvida nas organiMas os membros da quadrilha são vito- zações de eventos na cidade. Após dois riosos mesmo assim. Já conseguiram se anos da iniciativa do ex-prefeito Manoel apresentar em quase toda a Zona Oes- Paulo Cavalcanti em criar o São João dos te. E dona Aurélia, proprietária de uma bairros, dona Aurélia vislumbrou uma pousada em Umarizal, faz parte de for- idéia para facilitar o investimento e a organização do São João em Umarizal. ma intensa nessa história.

Um roqueiro cordelista As cirandas de cordel e o rock progressivo caminham em estradas opostas, ou pelo menos distantes. O umarizalense Joelson de Souto, de 22 anos, quer provocar essa mistura e produzir um trabalho original e de qualidade. Ele é hoje acadêmico da Faculdade de Letras e Artes, estuda literatura, leciona gramática e redação em escolas e cursinhos de Mossoró, além de guitarrista das bandas Cumade Cristina, Audiobuzz, Projeto Blues e Graciele de Lima. A mistura dessas atividades que realiza em Mossoró ainda é um projeto de vida de Joelson.

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Após reunião com representantes dos bairros, ficou decidido que o São João da cidade passaria a ser festejado todo ele na quadra municipal de esportes, e não mais de forma fragmentada em bairros. O resultado foi imediato. Já no primeiro ano, uma quadrilha estilizada pôde ser organizada. As coreografias – uma das características que diferenciam a quadrilha tradicional da estilizada – são elaboradas por coreógrafo de Riacho da Cruz. Dona Aurélia e seu marido, José Mário de Morais viraram padrinhos da quadrilha, com toda satisfação: “Nosso maior orgulho é ver o desenvolvimento desses meninos e meninas durante esses seis anos de trabalho”, afirma Aurélia.

Desde 1999, quando partiu para Mossoró, Joelson procura se estabilizar nas profissões de professor e músico. “Para sobreviver em Umarizal só se for comerciante ou funcionário público”, comenta. A batalha na capital do Alto Oeste começou desde que chegou. Trabalhou como jardineiro e engraxate. Mas a leitura e as pesquisas sobre Língua Portuguesa continuavam como dedicação paralela. Por falta de tempo Joelson nunca procurou publicar seus cordéis. Em breve, ele pretende trabalhar em um projeto autoral com seus poemas, sejam eles musicados ou recitados.


da cidade ficava ao redor dela e do cemitério. Tinha também um barracão, onde se fazia feira. O açougue era no meio do mato. Era só isso que tinha”. A longevidade de dona Telva parece ser herança de família. Seu pai morreu com “80 e bote força”, como disse. Dos cinco irmãos, dois morreram com mais de 90 anos. Sua irmã Nonata tem 95 anos. As outras duas, 90 e 84 anos. O segredo para a idade longa, dona Telva explica e aconselha: “Fomos criados comendo, mas comendo bem muito pra encher a barriga. Agora, nunca nosso pai comprou quilo de carne de criação pra botar no forno. Só se comprava um quarto de bode, ou matava três guinés pra botar como almoço. Mas a gente trabalhava na roça. O trabalho também é importante. Nunca fomos à escola. Mas também não tinha escola naquele tempo”.

A bordadeira de 98 anos Etelvina Menezes tem 98 anos. Confecciona cobertas, varandas de rede, detalhes em retalhos, renda de almofadas ou o que a imaginação e o tempo lhe permitirem. Faz crochê também. “Faço e vendo”, ressalta. dona Telva, ou Telvinha, é como os umarizalenses a conhecem. Ela, na verdade, é quem os conhece. A idade, a memória e, sobretudo, a lucidez de “dona Telva”, atestam o fato. Ela nasceu em 1908. Seus avós e bisavós também eram umarizalenses, os primeiros moradores da região. Dona Telva escava da parede da memória as lembranças da Umarizal de ontem, no início do século passado: “Só havia quatro ou cinco famílias: a de seu Porcino, de Joaquim Pinto e seu Manoel Alves. O velho Delmiro morava só, numa casa aqui perto. E tinha o velho Pachico, meu avô. O nome dele era José Francisco. A igreja era uma capelinha ainda. O centro

São dos expedientes “sofridos e alegres” na roça que dona Telva tem as melhores lembranças. A colheita do feijão e algodão; as covas para plantação, as faxinas com a enxada construíram épocas difíceis que escapolem das nostalgias do “tempo bom” de dona Telva. As noitadas na roça sim, abrem sorrisos e saudosismos. As lembranças de dona Telva remetem aos costumes de vida brejeira, sertaneja, à vida na ainda Vila Divinópolis, ou mesmo na região do Gavião, primeiros nomes de Umarizal. “Eram quatro famílias de irmandade morando em volta do roçado. Quando era de noite se ajuntavam todos. Nem passava gente nem bicho, porque era tudo cercado. Certa vez, fizemos um fogo do lado de fora. Botamos uma panela. Aí fomos apanhar feijão maduro pra cozinhar. Ganhamos o roçado e não acertamos voltar. Mamãe sentiu falta pelo silêncio. Ela foi ao terreiro e viu uma lamparina, que era no gás. Estávamos num pé podado que tinha no terreiro da cozinha, com três carreiras de algodão. Mamãe nos achou ali. Depois do carão, botamos o feijão pra cozinhar. Era tudo de bom. Nós passamos muita vida boa e muita vida ruim ali”, disse a senhora matriarca dos quatro netos e quatro tataranetos.

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Engenhoca de som em miniatura Um cabo de bicicleta, um compensado, latas de refrigerante, dobradiças de plástico, zinco, massa e está feita uma réplica de carro de som com potência de 160 wats. A engenhoca, que costuma aglomerar dezenas de pessoas, quando ligado, foi idéia dos estudantes Misael Amorim, 16 anos, e Alexandro de Oliveira, 19 anos. Tudo começou com cortes de

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papelão no formato do automóvel. Aos poucos os equipamentos eletrônicos foram sendo adaptados, montados e colados. “Aprendemos mexendo mesmo”, revela Misael. Os estudantes já montaram três miniaturas de carro de som. Um dos exemplares foi vendido para uma equipadora. “Vamos levar isso pra frente e tentar ganhar algum dinheiro com a idéia”, prevê o estudante.


IRACEMA MACEDO

A poesia como intensificação da vida

Por Tácito Costa e Carmen Vasconcelos Fotos: Anchieta Xavier

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poeta potiguar Iracema Macedo reside há quatro anos em Ouro Preto-MG. Doutora em Filosofia, dá aulas na UFMG, em Belo Horizonte. Na década de 90, participou das coletâneas de poesia Vale Feliz (1991), Gravuras (1995) e Ceia das cinzas (1998), em parceria com os poetas Elí Celso e André Vesne, antes de estrear carreira solo com Lance de dardos (2000). Em 2004 lançou Invenção de Eurídice. É autora das obras acadêmicas Idealismo e Amor fati na estética de Nietzsche e Nietzsche, Wagner e a época trágica dos gregos. Considerada uma das mais importantes poetas do Estado, ganhou os prêmios Othoniel Menezes, Myriam Coeli e Auta de Souza. Em dezembro último, como faz todos os anos, ela esteve em Natal, de férias. Em entrevista à Preá, que contou com a participação especial da poeta Carmen Vasconcelos, Iracema falou sobre sua formação poética; sobre a poesia feita no Rio Grande do Norte; a relação entre filosofia e poesia; entre linguagem e poesia; inspiração e técnica; enalteceu a poesia feita por mulheres norte-rio-grandenses (“Foi um acaso muito feliz que tivessem nascido aqui tantas mulheres especiais”) e diz que sua poesia celebra a estetização da existência. “Tento apresentar uma estetização da existência, na dor, na alegria, na intensidade, no amor, no desamor, enfim, em todas as suas instâncias”. Jan/Fev 2006

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Preá – Quando e como a poesia entrou Preá – Em 1992, você com 22 anos de idade, ganhou dois dos principais prêna sua vida? mios de poesia de Natal (Myriam Coeli Iracema Macedo – A poesia entrou na e Othoniel Menezes). Isso teve alguma minha vida através dos cadernos poéticos importância na sua vida? que minha mãe fazia na adolescência, na juventude. Ela copiava sonetos de revis- Iracema Macedo – Muita. Foi um tas e jornais. Quando eu tinha uns doze sentimento de reconhecimento, de saber anos, tive acesso a esses cadernos. Foi ba- que estava seguindo o caminho certo, sicamente com os sonetos copiados com de que tinha alguma coisa a dizer. Sem a letra da minha mãe, que eu comecei a dúvida, esses prêmios nessa época foram ter contato com a poesia. A minha lem- um “batismo”, não um “batismo” social, brança é de ter feito meus dois primeiros mas pessoal, para que eu sentisse mesmo poemas, em forma de sonetos – mas não que era a isso que eu deveria me dedicar com toda força. sonetos bem feitos –, nessa época.

