Revista Literatas

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SEXTA-FEIRA, 27 DE ABRIL DE 2012

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Ensaio

Mafonematográfico Também Círculo Abstracto ou a Evasão do eu Desassossegado na poesia neoconcreta de Sangare Okapi

Uma (re)flexão a três (gl)osas “…Porque a única coisa que a poesia faz é comover. A poesia não cura dor de dente, não resolve problema econômico, não desintegra o átomo, não serve para nada. A única coisa que ela faz é comover….É uma mentira que nos comove… O homem não faz poesia para sair da vida, ele faz poesia para ter coragem de viver…..” Ferreira Gullar.

Mbate Pedro* - Maputo

S

angare Okapi, a quem foi atribuído a menção honrosa do prémio José Craveirinha 2008, é, em minha opinião, uma das vozes incontornáveis da poesia publicada em Moçambique a partir do século XXI. A sua poesia tem condimentos da boa arte, que como lembra Jorge Luis Borges, renova-se por si e não se deixa enclausurar pelas teias da língua (1). Esta parafernália toda, meus caros, vem a propósito do mais recente livro do poeta, “ Mafonematográfico Também Círculo Abstracto”, vindo a lume em Março deste ano e milagrosamente caiu-me às mãos graças à alma caridosa do Lucílio Manjate, uma vez que ando com os bolsos rotos, cogitando até a hipótese de pedir ao alfaiate da esquina que os encerre de vez. Seja como for, na leitura do aprendiz de poeta que sou, três tendências confluem neste livro que reúne 32 poemas: primeiro, a economia e a contenção de palavras, que segundo Borges (1), a par da metáfora, é a essência do fazer poético. Aliado à ela está, obviamente, o cuidado que o poeta tem com a palavra depurada e cuidadosamente pesada antes de no poema depositada. Anda o poeta com uma balança no regaço? Confirma esta minha asserção, não a da balança, mas a da depurada palavra, o brevíssimo poema “monódia”, de dois versos apenas, mas com uma rara beleza estética e de uma contenção pertubadora: “ mal cuido uma flor/desfaço-me em dor./” A poesia do minimalismo, do essencial, ou como queiram nomeá-la, tem entre os seus cultores o meu poeta de cabeceira, Giuseppe Ungaretti. Na poesia deste como na de Okapi, as palavras criteriosamente escolhidas, surgem no poema, inquietas, mas de uma terna inquietude como se nos quisessem dizer algo quando ausentes ou quando não nos quisessem dizer algo, se fizessem presentes. O resultado não podia ser outro senão o espetar do punhal da palavra no peito descoberto do leitor. Obrigando-o a reler palavra por palavra, até encontrar a senhora poesia, submersa no do poema abstracto. “fina flor/ doce dor/ seta/ certa/ letra/ morta/ pauta/ posta/ silêncio/ composto./” No seu “ O livro do Desassossego”, Bernardo Soares diz: ”. ..A maioria da gente enferma de não saber dizer o que vê e o que pensa… Dizer! Saber dizer! Saber existir pela voz escrita…(2).” Ler esta contida poesia de Sangare, coloca o leitor amigo, num rigoroso regime dietético, como diria alguém. O que vem a calhar, atendendo os tempos de crise. A segunda tendência, que é, a meu ver, a maior singularidade deste livro, é o cuidado e o trabalho que Okapi tem com a estética do poema. O visual, diria. O vestuário que, como afirma o poeta Manoel de Barros, faz a palavra abrir o roupão para o escritor e desejar que ele a seja (3). Há em boa parte deste livro, com destaque para o raio segundo, uma série de experimentalismos, um constante desnudar da língua (esse roupão então que se abre) e uma magistral subversão do tradicional verso, dando ao bom do leitor a tão ambicionada liberdade em ler o poema, tanto na horizontal como na vertical, tanto na oblíqua como na vertico-oblíqua ou em qualquer (ex-)posição que julgar útil. Claro, desde que não prejudique a coluna. A do leitor e a do poema. Faço aqui uma analogia entre esta poesia visual do Sangare, em “Mafonematográfico Também Círculo Abstracto”, à poesia neoconcreta brasileira dos finais dos anos cinquenta que, dentre vários, foi seguidor Ferreira Gullar (4), embora mais tarde a tenha abandonado. Diria eu que “ Mesmos barcos ou poemas da revisitação do corpo (5)”, livro segundo assinado por Okapi, é a tímida ante-estreia desta agradável proposta literária que é o “Mafonematográfico Também

Ao Ricardo Riso

Círculo Abstracto”. Esta fase neoconcreta de Okapi (estará ele em ruptura com os seus?) é, a meu ver, um discurso poético inovador naquilo que é poesia publicada por cá a partir do século XXI, com excepção talvez a do Ruy Ligeiro, em “ O País do Medo”. Há, dentre várias marcas, um cuidado com que o poeta costura a rima. Com a delgada fibra de seda, parece. Sobretudo, a rima interna. Menos perceptível a uma vista desarmada como a minha. Exigindo ao leitor que se apresente à formatura com um par de óculos novos. Da China, de preferência. O mesmo par que usamos para descortinar a poesia epigramática do Amin Nordine, em “ Do lado da ala B (6)”. Essa ala em que aos poucos vamos lá chegando. Cada um ao seu tempo. Uns com menos lados do que outros. acende o dia enterra a noite inventa o mar

a noite a paga a tristeza a fugenta faça amor

A herança neoconcreta de Sangare Okapi, que atinge o expoente máximo no poema-barco Caligrama, uma embarcação no alto mar (cá está o poeta com a mania dos barcos!), será, espera-se, uma obra engrandecedora da língua portuguesa.

. Ilustração de Filipe Branquinho. Tinta da china.


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