O Diabo Conselheiro

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Copyright © 2013 by Matheus Faleiro Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo n° 54, de 1995) Faleiro, Matheus Saga Pedro Bandeira / Matheus Faleiro - Canoas, RS: Editora Independente Editora Independente,, 2013 1. ficção. I Faleiro, Matheus. II título. 2013 Impresso no Brasil Printed in Brazil

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“De todos os animais selvagens, o homem jovem é o mais difícil de domar” Platão

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PARTE UM

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Capítulo 1

PORTO ALEGRE ADORMECIDA Mercado Público Central, porta de acesso número 9... Caminhando um pouco trôpego, Pedro tentava ignorar a forte ardência nas pernas. Os cortes haviam voltado a sangrar, mas o menino tentava a todo custo não entrar em pânico. Tinha muito a percorrer ainda, não podia deixar aqueles malditos cortes o incomodarem. O centro de Porto Alegre durante a noite era um verdadeiro festival de luzes, cores e sons. Não havia como ser diferente. Era sexta-feira e, além disso, era carnaval, afinal. Já passava das cinco da madrugada e os bares da cidade continuavam abertos, abarrotados de foliões e pessoas se empanturrando com cachaça e quitutes recém-saídos do forno. Se fosse um dia normal, Pedro até poderia se juntar à baderna. Mas aquele não era um dia normal, e Pedro odiava o carnaval. Seguia pelo meio da Praça Montevidéu, esquina com a Rua Uruguai e com a famosa Avenida Borges de Medeiros. A praça e as esquinas estavam viradas em um verdadeiro lixão: fantasias jogadas pelos cantos, latas de refrigerante e de cerveja bloqueando a vista para o chão do lugar, espuma e tinta manchando o enorme prédio em estilo eclético que era o Paço Municipal da cidade... Ainda bem que naquela hora havia pouca gente na rua. Os seis ou sete foliões que ainda restavam ali estavam completamente bêbados e sem noção. Cantavam antigas marchinhas carnavalescas como se não houvesse amanhã. Talvez realmente não houvesse para um deles, que, torto de tão bêbado, não conseguia nem colocar a chave na fechadura da porta do carro. Quando finalmente abriu a pesada porta de lata de sua Brasília, jogou sua lata de cerveja fora e saiu andando em ziguezague pela Rua Borges de Medeiros. Quando Pedro viu o Mercado Público Central, do outro lado do enorme rio de pedras acobreadas que era a Rua Borges de Medeiros, parou e respirou fundo. Oque diabo ele estava fazendo ali? Aquela maldita carta tinha tudo para ser uma armadilha. Uma armadilha planejada por um verdadeiro mestre das armadilhas, mas mesmo assim, uma arapuca dos piores tipos. Uma armadilha planejada especialmente para arrastá-lo para algum lugar escuro e deserto, na calada da noite, para poder ser morto de forma rápida e eficaz. Mercado Público Central, porta de acesso número 9. 5


A extrema ausência de informações importantes naquele endereço deixava Pedro com uma pulga atrás da orelha. Inferno! Parece criança, Pedro! Treze anos na cara e ainda acreditando em histórias pra boi dormir. Pedro Bandeira, um bruxo?! Era só oque faltava! Sei, conta outra... Oque tinha dado naquele garoto?! Pedro não era de agir sem pensar. Mas agora já era. Ele nunca mais iria poder voltar para casa. Nunca mais. Se voltasse, seria obrigado a dormir na rua e ir para a igreja todo o domingo pra roubar o dinheiro que as velhinhas aposentadas colocavam na caixinha de papelão que ficava no altar. Viraria um daqueles meninos que ficavam na sinaleira, limpando vidros com limpadores improvisados e produtos de origem duvidosa. Ele havia morado 13 anos naquele lugar. Mesmo sempre aprontando todas, a dona do Orfanato era obrigada a continuar com o menino, mas agora não. Ele havia fugido, e a lei de número um do lugar era: “Se fugir, escapar ou for dar passeios sem o consentimento da Senhora Diretora, tá fora”. Agora ali estava ele, praticamente perdido, no meio da Praça Montevidéu. Um bando de foliões o trouxe de volta para a realidade. Gritavam do outro lado da rua, completamente bêbados ou cheirados. O líder do grupo, um homem forte e de cara quadrada, olhou para Pedro com o rabo do olho e começou a rir. Seus seguidores o imitaram. Pedro fingiu que ia avançar em cima deles, e os cagões saíram correndo rua afora, soltando gritinhos estridentes. O garoto chutou uma latinha de refrigerante longe, puto da cara. O garoto não queria atravessar a rua. Primeiro porque o Mercado estava fechado, e segundo porque não sabia oque lhe aguardava na tal da porta de acesso número 9. Deu meia volta e se dirigiu à porta do lado direito do Paço Municipal. Sentou-se nas impecáveis escadarias brancas e ficou observando o prédio colossal que ocupava o outro lado da rua quase por completo. O Mercado Público Central tinha um estilo eclético, comum ali no centro histórico da cidade, mas com forte influência no estilo neoclássico. Um prédio colossal que ocupava uma boa parte da Praça XV de Novembro. O prédio era pintado de amarelo, com detalhes em branco. Um prédio antigo. Muito antigo, para falar a verdade. Estava de pé desde 1844. Já havia sofrido várias reformas e restaurações, mas o Mercado nunca era extinto. A cidade não deixava. O Mercado era o coração da cidade, e sem coração, a cidade morre. A cabeça de Pedro latejava. 6


Esgotado, o menino encostou a cabeça no pedestal gelado de um dos leões que ficava na fachada da prefeitura. Cinco minutos depois, estava deitado em posição fetal na escadaria, imerso em um sono profundo. Ele não tinha culpa. As últimas horas haviam sido tumultuadas, e as que estavam por vir, seriam mais ainda.

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Capítulo 2

ADORÁVEL VIDA NA ZONA NORTE Controle. Era tudo em que o garoto conseguia pensar enquanto a coisa desfilava em sua volta, cheia de si. Estava toda vestida de preto, e Pedro não conseguia ver o rosto dela, muito menos conseguia se aproximar para ver melhor. Estava amarrado e deitado no chão de uma maneira grotesca. Ele não conseguia ver o próprio corpo. A sala era muito escura, chegava a ser claustrofóbica. Como alguém conseguia se sentir confortável naquele lugar? A coisa ria, ria como se não se importasse com nada naquele mundo. Uma risada cheia de significados, mas sem nenhum tipo de resposta para as perguntas que o garoto não parava de se fazer mentalmente. O que estava acontecendo, afinal? A coisa se remexeu bruscamente na escuridão sem fim. Isso Pedro pode ver. Sacou algo do bolso do vestuário que usava para tampar as pernas. O jato de luz roxo foi tão forte que fez Pedro Bandeira acordar de um salto.

Pedro estava deitado de costas, respirando com esforço como se tivesse corrido uma maratona. Acordara de um sonho vívido, apertando o colchão com tanta força que as mãos estavam prestes a começarem a sangrar. Ele se sentou, uma das mãos na cabeça, a outra estendida atrás do corpo, procurando apoio no colchão velho e molengo em que o garoto dormia. Esfregou os olhos um pouco, e o quarto começou a entrar em foco. Um cômodo antigo, escuro e mal organizado, com sérios problemas de falta de espaço. Livros empilhados uns em cima dos outros formava um verdadeiro muro na parede oposta à cama. Discos e CDs que possuíam exatamente as mesmas músicas que os discos formavam um muro menor e mais desregular em frente ao considerável muro de livros. Pedro Bandeira abriu os olhos, mas não quis se levantar. Ficou deitado e viu que horas eram. 13h19. Cedo demais. Quem acordava 13h19 no sábado? Jogou-se novamente na cama e ficou observando os desenhos feitos por ele mesmo, colados com fita durex no teto. O Parque Farroupilha, o Centro Administrativo 8


do Estado, o Mercado Público Central, o Paço Municipal... Todos muito bem desenhados, pintados e colados no forro de madeira. O momento de ócio menino durou muito menos do que ele gostaria. A porta se abriu, e a Senhora Adalgiza Fernandes, diretora do Orfanato São Sebastião, localizado na Zona Norte de Porto Alegre, entrou furiosa dentro do cômodo. - Não tá na hora de acordar, não?! – ela explodiu. - A culpa não é minha se hoje acordei mal da garganta – Pedro mentiu, e depois deu uma longa tossida. Adalgiza não caiu. - Tá querendo moleza, não é?! Esqueceu que hoje, tu e os outros guris vão ir capinar a casa do seu Aluízio? - Não, não esqueci. Que horas que a gente tem que estar lá? - Agora mesmo! Arruma-te e mete o pé na estrada, guri folgado. - Agora? Mas eu nem almocei! – Pedro protestou, sentindo o estômago roncar. - Problema é teu! – a querida Senhora Adalgiza Fernandes retrucou, rindo.

Uma vez no mês, o Orfanato São Sebastião fazia serviços para órgãos públicos e particulares da Zona Norte da capital. Estes serviços eram carinhosamente chamados de ‘bicos’, e 50% do dinheiro do orfanato vinha destes serviços quase ilegais, já que a maioria dos abrigados era menor de idade. Aquele sábado estava quente e ensolarado, com algumas nuvens pesadas flutuando no céu. As formigas andavam em fila indiana pelo gramado da casa do seu Aluízio, sinal de que a chuva estava para chegar. O seu Aluízio era um homem que andava lá pela casa dos setenta. Baixo, corcunda e com enormes suíças, era o arquétipo perfeito daqueles velhos ranzinzas que aparecem no cinema. Pedro estava muito, muito furioso. Puto da vida, ele e os outros órfãos seguiam o seu Aluízio enquanto o velho os guiava pelo terreno abandonado que ficava atrás de sua casa. O ar quente fazia um cheiro acre subir e invadir nossas narinas, praticamente nos sufocando. Seu Aluízio parou perto de uma caçamba azul enorme, do tamanho de uma piscina de chão. - Preciso que vocês procurem aqui todas as garrafas e latas que podem ser recicladas – explicou. - Ei! – um dos órfãos exclamou, irritado – Tu queres que a gente se enfie no meio do lixo?! 9


O garoto estava tapando as narinas com o auxílio do indicador e do dedão. Parecia meio verde. - Acho que deixei isso bem claro – o velho girou nos calcanhares, e com um sorriso no rosto, disse – Bom trabalho. Minutos depois, estavam todos com aquele lixo fedorento, pútrido e fétido até a altura dos joelhos. Não tinham botas especiais nem nada, então foi difícil de evitar que o chorume entrasse em contato com a pele de seus pés e pernas. Aquele cheiro repugnante fazia a garganta dos órfãos ficar seca e fechada. Todos lutavam para não vomitar. Pedro tentou andar, mas era difícil conseguir se equilibrar no meio da imundície. Depois de um ou dois passos, Pedro tropeçou nos próprios pés e caiu de cara no lixo. Alguns órfãos riram, mas outros o ajudaram a levantar. - CACETE! – Pedro exclamou ao sentir uma pontada lancinante no braço – Acho que torci! - Ihhh, o véio Aluízio não vai gostar nada de saber que tu tá tentando fugir do serviço – Guto se aproximou de mim. Era um dos órfãos mais velhos do grupo. Era loiro e com o rosto marcado pelas espinhas avermelhadas que tinha. - Mas eu torci! – Pedro não conseguia nem mover o braço direito. Foi em direção ao sobrado onde o velho morava. Completamente desconfiado, o velho Aluízio mandou-o de volta para o Orfanato, mas não sem antes falar que ia tirar 10% do pagamento que havia prometido para Adalgiza.

Não voltei para o orfanato. Ao menos, não naquele momento. Fui para um dos meus lugares preferidos na Zona Norte de Porto Alegre: um pequeno vale, salpicado de eucaliptos, localizado duas ruas antes do orfanato. Pedro havia conhecido o vale quando ainda era muito pequeno, mais ou menos na época em que se conheceu por gente, e desde então, transformou aquele lugar no meu point particular. Construiu ali um minicampo de futebol e até uma quadra de basquete. Goleiras e aros feitos com galhos finos de eucalipto que ele mesmo achava no chão do lugar. Havia até um açude ali, que o próprio Pedro havia feito, cavando uma canaleta que levava a água do rio mais próximo até o buraco de 2 metros de profundidade e 10 de largura que eu havia feito. O açude nunca ficava vazio. O motivo de tanto carinho por aquele resquício de mata? Ele havia sido abandonado ali pelo pai e pela mãe. Foi ali que uma das empregadas do orfanato o

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achou, chorando, no meio da noite. Os lábios roxos de frio. Havia sido largar ali parar morrer, mas, só pra contrariar, o destino havia permitido a ele viver. O garoto tomou um banho caprichado ali, mas foi obrigado a pôr a mesma roupa suja. Depois do banho, subiu em um dos eucaliptos (com apenas um braço, já que o outro estava inválido) que ainda aguentava seu preso aos 13 anos de idade e ficou observando o movimento lá em baixo. Moleques chutando bolas semimurchas no meio da rua, donas de casa colocando as roupas no varal, grupos de meninas andando de um lado para o outro, lançando risadinhas cheias de significados para meninos que tinha o dobro de suas idades. Nem sempre havia sido assim. Em época de eleição, as bolas eram mais cheias e os meninos eram mais bonitos. Pedro se encolheu ao perceber a aproximação rápida de algo estranho vindo do alto. Uma pipa, talvez. Queeeeero-Queeeeero, Queeeeero-Queeeero O garoto forçou a vista, e então relaxou. Através do canto facilmente reconhecível, concluiu: era apenas um QueroQuero. Um pássaro do tamanho de uma régua, com a plumagem branca, cinza e preta. Havia até um penacho bem visível em sua cabeça. Cerrando os olhos para ver melhor, confirmou: de fato era um Quero-Quero, mas estava carregando um pacote. Pedro se abaixou para sair da linha de perigo enquanto o pássaro dava um rasante acima de sua cabeça e soltava o pacote a centímetros de seu couro cabeludo, deixando o pacote cair lá embaixo. Sem pousar, o pássaro deu meia volta e foi embora. O garoto checou para ver se alguém havia visto ou ouvido alguma coisa. A vida continuava lá fora. Ninguém olhava para a mata. Pedro desceu lá embaixo com grande habilidade, não era a toa que seu apelido era Macaco. Receoso, Pedro virou o pacote gordo com o pé e levou um susto. Em sua superfície, escrito com letras meticulosamente escritas, estava seu nome.