Preá – Como você definiria a poesia, segundo a poesia que você mesma faz? Iracema Macedo – É muito difícil definir poesia. Nesse sentido eu vou pedir o apoio do meu filósofo predileto, Nietzsche, para quem a arte é a intensificação da vida. Então, se eu tivesse que dizer alguma coisa sobre poesia, sem dúvida diria que ela é intensificação da vida, no que ela tem de mais lindo e de mais terrível.

Preá – O poema é uma construção lingüística pura? E pensando assim, o poema como uma construção de linguagem, Preá – A sua casa tinha livros de Preá – Naquela época você estava liga- que tipo de sensação uma palavra produda a algum grupo ou pessoas que faziam ziria no poeta? Uma palavra sozinha tece poesia? um poema? poesia? Iracema Macedo – Não. Tinha esse Iracema Macedo – Era ligada ao Elí Iracema Macedo – Muitas vezes uma caderno, que foi fundamental, que me Celso, ao André Vesne, que tinha sido simples palavra, num momento de leitudeu uma certa idéia do que era escrever meu namorado quando fazíamos o cur- ra ou de lembrança, é a célula que vai geum poema. Por outro lado, havia muitos so de Filosofia, e ao Boaventura Júnior. rar o poema. Portanto, para mim, aquela livros de filosofia em casa, porque meu Nós lançamos em 1991 “Vale feliz”, nes- palavra guarda um poema inteiro. Isso pai foi seminarista e estudou Filosofia. se movimento coletivo de quatro poetas. eu não tenho dúvida, não só uma palaFoi um livro totalmente artesanal, a gente vra, mas também uma imagem, como garimpou o papel, pedimos nas livrarias, por exemplo, o poema “Canção de amor Preá – Quando você tomou a decisão e fizemos o livro em cópias xerox, com para uma moça judia”, que foi gerado de se tornar poeta? apoio de alguns setores da universidade. pelo retrato da Rosinha Palatnik, no ceIracema Macedo – Com certeza não Lançamos esse livro com esse apoio meio mitério do Alecrim. Apenas um retrato houve decisão, foi um acontecimento irreverente, contando também com a foi suficiente para me mover intensainevitável. nossa irreverência à época. mente, fazendo com que eu criasse aque-

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le poema. Mas há também poemas feitos a partir de sonhos, pesadelos. Poderia citar uma palavra, “Carmen”, que resultou num poema, uma palavra que vem carregada de todo um significado, por ser uma cigana, além do bem e do mal. Essa palavra, por exemplo, me gerou um poema, chamado “Rito de Carmem”. No título coloquei o nome de Carmen com “m” para dar a idéia de uma mulher mais real e diferenciá-la um pouco da cigana de Prosper Mérimée. Mas às vezes algumas palavras também precisam ser exiladas do poema. Isso faz parte do meu processo criativo. Tem o título de um poema, em “Invenção de Eurídice”, “Anúncio de Antiquário”, inspirado na visão que eu tenho quando saio de casa em Ouro Preto, a uns quinhentos metros de onde moro tem essa loja de Antiguidades da família Toledo e eu a vejo e contemplo praticamente todos os dias. Então, não só a palavra, como a imagem e a cena geraram o poema inteiro. E tive a imensa alegria de ter esse poema musicado pela Valéria Oliveira, que está com um CD para ser gravado. Ou seja, de uma palavra, de uma imagem, nasce o poema e nasceu também uma música. Penso muito na idéia de que a criação não é solitária. É nítido para mim isso, a presença de múltiplas figuras no que eu faço. Tudo pode ser irradiação de pessoas e coisas. Não se ama sozinha e não se faz poesia sozinha.

Preá – A inspiração é necessária para se fazer poesia? Iracema Macedo – Eu não faço coro com os detratores da inspiração. Para mim, inspiração e técnica são, ambas, extremamente necessárias. Ou seja, apolíneo e dionisíaco são duas formas do fazer poético, uma sendo a mais elaborada ou a mais pensada, a mais medida, que é a apolínea, e a forma dionisíaca, que seria a forma mais inspirada. Então, de

alguma maneira, pelo menos eu entendo presente dele. Já “Invenção de Eurídice”, assim, esses dois movimentos de inspira- eu devo a Romã Fernandes e Nonato ção e elaboração fazem parte do poema. Gurgel, sendo que a capa deste livro é de Romã. Preá – Então, nada de poema encomendado? Preá – Você aceita críticas, sugestões, no Iracema Macedo – Não sei fazer po- processo de elaboração dos seus livros? ema encomendado. Gostaria de saber. Iracema Macedo – Sou muito receptiNão tenho nada contra, mas não sei fava a críticas e sugestões. Há três pessoas zer. Um dia, quem sabe... que eu concedo que mexam nos meus poemas. São elas: Romã Fernandes, NoPreá – Como você descreveria para nato Gurgel e a poeta Maria Dolores o leitor o seu trabalho de carpintaria Wanderley. Essas três pessoas lêem meus poemas antes de serem publicados. E poética? uma quarta pessoa, especial, é Nei LeanIracema Macedo – Como eu já disdro de Castro, que teve acesso aos meus se, não faço poesia sozinha. Faço poesia poemas e que eu respeito e ouço muito. com os outros. Com todos que estão ao meu redor, com as pessoas com quem eu convivo, com as pessoas com quem eu Preá – Quais os poetas que cabem dentive experiências intensas, com as coisas tro da sua poesia? que me cercam. As próprias coisas conversam entre si e com o poeta. Eu diria Iracema Macedo – Se a gente for penque há vários co-autores do meu trabalho sar em termos de quem me influenciou, poético, pessoas que viveram comigo ri- inicialmente foi Adélia Prado, a ponto tos, amores, sensações, que foram poéti- de no primeiro prêmio que eu participei, cas tanto no sentido do amor quanto no em que ganhei menção honrosa, Paulo sentido da amizade, como no sentido da de Tarso Correia de Melo {poeta} ter contemplação estética. Eu não me sinto feito a seguinte observação: “É visível a uma solitária ao fazer poemas, porque influência de Adélia Prado, mas será que acho que vários temas me foram ofereciela é tão inescapável assim? É preciso esdos por pessoas muito queridas e muito capar dessa influência”. Adélia Prado foi importantes para mim. Vários poemas vieram dessas relações. O maior cúmpli- realmente um marco, no sentido de que ce da minha vida e da minha poesia nos ela esteve em Natal, quando eu tinha 17 últimos onze anos é o Romã Fernandes anos, no projeto Encontro Marcado, e foi ao lado de quem me permito tudo e que a partir desse momento, desse encontro, me inspira muito; ele abre muitas jane- que comecei a produzir poesia de forma las para mim. Faz com que eu aprenda a mais consciente. Eu ainda não tinha lido Adélia Prado. A partir daí, passei a procorrer riscos. duzir poesia intensamente. Então, ela foi o meu momento inicial. Depois dela tive Preá – Como você escolhe os títulos dos muitos outros encontros: Drummond, seus livros? Manuel Bandeira, Jorge de Lima, MuriIracema Macedo – “Lance de Dardos” lo Mendes, sobretudo poesia brasileira, eu devo a Nei Leandro de Castro, foi um incluindo aí a poesia feita por mulheres. Jan/Fev 2006

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Preá – Eu queria que você especificas- Iracema Macedo – Tenho profunda se que poesia é essa, que mulheres são admiração pela produção poética do Rio essas? Grande do Norte e, sem querer defender uma demarcação da literatura feminina, Iracema Macedo – Começaria com acho a sensibilidade das mulheres que esAdélia Prado, Cecília Meireles, Ana C., Hilda Hilst e outras poetas de língua crevem aqui um caso excepcional.