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Capítulo 3

A CARTA para Pedro Bandeira Residente da Rua Madre Tereza de Corumbá, Zona Norte Porto Alegre, Rio Grande do Sul – Brazil - Que palhaçada é essa? - Pedro se perguntou em voz alta, puxando o envelope para perto de si. A carta estava lacrada com um selo vermelho vivo onde se lia as letras PRP, circundadas pela frase: Co yvy oguereco yara. Pedro quebrou o selo de cera com cuidado e puxou a primeira folha do pacote. Sr. Pedro Bandeira Mui respeitosamente, nós da Pampas do Rio Pardo viemos através desta informar-lhe de que tens uma vaga no excelentíssimo corpo discente da escola Pampas do Rio Pardo, a melhor escola de magia e bruxaria do Sul do Brazil! Dentro do pacote, encontrarás a lista de materiais necessários para o início do ano letivo e tudo oque precisa para chegar em segurança até nossa escola. As aulas começam no dia 4 de março de 2013. Será muito bem recebido se respeitar todas as regras impostas pelo Conselho Escola e Administrativo Pampas do Rio Pardo. Sra. Marta Elizandra Junqueira de QueiróZ Diretora do conselho Escolar e Administrativo PRP (C.E.A.P.R.P) 01/01/13 Pedro riu. Só podia rir. Quem era o engraçadinho que havia planejado aquilo ali? Tirou mais um papel de dentro do envelope, à procura de alguma assinatura ou uma grande mensagem de “1° DE ABRIL ADIANTADO!”, mas não. Oque achou foi algo bem diferente. Uma folha branca, com enormes letras douradas. Parecia algum catálogo de shopping.

VILA DO BAIRRISMO – o lugar melhor para se fazer comprar no mundo bruxo! Diversão garantida para bruxos e bruxas de todas as idades! Muito entretenimento de qualidade, praça de alimentação (só comidas Europeias nas quartas-feiras!), museus para todos os gostos. Tudo por um precinho camarada!

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O garoto se deitou no gramado do lugar e rasgou o pacote. Ligeiramente interessado pelo resto de seu conteúdo, foi retirando uma por uma as folhas, filipetas, panfletos e recortes que havia ali dentro. Um mais bizarro que o outro. Lá pelas tantas, achou um panfleto vagabundo e nada atraente. Parecido com um recorte de jornal. Nele lia-se: BRIQUE DO BRUXO – Para quem quer comprar do bom e do melhor! Tudo por um zero a menos! Satisfação garantida ou seu dinheiro de volta! Monumento ao Expedicionário, Parque Farroupilha. Porto Alegre, centro. Rio Grande do Sul, Brazil. As letras não eram douradas e o fundo não era branco. Na verdade, nem letras aquilo tinha. Vira e mexe as palavras desapareciam, e Pedro tinha que sacudir a folha para elas voltarem. Mas os preços dos objetos na Vila do Bairrismo e no Brique do Bruxo tinham uma diferença gritante. O garoto não entendia nada de ‘Pilas’ e ‘Onças de Ouro’, mas sabia que, se queria economizar na hora das compras, deveria ir ao Brique. Um caldeirão dos mais chinfrins custava em média P$30.000,90 na tal da Vila, já no Brique, custava no máximo P$15,00. Caso aquela palhaçada fosse verdade, ia chegar à tal escola vestindo sua pilcha velha e desgastada e uma camiseta, com uma varinha de péssima qualidade e um caldeirão de latão. Tudo oque seu dinheiro podia comprar. Pedro estava ficando cada vez mais conhecido, quando ouviu uma explosão vinda da margem da estrada onde a floresta. Um carro do ano invadiu a estradinha que ligava a estrada principal até o vale e veio na direção de Pedro. Na direção, a diretora Adalgiza. - Parado agora, guri fujão! – ela saiu do carro e começou a marchar na direção do garoto. O salto alto afundando no gramado húmido. O garoto não pensou duas vezes: saiu correndo mata adentro com uma velocidade voraz. Adalgiza não podia correr, então Pedro estava em vantagem. Em determinado momento, foi atravessar uma cerca de arame farpado, provavelmente pertencente a alguma propriedade rural, e acabou rasgando boa parte das pernas. O sangue escorreu pelas pernas do garoto, que entrou em desespero. Pulou na vertente mais próxima, tingindo a água de vermelho escarlate. As pernas ardiam como se estivessem em chamas. Pedro tirou a camisa e a mergulhou na água. Com a vestimenta ensopada, começou a passar nas pernas. O pacote! Como ele havia sido tão burro?! Ele não podia voltar lá. Continuou deitado, exausto e sem fôlego, se condenando cada vez mais por ter esquecido o maldito pacote lá, onde Adalgiza poderia ver. Iria sofrer gozações pelo resto da vida se alguém ficasse sabendo daquilo! Pedro olhou para o lado, e se assustou. Uma ratazana enorme o encara enquanto o garoto limpava seus machucados. Na boca no animal... Um pacote! Ele puxou-o para perto de ti, e a ratazana saiu em disparada para o meio do mato. Pedro rasgou o pacote, e leu a primeira carta. Era idêntica a primeira, com direito até a assinatura da tal da Marta! Aquilo era demais para ele. Mesmo com as pernas ardendo como nunca, deu uma risadinha leve. 13


- Mão na cabeça, pivete! Pedro congelou, sentindo o cano frio se pressionar contra sua nuca e o peso da bota acertar um chute em cheio no meio de suas costas. Tentou ver quem segurava a arma, mas só conseguiu ver o uniforme da Brigada Militar. - Acha que faz oque quer, é? – o brigadiano viu que Pedro não havia entendido nada, e esclareceu – A dona Adalgiza ligou para nós. Tentou roubar oque do Orfanato? Quê que tem dentro desse pacote aê? O homem se abaixou para pegar o pacote gordo e Pedro acertou um chute no meio do rosto do homem. - Eu não sou bandido! – o garoto exclamou, nervoso. - Tu enlouqueceu, não foi piá? TU ENLOUQUECEU??? – o homem perguntou, apontando a arma para o meio do peito de Pedro. O garoto o olhou com um olhar que transbordava ódio. Eles pararam, receosos. Ou seria amedrontados? Pedro não sabia responder. Os olhos do brigadiano mais próximo de repente migraram de Pedro para a arma que segurava em sua mão. Estava soltando fumaça. O policial começou a suar frio, e de repente... PUF. A arma havia desaparecido de suas mãos. O brigadiano se afastou de Pedro como se o menino fosse o diabo em pessoa. Atordoado, Pedro não sabia oque pensar. Num minuto estava encurralado por um brigadiano furioso, no outro estava ali, sozinho, cuidando de seus machucados. Olhou para o pacote ao seu lado. Será? Respirando fundo, Pedro começou a retirar, um por um, os folhetos, filipetas, recortes e folhas que havia dentro do pacote – camadas e mais camadas de papel que só serviam para aumentar sua esperança e ansiedade. Pedro levantou e saiu correndo mata adentro. No percurso íngreme, ganhou vários outros machucados e arranhões, mas aquilo pouco importava. O certo era que precisava sair o mais depressa possível daquele lugar. Já tinha arranjado inimigos demais para uma tarde tão pequena de sábado. Se aquelas cartas fossem falsas, estaria mais do que ferrado. Estaria morto. Já estava quase no ponto de ônibus quando lembrou-se de que precisava de dinheiro. Dirigiu-se ao bar mais próximo, com um plano arquitetando-se automaticamente em seu cérebro. - Eai Pedrinho! – o dono do bar exclamou. Estava sentado atrás do balcão, contando o dinheiro que havia arrecadado naquela manhã. - Oi, seu Joaquim... – Pedro estava envergonhado, mas não podia demonstrar isso. Foi logo falando – A dona Adalgiza me mandou perguntar se o senhor não tem um dinheirinho pra emprestar pra ela. Ela tá sufocada com umas dívidas lá no orfanato. Seu Joaquim pareceu meio desconfiado, mas logo cedeu: - De quanto ela precisa, fiô? Pedro pensou por alguns segundos. - Trezentos reais. Seu Joaquim quase caiu da cadeira. - Meu fiô, tudo isso? - Tudo isso sim, seu Joaquim. A dona Adalgiza tá apertada.

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O homem abriu a gaveta do caixa e contou três notas de cem. Mais do que desconfiado, largou as três cédulas na mão do menino, que saiu sem se despedir. Trezentos ainda era pouco. Precisava de mais. O menino estralou as juntas dos dedos. A tarde seria longa. Pedir dinheiro na sinaleira não era um emprego nada honesto, mas era isso ou nada. Com três garrafas de vidro, Pedro fazia malabares no meio da rua enquanto o sinal permanecia vermelho. Motoristas e transeuntes pararam para assistir. Como um garoto daquele tamanho podia ter tal habilidade? Pedro ficou animado. Aquilo podia dar muito certo. Alguns já estavam até aplaudindo! Mas quando chegou a hora de darem suas contribuições, desviaram o olhar ou continuaram andando. O sinal vermelho se transformou em verde. Com aquele show arriscado, Pedro conseguiu cinco reais. CINCO reais! O menino continuou fazendo malabares até tarde da noite. Já havia conseguido arrecadar 25 reais. Ainda era pouco, mas devia dar para comprar uma coisa ou outra. Já era tarde da noite quando Pedro decidiu jogar sujo antes de ir embora. 3h da madrugada, mais ou menos. Pedro limpou o para-brisa do único carro parado no sinal vermelho com a própria camiseta. Na hora de pagar pelo serviço, o homem deu duas moedas de 25. O sangue subiu. Pedro meteu a mão dentro do carro e puxou a carteira para perto do sei. Correu como um louco pelo meio da rua, e adentrou no meio da mata mais tarde. Foi andando até o centro de Porto Alegre, e foi lá que deitou-se na confortável escadaria do Paço Municipal e dormiu até o sol nascer.

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Capítulo 4

BRIQUE DO BRUXO Pedro acordou com os primeiros raios de sol da tarde. Havia dormido mais do que o esperado. A Praça Montevidéu estava cheia de pessoas, mas continuava uma verdadeira imundície. As pessoas alimentavam os pombos, tiravam fotos em frente a fachada da prefeitura, descansavam, liam... O menino se levantou e fez um alongamento rápido. Em seguida, fez oque estava evitando fazer desde a madrugada: atravessou a Rua Borges de Medeiros, em direção ao Mercado Público Central. O mercado estava cheio de gente. A maioria fazia compras. Comprava artigos religiosos, frutas e legumes de qualidade, revistas, livros, animais de estimação, quilos e mais quilos e frutos marinhos. No meio dessa verdadeira balbúrdia, alguns se alimentavam nos restaurantes do mercado. Pedro decidiu se alimentar antes de ir a procura da tal porta de acesso número 9. Comeu um pastel de camarão e tomou um suco de maracujá, tudo pago com o dinheiro da carteira do pobre coitado que ele havia sido obrigado a assaltar.

Mercado Público Central, porta de acesso número 9...

No Mercado Público ele já estava, agora só faltava achar essa tal porta de acesso. Atravessou o mercado, andando de um lado para o outro, procurando portas com o número 9 na frente, ou algo que pudesse desembocar no Brique do Bruxo. Algum botão, alavanca, passagem secreta... Pedro sentiu que estava sendo observado e girou nos calcanhares. No fim de um corredor escuro, perto da escada rolante do mercado, um homem o olhava dos pés a cabeça, e Pedro se perguntou como não havia notado aquela pessoa antes. Defronte a uma porta de madeira escura, havia um sujeito todo vestido de negro, mal encarado e que segurava forte uma varinha de ferro do tamanho de seu braço. Pedro sempre havia imaginado bruxos como pessoas discretas, que sempre procuravam se esconder na sombra, e aquele homem batia perfeitamente com a descrição que a imaginação do garoto havia feito. Meio receoso, Pedro se dirigiu a ele. 16


Puxou o pacote de braço do braço, e de dentro do pacote retirou o folheto mal feito do tal Brique do Bruxo. - É aqui? – Pedro perguntou. Sentia o olhar pesado do homem em suas costas. O homem não respondeu. Permaneceu calado e imóvel. Pedro começou a ficar estressado. - Não vai responder??? O homem começou a afundar no chão, como se o piso de pedra do mercado fosse areia movediça. Pedro, assustado, deu um passo para trás. Quando o homem já estava fora de vista, a porta de madeira abriu, dando um susto ainda maior em Pedro. O garoto nunca havia visto um lugar tão maravilhoso e mágico como oque se descortinava em sua frente. Dentro da porta havia uma praça, enorme, ampla e em formato circular, cheia de árvores enormes, bancos e calçadas muito bem cuidadas. Seus primeiros passos para dentro daquele mundo novo foram tímidos. As ruas pareciam enormes rios pavimentados com pedras acobreadas. Em suas margens, lojas e mais lojas, com produtos que iam do bizarro ao esquisito em um piscar de olhos. Vassouras tentando voar para fora da loja Cabólotéia – Artigos para voar bem, plantas que pareciam ter vida própria na loja Herbologia Gaúcha, caldeirões borbulhando na vitrine da loja Apotecário de Vênus... Era praticamente impossível se mover no meio de tanta gente, mas só agora Pedro havia percebido isso. A praça estava lotada de bruxos e bruxas que faziam suas compras de última hora. Pessoas com os estilos mais estranhos passeavam pelas ruas em volta da praça. Gaúchos vestidos com pilcha completa, mulheres com vestidões estilo inglês, homem vestidos com cartola e fraque combinando... Todos desesperados para comprar os últimos produtos da promoção. Na loja Antiquário Vetrus, mulheres e meninas se estapeavam para comprar os búzios de cartilagem de dragão chinês, os últimos do estoque. Tentando disfarçar o verdadeiro choque que foi encontrar uma praça atrás de uma porta do Mercado Público, Pedro começou a andar na rua fingindo naturalidade, mas foi impossível. Grudou a face na primeira vitrine perto de si e ficou observando a coisa mais linda que já havia visto na vida: botas com asas brotando de suas laterais! Asas de águia, de pombo, de pardal... Ele e mais meia penca de jovens babavam na vitrine, todos de olho nos pisantes. Ninguém mais olhava para as vassouras, coitadas. Estavam jogadas em um canto da loja. Vassoura era coisa antiga. Ultrapassada já. Pedro se desgrudou da vitrine e levou um susto ao se deparar com um gorducho de avental, que saíra da loja ao lado berrando: 17


- Olha a vaaaaaarinhaaaaa, olha a varinhaaaaaa. Varinhaaa de ouro, varinha de cooobre, varinha de maaaadeiraaa. Faça seus melhores feitiços com as minhas varinhaaaas! E não era só ele que gritava naquele lugar. Era todo mundo. - Compartimento paaaara portaaaais, viaje mais rápido que qualquer bruxo do muuuundo. - Olhaaaa o caldeeeeirão de inox, dura até três geraçõõões! Anúncios disfarçados de aviõezinhos de papel voavam ao ar livre, tentando atingir o máximo possível de compradores. Pedro conseguiu desviar de um, mas não do próximo, que atingiu em cheio sua testa. O folheto era da loja de animais da dona Zuca - Animais nacionais e importados. Os caldeirões e equipamentos para as aulas de Alquimia eram os mais caros depois das varinhas. Mesmo sem ter muita noção monetária, Pedro fez suas contas mentais: oque precisaria comprar primeiro? Oque poderia ficar por último caso não sobrasse dinheiro? Será que eles aceitavam Reais ali? Com certeza não iria conseguir comprar os quatro conjuntos de pilcha completa que a escola pedia. Um, no máximo, e duas botas para dar uma variada. - Moça, – Pedro chamou uma jovem moça que havia passado perto dele – onde posso encontrar a casa de câmbio? Ela sorriu simpática, e apontou para uma lojinha minúscula de tijolos espremida entre duas enormes, na parte esquerda da rua. Pedro agradeceu e entrou no estabelecimento. O dono do lugar estava no balcão, e analisou Pedro dos pés a cabeça quando o menino entrou no lugar. O homem relaxou, ao perceber que se tratava apenas de um menino meio sujo, certamente de uma família bruxa das mais pobretonas. - Preciso trocar dinheiro. - Eu sei – o homem sorriu e se curvou diante do caixa. Era magro e usava uma cartola enorme, que quase encostava no teto. De dentro do caixa, o homem puxou um cilindro de vidro decorado com alguns floreios verdes. Ele tirou a tampa do cilindro e pediu para que Pedro depositasse ali todo o dinheiro lasqueado que tinha em seus bolsos. Pedro colocou todos os R$330,00 dentro do cilindro. O dono fechou-o, apressado, e começou a sacudir o dinheiro que havia ali dentro, como se estivesse fazendo uma deliciosa batida. Os reais, automaticamente, se transformaram em várias moedas douradas e cédulas coloridas.

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O homem tirou a tampa do cilindro e virou dois terços do dinheiro na mesa. - Pilas – o homem mostrou as cédulas para Pedro – e Onças de Ouro – ele apontou para as moedas – Tudo teu. - Tá mas e o resto?! – Pedro perguntou, curioso. - Quê resto? – o dono da casa de câmbio escondeu o cilindro nas costas. - Esse resto! – o menino avançou no homem e puxou o cilindro das mãos do homem. - Minha comissão! O próprio governo que manda tirarmos 1 terço do valor para nós! - Isso é ROUBO! – o sangue começou a ficar quente pela terceira vez naquele dia nas veias de Pedro. - Reclame com o governo! Passa esse cilindro pra cá agora! – o homem tentava a todo custo pegar o cilindro para si novamente. Pedro jogou o cilindro no chão. O vidro se partiu em mil pedacinhos, e o garoto pode pegar o dinheiro que era seu por direito. O dono da casa, desesperado, sapateava, como se aquilo fosse resolver algo. Estava morrendo de medo de sair de trás do balcão. O garoto enfiou todo o dinheiro nos bolsos e entrou na loja de varinhas mais próxima antes que o homem chamasse a polícia, se é que a polícia existia naquele mundo. A loja de varinhas Bueno era uma verdadeira bagunça. Varinhas de todos os tamanhos, tipos e cores espalhadas pelas prateleiras, vitrines e até pelo chão. A dona da loja, uma mulher gordinha e ruiva chamada Giulia estava sentada em uma cadeira confortável, com os pés em cima do balcão, lendo uma revista de fofocas. Pedro começou a fuçar nas prateleiras, mas não sabia oque estava fazendo. Algumas varinhas estavam em perfeito estado, mas a maioria já estava lascada e com falhas enormes na pintura. O garoto decidiu procurar a mais nova, a que estivesse em ótimo estado. Enquanto Pedro fazia sua busca, os únicos dois clientes que estavam no estabelecimento andavam soltos pela loja. Um deles, um senhor de idade, vestido com pilcha completa, procurava uma varinha a altura da última, que estava quebrada em sua mão. Testava todas as varinhas que pegava com muito cuidado, como se fossem verdadeiras joias raras. Pedro decidiu imitar o homem, fazendo um movimento de pulso com cada varinha que pegava. O outro cliente era loiro, extremamente magro e com uma cabeleira enorme, parecia que estava de capacete. Devia ter uns treze anos de idade e, assim como Pedro, estava perdido no meio daquela bagunça. 19


Pedro se virou para ir embora. Tinha pouco dinheiro, mas mesmo assim, preferia pagar caro por um produto de qualidade do que caro por um produto chinfrim daqueles. Já estava quase na porta quando a vendedora deu um pulo da cadeira e veio abordá-lo, com um sorriso na cara. - Onde tu pensa que vai, meu bem? - ela disse, toda dengosa e delicada. Colocou a mão no ombro do menino e o conduziu novamente para o interior da loja – Tu nem experimentou nenhuma varinha ainda! Todo bruxo tem que ter uma varinha, e tenho certeza de que na minha loja, tu vai achar uma ótima! - Vou dar uma volta antes de comprar a varinha – Pedro mentiu, tentando se desvencilhar das mão teimosas e autoritárias da mulher. - Olha essa aqui, que belezura! – ela insistiu, pondo na mão de Pedro uma varinha de ferro, mais pesada que o próprio menino – Vamos lá, teste! De má vontade, Pedro sacudiu a varinha no ar e nada aconteceu. Nem uma faísca saiu da ponta. Olhou para o rosto da vendedora, que ficou muda por alguns segundos. - Bem... – ela disse, meio sem graça – Talvez aquela dali não te mereça, mas essa aqui é a tua cara! Ela puxou mais uma da prateleira, e eles ficaram nesse chove mas não molha durante uma meia hora, hora em que a vendedora começou a ficar mais impaciente e ansiosa que o próprio Pedro. - Esse daqui, quanto custa? – Pedro pegou uma varinha que estava no balcão da mulher, perto do caixa. Uma varinha bonita feita de madeira flexível. - Essa está reservada, não posso vender de jeito ne-nhum! - Então acho que a senhora não precisa mais da minha presença nessa loja. Passar bem. - ESPERA! – a mulher veio desesperada, atrás de Pedro. Entregou a tal da varinha reservada na mão do garoto que imediatamente, sentiu a palma da mão ficar quente. - É essa mesma! Quanto custa? – Pedro foi sacando o dinheiro do bolso. Não tirou nem metade do dinheiro que tinha. Queria bancar de pobre coitado, para ver se conseguia um bom desconto. - Pra ti... – ela olhou para a mão de Pedro, onde haviam apenas algumas Onças de Ouro. O menino fez a melhor cara de criança desfavorecida de verba que podia. – P$15,00! Pedro saiu da loja feliz da vida com a varinha nova dentro da sacola. Havia pago menos da metade do preço! Chantagem emocional funcionava mesmo! 20


*** A escola havia se esquecido de enviar a lista de materiais pelo correio, isso explica o motivo de tantas mães estarem se acotovelando em frente a uma das livrarias mais famosas do Brique, que havia impresso o nome de cada livro e o autor em uma enorme folha de papel. Estavam anotando atenciosamente os títulos que precisariam comprar mentalmente ou em uma folha de papel. Pedro aproveitou para fazer o mesmo.

LIVROS DIDÁTICOS para a 1ª SÉRIE do ENSINO FUNDAMENTAL: - Ética na Magia (14ª edição), de José Mayer. - Leis da Magia Gaúcha (99ª edição), de Min. Fábio Sadi. - Tudo se Cura, de Luiz Veríssimo. - Dragões, Sacis e outros Monstros, de Ricardo Azevedo. - Alquimia e seus segredos, de Narciso de Mattos. - Ataque Pessoal, de Rodrigo de Cambará. - Astronomia dos Pampas, de Morgana Anagrom.

Pedro olhou novamente para cima, sem entender aquele céu azul. Afinal, estavam dentro do mercado ou fora? Fora não poderiam estar. Ele não se lembrava de nenhuma praça sequer parecida com aquela nos arredores no mercado. Voltou a tempo de desviar de um bando de carroças que havia entrado na rua, carregando animais silvestres em suas partes traseiras. Dragões, araras, cobras, cães... Os adolescentes do lugar piraram ao ver os dragões. Todos queriam tocar neles, tirar fotos com suas máquinas fotográficas ultrapassadas... Alguns até brigavam com os pais para comprar um. Pedro foi obrigado a concordar: os dragões eram lindos, mas estavam extremamente maltratados ali, dentro daquelas gaiolas apertadas. Nem conseguiam abrir as asas direito! Depois de comprar todos os livros que precisava, Pedro se dirigiu ao brechó mais próximo. Um lugar apertado, mas com ótimos descontos. Provavelmente o dono queria se livrar das roupas para abrir espaço para outras. Comprou duas pilchas completas e quatro lenços diferentes a preço de banana e saiu feliz da vida, perambulando pela calçada do Brique. Parou para observar uma banca de artesanato que vendia bolas de cristal, e ao ver seu reflexo na esfera, teve vontade de enfiar a cara dentro de um buraco. A roupa de Pedro estava suja, o cabelo

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castanho e encaracolado estava virado em um ninho de ratos. As únicas coisas que permaneciam intactas eram seus olhos verde esmeralda que Pedro tanto gostava. - Essas bolas ai são um perigo... – um menino comentou, se aproximando de mim. Era o mesmo loiro cabeludo que estava na burlesca loja de varinhas. Mesmo com aquela cabeleira toda, parecia não estar sofrendo nem um pouco com o calor de fim de fevereiro que cobria Porto Alegre inteira (inclusive o Brique). As roupas do rapaz eram feitas de um tecido simples, parecido com folhas. - Devem ser... Essa é a primeira vez que eu tenho contato com esse mundo Pedro respondeu, sem timidez alguma. - Aaaah, tu é filho de lasqueados, então? – o loiro abriu um sorriso. - O que são lasqueados? - Gente incapaz de fazer magia. Murilo, e tu? – o loiro estendeu a mão. - Pedro. Tu também é filho de lasqueados? - Naaaah... – ele levantou a cabeleira na parte esquerda da cabeça, revelando orelhas finas e pontudas – Sou filho de elfos. - Caramba, que tri! Os dois sorriram um para o outro por um momento. - Já comprou tudo da lista? – Murilo perguntou. - Quase – Pedro admitiu. - Partiu, então. Só comprei a varinha até agora. Loja grotesca aquela lá, né? Te liga na varinha que a mulher fez eu comprar – o loiro tirou uma varinha cor-de-burroquando-foge de dentro da sacola, meio torta na ponta. – Ao menos funciona direitinho. Isso que importa. Tu já testou a tua? Pedro sentiu seu estômago revirar. Não havia testado a varinha! Apenas deduzirá que ela funcionava porque se sentirá confortável com ela. Como fora tão burro?! Murilo nem precisou esperar pela resposta. - Testa aí – Murilo disse, e Pedro apontou a varinha com vontade para uma banquinha de artesanato indígena. Nada aconteceu. - Tem certeza que tu é canhoto? – o loiro perguntou, desconfiado.

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Pedro sentiu um enorme alívio ao ouvir a pergunta. Havia pegado a varinha com a mão errada. Mudou de mão e testou novamente. Dessa vez, a banquinha explodiu pelos ares, espalhando mercadoria por toda a rua. - Ei! – o vendedor disse, furioso, recolhendo tudo o mais depressa possível, como se estivesse com medo de que alguém roubasse. - Desculpa, tava só testando. O homem fez cara feia, mas logo acabou cedendo. - Caramba, que espantoso! Onde tu aprendeste a fazer isso? – Murilo perguntou, pasmo. - Por quê? É muito difícil? - É coisa de sexta série, cara! Fazer feitiços sem pronunciar sequer uma palavra. Tem certeza que tu nunca tiveste contato com a magia antes? O menino abriu a boca, mas logo a fechou. Não queria contar o caso com o brigadiano. Disse que sim e Murilo assentiu, ainda meio desconfiado. Pedro sorriu, satisfeito. Havia escolhido a varinha certa.

Murilo acompanhou Pedro pelo resto da tarde. Compraram todos os ingredientes e equipamentos alquímicos que, Murilo garantiu, eram essenciais – a julgar pela experiência do irmão mais velho, que estava na quinta série. O telescópio de astronomia Pedro fez questão de comprar de segunda mão. Não era um objeto tão importante. Poderia ser substituído no futuro, caso conseguisse dinheiro. O elfo e o recém-descoberto bruxo, quando saíram do Mercado Público, já eram noite feita. Murilo comeu um sanduíche de folha de mandrágora com abóbora (lanche bruxo que era vendido no cardápio lasqueado do mercado). Pedro decidiu não se arriscar, mas queria se alimentar bem. Foi logo pedindo uma travessa inteira de churrasco, que pagou com dinheiro bruxo mesmo. O garçom bruxo era um velho conhecido de Murilo. Por essas e outras extravagâncias, quando os dois se despediram, Pedro quase não tinha dinheiro para pagar a passagem até a Estação Rodoviária, lugar que prometia ser o último lugar que iria visitar na capital antes de partir para a escola de magia. Na passagem, comprada pela escola, a falta de informação era algo gritante. Ali só estava escrito o endereço da rodoviária e o horário de partida do ônibus: 9h da manhã do dia 04/03/13.

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Dormiu sentado em um desconfortável banco de madeira perto do Box 13. Nunca havia adormecido tão depressa na vida. Talvez o adormecimento quase imediato de Pedro era justificado por dois motivos: agora, estava longe daquele Orfanato infernal, e estava muito bem armado com uma varinha, arma melhor que qualquer fuzil ou pistola.

Capítulo 5

BOX DA NEBLINA Pedro dormiu com a varinha e o resto de suas compras grudadas no peito. Acordou com o barulho intenso dos primeiros ônibus que haviam chegado à Rodoviária naquela manhã. Ao menos não se atrasaria de jeito nenhum na hora de pegar um ônibus. Sua estratégia era simples: iria analisar a rodoviária de uma ponta a outra e, caso achasse algo suspeito, pararia para tomar as medidas necessárias. O problema era que tudo era suspeito naquele lugar. Na época em que a rodoviária foi inaugurada, havia sido considerado o maior e mais moderno prédio da América do Sul, tanto em estilo arquitetônico quanto no aspecto funcional. O teto da rodoviária era formado por enormes semicírculos, havia várias entradas alternativas e uma principal no lugar, o chão era de enormes paralelepípedos amarronzados... Entretanto, atualmente, a rodoviária se encontrava completamente ultrapassado, não comportando mais a demanda de uma capital do porte de Porto Alegre. Muitos porto-alegrenses e gaúchos em geral criticavam o atual estado de manutenção da rodoviária, a ponto de a considerarem uma vergonha para a cidade e para o Estado do Rio Grande do Sul. Tudo estava bom demais. Pedro havia conseguido comprar praticamente tudo da lista de materiais, havia reembolsado todo o dinheiro que tinha direito e até já tinha consegui um colega elfo e vegetariano que sabia tudo sobre o mundo bruxo. Poucos lasqueados passeavam para o lugar. Isso era comum para uma segundafeira de manhã, fim de carnaval. A grande maioria da cidade deveria estar trabalhando ou com uma forte ressaca em casa. Sem muito oque fazer até as 9h da manhã, Pedro ficou andando de um lado para o outro na rodoviária, colocando seu plano de observação em prática, mas, quanto mais as 9h iam chegando, mais o fluxo de gente esquisita ia aumentando no lugar. Os bruxos vestiam capas espalhafatosas, sobretudos, enormes chapéus em forma de cone e alguns, mais exibidos, até usavam colares e correntes de ouro puro! Será que