Preá – Do que você gosta na poesia contemporânea brasileira? Iracema Macedo – Hoje em dia o poeta brasileiro vivo que eu mais admiro é Eucanaã Ferraz. A obra dele, que é um jovem poeta, me tocou intensamente.

inglesa: Marianne Moore, Elizabeth Bishop, Sylvia Plath. Toda a literatura Preá – Dos poetas do Rio Grande do Preá – O próprio Nietzsche escreveu escrita por mulheres me interessou e me Norte com quem você tem ou teve uma poemas. Qual a sua relação com a poeinteressa até hoje. relação mais próxima? sia dele? Iracema Macedo – Além da turma Preá – Alguns críticos locais questio- do “Vale Feliz”, eu tenho uma relação nam a força da poesia feminina do Rio boa, desde os vinte e poucos anos de Grande do Norte. Como você vê isso? idade, com Paulo de Tarso Correia de Iracema Macedo – Sei que existe uma Melo, depois tive contato com o pai de polêmica muito grande sobre isso. Eu Eli Celso, Celso da Silveira, Luís Caracho que essas demarcações: literatura los Guimarães, Nei Leandro e Moacy étnica, literatura negra, literatura políti- Cirne e tenho contato também com o ca, literatura feminina são demarcações jovem escritor, Pablo Capistrano, que que resultam em facas de dois gumes. eu admiro muito. Eu não conheci Zila Por um lado elas estimulam uma refle- Mamede nem Myriam Coeli, mas coxão sobre algo que está sendo produzido, nheci o Elí, que era filho da Myriam mas por outro lado elas limitam muito. Coeli, então convivi com ela através do Eu respeito quem trabalha com esses filho. Em relação a Zila, houve um epiconceitos. É importante trabalhar com sódio bonito para mim. No dia que ela isso, uma vez que se estimula alguma morreu, eu estudava na Aliança Francoisa. Mas não gostaria de ser reduzida, cesa e um professor chegou recitando que se reduzisse o meu trabalho apenas à um poema dela, que era a “Canção do Afogado”. Então estava repercutindo literatura feminina. na cidade inteira a notícia da morte dela. Eu tinha uns 15, 16 anos de idade Preá – Você acha que existe uma super- e este foi um momento de convivênvalorização da poesia feminina feita no cia com ela, no momento da morte. Rio Grande do Norte? A partir de então eu procurei conheIracema Macedo – Acho que existe e é cer a obra dela, porque eu era muito muito merecida, porque temos mulheres nova ainda e não conhecia. Das poetas excepcionais nesse Estado, não há como atuais eu tenho uma convivência mais negar. Foi um acaso muito feliz que ti- próxima e afetiva com Ana Paula de vessem nascido aqui tantas mulheres es- Oliveira e Maria Dolores Wanderley, das pessoas que vivem em Natal, com peciais. Carmen Vasconcelos e com Marize Castro, que fez um livro muito lindo Preá – No cenário literário do Rio esse ano {2005}, “Esperado Ouro”, é Grande do Norte quais autores você des- um livro que eu brindo como um dos tacaria? mais belos dela. 76

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Iracema Macedo – Com os poemas eu tenho pouquíssima relação. Não tenho nenhuma influência dos poemas de Nietzsche. Mas como os poemas expressam também o pensamento dele, aí sim a relação é visível. É inevitável que haja de alguma maneira uma presença dele em minha poesia.

Preá – Vários textos críticos sobre a sua obra ressaltam ou o lirismo ou o desejo e o erotismo. A sua poética, de certo modo, sempre foi a do desejo? Iracema Macedo – Sobretudo no início, no despertar da sexualidade, foi muito a poética do desejo. Hoje eu talvez esteja fazendo uma poética menos desejante, mais ponderada, menos apaixonada.

Preá – É possível observar nos seus livros uma evolução que a aproxima de mitos e deuses. Suas primeiras obras quase não têm referências a isso. Iracema Macedo – Isso é plenamente verdadeiro. Houve um momento de desejo, não de desejo apenas em relação ao erotismo, mas um erotismo em sentido amplo, que você vê no primeiro livro, que desvela sensações muito importantes, com coisas simples, como cajueiros, caldeirões de alumínio, coisas que eu vivi quando descobri em 1991 a vila de Ponta Negra como cenário poético.


Esses tipos de experiências estéticas e sensíveis estão muito presentes. Em “Invenção de Eurídice” há como que uma elaboração das experiências, que ficam mascaradas, mais camufladas, talvez mais apolíneas se a gente for pensar em termos nietzscheanos.

Preá – Por que você não usa ponto final nos seus poemas?

Iracema Macedo – Sem dúvida. Talvez a intensidade de paixão menor, que eu reconheço que é nítida em “Invenção de Eurídice” com relação a “Lance de Dardos”, que a meu ver é um livro intensamente apaixonado. “Invenção de Eurídice” é um livro mais sóbrio, mais pensado, mais mascarado, ou seja, essa presença de deuses e mitos, que você fala, na realidade foi uma maneira de filtrar experiências minhas, para não parecerem experiências tão biográficas, e parecerem experiências mais universais. Tentei transcender muito o pessoal em “Invenção de Eurídice” e talvez por isso ele não tenha comovido tanto as pessoas como “Lance de Dardos”. Mas isso é bem relativo, já ouvi muitos leitores dizerem que gostaram muito mais do segundo livro. Eu gosto dos dois, são dois filhos igualmente queridos, cada um com seu ritmo e sua diferença.

Preá – Você hoje é considerada uma das poetas mais importantes do Rio Grande do Norte. Isso mexe, de alguma forma, com a sua vaidade?

Iracema Macedo – Nunca foi intencional, não foi uma proposta estética. Isso aconteceu a partir da coletânea coletiva lançada em 1995. Foi um movimento espontâneo, sem nenhuma pretensão. No entanto, eu acho que não é algo irrelevante deixar de colocar um ponto final, Preá – “Invenção de Eurídice” é tamfaz sentido porque a poesia não tem um bém um livro importante, mas teve uma ponto final. fortuna crítica menor que o “Lance de Dardos”. A que você atribui isso?

Iracema Macedo – Vaidade todo mundo tem. Mas, no sentido mais profano de vaidade, realmente essa é uma experiência que eu não consigo ter muito, não porque eu tenha fugido disso, ou tenha feito um movimento ou alguma coisa para fugir da vaidade. É porque as minhas sensações, minhas experiências de vida, toda a minha história, tanto pela minha educação familiar, sobretudo pela minha educação familiar, nunca me levou para qualquer sentimento de vaidade profana. Eu considero a vaidade um sentimento afirmativo, se ela é produtiva, geradora, se não, é um sentimento que pode ser infrutífero e afastar as pessoas de você.

Preá – Quais autores você lê sempre? Preá – O professor e pesquisador de literatura Nonato Gurgel diz que a sua poesia celebra uma estetização da existência. Você concorda com essa afirmação?

Iracema Macedo – Sobretudo os autores brasileiros ou de língua portuguesa. Não por nenhum nacionalismo, mas simplesmente pela questão da língua, Iracema Macedo – Plenamente. Tento por ser a língua em que escrevo. Como apresentar uma estetização da existência, já disse um dos maiores poetas de língua portuguesa: “a pátria é minha língua”. na dor, na alegria, na intensidade, no amor, no desamor, Enfim, em todas as Preá – Como você vê o trabalho da suas instâncias. crítica? Jan/Fev 2006

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Iracema Macedo – Eu não tenho do que me queixar da crítica, porque eu sei que tudo é muito difícil. Conseguir uma crítica, ser aceito como verdadeiro poeta, conseguir ser reconhecido, tudo isso é resultado de um trabalho muito grande. Nós estamos em um país em que a cultura, infelizmente, não é a prioridade, a gente sabe disso. Não tenho nem muita ilusão a respeito disso, nem muita decepção. Acho que nesse ponto a gente tem que ser realista.

zer tudo, uma vez que ela já é linguagem e nem tudo no mundo é decifrável por palavras. Há também um território insondável, que nem a poesia consegue pressentir.

Preá – Qual é o território da Filosofia? Iracema Macedo – O território da Filosofia, a meu ver, é o território do sondável.Que pode ser pensado. O território da poesia é um território que vai além do que pode ser pensado.

Preá – O que é que sendo humano ainda é capaz de lhe causar espanto? Iracema Macedo – Se eu disser que não me espanto mais seria terrível, mas chegou um momento em que, apesar da curta vida que eu vivi, tem coisas que não me surpreendem, eu acho que tudo é possível. Acredito cada vez mais em milagres, surpresas e mistérios.

Preá – É possível ser feliz depois de perdida a inocência?

Preá – Como a Filosofia entra na sua poesia? Iracema Macedo – A Filosofia entra na minha poesia da mesma forma que todas as outras coisas entram, como inspiração. Eu diria que a poesia é uma pitada essencial no meu trabalho filosófico. Há muito mais poesia na filosofia que eu faço do que, conscientemente, filosofia na poesia que eu escrevo. Por exemplo, na minha experiência de professora eu sinto que estou tentando ser uma professora poética também, é uma maneira que eu tenho de conciliar as duas coisas.

Preá – Em um mundo tomado por guerras, terrorismo, fome... ainda há lugar para a poesia neste mundo? Para que serve a poesia? Iracema Macedo – Essa pergunta é feita para muitos poetas. Eu ouço essa pergunta, por exemplo, no documentário sobre Leminski. Ele respondeu: “Mas então para que serve o orgasmo?”. Eu ouvi essa pergunta sendo feita para Marina Colassanti e ela disse: “Eu não quero essa pergunta, essa pergunta é doente, é uma pergunta de uma sociedade doente”. Só sabe para que serve a poesia quem é poeta, quem lê poesia, quem ama poesia, quem escreve poesia. Ou seja, os leitores e os autores.

Preá – O verso ou a prosa? Iracema Macedo – O verso é mais próximo de mim, eu não consigo me exprimir em prosa como consigo em verso. Não digo que para todo mundo, mas para mim, inevitavelmente é o verso.

Preá – O que é necessário para ser poIracema Macedo – É sempre possível eta? A pessoa já nasce poeta ou aprende restaurar a inocência. Então, é possível a ser poeta? ser feliz restaurando a inocência. Agora há muitas controvérsias sobre a noção de Iracema Macedo – Comigo foram felicidade, sobre o que é realmente ser decisivos os cadernos da minha mãe, a feliz. Sou sacerdotisa da alegria, mas não coisa foi acontecendo, eu começando a acredito em vida plena sem dor e sem Preá – Qual é a maior de todas as ar- escrever com doze anos. Mas, como uma saudade, por exemplo. tes? criança com doze anos, pré-adolescente, Iracema Macedo – Essa é uma respos- pode dizer que escolheu? Não escolheu, aconteceu, veio. O caminho é pesado, Preá – Há coisas existentes entre céu ta que pode variar de tempos em tempos alguma força se apodera de você. Agoe terra que a Filosofia não pressente. A na vida de cada um. Neste momento, ra, depois que a força se apodera, então neste ano de 2005, para mim a maior poesia é capaz de pressentir? vamos lapidá-la. Claro, não acredito em de todas as artes é a música. Em 2005 Iracema Macedo – Eu vejo que a espontaneidade. Há uma força que se poesia consegue ir muito mais além da eu ouvi intensamente música, cheguei apodera de você e você não pode mais Filosofia. A Literatura está intensamen- ao êxtase musical. Esse ano me marcou fugir dela, porque ela tomou conta do te mais à frente da Filosofia nesse sen- pela música. Então, em 2005 diria que seu ser e chega um momento de lucitido, porque navega pelo território do a arte mais importante foi a música, mas dez, de maturidade que pode acontecer inconsciente, do mistério, da escuridão. talvez em outro momento, eu dissesse a cada um em idades diferentes; então é necessário lapidar essa força, essa energia Mas ainda assim, a poesia não pode di- outra coisa. 78

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que está tomando conta do seu corpo. Eu não teria receita nenhuma, assim como na minha vida não tenho receita nenhuma. Preá – O mar ou a montanha? Iracema Macedo – Eu saí de Natal há quatro anos, num movimento que foi literalmente uma fuga. Fugi do mar para a montanha e a montanha me acolheu. Digamos que vivi intensamente o mar, vivi a ponto de ter contato direto com o mar, praticamente todos os dias, um contato religioso. Chegou um momento em que precisei me afastar. Para falar em termos de metáfora, era como se o mar estivesse exigindo de mim mais do que eu poderia dar. Eu tinha que me salvar. Fui embora. E a montanha me acolheu. Agora, eu me sinto plenamente salva e posso voltar com toda tranqüilidade. Então, eu fico com os dois, o mar e a montanha. São duas plenitudes, duas fontes de força para mim, duas necessidades minhas.

Preá – Existe a possibilidade de você retornar a Natal? Isso está nos seus planos? Iracema Macedo – Claro que sim. Mas é como diz Cazuza, “o seu futuro é duvidoso”. O meu futuro é completamente duvidoso. Também aprendi a conviver com a dúvida, aliás, se eu não soubesse conviver com a dúvida não teria escolhido o caminho profissional da Filosofia. Eu aceito a dúvida, convivo com a dúvida, quero a dúvida e eu vou continuar com a dúvida como minha sombra e minha luz. Eu nunca planejei morar em Minas, foi algo assim meio que do destino. Se eu tiver de voltar, também será uma decisão do destino. Mas nenhuma cigana me disse nada até agora.

Preá – Você está produzindo algum novo livro? Iracema Macedo – Estou vivendo um dos melhores momentos na minha vida profissional, vou lançar o livro “Nietzs-

che, Wagner e a época trágica dos gregos”, em 2006, pela editora Annablume e lancei um livro de poemas no ano passado. O próximo nascerá quando for o tempo dele. Estou passando por um momento de menos intensidade das paixões, estou muito cautelosa e eu não sou uma pessoa cerebral. Gostaria de ser, seria ótimo se eu fosse, mas eu não sou. Meu sonho é chegar a uma certa maturidade contemplativa. Talvez eu chegue a essa maturidade algum dia. Tenho esse desejo. Por enquanto, preciso viver intensamente o que escrevo e de alguma maneira tive necessidade de uma racionalização das coisas que estavam acontecendo comigo. Não significa que eu não vá me arriscar de novo, mas eu preciso estar no momento propício, com âncoras, com segurança. Quando eu escrevi os poemas de “Lance de Dardos” eu não tinha as responsabilidades que tenho hoje, eu estava literalmente numa vida muito “mansa”, sem muito trabalho, então eu pude viver e escrever plenamente os poemas de “Lance de Dardos”. Hoje em dia, eu não posso viver certas coisas, que me inspirariam fortemente, porque simplesmente eu tenho que dar aula no outro dia, tenho compromissos sérios no outro dia e por incrível que pareça, eu sinto na pele uma antinomia entre a vida séria e a vida poética. Pretendo superar isso e conciliar melhor os dois mundos, mas descobri que isso foi um conflito até para o grande e fantástico Goethe, foi um conflito também para Sylvia Plath, quanto mais para uma mera professora brasileira que precisa ganhar o pão com o suor do trabalho. Fazer um pacto com a poesia é fazer um pacto com o perigo. Platão que o diga. Os poetas são extremamente perigosos. Se algum poeta atravessar sua vida, tome muito cuidado. Eu, por exemplo, tenho que ter muito cuidado com uma certa poeta que vive dentro de mim. Jan/Fev 2006

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Sテグ MIGUEL DO GOSTOSO Na rota da expediテァテ」o de Gaspar de Lemos

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David Clemente Fotos: Anchieta Xavier

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primeiro chegou ao Brasil. Em seus dois últimos livros Ainda a questão do Descobrimento e Reinvenção do Descobrimento, afirma ser impossível chegar ao Sul da Bahia em 40 dias navegando contra ventos e correntes marítimas. Municiado de provas, aponta que as armas do brasão português que estão talhadas no marco de pedra que serviu de altar à primeira missa, segundo a descrição de Caminha, são as mesmas que estão no marco em exposição na Fortaleza dos Reis Magos.

ocalizado a 100 km de Natal, na “esquina do continente” onde, para a alegria dos praticantes de Windsurfe e Kite surfe, o vento faz a curva, São Miguel do Gostoso tem população estima- Os padrões, que são marcos trabalhados em pedra, foram criados da pelo Instituto Brasileiro de Geografia por Diogo Cão em sua primeira viagem ao continente africano e Estatística (IBGE) em 8.600 pessoas. com a finalidade de substituir as cruzes de madeira. Lenine PinCada um o chama como prefere. Alguns to revela em seus livros, que a costa norte do RN já era utilizada de São Miguel, outros apenas de Gosto- antes do descobrimento do Brasil como local de abastecimento so e no site do IBGE está a denominação dos navios que se destinavam à Índia – uma pista extra-oficial de São Miguel de Touros. A última no- da presença portuguesa em terras brasileiras antes de 22 de abril menclatura é dada porque Gostoso era de 1500. distrito do município de Touros. Quando emancipou-se, há quase nove anos, a cidade adotou o apelido nada modesto e vem fazendo jus a ele. Sua população vive da pesca, agricultura e turismo.