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sabiam mesmo que estavam em uma capital como Porto Alegre, que praticamente vomitava assaltantes? Todos atravessavam a rodoviária as pressas, como se não quisessem chamar atenção. Se fosse esse o plano, estava dando completamente errado. Até os funcionários da limpeza do lugar paravam para observar os grupos de bruxos que não paravam de chegar na rodoviária. Pedro seguiu os grupos de perto. Ao seu lado, um grupo de jovens com caras de rico falavam abertamente sobre as maravilhosas férias que tiveram na Escandinávia ou até mesmo no interior do Estado, onde, contavam eles, enfrentaram até dragões! Quem diria? Dragões no Rio Grande do Sul! Os bruxos se acomodaram na ala direita da rodoviária, a ala dos desembarques. Oque estavam esperando ali? Se queriam embarcar, o lugar deles era do outro lado da rodoviária, não era? 9h15 e nada do ônibus chegar. Pedro já estava pensando que sua teoria sobre os bruxos estarem do lado errado estava se confirmando. - Os aliens sequestraram o ônibus! – um menino declarou, chegando perto da grade cor-de-vômito onde todos os bruxos estavam – De novo. Todos caíram na gargalhada. O sujeito que havia soltado a piada tinha cara de simpática. Extremamente magro, era pardo e tinha o cabelo encaracolado. Um óculos de armação quadrada adornava seu rosto jovem. O menino estava vestido com um smoking completo. Parecia estar indo para um casamento, e não para uma escola. Oque aquele sujeito mais tinha era amigos. Não paravam de chegar para cumprimentá-lo, mas não da forma convencional: quando o viam, seus amigos faziam um V utilizando dois dedos. V que significava vida longa e próspera. Símbolo dos nerds de carteirinha. 9h30 e nem rastro do ônibus. Será que a escola havia colocado 9h00 na passagem só para ninguém se atrasar? Era uma boa técnica. Frustrante, mas boa. Algum tempo depois, Pedro virou o rosto para dar uma olhada no relógio pela décima vez naquela manhã. Nesse meio tempo, a pista do meio da rodoviária se encheu de neblina, oque deixou-o ligeiramente amedrontado. E da neblina surgiram a frota de ônibus da escola. Sete ônibus de dois andares, que variavam entre amarelo, vermelho e verde. Não estavam em perfeito estado, mas dava para o gasto. Os adolescentes (massa dominante ali) se despediram de seus pais rapidamente e então, começou o corre-corre: pularam muretas, catracas e grades. Tudo era permitido quando o assunto era chegar perto do ônibus. 25


Pedro foi um dos que pulou a catraca, mas quase caiu de cara no chão quando foi descer. Isso provocou alguns risos, mas o garoto não se abalou. Sentiu um tapinha amigável nas costas e percebeu que o nerd piadista estava do seu lado. - Tem que amarrar os cadarços invisíveis, jovem Padawan. – Pedro riu, e o menino bagunçou o cabelo dele – Felix, e vossa senhoria se chama...? - De vossa senhoria eu não tenho nada, mas meu nome é Pedro hahaha. Decidi levar a bagagem junto comigo no ônibus, assim como a maioria dos estudantes. O porta mala do ônibus oferecido pela escola não era nada confiável. Vira e mexe algum objeto desaparecia. Contavam-se até lendas a respeito dos Espíritos do Porta Mala. Minha poltrona era a número 17, junto com o piadista. Felix ficou contando piadas ruins, ao menos no início da viagem. Quando escutou o barulho do motor do ônibus, puxou os fones de ouvido de dentro da mochila e os encaixou no ouvido. - Coloca o sinto porque lá vem porrada – Felix me informou enquanto puxava uma HQ do Star Wars para perto de si. O motorista pisou fundo no acelerador, e a cabeça de Pedro e de todos os passageiros foram de encontro ao banco da frente. Bagagens saíram dos compartimentos sob suas cabeças e foram direto para o chão. Um grupo de ratos saiu de uma gaiola de ferro e começaram a correr pelo ônibus, causando desespero nas meninas. O ônibus disparou e dobrou, em cinco segundos, estava na correndo a toda velocidade na Avenida Mauá. Era quase impossível de se identificar o Cais do Porto lá fora. Tudo parecia uma pintura aquarela das mais mal feitas através da janela daquele ônibus. A lata de sardinhas ambulante deu uma guinada violenta para a esquerda, e por um segundo, Pedro pensou que o ônibus ia cair dentro do Rio Guaíba. O transporte deu uma freada brusca. Sinal vermelho. Um loiro cabeludo caiu de cara no corredor ao lado de Pedro. Ele reconheceu Murilo não pela cabeleira, mas sim pelas orelhas élficas. - Eai Pedro, curtindo a viagem? – o elfo perguntou enquanto se levantava. - Se nós chegarmos vivos e inteiros nessa escola, eu já fico feliz – Pedro brincou. O loiro riu. - Nos vemos lá. Não vou me arriscar a ficar aqui no corredor falando contigo e quando ele voltar a dirigir, eu voar lá no para brisa – Murilo deu um tapa amigável no ombro de Pedro e correu para o fim do ônibus, onde dividia o branco com um sujeito alto, com dread looks e Ray Bans com lentes escuras. Até barba o sujeito tinha!

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Em cinco minutos, todos os sete ônibus já estavam bem longe de Porto Alegre. Agora estavam passando por campos verdes e salpicados por laguinhos. Transporte eficiente aquele! Pedro colocou o sinto e tentou dormir. Com certeza iria precisar de toda a energia que conseguisse arrecadar naquele dia.

Capítulo 6

PAMPAS DO RIO PARDO Quando a frota de ônibus chegou ao seu destino final, já passava muito do meio dia. Pisar no solo novamente foi uma sensação libertadora. Pedro sentiu como se conseguisse respirar bem novamente depois de um longo tempo prendendo a respiração. Logo que pisou no gramado bem aparado do pampa, percebeu que o ônibus havia saído da estrada. Estavam todos em um bioma de pampa, o bioma símbolo do Rio Grande do Sul. O vento era forte naquele lugar, praticamente açoitava os alunos que estavam vestidos com roupas mais simples. Pedro agradeceu por estar vestido com sua pilcha nova, que era bem grossa. O pampa era salpicado por árvores e algumas casinhas simples aqui e acolá. No centro do bioma... UMA RUÍNA?! Estavam em São Miguel das Missões, Pedro reconheceu imediatamente. A ruína lá no fundo havia denunciado a cidade. Uma torre alta, sem telhado, e um casarão com o telhado triangular grudado na torre. Tudo feito de tijolos de granito. Não havia nenhum encarregado de levar os alunos para escola, então foram todos andando. Quanto mais Pedro chegava perto das adjacências das ruínas, mais percebia que a situação ali estava caótica. Haviam correntes e mais correntes de elfos vestidos com tecidos brancos simples fazendo um círculo perfeito em volta do lugar. Estes dançavam e cantavam, movimentando-se lentamente, com a beleza que só eles e as flores possuíam. Um senhor de idade andava em volta da corrente élfica, marchando. Era grisalho e estava vestindo três camadas de casacos de couro, uma bombacha novinha em folha e botas com detalhes em ouro e prata. 27


Observava cada movimento dos elfos com seus olhos de gavião. Como se temesse que os seres mágicos errassem. Como se qualquer erro naquela dança pudesse causar o fim do mundo. - Todo ano é a mesma coisa! Uma operação dos infernos! – um bruxo passou ao meu lado. Seus dois filhos nos calcanhares. Com certeza aquele senhor não havia vindo de ônibus. Parentes não eram permitidos no transporte oferecido pela escola. Para entrar na escola, era simples: bastava entrar na torre da ruína, onde o chão havia se transformado em uma enorme escadaria de pedra. Mas não era tá fácil assim: as escadarias estavam transbordando gente. As pessoas se acotovelavam e se davam rasteiras sem querer. Não viam a hora de chegar lá embaixo logo. Antes de entrar na torre, Pedro percebeu uma anomalia em uma das janelas da torre. No início, pensou que era uma estátua, afinal, antigamente naquela região os índios esculpiam santos em grandes troncos de madeira, mas aquela criatura não era santo. Estava longe de ser. A criatura era um quasímodo, com direito à corcunda e uma verruga enorme em um dos lados da face, oque fazia seu olho parecer um enorme balão. Mas era um quasímodo indígena. Um monstro que fazia suas pajelanças nas madrugadas frias dos pampas gaúchos. Estava sentado na janela meio deformada por causa do tempo, observando os bruxos lá embaixo, com um sorriso de criança estampado no rosto. As paredes de arenito que envolviam a escadaria, um pouco claustrofóbicas de início, logo foram se alargando e se abrindo em uma enorme câmara quadrada e escura. A não ser pelos degraus de pedra, que pareciam brilhar no escuro, o lugar estava em um breu total, quebrado aqui e acolá por bruxos que haviam pronunciado algum feitiço qualquer que fazia suas varinhas brilharem no escuro. Levemente tonto por causa da longa descida, Pedro aproximou-se da enorme porta de madeira quase caindo das dobradiças que havia na câmara. No centro da porta, as letras PRP estavam gravadas com algo que parecia fogo, e o lema da escola decorava cada canto da porta. Co yvy oguecero yara! - Essa terra tem dono! – Murilo sussurrou ao lado de Pedro, dando um susto no menino. – Minha mãe que me ensinou. É uma frase famosa do fundador da escola. Murilo empurrou a porta e arrastou Pedro junto com ele. Os dois meninos ficaram espantados com oque viram ali: continuavam no mesmo lugar. Atrás da porta havia uma reprodução muito bem feita das ruínas lá em cima. Parecia que estavam no mesmo lugar! Mas, após passarem alguns segundos no lugar, começaram a perceber algumas gritantes diferenças: aqui e acolá flutuavam estátuas sacras, talhadas em madeira, provavelmente feitas pelos índios. Anjos, estátuas de santos, monstros... De tudo um pouco. O lugar não tinha teto (igual as ruínas lá em cima), então quando os meninos olharam para cima, perceberam que aquela escola inteira estava sob um céu azul anil lindo. Estavam embaixo da terra, mas até sol aquele lugar tinha! 28


De repente, a atenção dos meninos foi solicitada por outro ser que havia acabado de chegar no salão em ruínas. Um homem vindo ninguém sabia de onde, com o chapéu de barbicacho puxado para a nuca. Estava com a cabeça erguida, e com um olhar de gavião que irritava e ao mesmo tempo fascinava as pessoas estampado no rosto. Devia andar lá pela casa dos trinta, montava um alazão e calçava botas chilenas de prata. O busto musculoso e apertado num dolmã militar azul, com gola vermelha e os botões de metal. Tinha um violão a tiracolo, com sua espada rabo de cavalo bem presa aos arreios do cavalo, rebrilhando ao sol daquela tarde. O lenço vermelho que trazia ao pescoço esvoaçava no ar como uma bandeira. Apeou até o meio do salão, e foi logo dizendo, sem tirar o sorriso do rosto: - Buenas e me espalho! Nos pequenos dou de prancha e nos grandes dou de talho! Uma plaquinha de metal costurada no dolmã mostrava o nome e o cargo do homem para quem quisesse ver: Capitão Rodrigo de Cambará, prof. de Defesa Pessoal. Enquanto todos os alunos mais velhos que já haviam chegado na escola iam cumprimentar o professor Rodrigo, fiquei observando a ruína usada como refeitória. Cabiam 500 pessoas naquele lugar, no mínimo. Desligando a mente contra interferências sonoras, Pedro e Murilo se dirigiram a saída do salão. Um enorme buraco na parede, com tamanho suficiente que dava para estacionar um caminhão ali. Deram de cara com oque não haviam imaginado nem nos seus mais loucos sonhos. Embaixo da terra havia... Um campo. Salpicado de árvores, belas construções e jardins enormes. Do lado esquerdo, uma enorme mata. Do lado direito, uma cidadezinha linda, protegida por altas muralhas de pedra. Cheia de cúpulas douradas e construções em estilo século passado. No portão principal, uma placa: CIDADE ESCOLAR E ADMINISTRATIVA P.R.P Atravessando a larga estrada de paralelepípedos, Pedro e Murilo se dirigiram para o meio da mata. Um mapa da escola, que Murilo havia recebido dos pais, mostrava os pontos principais da escola. Os dois estavam se dirigindo ao Cercado, acampamento onde os alunos sem condições de alugar casas ficavam. E bota acampamento naquilo.

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Centenas e mais centenas de barracas multicoloridas, dispersadas dentro de um enorme cercado de madeira em formato de quadrado. Barracas de dois andares, com jardins suspensos, pracinhas... Até torres algumas tinham! Os dois jovens ficavam com a barraca mais próxima da entrada. Uma barraca simples, mas aconchegante. As camas tinham colchões confortáveis e baús onde Pedro poderia guardar suas magras posses. - Estranho, o lugar onde os alunos dormem ser chamado de Cercado. Parece que estão nos tratando como animais, tu não achas? - Quem está nos tratando como animais? – Pedro perguntou, confuso. - Sei lá... Essa escola tem diretor?! Meu irmão não comentou nada comigo. Os dois meninos ficaram pensando nisso no caminho de volta para o salão em ruínas. Nenhum deles quis se aventurar pela escola. A Pampas do Rio Pardo era imensa! Tinha o tamanho de um vale, talvez até mais. Caso se perdessem ali, estavam fritos. Fritos e mortos, muito provavelmente. Circulavam boatos de que mil e um tipos de monstros circulavam lá pelo meio da Mata da Esquerda. A parede oposta à das portas era repleta de quadros de ex-alunos do colégio. Centenas. Alguns poucos estavam com defeito, e, portanto, não se mexiam. Outros três ou quatro estavam com defeito, e gaguejavam para os alunos mais novos mensagens de boas vindas. Vira e mexe um deles saía do ar, como uma televisão com um sinal fraco. Mas a maioria funcionava bem. Quer dizer... Bem como um quadro que se mexe deveria funcionar. Acenavam para os alunos, faziam piadinhas, davam dicas valiosas sobre o funcionamento da escola, conversavam sobre suas férias, falavam mal de certos professores... Pedro e Murilo chegaram em cima da hora anunciada para a abertura oficial do banquete, mas isso não fazia diferença. Estava tudo atrasado mesmo. Nem metade dos alunos haviam chegado, tampouco os professores. Os que lá estavam já haviam escolhido lugares nas centenas de mesas espalhadas pelo lugar. Algumas eram de dois lugares, outras de sete, algumas de cinco... Não parecia haver muito critério. Os alunos mais velhos usavam feitiços para alargar ou diminuis as suas. Geralmente alargar para 10 ou 15 lugares, conforme o tamanho do grupo. Nua mesa ao fundo, destacada das demais por uma elevação, sentava-se duas figuras rígidas e solenes. Uma mulher e um homem, vestidos em trajes mais do que formais. O homem eu já conhecia: era o grisalho mandão lá da superfície. Estava vermelho como um pimentão, claramente perturbado com o atraso gigantesco que aquela cerimônia estava sofrendo. À sua esquerda, uma mulher baixa e gordinha, usando um vestido de tecido simples com estampa floral. Cheia de sardas e extremamente branca, com um óculos fundo-de-garrafa cobrindo quase toda sua cara. Não parava de checar o enorme relógio de ouro puríssimo que carregava em um dos braços gorduchos. 30