A prova está na existência do marco talhado em pedra lioz, o mármore de Lisboa, tendo o primeiro terço a cruz da Ordem de Cristo, em relevo, e abaixo as armas do Rei de Portugal, originalmente chantado na divisa dos municípios de São Miguel e Pedra Grande. No livro Reinvenção do Descobrimento, Lenine defende O município também inscreveu o seu que o Monte Pascoal que Cabral viu das caravelas, no litoral da nome na História do Rio Grande do Bahia, seria na verdade o pico do Cabugi, localizado entre os Norte para sempre. Foi lá, na Praia do municípios de Lajes e Angicos, no Rio Grande do Norte. Marco, que a expedição portuguesa de Gaspar de Lemos, em 1501, chantou o Marco Colonial do Brasil. Atualmente, o Marco está guardado no Forte dos Reis Magos, em Natal. Mas, há quem tenha outra versão, bem diferente, para a história do Marco. O escritor norte-rio-grandense Lenine Pinto, com base em pesquisas históricas, defende que foi em São Miguel do Gostoso onde a frota de Pedro Álvares Cabral

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bastante. Mudou-se de João Câmara para Natal e já passou pelos Estados de Goiás e Rio de Janeiro. No último, fez um curso de arte culinária para registrar no seu currículo. Com novos convites para cozinhar, ainda passou pelo Uruguai e pela Argentina. Em São Miguel do Gostoso ela chegou com o marido francês, Daniel Santiago, 57 anos, em procura de tranqüilidade. “Escolhi o paraíso para morar”, diz Fátima.

“Escolhi o paraíso para morar” Numa casa com sete gatos adultos e cinco filhotes, dois cachorros, um coelho e muitas plantas, mora Maria de Fátima Adelino, 45 anos, mais conhecida como Fátima Artesã. Ela nasceu em João Câmara-RN, onde quando era criança, brincava de fazer panela de barro com sua avó. Tomou gosto pelo que suas mãos poderiam moldar e começou a produzir animais da sua região como burrinhos e vacas. Aos poucos a sua criatividade ganhou as mais variadas formas. Até os quadros que produz não são pintados, são esculpidos, estatuetas rodeadas por uma moldura. No pequenino ateliê montado na varanda da sua casa, onde um dos gatos descansava despreocupadamente sobre a mesa de trabalho, se misturam as matérias-primas como cabaças, cuités, cordas, cocos e pedaços de chita. É lá que Fátima Artesã cria cerca de 50 peças por mês. “Tudo que faço é com amor”, afirma. E vende, principalmente, de duas formas: como ambulante na praia de Ponta Negra, em Natal, e como exportadora, através da filha que mora na Itália. Mas moldar não é a única habilidade que Fátima tem. Deixando a modéstia à parte, ela conta que cozinha muito bem e por causa dos seus dotes culinários já viajou

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Tudo vira arte pelas mãos de Elvira Artesã Na fachada da casa simples, uma placa pintada à mão anuncia que ali mora Elvira (Néri) Artesã. A ex-dona-de-casa de 40 anos de idade aprendeu a fazer seu artesanato no ano 2000. Segundo a artista, natural de Gostoso, uma cooperativa chegou à cidade e formou um grupo de 17 alunos interessados em aprender aquela arte. Ela foi a única a persistir no aprendizado. Suas obras são quase todas produzidas a partir de materiais naturais, encontrados em Gostoso. Fibras de coqueiro e pequenas conchas do mar são os principais, que se transformam em bolsas, abajures e outras luminárias, cortinas e várias formas decorativas, que


Elvira põe à venda em lojas da própria cidade onde mora. Ela conta que em 2003 foi convidada para mostrar seu trabalho na França, numa feira de artesanato, mas preferiu mandar apenas as peças. Conversando com a artesã é fácil notar o quanto sua simplicidade é forte. Provavelmente o ingrediente principal para garantir o toque rústico à sua arte.

Sem enfado para tocar forró Quando nasceu, em 1945, o filho de Francisco Cândido recebeu o nome de José Cândido da Silva. Em pouco tempo ganhou o apelido de Dedé de Chico Cândido, como é mais conhecido. O apelido, que foi adotado como nome artístico, tem o adjetivo “cândido” por causa do nome próprio do pai. Mas já nos primeiros cinco minutos de conversa com Dedé, fica a impressão de que a palavra caracteriza sua simplicidade e timidez. O sanfoneiro, com 43 anos de música, economiza muito nas palavras para falar, mas para tocar sanfona não tem enfado. Seu primeiro instrumento foi de 80 baixos, que ele comprou sem saber tocar, juntando seu sacrificado dinheiro ganho no roçado e na feira. Dedé

tinha 18 anos e diz que não teve professor: “O dom foi Deus quem me deu”, conta o sanfoneiro, que não sabe ler partituras e da língua portuguesa assina somente seu nome. Para aprender a manusear o instrumento, Dedé usa a audição e a concentração. “Toco de ouvido”, conta ele, para explicar que primeiro escuta a melodia depois a reproduz com a sanfona. No comecinho de tudo, sua família era a principal platéia, depois estendeu para os amigos e diz que “agora a vergonha desapareceu mais”. Tanto que já tocou em Ponta Negra e aceita convites para tocar em festas. Entre as músicas preferidas pelo sanfoneiro estão os forrós de Luiz Gonzaga. Seu público sempre pede “as mais antigas”. E mesmo cândido como Dedé aparenta ser, se estiver com o domínio da sanfona, o forró se sobressai.

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A “ministra do lixo da ordem praieira” O que levaria uma pessoa a deixar seu país de origem, passar a morar numa cidade onde não conhecia ninguém e se envolver com os problemas do lugar para ajudar? A enfermeira Ana Rabul, 60 anos, suíça dos Alpes, descreve sua ação como cidadania. Ela está no Brasil há 16 anos e durante todo esse tempo mantém residência em São Miguel do Gostoso. Ela procurava um trabalho de campo que envolvesse o lazer das pessoas e escolheu Gostoso porque era onde um irmão seu possuía uma casa. Antes de morar definitivamente, ficou cerca de oito meses conhecendo o local, a cultura, as doenças e como eram tratadas. Depois começou a prestar serviço que, por sinal, é celebrado por todos na cidade. Ela não precisou descrever o que fez para mudar a cultura de tratamento do lixo doméstico. Os próprios moradores, ao ouvirem o nome de Ana Rabul, começam a falar imediatamente o que ela ensinou. O trabalho, que deu à enfermeira o título de “Ministra do Lixo da Ordem Praieira” começou quando Ana visitava casa por casa, abria o lixo e mostrava para os moradores como aquele depósito de restos poderia prejudicar a qualidade de vida. Aos poucos, a cidade aceitou seus conselhos. Hoje em dia é fácil de perceber isso, basta notar a grande quantidade de lixeiras que há espalhadas pelas ruas. As praias também são muito limpas e o bom aspecto da areia é graças aos mutirões de limpeza regulares.