- Aqueles dali são do conselho, eu acho – Murilo sussurrou, mas Pedro já havia desviado a atenção para outro adulto: um brutamonte branquelo, todo vestido de negro da cabeça aos pés. A pele era branca que nem papel, e os cabelos negros como petróleo iam até o meio das costas. Olhava com ar de superioridade para tudo e para todos, como se estivesse naquele banquete por pura obrigação. Observava tudo com extrema frieza e descaso. Chegava a dar arrepio. Todos os alunos pareciam evitá-lo, como se o homem fosse portador de peste negra. Havia ao menos duas fileiras de mesas vazias entre ele e o restante do populacho. O piadista do ônibus se juntou a nós na mesa que havíamos escolhido. - Posso ajudá-los, senhores? – ele chegou falando, todo feliz e com aquela aura hiperativa. - Por obséquio, será que tu pode nos informar quem são aquele senhor e aquela senhora ali? – Murilo foi logo falando, sem timidez nem anda. Ele já se sentia em casa, diferente de Pedro, que ainda estava em fase de acolhimento. - Ah, aqueles dali são do conselho – Felix tremeu. – O José é que escreveu nosso livro de Ética na Magia, e ele também é professor de ética. Deixo aqui uma pergunta para vocês me responderem no final do ano: quem fiscaliza o quão ético é o professor de ética? Pedro e Murilo deram de ombros, ligeiramente amedrontados com as futuras aulas de ética que estavam por vir. - Aquela senhora ali é nova. Zeus proteja e guarneça a alma daquela moça... Entrar para o grupo de conselheiros é como entrar em uma seita demoníaca, se é que vocês me entendem. A mesa, que inicialmente abrigará Pedro, Felix e Murilo, logo começou a se encher de estudantes, dos tipos e estilos mais diferentes. Felix era um verdadeiro chamariz de gente. Com o salão já lotado, o grisalho e austero José Mayer se levantou da cadeira e limpou a garganta solenemente, mas ninguém prestou muita atenção. Ninguém estava nem ai para ele. Os alunos, quadros, fantasmas e tudo que havia naquela escola continuaram batendo papo. Até o quasímodo indígena havia decidido descer e agora estava batendo um papo animado com uma pilastra. - Ei professor Augusto! – a menina sentada ao lado de Pedro chamou aluno que passava ali perto. ‘Professor’ era provavelmente o apelido dele. O tal Augusto abriu um sorrisão e acenou para a menina, que derreteu na cadeira. Augusto era realmente bonito. Sorriso perfeito, cabelo enroladinho, vestindo gravata borboleta e terno... 31


- Novatos, atenção: aquele galã de novela ali é o professor Augusto Saramandaia, ele ensina feitiços. Guris e gurias, abram o olho, porque o Augusto pega um, pega geral, e com certeza vai pegar vocês! – Felix disse, compenetrado, e em seguida soltou uma gargalhada maléfica. – Tô brincando, relaxa xente. Pedro quase caiu da cadeira quando descobriu que o tal Augusto Saramandaia era professor. Ele devia ter no máximo 17 anos! Naquele momento, entraram pelas milhares de portas e buracos que o salão tinha, bandejas e travessas de madeira flutuantes, cheias arroz carreteiro, saladas, vaca atolada, lombo de porco à moda Gaúcha, bolo de carne alemão... Murilo, vegetariano assíduo do jeito que era, atacou a primeira travessa de salada que passou perto da mesa. Fez uma montanha de folhas no prato, e em seguida começou a comer, fazendo caras e bocas mais do que satisfeitas. Provavelmente a comida não estava tão boa assim. De repente, o paladar élfico era diferente dos paladares humanos. Ou talvez Pedro que era chato mesmo e odiava salada. - Cadê o churrasco? – um menino gritou lá do fundo do salão. - Churrasco! Churrasco! Churrasco! Churrasco! – a escola inteira começou a bradar. O conselheiro se sentou novamente, de má vontade, com a cara da cor vermelho vivo. Com toda a certeza se sentia afrontado pelos alunos, que preferiam o churrasco do que suas palavras. Cinco minutos de pura gritaria depois, o astro principal do jantar chegou. Espetos e mais espetos de churrascos flutuando, acompanhados de facas muito bem afiadas, flutuando ao lado. Todos que levantavam o braço tinham seus pratos cheios de carne, mas esse braço levantado não podia durar mais do que meio minuto, se não a faca que acompanhava o espeto cortava o membro fora. - Coloca pouco, pelo amor de Zeus. Ano passado vocês encheram o prato até a altura da minha testa. Passei uma semana no banheiro – Felix brincou, e a faca, só de birra, encheu mais ainda o prato do menino. Os conselheiros lá no canto não tinham que atacar travessar nem nada. Estavam comendo do bom e do melhor: bebericavam Bouilabaisse, uma sopa afrancesada asquerosa, que mais parecia água suja. - É por isso que a escola não tem verba! – uma menina indignada juntou-se ao grupo mais deslocado do salão. Jogou todos os livros que trazia consigo na mesa, fazendo pratos, garfos e facas pularem. - Lá vem a Francine – Felix anunciou. A menina fez cara feia, mas ele deu aquele sorriso perfeito. Ela desviou o olhar.

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- Mas é! Olha que palhaçada! Todo o ano é assim! Aqueles três acham que são melhores que nós e gastam uma fortuna importando comida do exterior! Ou vocês acham que aquela comida é feita aqui? Ela vem direto da França, querido! Os cozinheiros afrancesados mandam tudo pela rede de Flu, pra comida chegar quentinha ainda. - Mas isso não é o pior ainda, Francine – o cara dos dreadlooks se juntou ao grupo. Ainda estava com a mesma roupa que Pedro havia visto no ônibus. Nem o óculo ele havia tirado ainda. – O pior é quando eles se alimentam de foie gras de Fênix! Isso é criminoso! Fênix só renascem quando morrem de morte natural, não de morte matada! - Senhoras e senhores, apresento à vocês o grupo mais inconformado da mesa! – Felix comentou, divertindo-se. – Vocês formam um bom casal até... A menina deu uma livrada na cabeça de Felix, que cuspiu um tomate cereja inteiro na mesa. - A salada tá boa hoje, mano? A Marta não virou veneno ai não? – o cara dos dreadlooks se dirigiu a Murilo. - Tá sim. Tô comendo isso aqui a uns dez minutos e ainda tô vivo, mano! Murilo abriu um sorriso enorme, salpicado de folhas de alface. Então eles eram irmãos?! Como Pedro não havia percebido? Os dois tinham orelhas pontudas, os dois eram vegetarianos, os dois tinham os mesmos tons de pele... Um era uma cópia do outro! A diferença era que o dos dreadlooks era uns quatro anos mais velho que Murilo. De repente, todo o salão se calou. Era como se a lei do silêncio tivesse baixado naquele lugar. Na porta do salão, lá, muito bem vestida com um casaquinho vermelho e uma calça social preta, estava a terceira conselheira, tão mal falada por todos os alunos. Marta Elizandra Junqueira de Queiróz era a extrema cretina do grupo de conselheiros. Parecida com um esqueleto de peruca marrom, tinha predileção por respostas ríspidas, olhares cheios de significados e situações que deixassem os alunos em uma verdadeira saia justa. Estava lá, parada, com cara de bruxa. Bruxa não. Com cara de vaca, mas falar tal barbaridade é ofender os bovinos. - Eu exijo silêncio – Marta disse, curta e grossa. Os dois conselheiros foram se juntar a ela, perto da porta. – De agora em diante, quem abrir a boca será submetido a tratamento de choque. Em seguida, todos os alunos, sem exceções, foram submetidos a uma ridícula e desnecessária revista, efetuada pelos próprios conselheiros. Marta, José e a gorda 33


passavam a varinha bruscamente pelo corpo dos alunos, que nem reclamar podiam. Se a varinha mudasse de cor... O aluno era mandado para fora do salão, e ninguém sabia oque acontecia com ele. Entre uma revista e outra, Marta andava pastando de mesa em mesa. Observava atentamente a cara de cada aluno, e tentava meter medo em todos eles, com sua cara de desprezo total. Parecia um monstro. Um monstro autoritário, chato, mandão e feio, e que ainda por cima, se achava o tal. - Como eu estava dizendo, antes desta mais-do-que-agradável interrupção... – José Mayer continuou logo que as revistas acabaram. Dessa vez, com a cara branca que tinha. – A Pampa du Riô Pardôn é uma escola de excelência. Temos uma série política de um toque. Aprontou? Tá fora! Uma jarra de suco se espatifou lá no fundo, solicitando imediatamente a atenção dos alunos. Provavelmente alguma travessa estava fazendo birra com o conselheiro. - Mais uma dessas e eu quebro a bandeja no meio – Mayer disse, estressado, e continuou o blá, blá, blá. Falava sobre as três escolas da região sul do Brasil, sobre a meta de colocar a Pampas em ordem para um grande evento que iria ter no ano que vem, sob a necessidade imediata da reforma da sala de Alquimia, mas que a escola não tinha verba suficiente para isso... - Mentira – Francine sussurrou. Marta podia não ter ouvido oque a menina tinha falado, mas havia visto os lábios dela se mexerem. Deu uma longa encarada na menina e depois voltou a andar entre as mesas. Quando todos foram liberados do salão, Pedro já estava com fortes dores em um lugar nada agradável. Ele e metade da escola, pelo visto. Aquelas cadeiras da Rio Pardo eram mais do que desconfortáveis. Pedro, Felix, Murilo, Antares (nome do irmão do seu amigo elfo) e Francine estavam indo em direção ao Cercado quando uma explosão dentro dos limites da cidade Escolar e Administrativa chamou a atenção de todos.

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Capítulo 7

NEGRINHO DO PASTOREIRO Os conselheiros saíram correndo do refeitório e foram em direção à cidade construída especialmente para eles. Até correndo eles eram formais! Não corriam desesperados, e sim calmamente, sem perder a postura. Uma lenda da época da escravidão atravessou a parede de pedras que cercava a cidade. Um negrinho mais do que magro, só de bermuda e com uma expressão divertida no rosto. Montava um alazão branco legítimo, mas igualmente fantasmagórico, como o menino. Dava até para ver através deles, como se fossem vidros embaçados. O negrinho carregava uma bandeira de pano na mão. Verde, amarela e vermelha, e com as letras PRP no meio. Circundando as letras, o lema da escola. Será que eles não conseguiam parar de usar essa combinação? - Viva a Rio Pardoooo, aiêêêê! – o menino gritou, se divertindo. Todos caíram na gargalhada, mas logo começaram a correr quando perceberam que o cavalo fantasmagórico estava vindo na direção dos alunos. Marta pronunciou algum feitiço em estrangeiro, e a ponta de sua varinha saiu um touro fantasmagórico, cor de leite. Bravo, impávido e colosso. Foi na direção do negrinho, que começou a correr sem parar, mas com a bandeira junto ao corpo. Aquele ali não desistia nunca. O touro continuou perseguindo o Negrinho por mais alguns metros, mas de repente, se dissipou no ar. Puf. Mas nem por isso o moleque parou de correr. Estava morrendo de medo do touro. Provavelmente, se o touro fantasmagórico acertasse na 35


criança fantasmagórica... Iria gerar um enorme machucado fantasmagórico, e em seguida, uma morte fantasmagórica. Pedro ficou com pena do menino, mas a conselheira que havia conjurado o feitiço estava lá atrás, rindo. Será que aquela mulher não tinha coração?!

Quando todos chegaram ao Cercado, uma grande festa se iniciou. Completamente isenta de conselheiros ou professores. Fogos de artifício foram lançados, pessoas começaram a voar em vassouras ou decolar com pisantes voadores... Até uma fogueira foi feita lá pelo meio do acampamento. Pedro, morto de cansaço, com os cortes voltando a doer e sonolento, se despediu de todos e se dirigiu para perto da sombra de uma árvore. Antes de cair no sono, viu que um homem havia se debruçado sob ele. Um homem branco perolado, com traços indígenas e uma cicatriz familiar na testa... - É esse mesmo, coronel. Tenho certeza! – o homem disse, e Pedro apagou.

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Capítulo 8

AULAS RIO PARDENSES O sol já havia raiado ao longe, lá nas coxilhas da Rio Pardo, quando Pedro acordou sem quase nenhuma recordação do dia anterior. Apesar da grande maioria dos alunos continuarem no sétimo sono, de cara na grama ou dentro das barracas, tudo já havia sido devidamente limpo e arrumado. Ainda um pouco grogue, Pedro dirigiu-se ao dormitório. Os relógios espalhados pelo Cercado marcavam dez minutos para as nove da manhã. Dez minutos e ele, mais metade da escola, estariam mortalmente atrasados para o primeiro dia de aulas. - Bom dia, bela adormecida – a voz era inconfundível: Felix havia ocupado uma das três camas da barraca em que Pedro e Murilo haviam escolhido. Felix já estava pronto. Uniforme devidamente posto, mochila perfeitamente arrumada, cabelo impecavelmente penteado... Provavelmente o menino tinha acordado às 6h da manhã para fazer tudo aquilo. Murilo estava terminando de se arrumar enquanto organizava a mochila. Pedro tomou um banho rápido no chuveiro mais próximo da barraca (um legítimo chuveiro de praia, à céu aberto e sem nenhum tipo de box na volta) e correu contra o tempo para colocar o uniforme da escola; pilcha completa. Lenço, camiseta, bombacha, botas... Uma música gaúcha mais do que alta começou a tocar pelos quatro cantos da escola, provavelmente para acordar os dorminhocos restantes. Vinda de caixas de som invisíveis, fazia a escola inteira tremer:

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Seeeeemo bem loco Loco de buenooo Mas têmo o venenooo na folha da faca Quando o sangue ferve viremo a cabeçaaa Por Deeeus paysano Ninguém ataca!

A primeira aula do dia era História da Magia Europeia, com Roque Tavares. Os três saíram do dormitório, mas só dois deles iriam tomar o mesmo rumo. Felix, que era do quinto ano, se dirigiu aos andares subterrâneos da escola, onde ele afirmava ter aula de Alquimia com o ‘bicho papão’. Pedro e Murilo ainda teriam que esperar um pouco para descobrir quem era o professor que lecionava a matéria no subterrâneo. Alquimia era só na sexta-feira. O coração de Pedro disparou ao ver um animal lindo em sua frente. Ele sempre havia sido fascinado por unicórnios. Desde pequeno queria ter um. E aquele então... Majestoso, completamente branco e com músculos perfeitos reluzindo a luz do sol. E como se não bastasse, estava brincando de rolar na grama com o professor Rodrigo de Cambará. O professor ria e fazia cócegas no bicho como se aquele animal enorme fosse seu cachorro de estimação. Sempre desviando do chifre, claro. - Sempre achei que os unicórnios não gostassem muito de seres humanos - Pedro comentou, sem tirar os olhos do animal. Ele relinchava brincalhão, fingindo que ia morder o professor. - Na verdade, eles são. Mas de alguma forma o Cambará conseguiu domesticar aquele dali – Murilo confirmou enquanto ele e seu amigo chegavam no pátio principal da escola. O pátio era colossal, maior que qualquer estádio de futebol. Um estádio de futebol circular, salpicado de mesas e bancos de praça. O mármore do chão formava uma o desenho de uma grande estrela negra de cinco pontas, rodeada por mármore branco. Bem no centro dela, surgia um árvore grande e imponente, que subia com seu tronco massivo de 700 metros até quase encostar-se no céu do lugar. - Sabia que já pensaram em instalar salas de aula na árvore? – Murilo comentou, cheio de raiva – Coisa do conselho escolar, claro. Os elfos nunca iam deixar. Onde já se viu, abusar da natureza a esse nível?!

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A maioria das salas de aula ficava dentro da cidade criada pelo Conselho Escolar. Isso não era diferente com a sala de História da Magia Europeia. Provavelmente era uma das salas mais velhas do lugar, mas também uma das mais simples. Mesa, cadeira, quadro negro, fim. O professor ainda não estava presente quando a turma chegou, mas quando apareceu, a turma entrou em silêncio absoluto. O homem parecia ter brotado do chão, já sentado em um banquinho de três pernas! Um homem muito velho e cheio de cicatrizes. O cabelo longo grotescamente cortado até a altura dos ombros. O professor tinha traços indígenas, mas não demonstrava sua origem no seu modo de se vestir. Roupas velhas e acabadas, carcomidas pelas traças. Roque Tavares, após longos 10 minutos de silêncio absoluto, decidiu falar: - Quando eu nasci, todo esse Rio Grande era campo e mato. Os índios eram os únicos donos da terra. Minha mãe me deu o nome que guardo até hoje: Roque Tavares. - Fessô... – um menino loirinho e minúsculo chamou lá no fundo da sala, encolhido de tão tímido – O senhor quer dizer que quando chegou, o estado era despovoado? Roque gostou da pergunta. - Despovoado, não era. Muito pelo contrário: era todo povoado. Na região da serra andavam os guaianás, do grupo Gê, também chamados de coroados. É deles que descendem os kaigangues, esses que vocês veem vendendo artesanato. No centro do estado viviam os tapes, da Nação Guarani. No litoral e na região da Lagoa dos Patos se encontravam os carijós e os arachanes, também guaranis, e no sul, os charruas e os minuanos, que eram guerreiros ferozes e exímios cavaleiros – tudo oque Roque falava, um giz mágico anotava no quadro. Sozinho, sem precisar de ninguém para segurá-lo e manuseá-lo. Roque deu uma pausa, como que se estivesse a reunir memórias. Uma pausa longa. Devia ter durado uns quinze minutos. - Isso foi há muito tempo. Eu era um índio grande e forte, o melhor caçador da grande tribo dos Tapes. A minha flecha alcançava qualquer bicho, gente ou monstro, por mais ligeiro e espero que fosse. Naquele tempo haviam muitos animais aqui: veados, capivaras, porcos-do-mato, tigres, bois-tatá... Roque fez novamente uma longa pausa. Boa parte da turma já estava dormindo. - Morávamos em uma grande aldeia, chamada taba. Em cabanas de tronco e palha, chamadas de ocas. Em cada uma viviam várias famílias e no centro da taba havia um espaço aberto, onde eram realizados os festejos. O chefe era o Cacique, também

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chamado de Tubichá. Era sempre o melhor guerreiro, o melhor diplomata... Cabia a ele fazer com que todos cumprissem as leis. Mais uma grande pausa. Essa durou quase até o fim do período. Pedro havia começado a se sentir sonolento. Murilo já estava no terceiro sono. Quando a sineta que anunciava o fim do período tocou, a turma inteira se levantou, automaticamente. Alguns ainda sonolentos, meio tontos, mas mesmo assim, de pé.

Próxima aula do dia: Segredos do Mundo Animal, com Gemma Bertolazzo Morando Veneza Buffon Pierobon de Manin, nome grande para uma mulher monstruosa e abominável. Pedro já conhecia aquela ali do jantar. Era a tal da 3ª conselheira misteriosa, recém-contratada para ocupar o cargo. A aula de Segredos do Mundo Animal era dada na orla da mata da esquerda, ou melhor dizendo, floresta da esquerda. Perto da cidade do Conselho, a floresta era diminuta, mas ali as árvores eram grossas, frondosas e extremamente verdes. O chão era adornado por flores exóticas dos mais variados tipos, cores e aromas. Sua grandiosidade era de tirar o fôlego, Pedro não podia negar, mas Gemma havia feito questão de tirar boa parte do encanto do lugar. Havia colocado bandeirinhas de sua terra natal aqui e acolá, e os alunos foram obrigados a se sentar em assentos desconfortáveis e de plástico, produto nada condizente com o ambiente em que se encontravam. Murilo ficou furioso com a total invasão que a professora havia feito no lugar onde a maioria de seus parentes morava. Gemma não era especialista em coisa nenhuma sobre o mundo animal. Tratava os animais com total indiferença. Jogava-os longe, dava beliscões neles... Murilo quase surtava na cadeira, preparado para pular nas mãos gordas da professora. - Tutto quello che faccio è in conformità com i diritti degle animali! – Gemma afirmava com seu irritante italiano fluente. O conselho não havia dado tempo para a mulher aprender português. Simplesmente havia mandado ela para a sala de aula, ela que se vire! - Duvido muito... – Francine sussurrou atrás de Pedro e de Murilo. Só agora os meninos haviam percebido a presença dela ali. - Non ci sussurra nella mia classse, la signora Arancine. - Francine – a menina corrigiu, perdendo as estribeiras com a professora. - Qualunque!

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- Vai a senhora! – Francine retrucou. A turma inteira riu. Gemma fitou a menina através de seus óculos fundo-degarrafa por um bom tempo. Francine encolheu na cadeira de plástico. Resumo da aula da Gemma: desastre total. A conselheira havia trazido direto de sua terra natal uns animais grotescos, parecidos com cubos de gelatina. Desastrada, conseguiu derrubar a caixa de papelão em que os animais estavam no chão. Os cubinhos imediatamente começaram a saltitar para longe. Gemma tentou agarrá-los com suas mãos gorduchas, mas esqueceu-se de que o líquido que saia dos cubos era tóxica. Queimou as duas mãos e foi parar na enfermaria. Isso diminuiu a aula mais ou menos em meia hora. Pedro já estava ficando impaciente. Duas aulas já haviam se passado e nada deles aprenderem como mexer com varinhas. A próxima aula prometia saciar a fome do menino. Feitiços, com Augusto Saramandaia. Pedro mal sabia de que estava mortalmente errado.

Augusto Saramandaia era um anjo vindo dos Céus comparado a conselheira Gemma. Delicado, atencioso, cheio de manias, mas tão indisciplinado que chegava a doer. Augusto propôs um duelo entre os alunos. Qualquer tipo de feitiço era válido, afinal, ele duvidava que qualquer aluno naquele primeiro dia conseguisse conjurar o mais simples dos feitiços. Ao menos por enquanto. Pedro foi logo escolhendo o feitiço mais legal do primeiro capítulo de seu livro de feitiços: Wegwerfen, feitiço em alemão, complicadíssimo de se pronunciar. Augusto tomou um susto quando viu Murilo, que era a dupla de Pedro, voar com força total para trás e cair de costas no chão de madeira da sala de Augusto. Para falar a verdade, até Pedro ficou assustado. Olhou para a varinha com enorme curiosidade, como se tivesse acabado de encontrar uma arma no fundo de sua gaveta. - Tem que ter calma, rapaz! – Augusto disse para Pedro enquanto ajudava Murilo a se levantar. O loiro estava todo machucado, provavelmente tinha quebrado algum osso. - Calma?! Mas professor, tu afirmou que nenhum de nós ia conseguir efetuar qualquer tipo de feitiço! - Sim, eu afirmei... – Augusto estava perdendo o controle, ficando desesperado. Não sabia oque fazer diante de tal afronta. – Custava escolher um feitiço mais leve, menino? Pedro se despediu de Murilo e saiu da sala, deixando o professor indisciplinado berrando lá atrás. O menino dirigiu-se direto a barraca. Se jogou na cama e puxou um 41


livro da coleção de Felix: Magia Proibida e Maldições de nível Básico – como deter seu inimigo? Se não iriam ensiná-lo nada descente em sala de aula, iria aprender sozinho.

Capítulo 9

BOLEADA BRUXA As horas que deveria passar almoçando, Pedro passou treinando feitiços na barraca. Ateou fogo em pergaminhos que jogava no ar, transformou suas camisetas antigas em pó com apenas um feitiço, explodiu seu travesseiro e depois o remendou com um feitiço mais simples... Todos os feitiços tinham nomes e pronúncias complicadas. A maioria era em tupi, os outros eram em iorubá, bantu, alemão, espanhol... Alguns poucos eram em latim, mas estes não funcionavam direito. Vinham com defeito. Todos os feitiços que Pedro testava davam certo. Isso trouxe de volta o bom humor do menino, que se animou em ir para a aula de Antifísica, às 14h na quadra esportiva que ficava ao lado da cidade do conselho. No caminho da aula, escutou a palavra ‘magia negra’ vinda de alguma sala da escola. Isso fisgou o menino, que foi direto para a porta da sala de onde a palavra havia partido. A porta estava entreaberta, e Pedro pode observar uma professora gordinha lá dentro. Gordinha, baixa e ruiva. Na porta, uma identificação: OS PERIGOS DA MAGIA NEGRA, com NORMA SHWAB. A mulher, ao ver que Pedro estava espionando ela, levantou-se do semicírculo de alunos onde estava sentada e bateu a porta na cara do menino. Não quis nem conversa. Ótimo, tudo oque ele precisava naquele momento. Segurando a vontade que teve de sacar a varinha e mandar a porta da sala pelos ares, Pedro chegou na quadra de antifísica espumando de raiva. O professor já estava lá.

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Era magro, com o corpo atlético. Cabelos negros até o ombro e o no rosto fino havia um óculos de sol. Provavelmente era um corredor nato. Tauro Bonorino não notou a presença a chegada de Pedro, graças a todos os deuses. Tudo oque o menino precisava naquele momento era de mais uma complicação em sua vida. Enquanto Tauro discursava sobre a verdadeira arte que era voar, lá na frente da turma, Murilo veio falar com Pedro. - Onde é que tu foi te meter? O Augusto quase foi atrás de ti! – o elfo segurava um saco de gelo ao lado da cabeça, mas parecia não guardar rancor nenhum de Pedro. - Ele que venha! – Pedro respirou fundo e prosseguiu – Estava estudando. Já que não aprendi nada na aula do Augusto, isso não significa que eu não possa aprender por conta própria. - O Augusto nos ensinou como conjurar dois cubos de gelo! - Muito útil isso... – Pedro revirou os olhos. - Foi assim que eu conjurei os seis que estão aqui – Murilo sacudiu o saco plástico na frente de Pedro. - Mas e o saco plástico, quem conjurou? - Ninguém. Tive que buscar o saco lá na enfermaria... - Então! – Pedro exclamou e venceu a discussão. Murilo acertou um tapa leve em sua cabeça, e os dois começaram a prestar atenção ao professor, que estava discursando lá na frente da turma. - Caiu? Morreu! – Tauro segurava uma vassoura na mão direita e um par de pisadores na mão esquerda. Os pisadores, meio velhos e desgastados, tentavam voar para longe dos dedos do professor. – Todos os esportes ligados ao voo são brutais, não há como negar. Neste ano, os ensinarei o mais básico e mais famoso entre nós, alunos e professores da Rio Pardo: Boleada Bruxa. O professor jogou longe os objetos de voo, que começaram a voar imediatamente em direção ao céu azul anil da escola. Tauro abriu um baú de madeira que estava aos seus pés, e dali tirou um objeto estranho, uma tal de boleadeira. Eram compostas por duas bolas de pedra polida, amarradas entre si por uma corda entrelaçada. Parecia aqueles brinquedos antigos, chamados bate-bate, só que mais brutais. - A boleadeira é a herança que as tribos da região do Plata deixaram a nós gaúchos. Entre todos os utensílios de casa e armas utilizadas pelo nosso povo, nenhum é mais característico e peculiar que a boleadeira.

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Tauro lançou o objeto no ar. A boleadeira saiu voando sem parar, como as hélices de um helicóptero. Foi na direção dos pisantes que brincavam lá em cima ao ar livre. Ela se enroscou nos dois e os derrubou no chão. Fácil assim. - Com o passar dos séculos, as boleadeiras deixaram de ser apenas utensílios usados em guerra e começaram a fazer parte de um dos esportes mais importantes do nosso mundo. Hoje vou ensinar a vocês como manuseá-las. Todos trouxeram as luvas de couro? Ninguém havia trazido luva alguma. Isso não estava na lista de materiais. Tauro revirou os olhos e, indignado, começou a tirar velhas e gastas luvas de couro de dragão de seu baú de madeira. Aquela pequena caixa comportava muito mais do que parecia comportar. Provavelmente tinha fundo falso. Depois de todos estarem calçados de luvas, Tauro começou a distribuir teimosas boleadeiras para cada um dos alunos. Estavam gastas e meio lascadas, mas davam para o gasto. - As boleadeiras são lançadas girando entre si, como um frisbee. – Tauro explicou enquanto distribuía os objetos. – Elas vão de encontro ao alvo, geralmente as pernas de uma pessoa, que leva um tomo na hora. O esporte é praticado com todos os integrantes dos dois times ou mais montando em vassouras, mas não se preocupem. Caso caíam, e podem ter certeza, vão cair, do chão vocês não passam. O professor se divertiu com a resposta, mas seus alunos ficaram aterrorizados. A maioria pulou fora da aula, dando alguma desculpa esfarrapada, tal como “preciso ir no banheiro” ou “esqueci meu caldeirão no fogo!”. Haviam restado apenas quinze alunos onde antes havia tido mais de quarenta. Tauro não reclamou. - Hoje vocês não irão montar nas vassouras. Estão livres deste perigo, ao menos por enquanto. Na aula de hoje quero que vocês mirem as suas boleadeiras nos alvos que irão aparecer nesta quadra. Será que conseguem fazer isso? – o professor desafiou os alunos. Encorajados, todos disseram que sim. Os tais alvos eram espantalhos esfarrapados, feitos por algum servente da escola. O professor mal jogava os espantalhos no ar, e logo eles já começavam a se desfazer em pedaços. Os alunos acertaram nos braços, pernas, barriga, cintura... Todos os lugares possíveis. Tauro berrava lá na frente: “mirem nas pernas. NAS PERNAS, GURIZADA!”. Pedro era muito mal de mira, então acabou degolando o boneco em sua primeira tentativa. A boleiadeira se enroscou em torno do pescoço de pano do espantalho, apertando-a. Aquilo poderia matar, caso ele estivesse vivo. 44


- Xiu, ô de branco, abre o olho! – Tauro disse para Pedro, mas o garoto não ficou estressado com o comentário irritado do professor. Continuou tentando, tentando e tentando. Aquele esporte era relaxante! O ruim era quando Pedro ou qualquer um dos 14 restantes errava a mira e não acertava em nada. A boleiadeira dava meia volta e, com a mesma força que havia sido lançada, voltava na direção do seu arremessador. Inegavelmente, era um esporte brutal. No final do treino, estavam todos cansadíssimos, mas esperançosos. Aquela aula havia sido muito divertida. Após passar no vestiário, Pedro começou a ir em direção ao Cercado, sozinho. Murilo havia ido para o meio da floresta. Estava prestes a ter uma reunião de família, disse o elfo. Mas a mesma voz fina e irritante chamou a atenção de Pedro enquanto o menino se aproximava do Cercado. Norma Shwab havia voltado ao ataque, e dessa vez não estava sozinha. - Aquele guri é um perigo, Cambará! Tô te falando, cara, abre o olho! - Não seja tão cruel com o guri, Norma... Ele acabou de chegar na escola. Espera umas semanas, até ele se adaptar – Pedro reconheceu a voz do interlocutor de Norma imediatamente: era o professor Rodrigo. - Mas eu tive uma visão! Ele vai destruir essa escola! – Norma disse isso em tom de urgência. - Norma, sem querer ofender, mas já ofendendo... – o capitão respirou fundo – Se tu realmente tivesses visões que prestassem, seria professora de Artes Adivinhatórias ou algo similar. - Cambará, pelo amor de DEUS, me escuta! Aquele guri é a ruína da Rio Pardo! Ele vai ser a causa de um verdadeiro genocídio aqui! Pedro tinha certeza que a velha estava se referindo a ele. Aquela Norma Shwab havia implicado com ele desde que o virá pela primeira vez. O sol já estava se pondo lá no lado Oeste da Rio Pardo. Já havia começado até a esfriar, mas Pedro não arredava o pé daquela porta enquanto não escutasse a conversa até seus últimos minutos. - Não exagera, Norma, não exagera... Tu tá meio alterada hoje. Andou tomando de novo aquele chá de pó de Flu? Quantas vezes eu já te falei que não se bebe pó de Fluxo... - Eu não sou criança, CAMBARÁ! – Norma berrou e derrubou algo dentro de sua sala. Pedro enfiou o rosto pela porta que estava entreaberta. O ambiente lá dentro estava escuro e gélido, como um cemitério durante a noite. Cambará estava sentado na 45


cadeira que ficava defronte a professora, com os pés muito bem pousados na mesa de Norma. - Eu sei que tu não és, mas parece... – o professor provocou. - Tu vieste aqui pra ajudar-me ou para me provocar?! – Norma explodiu. - Eu vim aqui porque eu fui obrigado. Norma olhou de cara feia para o professor. A chaleira estava prestes a ferver ali dentro quando de repente... - Posso saber oque o senhor está fazendo aqui depois do toque de recolher?