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Resgates da cultura e cidadania

Mas não só na área de ecologia Ana contribuiu para a melhoria de São Miguel do Gostoso. Apesar de ser estrangeira, ela ajudou a estimular a preservação folclórica do lugar. Ana Rabul, Francisca Gomes Pinheiro - mais conhecida como Nenê - e Rubens de Oliveira sempre estiveram à frente da Associação Sociocultural e Desportiva Gostosense – ASDEG. Os três começaram sozinhos abordando os moradores, buscando patrocínio e trabalhando para que a cultura de Gostoso não se resumisse a receber turistas. Agora, a Associação tem apoio da prefeitura e de Organizações NãoGovernamentais estrangeiras. O primeiro grupo que nasceu foi um Bumbameu-boi. Assim como o Boi-de-reis, a ASDEG trabalha em favor de grupos de Pastoril, Capelinha, Papangus, Coco-de-roda, Capoeira, Futebol e da Banda de Música Cecília Gomes. Graças a esse trabalho, a cidade realiza em agosto uma Semana do Folclore.

os adultos também. O grupo de Boi-de-reis é todo composto por adultos que estudam. Os integrantes do Boi-de-reis relatam que aprenderam a tradicional dança ensinada pelos pais. O pescador Luiz Tenório, 64 anos, e o agricultor Eusébio Idalino, 75 anos, foram quem confeccionaram a roupa do Bumba-meu-boi. Levaram cinco dias, se revezando, para montar o boneco. E falam com prazer sobre sua apresentação: “É só alegria, é bonito, agrada a quem assiste e faz bem ao coração”. Apesar de os projetos estarem funcionando bem, seus idealizadores lamentam a falta de estrutura financeira para os grupos, pois gostariam de ter ajuda que financiasse instrutores. “O grupo de Boi-de-reis, por exemplo, é quase todo formado por idosos que estão ficando cansados. Um instrutor ajudaria a formar um grupo de menor idade”, argumentam Ana, Nenê e Rubens. Para a banda, a ajuda poderia vir como investimento na aquisição e manutenção dos equipamentos. Bolsas de estudo para músicos que se destacassem também seriam bem-vindas. E por falar em destaque, na Banda de Música Cecília Gomes isso é comum. Sete dos seus alunos já tocam em bandas profissionais. Como é o caso de Maicon Nascimento, 17 anos, da Banda Arrocha o Nó e Welington França, 19 anos, que é membro da Banda Substância Zero.

O trabalho da ASDEG não só ajuda a preservar a cultura popular de São Miguel do Gostoso e movimentar o calendário cultural, como também inibe a violência no campo e incentiva a freqüência escolar. “Havia meninos que eram rebeldes. Agora são atletas. Ocupar o tempo livre com lazer é muito importante”, destaca Nenê. E não só as crianças são o público-alvo,

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Culinária ganha prêmios nacionais Tudo em São Miguel é gostoso. Os habitantes poderiam ser gostosenses, mas se apresentam como “gostosos”. Lá tem mercadinho Hiper Gostoso, Farmácia Gostosa, Padaria Gostosa, Pousada do Gostoso e uma culinária deliciosa. A gastronomia de Gostoso é conhecida em A música chega ao assentamento todo o país, sobretudo por ter recebido Considerando que os cidadãos gostosenses não estão apenas na cidade de São Mi- seguidas vezes a estrela de indicação da guel, mas também nos distritos e arredores, viajamos 12 quilômetros por uma es- revista Quatro Rodas. trada de barro, com muita poeira, para chegar até ao assentamento Antônio ConseO responsável pela estrela chama-se Leolheiro. Era o 12º dia de fevereiro, domingo, e primeiro dia de aula de música para os nardo Godoy Vasconcelos, 65 anos, “najovens da comunidade. O encontro com os 32 alunos recém-inscritos é um exemplo talense e potiguar papa-jerimum”, como do que faz o Projeto Manga Rosa de educação pela música, ligado à ASDEG. ele mesmo diz. Morou na capital do O professor de música Gabriel Ribeiro, 47 anos, visitará o assentamento três vezes Estado até seus 18 anos, onde estudou por mês, sempre nos fins de semana, para as aulas. Ele ensinará os jovens a tocarem Engenharia Mecânica na Escola Técnica violão, flauta, percussão e canto em coral. Todos com instrumentos cedidos pelo (antiga ETFRN, atual CEFET) e resolprojeto. “Dependendo do interesse de cada um, em três meses eles estarão aptos e veu “tentar a vida” na capital de São Pauem quatro anos estarão com o domínio do instrumento”, prevê Gabriel. lo. Na terra da garoa ele ficou por dois O professor também relata que em Tabua, distrito de São Miguel do Gostoso, o anos apenas. Voltou a subir o país nas mesmo projeto tem bons resultados. A turma começou com 13 alunos, dos quais férias e aportou em Salvador-BA, onde quatro já tocam de ouvido e ele começa a inserir partituras. O grupo já recebeu a logo conseguiu uma proposta de emprevisita do regente da Orquestra Sinfônica da Universidade Federal de Minas Gerais, go como gerente de uma concessionária o maestro Eduardo Ribeiro. Ford. O prazo, que seria de 15 dias, du-

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chegou pela beira mar de buggy, encantou-se com a enseada, comprou um lote do terreno e decidiu contruir a Pousada do Gostoso. Segundo Godoy, na época que ele se instalou em São Miguel do Gostoso não havia sequer onde comprar prego. Mas o esforço valeu a pena. Depois de cinco anos a cozinha da Pousada foi descoberta pela revista Quatro Rodas e ficou pelos seis anos seguintes recebendo a renovação do mérito.

rou nada menos que 28 anos. Período esse em que ele concluiu a faculdade de Engenharia Mecânica e montou seu próprio negócio, a Motorphine.

era o mar e o meio de transporte era um veleiro. A aventura de Leonardo Godoy durou três meses. Ele fazia parte da muito resumida tripulação que levou um casal de holandeses para o outro lado do Atlântico. Nesse tempo, ele gastou sua inquietude testando receitas culinárias. “Não tinha restaurante na esquina e eu tinha que misturar as frutas e as sobras para fazer as refeições”. Dessas misturas surgiu o “Peixe à moda do pescador”, o “peixe com manga” e o premiado “arroz de polvo”.

A idéia inicial era que o empreendimento comercializasse peças e equipamentos para carros. Mas conheceu amigos possuidores de barcos que, eventualmente, pediam para fazer um reparo. Resistiu ao mar por um tempo, mas quando se rendeu foi de vez: “Nunca havia velejado. Aí um amigo me chamou para andar de barco e eu comprei o barco no mesmo dia do passeio”, conta Godoy, que aprendeu Leonardo Godoy chegou a São Miguel a cozinhar depois de uma viagem maríti- do Gostoso em 1986, que na época ma. O destino era a Europa, o caminho ainda pertencia a Touros. Ele conta que

Em 1998, Leonardo decidiu que era hora de mudar de ramo, pois buscava menos preocupações. Vendeu a Pousada e abriu um restaurante na beira da praia. Decorado com nós de marinheiro e considerado um influenciador do cardápio local, o restaurante foi batizado de Brisa do Mar. Sua esposa Creuza Ribeiro, 34 anos, gostosense, o ajuda o cozinhar. Mas quando o prato chega à mesa qualquer um fica em dúvida se é melhor apreciar a vista do mar ou o sabor da refeição.

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O cachacista que recita Augusto dos Anjos Antes de chegar de fato à cidade de São Miguel do Gostoso, é preciso atenção para as atrações preliminares. As dunas, as lagoas que ladeiam a estrada, a vegetação quase virgem... Já na areia da costa, uma pedra enorme e imponente se destaca. É a chamada “Pedra do Cabaço”, que fica em frente a uma pousada de nome também sugestivo: Enseada dos Amores. Para explicar o porquê do nome da pedra, Michele Tinôco, a proprietária da pousada, explica educadamente que muitos amores nasceram naquela pedra. Mais uma boa razão para um monumento natural da praia de Gostoso. Ao lado dali, uma placa convida para conhecer outro estabelecimento comercial. É a Urca do Tubarão. Poderia ser apenas mais um bar dentre muitos, com cadeiras de plástico e um som que tocasse qualquer música que seus clientes pedissem. Mas a Urca do Tubarão é uma cachaçaria absolutamente irreverente. A começar pelo proprietário Edson Oliveira, 40 anos, dono do título de “Ministro da Cachaça”. Ele já recebe seus clientes recitando poesias de Augusto dos Anjos e aos poucos apresenta cada um dos apetrechos decorativos do lugar. Tem a “bichada” que é

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uma enxada com um cabo que se bifurca (semelhante à forma de estilingue) com metal nas duas pontas para arar a terra em dois lugares ao mesmo tempo. Há também a “cesta básica etílica” que é um caixote repleto de garrafas de cachaça antigas não abertas; o “martelo português” com um cabo e duas extremidades vizinhas de metal. “Tem gente que quando vai martelar sempre bate no dedo primeiro e depois no prego. Com esse martelo dá para atingir os dois ao mesmo tempo. Ou seja, é mais prático”, explica Edson. Ele ainda apresenta mais criações: “tem bar que oferece carta de vinhos. Aqui nós não temos carta, nem e-mail de vinho e nem bilhete de vinho. Nós temos é mala direta”, fala apresentando uma antiga mala de madeira que ele usa como ade-ga. Por toda a cachaçaria há peças engraçadas, curiosas e muitas antigas. Das quais apenas 20% foram compradas, o restante ele achou no lixo ou chegou como presente. A mais antiga é uma bala de canhão que ele comprou numa sucata


por três reais. A geladeira que funciona a querosene “se for nova, tem 67 anos”, diz Edson. O “telefone portátil” é um aparelho tão antigo que não tem disco com os números e, quando funcionava, efetuava ligações por uma manivela. Do “baú de lançamentos” ele tira um vinil de Emilinha Borba e diz brincando que é a nova parceira musical de Sandy, depois mostra um disco de Nelson Ned dizendo que é do tempo em que o cantor era pequeno. O detalhe é que na Urca do Tubarão só se toca vinil. “Uma vez veio um cliente pedindo para tocar Zezo. Eu disse que tocaria desde que fosse em vinil. Ele perguntou o que era vinil. Se ele não sabe o que é vinil, imagine música boa”, conta o inusitado empresário, que coleciona cerca de 1.200 discos. “Recebi de uma só vez uma encomenda de 40 kg de discos de música clássica”. Quando se aproxima da pilha de barris que ele cuida com esmero, colhe um pouco de cachaça na concha da mão e esfrega no braço dele e de cada um de nossa equipe. “Espere secar”, pede. Enquanto isso explica os princípios para se identificar e apreciar uma boa dose da bebida. Primeiro coloque-a num copo, aguarde fazer uma marca, preste atenção na cor, cheire fazendo movimentos circulares com o copo e deguste aos poucos. “Os dois princípios básicos são não ter pressa para fazer, nem para tomar. A

boa desce suave”. Quando o braço seca, a ordem é para cheirá-lo. Surpresa. Exala um cheiro bom de mel de rapadura e o braço não fica pegajoso. O Ministro da Cachaça não produz a bebida que vende. Seu fornecedor é o engenho Olho D’água, que passa para a Urca do Tubarão o líquido recém-preparado. Com o conhecimento que Edson adquiriu quando cursava faculdade de Química, ele dá tratamento próprio à cachaça que posteriormente recebe o rótulo com o nome Urca do Tubarão. O bar que ainda completará seis anos já recebeu a visita de Luiz Carlos Prestes Filho e de um embaixador da Bulgária que elogiou dizendo que um lugar como aquele poderia ser indicado até para um rei. Também tem público fiel que sempre lota o estabelecimento em datas como o carnaval e o Dia da Poesia, 14 de março. Edson e sua esposa Lila também costumam organizar exposições de artistas plásticos, saraus e apresentações de cantores ao vivo. “Quando trazemos músicos, deixamos o cantor tocar letras de sua autoria ou o que ele gosta”, esclarece Edson.

cebendo o empresário por ter, segundo ele, mais infra-estrutura, mais beleza e ser mais perto de Natal, onde seu filho Pedro Carvalho, 19 anos, cursa Administração na UFRN. Mesmo assim Edson não descarta a possibilidade de mudar-se. Nas previsões que ele faz, em dez anos Gostoso estará muito movimentado turisticamente e ele deseja morar num lugar calmo. Seu plano é que seu filho Pedro fique gerindo a Urca do Tubarão e ele possa abrir outro estabelecimento onde haja calmaria. Entre uma dose e outra, um verso de Augusto dos Anjos e outro, ele tem respostas para tudo. Quando oferece cachaça prefere que aceitem. Dizer que se está trabalhando é um bom motivo para ouvir: “aqui você está fora da área de serviço ou temporariamente desligado. Pode beber que aqui você não pega”. E quando questionado por que algumas garrafas do seu bar têm o pescoço torto, ele responde que “as garrafas não estão tortas, você é que já bebeu”.

O nome do estabelecimento é Urca do Tubarão porque funcionaria nas redondezas da cidade de Macau. Mais precisamente no distrito de Diogo Lopes, onde existe um lugar com o mesmo nome. Mas São Miguel do Gostoso acabou re-

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nomes desses circos que apareciam esporadicamente em Santana do Matos, minha cidade. Mas, não tenho dúvidas, deviam ter nomes tão bonitos e pomposos como Saturno.

Ao contrário do que muitos imaginavam (eu, inclusive) existe vida inteligente e cultural na maioria dos municípios do RN. E foi a série de reportagens que a PREÁ fez desde a sua criação que me mostrou isso. Jamais a nossa equipe retornou de uma das viagens ao interior sem boas histórias para contar. Relatos de luta, resistência, e exemplares do que pode ser feito, muitas vezes contra tudo e todos. O que tenho observado é que não existe uma relação automática entre o tamanho ou a riqueza econômica do município e sua força cultural. Aqui e ali municípios pequenos e jovens nos surpreendem. E outros, grandes, de que esperávamos muito, nos deixam frustrados. Por exemplo, eu jamais apostaria que Umarizal tivesse uma diversidade cultural tão grande, com atividades que vão do cordel ao rock, passando pelos quadrinhos e quadrilha estilizada. Quem morou no interior até o final dos anos setenta, deve ter boas recordações dos circos que visitavam as cidades uma vez ou outra. Movido por essa nostalgia escrevi a reportagem sobre o Saturno. Foi legal constatar que quase tudo continua igual. Eu ainda alcancei o palhaço de perna de pau que saía pela rua anunciando o espetáculo e os dramas encenados, duas atrações que não resistiram ao tempo. Infelizmente não guardei os 90

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Todos os anos, geralmente em dezembro, a poeta Iracema Macedo passa alguns dias de férias em Natal, revendo amigos e familiares. Sabendo disso, entrei em contato com ela, por e-mail, e marquei a entrevista desta edição, que contou com ajuda da também poeta Carmen Vasconcelos, nossa amiga comum. A entrevista foi feita numa noite calorenta de dezembro na casa de Carmen e teve momentos bem descontraídos. Na entrevista o leitor fica conhecendo o pensamento e a trajetória da poeta, mas tenho dúvida se a entrevista passa a grandeza humana, ancorada na generosidade, humildade e no caráter, desta grande poeta potiguar. Na dúvida, fica o meu testemunho pessoal disso. A reportagem sobre o “Pessoal do Tarará” deveria ser publicada junto com a de Mossoró, na edição passada. Mas enfrentamos dificuldades devido ao volume de material produzido (o maior, entre os municípios, até agora) e decidimos guardar para esta edição. Acertei com Elí Celso que publicaria os poemas dele nesta edição porque saíram com erros no livro “15 Poetas do RN”, que reúne os poemas vencedores do Concurso de Poesia Luís Carlos Guimarães, da FJA, coordenado por mim. Ele havia sugerido uma errata, mas como a edição, de mil livros, já tinha sido quase toda distribuída, eu propus - e ele aceitou - publicar os poemas na PREÁ. Não foi a solução ideal, mas a possível, levando-se em conta as circunstâncias. Minhas desculpas, públicas, ao poeta.

Com o texto de Nei Leandro, iniciamos as homenagens aos 50 anos de publicação de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Na minha opinião, o livro mais importante da literatura brasileira. A PREÁ sofreu a sua primeira baixa desde que foi criada há três anos. O editor-assistente Gustavo Porpino, aprovado em concurso público, se mudou para Brasília, onde atuará como jornalista na Embrapa. Sobre a competência e profissionalismo de Gustavo, não falarei nada. Seria chover no molhado. As reportagens que ele escreveu ao longo dos últimos três anos falam por si, quem tiver alguma dúvida é só consultar todas as edições. Gostaria de ressaltar e dá o meu testemunho sobre o caráter, honestidade e lealdade de Gustavo. Em três anos de convivência diária, pude conhecê-lo melhor e desconheço qualquer ato dele que não seja ético e honrado. Foi uma convivência enriquecedora, baseada na honestidade de propósitos e amizade, que se foi consolidando com o tempo. Numa equipe pequena como a nossa, uma perda dessa dimensão, não deixa de abalar. Mas não podemos desanimar, as velas estão içadas e com ou sem vento é preciso ir em frente. No lugar de Gustavo entrou Sérgio Vilar, em quem eu levo muita fé. Sérgio já vinha fazendo reportagens e artigos e acompanhou Gustavo em algumas viagens pelo interior do Estado. Tem a mesma índole boa do grande Gustavo. Boa sorte para ambos!