Capítulo 10

CRIME E CASTIGO Marta Elizandra Junqueira de Queiróz, a suprema cretina do grupo de conselheiros, estava parada próxima a Pedro. A aura demoníaca que a mulher possuía estava a todo vapor, mas a mulher não demonstrava nenhum traço de raiva no rosto. Se limitava a encarar o menino com um olhar gélido e sem significados. - Senhora conselheira... – Pedro foi logo se adiantando. A conversa dentro da sala de aula de Norma havia cessado. – Eu estava indo para o Cercado! - Mentira. – Marta concluiu resoluta. – Eu estou aqui, parada, há mais de cinco minutos, só te observando escutar a conversa alheia. Soubestes que aqui na Pampa, isso é considerado crime, não soubestes? Pedro assentiu, mesmo que não soubesse de porcaria nenhuma. Então, agora, ele era um criminoso? Será que havia escutado bem? A porta da sala de Norma se abriu, e a mulher quase caiu para trás quando viu Pedro na sua frente. Cambará veio por trás e a segurou. O menino jurou que havia visto a sombra de um sorriso nos lábios do professor quando ele o viu. Será que estava de deboche ou realmente havia ficado feliz com a presença de Pedro? - É uma pena, mas creio que o senhor terá de ser seriamente punido, sr. Bandeira – Marta disse, seca como os poços do deserto do Saara. - Mas o piá não conhecia essa lei, Marta. Dá um desconto pro guri! - Cambará se meteu no meio, deixando a professora Norma atirada no chão da própria sala, desacordada. 46


- Vou dar desconto é no teu salário, professor Rodrigo. Contenha-se, por favor. Marta era tão seca, ríspida e sem sentimentos que chegava a assustar. Parecia um robô. Um robô maligno, construído para arruinar a humanidade. A conselheira puxou um bloco de notas e anotou algo ali, rapidamente. Entregou o papel para Pedro e girou nos calcanhares. Provavelmente havia ido atazanar a vida de outro. Antes a mulher sair de cena, Pedro jurou que havia visto um rastro de felicidade percorrer o seu rosto.

AÇOITAMENTO DIA 06/03/13, 12h, no pátio principal. Pedro ficou chocado com o castigo que havia recebido. O professor Cambará tentou consolar o menino por um momento, mas, assustado, Pedro saiu correndo do lugar, direto para o Cercado. Chegando lá, jogou-se em sua confortável cama. Graças a todos os deuses, o lugar estava vazio. Nervoso e com a cabeça pesada, Pedro pode chorar em silêncio, completamente assustado e perdido com a situação. Mal ele sabia que seus problemas com a conselheira estavam apenas começando.

No dia seguinte, Pedro acordou cedo, tomou banho e foi tomar café da manhã. A notícia de que seria açoitado em poucas horas já havia ido de boca e boca na escola. Todos já sabiam do que aconteceria com Pedro. A grande maioria dos alunos do primeiro ano estava evitando o menino. Os alunos das séries restantes o olhavam com olhares cheios de pena. Antes de ir almoçar, Pedro perambulou pela escola. Foi até um grande açude que ficava no meio da floresta, e quase se perdeu ao tentar voltar a sua barraca. No Cercado, nem sinal dos amigos, oque o obrigou a ir almoçar sozinho. Serviram canja morna com pão naquele dia. Uma comida triste e sem sal para um dia triste e sem sal, ao menos, para a grande maioria dos alunos. Logo no segundo dia de aula já teriam um açoitamento. Pelo visto, Marta não estava para brincadeiras naquele ano. Enquanto remexia a sopa, sem fome, Pedro ficava observando a paisagem que ficava do lado de fora do salão. O vento arrastava folhas por todos os cantos. Até o salão estava cheio delas. Folhas feias e secas como a conselheira Marta. Tudo lembrava a Marta naquele momento. Pedro só foi esquecer a mulher quando Murilo, Felix, Antares e Francine se aproximaram dele no refeitório. 47


- Nervoso? – Felix perguntou, sem festejos. Estava claramente chateado e abalado. - Na verdade, estou tentando não pensar no assunto – mentiu Pedro. - Eu também tentaria, mas Pedro, entenda uma coisa; – Antares chegou perto do menino e passou a mão pelos ombros dele – o problema não é tu. O problema é a Marta. É ela que anda por ai procurando qualquer motivo para castigar os alunos, por mais simples que seja o motivo. - A maluca da Norma Shwab que tava falando de mim! A culpa não foi minha! Fui traído pela minha própria curiosidade... – comentou Pedro. - Respira, inspira e o mais importante de tudo: não pira. Isso vai passar, Pedrão, basta ter fé – Antares disse, e essas palavras fizeram Pedro se sentir melhor. Logo que terminaram de almoçar, os cinco saíram do salão, em direção ao pátio colossal que a escola tinha.

Respira, inspira, não pira. Antares havia comprado suco de abacaxi bruxo no Bolicho mais próximo. O elfo havia conseguido uma planta rara para Pedro engolir. Uma planta capaz de curar feridas rapidamente e amenizar a dor. O suco não ajudou a disfarçar em nada o gosto horrível de giz que aquela planta tinha. Não muito tempo depois, a sineta da escola bateu 12 horas. Os alunos, invés de irem para as aulas que teriam no quarto período, se dirigiram todos para o pátio colossal. Marta, a torturadora, havia chegado ao lugar tão rápido que provavelmente havia usado patins. Pedro tentava a todo custo sufocar a onda de culpa que havia invadido seu corpo. Conhecia Antares e Murilo há menos de um dia, e eles já haviam feito o possível e o impossível para ajuda-lo. Ao caminhar para o mastro da bandeira que havia sido instalado perto da árvore colossal que o pátio tinha, Pedro sentiu o peso dos olhares da aglomeração pesarem sobre seus ombros. Quantos seriam? Quinhentos? Seiscentos? Setecentos? Pedro caminhou firme para o mastro, em meio a um mar de sussurros. Não ficou com queixo erguido por causa do orgulho, pois sabia que isso podia fazer com que todos se voltassem contra ele. Mas também não se mostrou arrependido. Se comportou com dignidade e respeito, sem medo nem pesar no rosto. Se Marta era ruim, Pedro seria pior. O pior pesadelo que a conselheira já havia tido em muito tempo.

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Enquanto andava, sentiu a planta com gosto de giz apoderar-se firmemente dele. Ficou totalmente desperto, enquanto tudo ao seu redor ganhava uma luminosidade dolorosa. O tempo pareceu se arrastar quando Pedro se posicionou perto do mastro. Não viu nenhum dos professores na aglomeração, exceto o esquisitão todo vestido de negro que havia visto no refeitório na cerimônia de abertura do ano letivo. Os olhos dele se cruzaram com os de Pedro, e sua boca torceu-se num sorrisinho arrogante e cheio de significados, endereçado a Pedro, com toda a certeza do mundo. Marta estava parada, impassível, ao lado do mastro. Encarava tudo e todos com ar de superioridade, como se todos ali fossem esmagáveis. Pedro decidiu que preferia arrancar a língua com dentadas a prestar qualquer tipo de explicação para a conselheira. Quando os olhares do menino se cruzaram com o da mulher, ele abriu um largo e confiante sorriso, depois virou o rosto. Então Pedro chegou ao mastro. Ouviu José Mayer ler alguma coisa, mas as palavras não passaram de um vago zumbido, enquanto Pedro tirava a camisa branca e a jogava no chão. Tirou a camisa de forma lenta e isenta de qualquer pressa, como se estivesse preparando-se para tomar um banho. Uma mão veio em minha direção e agarrou meu pulso com força. - Não precisa tirar a camiseta – rosnou José Mayer. - Não vou estragar uma camiseta perfeitamente boa com essa palhaçada aqui – retrucou Pedro. O conselheiro o encarou com estranheza, como se estivesse tentando dizer “quem tu pensa que é pra falar assim comigo?”, mas permaneceu calado. José amarrou as mãos de Pedro no mastro com força suficiente para interromper a circulação do menino. Pessoas se afastaram do mastro. A multidão calou-se e não ouve nenhum som além do sibilar e estalar do chicote soltando-se atrás de Pedro. A lei do silêncio baixou sob o lugar, pela segunda vez em dois dias. E então, antes que Pedro pudesse preparar-se para levar a primeira chibatada, houve um estalo mais alto. O menino ouviu o estalo mais com o corpo do que com o ouvido. Sentiu uma linha ardente tomar conta de suas costas. Pedro trincou os dentes. Não foi tão ruim quando havia imaginado. Mesmo com as precauções tomadas, havia esperado algo mais forte, mais agudo e mais lancinante. Veio a segunda chibatada. Pedro prendeu a respiração e fechou bem os olhos, já que no momento, sua visão havia se tornado turva como se estivesse novamente dentro do ônibus que o havia transportado para a escola. A terceira chibatada veio antes que Pedro pudesse se preparar. Um risco de dor percorreu seu ombro esquerdo até o quadril. Havia começado a sangrar.

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Depois disso, ignorando completamente a queimação nas costas, Pedro colocou os pés novamente em terra firme. Soltou-se das fortes amarras feitas por José Mayer com uma facilidade quase inacreditável. O conselheiro levantou de um pulo, como se esperasse ter de segurar o garoto. Pedro lançou um olhar sarcástico ao conselheiro e ele recuou. O menino pegou a camisa branca e a colocou. Automaticamente, o branco das costas de sua camiseta se transformou em vermelho escarlate. O menino se retirou do pátio a passos curtos, com toda a paciência do mundo, ignorando a multidão silenciosa que o cercava.

Capítulo 11

PONTOS EXTRAS - Poderia ter sido pior, isso é certo – disse Francesca Cassoulett com uma expressão séria no rosto redondo enquanto andava nervosa na volta de Pedro. Francesca era uma ótima profissional, mas extremamente bruta. Era do tamanho de um muro e tinha uma massa que poderia dar inveja até nos mais fortes dos elefantes. A enfermeira não queria nem saber: ia enfiando varinha garganta abaixo para medir a temperatura dos alunos e fazia-os provas dos chás mais horríveis da face da Terra. Ao menos seus métodos realmente funcionavam. Pedro estava deitado de costas em uma mesa médica de madeira, no meio da enfermaria da escola. Um lugar isento de paredes, e todo construído com enormes toras de madeira. A enfermaria estava lotada, mas ali dentro havia só uma pessoa realmente machucada. O resto havia ido para ser plateia. Francesca havia permitido a entrada dos alunos, desde que não a atrapalhassem. - Eu esperava que tu fosses ficar com apenas alguns vergões, mas me parece que Mayer caprichou. Tua pele tá em carne viva. Vai ser meio trabalhoso de curar isso, mas eu consigo. A enfermeira passava a varinha repetidas vezes nas costas de Pedro, como um segurança que passa o detector de metais nos clientes do banco. A cada passada, os machucados mais iam sarando, se fechando e cicatrizando. Francesca se afastou para verificar uma prateleira, fazendo os vidros tintilarem. Felix aproveitou para atacar com mais uma de suas piadas horrorosas.

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- Pedro, tuas costas estão se parecendo com a vitrine daqueles açougues de péssima categoria... Todos riram, inclusive o retalhado Pedro, que em seguida, tentou acertar uma bota no amigo, que desviou. - Toma isso – Francesca quase meteu um copinho de plástico na cara de Pedro. O líquido dentro do copinho era verde, transparente e espesso. Tinha gosto de baba de trasgo. Pedro quase vomitou tudo oque tinha no estômago. - Já levou pontos alguma vez na vida, Pedrinho? – Francesca perguntou. Estava de pé, ao lado do garoto, analisando a situação. - Sim – o menino admitiu. Uma vez, um gato preto havia quase arrancado uma perna do menino fora. - Sem nada para aliviar a dor? - Sério que não tem anestesia aqui? – Pedro já estava começando a entrar em desespero. - Nem uma gotinha sequer. Está em falta. O nosso querido conselho escolar prefere comprar novas estátuas para a fachada do prédio horroroso que eles possuem naquela cidade horrorosa do que comprar remédio para os alunos. Todos começaram a sussurrar na enfermaria, mas Francesca pediu silêncio. - Quem não tem cão... – Pedro disse, fechando bem os olhos. - Muito bem – a enfermeira puxou uma garrafa transparente da estante. Primeiro vamos limpar e esterilizar o ferimento. O álcool ardeu e praticamente ateou fogo nas costas de Pedro, mas essa não foi a pior parte. O menino tentava relaxar ao máximo que podia enquanto Francesca ia costurando suas costas. Exausto, Pedro quase desmaiou, mas conseguiu se segurar naquele mundo. Francesca terminou o procedimento da forma mais depressa possível e em seguida fez um curativo, com rapidez e eficiência admiráveis. A enfermeira ajudou-o a sentar-se na mesa, e em seguida, envolveu o tronco do menino com ataduras de linho. Pedro se perguntou se ela era a única enfermeira da escola. - Vou te dar um atestado de três dias, Pedro. Quando o atestado acabar, passe aqui. Espero que seja inteligente o bastante para não arrebentar nenhum dos pontos. Isso só me traria mais trabalho, e pode acreditar, oque não falta nessa escola são acidentes. Os olhos de Pedro brilharam. Três dias sem precisar dar as caras na sala de aula.