Até a próxima!


3 ANOS FAZENDO O RIO GRANDE DO NORTE MELHOR


O Rio Grande do Norte tá melhor

Prestando contas Este encarte da PREÁ é um informativo das nossas ações à frente da Fundação José Augusto, nestes três anos do Governo Wilma de Faria. Seria uma injustiça negar que sem a decisão política da Governadora este trabalho não poderia ser mostrado. Criação do Programa Casas de Cultura Popular, com 14 em funcionamento, 12 em obras avançadas e mais 14 que serão edificadas até o final do ano. Num total de 40 Casas de Cultura, espalhadas pelo interior do Estado. Ação que não tem comparação nem similaridade com nenhum outro trabalho, na área de cultura, realizado por qualquer outro Governo, na História do Rio Grande do Norte. Edição da Revista PREÁ, que por ela mesma já se divulga e se define. Basta ler a quantidade e qualidade de cartas recebidas do Brasil e do exterior. Recuperação dos equipamentos da Fortaleza dos Reis Magos, com ampliação do acesso e conservação. Devolução da Cidade da Criança às crianças de Natal, além do projeto de sua recuperação definitiva. Reestruturação da Orquestra Sinfônica e do Coral Canto do Povo, com abertura de concursos públicos. Recuperação do Memorial Monsenhor Expedito, em São Paulo do Potengi; Restauração do Museu do Capitão Antas, em Pedro Avelino; recuperação da Gráfica Manimbu, em Natal. Consolidação do Projeto Seis e Meia e do Concurso de Poesia Luís Carlos Guimarães. Realização do concurso nacional de arquitetura para escolha do projeto do Teatro de Natal. Elaboração de projetos para reestruturação do Instituto de Música Waldemar de Almeida e do Caldeirão da Cultura, no prédio onde funciona a Penitenciária João Chaves, na Zona Norte de Natal. Criação e edificação do Teatro de Cultura Popular, com espaços para oficinas e galerias. Restauração do Teatro Alberto Maranhão; Restauração do Teatro Lauro Monte Filho, em Mossoró, e Adjuto Dias, em Caicó; Restauração do prédio-sede da Fundação José Augusto, com a criação do Auditório Franco Jasiello, Galeria Newton Navarro e Espaço Cultural Odilon Ribeiro Coutinho. Reequipamento das salas, com condições dignas de trabalho para os servidores da casa. Praça Emmanuel Bezerra, Largo Jornalista Ubirajara Macedo e Praça do TCP Olavo de Medeiros Filho. Não está tudo neste resumo. Você, caro leitor, verá mais no próprio encarte que esta PREÁ lhe oferece. Testemunhe o nosso trabalho e não permita que ele seja interrompido pelo medo da comparação, que é filhote da inveja.

Com o nosso abraço amigo, François Silvestre de Alencar Presidente da Fundação José Augusto


Casas de Cultura Casa de Cultura Popular de Parelhas

Casa de Cultura Popular de Martins

O Governo do Estado, através da FJA, investiu R$ 2 milhões 289 mil para construir treze Casas de Cultura Popular no interior do RN. Outras 27 serão entregues até o final do ano, num programa inédito e original de interiorização da cultura

Casa de Cultura Popular de Santa Cruz

- Criação do Programa Casas de Cultura Popular - Edição da revista PREÁ - Recuperação da Fortaleza dos Reis Magos - Recuperação da Cidade da Criança - Recuperação do Memorial Monsenhor Expedito, em São Paulo do Potengi - Reestruturação da Orquestra Sinfônica e do Coral Canto do Povo, com realização de concursos públicos - Recuperação do Centro de Formação Teatral


Revista Preá

O Rio Grande do Norte tá melhor

Com circulação bimestral, tiragem de 5 mil exemplares, distribuída gratuitamente, e edição on line, a revista Preá leva a produção cultural do RN para o Brasil e o mundo

- Restauração do Museu do Capitão Antas, em Pedro Avelino - Criação e edificação do Teatro de Cultura Popular - Restauração do Teatro Alberto Maranhão - Criação do programa de Auxílio Montagem Teatral - Programa Ribeira das Artes - Restauração do Teatro Lauro Monte Filho, em Mossoró - Restauração do Teatro Adjuto Dias, em Caicó


Um Presente de Natal

Depois do sucesso na capital, o espetáculo Um Presente de Natal, realizado no mês de dezembro, foi levado a várias cidades do interior do Estado. O projeto é totalmente produzido e encenado por artistas potiguares

- Restauração do prédio da FJA, com a criação de Auditório; Galeria de Arte; Espaço Cultural; Praças e Largo - Projeto Seis e Meia - Semana de Cultura Popular - Encontro do Teatro Nordestino - Prêmio de Poesia Luís Carlos Guimarães - Prêmio Nacional de Arquitetura para escolha do projeto do Teatro de Natal - Edição dos livros “Poetas do RN”, com os poemas vencedores do Concurso de Poesia Luís Carlos Guimarães


O Rio Grande do Norte tá melhor

Fundação José Augusto

A Fundação José Augusto foi restaurada e reequipada e ganhou o Auditório Franco Jasiello; Galeria Newton Navarro; Espaço Cultural Odilon Ribeiro Coutinho; Praça Emmanuel Bezerra; Largo Jornalista Ubirajara Macedo e Praça do TCP Olavo de Medeiros Filho

- Edição do livro “Fundação José Augusto – 40 Anos (1963-2003)” - Apresentação da EDTAM (Escola de Danças do Teatro Alberto Maranhão) em Londrina-PR - Edição do livro sobre os cem anos do Teatro Alberto Maranhão - Co-edição, com a USP, do livro “Dicionário Crítico Câmara Cascudo” - Apoio à Feira de Sebos - Comemoração do centenário do Teatro Alberto Maranhão - Elaboração de nova Lei de Cultura, com criação do Fundo de Cultura e a Lei Orgânica da Fundação José Augusto


Teatro de Cultura Popular

Natal, depois de décadas, ganhou um novo teatro. O TCP tem 680 metros quadrados de área construída, capacidade para 200 lugares sentados e custou 400 mil reais

Presidente da FJA François Silvestre e a governadora Wilma de Faria inauguram o novo teatro

- Projeto de reestruturação do Instituto de Música Waldemar de Almeida - Encontro de agentes das Casas de Cultura Popular - Criação do site da Fundação José Augusto - Projeto de criação do “Caldeirão da Cultura”, na Penitenciária João Chaves, Zona Norte de Natal - Apoio, com recursos financeiros, para gravação de CDs, edições de livros, shows e exposições - Interiorização do projeto “Um Presente de Natal”, que também chegou à Zona Norte - Lei de Incentivo à Cultura Luís da Câmara Cascudo, que destinou 12 milhões para o setor cultural


O Rio Grande do Norte tá melhor

Fortaleza dos Reis Magos

O mais antigo e importante monumento histórico e arquitetônico do Rio Grande do Norte, a Fortaleza dos Reis Magos, passou por reforma que custou R$ 600 mil. Foram construídos boxes para artesanato e o estacionamento foi ampliado

- Realização dos seguintes seminários, através do Centro de Documentação Cultural Eloy de Souza: “Bom-dia Café” (sobre o Presidente da República Café Filho); “Bom-dia Padre João Maria”; e “1935 setenta anos depois” - Projetos aprovados, no valor de R$ 512 mil, junto ao MINC, para preservar e equipar os museus do RN - Realização do Dia Internacional do Museu; Encontro do Museu Potiguar; Fórum Museu Potiguar - Reativação do Sistema Estadual de Bibliotecas - Realização da Conferência Estadual de Cultura - Projeto aprovado de criação, em 2006, de 14 bibliotecas públicas no interior do Estado


Concurso de Poesia Concurso revelou novos valores da poesia potiguar, como Karina Grace (foto), além de oferecer prêmios em dinheiro e publicar livro com os poemas dos vencedores

Cidade da Criança

Cidade da Criança foi totalmente restaurada, ganhou novos brinquedos, um circo cultural e manutenção permanente

Orquestra Sinfônica Sinfônica fez excursão, inédita, pelo interior do Estado, e no ano passado iniciou reestruturação, com realização de concurso para contratação de novos componentes


3 ANOS FAZENDO O RIO GRANDE DO NORTE MELHOR


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