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Capítulo 12

NARCISO DE MATTOS Os três dias de folga que Pedro havia ganhado se esgotaram em uma velocidade quase inacreditável. Havia conseguido manter todos os pontos, oque era ótimo. Antes de ir para a primeira aula do dia, que era Alquimia com o bicho papão, Pedro passou na enfermaria. Francesca ficou feliz ao perceber que todos os pontos continuavam ali, e removeu todos com um único movimento de varinha. Depois passou uma loção milagrosa nas costas de Pedro, oque fez com que a pele do menino ficasse maravilhosa. Oque sobravam agora eram apenas alguns vergões aqui e acolá, nada demais. Pedro encontrou Murilo do lado de fora da enfermaria. O elfo estava especialmente arrumado naquela manhã, com uma coroa de folhas e flores que o pai havia dado de presente para ele na noite passada. - Teus pais trabalham aqui na escola? – Pedro perguntou enquanto se dirigiam a uma parte isolada da escola, bem longe de qualquer ponto de referência. - Eles fazem parte da corrente de elfos. Vivem reclamando. Pelo que eles falam, o José não paga eles direito. São explorados e tudo mais... – Murilo admitiu, meio tristonho. - O José é um babaca mesmo. Pelo que eu tô percebendo, ele se passa com todo mundo daqui da escola – Pedro respondeu e Murilo assentiu.

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Enquanto chegavam perto de seu destino final, Murilo foi contando como haviam sido as aulas dos últimos três dia. Ele não parava de falar no tal professor Rodrigo de Cambará... Oque aquele cara tinha de tão especial? A sala de Alquimia ficava no meio do nada, e ainda por cima, ficava no subsolo desse meio do nada. Para chegar nela, os alunos tinham de descer com o auxílio de uma escada que ficava guardada dentro de um alçapão cravado no chão. O ambiente lá embaixo era calmo, gélido e assustador. Haviam raízes de árvores no teto, livros empilhados por todos os cantos, frascos e mais frascos espalhados por várias mesas de madeira... As raízes eram usadas como estantes. Cada uma comportava de tudo um pouco: frascos cheios de líquidos estranhos, animais mortos e empapados em algum líquido que cheirava mal, velas meio derretidas e tortas, mas que nunca acabavam... Quando a turma inteira se reuniu no átrio principal que ficava no meio de vários túneis paralelos, o professor resolveu mostrar a cara. Pedro tomou um susto quando o branquelo esquisito que ele havia visto no salão principal apareceu em carne e osso, no batente da porta de um dos túneis. Vestido com a mesma roupa preta de sempre, mas agora, Pedro podia ver os detalhes dela. Uma roupa extremamente arcaica, cheia de fivelas e botões de ferro ou similar. Havia também várias tiras que se amarravam ou se juntavam em volta do corpo do professor, dando a ele um ligeiro tom de psicopata. - Alguns professores desta escola – Narciso começou, sem tirar o olhar dos alunos, que estavam todos amontados em um canto da sala. – dizem que pessoas como eu não deveriam ter o direito de lecionar. Vocês concordam com isso? - Qual o problema com ele? – Pedro disse para Murilo, num sussurro quase inaudível. - Ele é vampiro. Pedro tremeu. Agora estava tudo explicado. Aquilo explicava o porquê do professor ser tão esquisito, recatado e ter uma aura de assassino em sua volta. Isso também explicava o porquê de todos os alunos saírem do caminho quando Narciso de Mattos saía em público. - Eu sou vampiro – Narciso de Mattos admitiu, mais para causar medo em seus alunos do que informa-los. Alguns alunos encolheram mais ainda quando o professor disse isso. Narciso de Mattos esperou por uma resposta à sua pergunta inicial, mas ninguém ousou responder. Mandou todos se dividirem em duplas, porque o show estava prestes a começar.

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- Na aula de hoje... – Narciso se aproximou de um caldeirão que borbulhava em cima de sua mesa, mesmo sem fogo visível perto dele. Talvez até o caldeirão estivesse com medo do professor – As maravilhas da Alquimia. Página 7. Quero que decorem de cor e salteado palavra por palavra que tem neste capítulo. Cada letra será cobrada na prova. Divirtam-se. Bateu os braços e saiu da sala. Simplesmente desapareceu. Puf. Não, sumido ele não havia... Estava transformado em um morcego amarronzado, pousado sob uma das portas do lugar. A porta estava entreaberta, e Pedro pode ver oque havia lá dentro. Um quarto às escuras, cheio de chaves dependuradas no teto. No centro do cômodo, um caixão de madeira aberto, sem estofamento nem nada. Provavelmente era a cama do professor. Pedro queria sair correndo daquele lugar, mas não podia. Sair de duas salas no meio da aula em apenas uma semana já era demais. Mais uma queixa que qualquer professor fizesse á respeito dele para o conselho escola e Pedro seria expulso. Talvez até mais do que isso. O menino decorou o capítulo I em apenas quinze minutos. Queria se deitar na mesa e relaxar enquanto o período não acabava, mas isso também ele não podia. Vai que o pescoço dele ficasse exposto demais, e o professor acabasse atacando ele? O menino sentiu um calafrio percorrer a sua coluna. Sabia que isso era preconceito, mas fazer oque?! Nunca havia visto um vampiro na vida. Nem ele nem a turma inteira. Será que todos os vampiros eram como Narciso? Um bando de pessoas de poucas palavras e com peles pálidas? Quando a sineta anunciou o fim da aula dupla de Alquimia, Pedro foi um dos primeiros a correr para fora do lugar. O almoço daquele dia foi batata frita, e estava horrível! Com gosto de isopor! Só o conselho escolar mesmo pra transformar uma comida tão boa numa coisa horrível daquelas. Com certeza a culpa não era do cozinheiro. A culpa era da Marta.

- Esqueci-me de avisar para vocês na aula passada: peguem seus livros e joguem no lixo, porque o escritor deles é um zero à esquerda. Era engraçado como Rodrigo de Cambará falava mal dele mesmo no meio da aula de Defesa Pessoal. O professor era um legítimo gaúcho dos pampas. Ao menos, no jeito de se vestir. Era militar aposentado por invalidez, e isso só reforçava seu jeito bairrismo de ser, seja no modo de se vestir ou no modo de falar. 54


- Ah, e hoje temos um aluno novo na sala... – ele fez Pedro levantar, brincalhão. – Seja bem vindo, jovem gafanhoto. Logo depois dos alunos rirem, Rodrigo sussurrou na orelha de Pedro: - Tu tá bem mesmo? A Francesca não arrancou nenhum osso teu? Pedro riu e disse que não. O professor deu um sorriso malandro e em respondeu. - Ainda bem. Quando eu cai da vassoura, pensei que ela ia amputar minha perna.... Pedro riu mais ainda, atraindo todos os olhares da sala para si e o professor. Rodrigo era simpático, e também um dos poucos que permitia o uso de varinhas em sua aula. Ensinava feitiços engraçados para a gurizada, mas em nunca perder o foco no assunto principal: ensinar seus alunos a se defenderem de determinadas criaturas que poderiam atacá-los.

A quinta e última aula do dia era Ética na Magia, com o temido José Mayer. O professor já estava na sala quando os alunos chegaram. A sala de José era de longe, a mais chique e sofisticada de toda a Rio Pardo. Cortinas persas cobriam as vidraças coloridas, tapetes romanos da época de Júlio César cobriam o piso de uma ponta a outra... Sem falar nas estátuas gregas, que pareciam ter vida própria. A sala era enorme, do tamanho do salão de eventos de algum museu, mas José Mayer conseguia colocar ordem naquele lugar com apenas um olhar. Diferente dos outros professores, o conselheiro fez a chamada antes de iniciar a aula. A cada nome que chamava, fazia uma longa pausa e fitava o dono do nome chamado. - Oque significa ética para vocês? – Mayer perguntou. O peito estufado como o de um galo. Ninguém responder a pergunta feita pelo professor. – Ninguém sabe? Isso explica o motivo da grande maioria de vocês não passar de um bando de mal educados... O conselheiro fez uma pausa para respirar. Já estava começando a perder a paciência com os alunos, por mais que eles não houvessem feito nada para irritá-lo. - Pedro Bandeira – o garoto encolheu na cadeira quando Mayer lançou a ele um olhar de gavião. – Nossa mais nova celebridade Rio Pardense. Será que o senhor pode me falar oque é ética? Pedro, que não estava em clima para discussões, confessou: - Não sei, senhor. - Será que pode então citar-me três das mais importantes regras de etiqueta existentes no nosso mundo? – Mayer não parava de fazer perguntas. 55


- Não sei, senhor. - Sabe me dizer a diferença entre esta colher – ele mostrou uma colher mais larga, provavelmente feita para comer sopa – e esta colher? – ele mostrou a outra, muito mais fina. - Não sei, senhor. - Afinal tu não sabes de tudo! – Mayer comemorou a derrota do aluno. - Se eu soubesse, não estaria aqui assistindo a essa aula de extrema utilidade no mundo lá fora – Pedro retrucou. O professor ficou tão enraivecido que tocou um toco de giz na cara do menino, que conseguiu desviar a tempo. - Ética, meus queridos alunos e alunas desinformados, é a parte da filosofia dedicada aos estudos dos valores morais e princípios ideais do comportamento bruxo. A palavra ‘ética’ deriva do grego... Pedro limpou a garganta e em seguida, levantou a mão, solenemente. O conselheiro parou o falatório imediatamente. Provavelmente nunca havia sido interrompido na vida. - Professor, sério que o senhor acha que jogando giz na cara de aluno, é uma pessoa realmente ética? José Mayer engoliu em seco. - Pra fora, senhor Pedro Bandeira. Já pra fora da sala... – o conselheiro rosnou. Pedro pegou todo o material didático e saiu calmamente da sala de aula de José Mayer, que ficou bufando lá dentro. Ele estava seriamente encrencado com o tal Conselho Escolar.

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Capítulo 13

PORTO ALEGRE NOVAMENTE Pedro e Murilo estavam se dirigindo ao salão em ruínas para jantarem quando foram capturados por grossas raízes verdes que pareciam ter vida própria. Elas saíram do meio da floresta e os agarram pelas pernas, como se fossem longos e grossos chicotes. Os dois foram puxados até uma clareira, e se surpreenderam quando encontraram Felix, Antares e Francine lá. - Ai meu Pã, como é bom ser elfo... – Antares brincou enquanto as raízes voltavam para seu lugar de origem, perto de uma enorme araucária. - Por que vocês fizeram isso? Por um momento, pensei que iríamos morrer! – Pedro confessou, tirando galhos que haviam se enganchado em sua roupa. - Foi mal aí, mas tu ficou uma gracinha nesse estilo “me puxaram pelas pernas por 5 metros sem parar” – Felix brincou, mas alguma coisa estava diferente nele. Estava mais impecável do que nunca, vestindo até um terno novo. Estava meio nervoso também, apertando os dedos que estavam entrelaçados. - Vai pro casamente de quem, Felix? – Murilo brincou. - Para o da Chapeuzinho Vermelho com o Lobo Mal – Felix revirou os olhos, mas se divertiu com a própria resposta. - Galera, o plano é o seguinte... – Antares deu um passo a frente antes que o irmão começasse a bater boca com o nerd – Hoje é sexta, e sexta não é dia de ficar trancafiado aqui na Rio Pardo. Vamos todos para Porto Alegre, beleza?

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Pedro aceitou a proposta logo de cara. Por mais que a escola ainda o fascinasse por completo, uma saidinha não seria nada mal. Murilo aceitou também. - Mas a entrada da Torre não fica trancada do durante semana? – o menino perguntou, curioso. - A saída da Torre fica sim, mas as outras 13 não! Hahaha – Antares se divertiu, puxando um mapa mal feito do bolso – Têm a saída da torre, a do Mezanino, tem a passagem secreta no quarto do Quasímodo, o portal no galpão do Cambará... Mas nenhum deles pode nos levar para a Capital com mais segurança e eficiência que esse – ele apontou para um X vermelho bem no meio da cidade Escolar e Administrativa. - Tu estás louco? – Murilo perguntou, nervoso. – Logo abaixo do nariz da Marta? Com certeza ela vai nos ver! - O melhor esconderijo do ladrão é ao lado da delegacia, é ou não é? – Antares sorriu faceiro. – E além disso, nós já usamos a passagem desde que entramos na escola, e a Marta nunca nem desconfiou. Ela pensa que conhece aquela cidade como a palma da mão dela... Coitada...

Meia hora depois, estavam todos dentro de uma fonte localizada logo atrás da enorme mansão que abrigava a sala do Conselho. As luzes da mansão estavam todas acesas, vira e mexe aparecia uma sombra na janela. Provavelmente os conselheiros estavam dando um baile ou festinha particular. Antares se ajoelhou no meio da fonte, colocou a mão na água e fechou os olhos, como se estivesse rezando. Em pouco tempo, a estrutura principal da fonte (localizada no meio) desceu e um enorme redemoinho se formou ali, sugando os cinco para dentro de um furacão aquático. Caíram todos em um túnel de terra, ensopados. Pedro tirou a varinha do bolso, mas ela não estava nem um pouco danificada com a queda. Varinha resistente era outro nível. O elfo ligou o disjuntor do lugar e acendeu umas luzinhas fracas e simples que brilhavam no teto. Parecia um túnel de mina antigo e desativado há muito, muito tempo. Logo em seguida, Antares estendeu a mão para oque parecia ser uma parede sólida, mas, inacreditavelmente, a mão dele atravessou-a sem dificuldades. Tirou do fundo falso cinco vassouras, e distribuiu-as entre os cinco integrantes do grupo. - Mano, o Tauro não ensinou a nós ainda como voar... – Murilo confessou para o irmão.

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- Sem problemas – Antares sorriu de um jeito malandro e montou na vassoura. Tirou os pés do chão e ele o objeto ficaram flutuando a meio metro de distância do chão de terra. - Montem, tirem as patas do chão, deem um impulso forte e rezem para não escorregarem pelo outro lado – o elfo resumiu, alegre. – No três... TRÊS! E os cinco começaram a correr loucamente pelo túnel, montados em vassouras. Andar de vassoura era uma sensação incrível. Elas não apertavam nenhuma parte sensível do corpo, afinal possuíam um acento estofado invisível. A sensação era maravilhosa. Pedro nunca havia surfado, mas provavelmente a sensação era parecida. Há cada km que percorriam, placas de metal apareciam, avisando: PORTO ALEGRE A 3KM, ou algo do tipo. Algumas placas eram mágicas e adoravam brincar com seus leitores: embaralhavam as letras, escreviam mensagens maliciosas... O grupo chegou a Porto Alegre em míseros 20 minutos. Saíram na fonte que ficava em frente ao Passo Municipal. Pedro teve um ligeiro déjà vu ao ver aquele lugar novamente. Imaginou-se novamente deitado na escadaria, dormindo em meio a um verdadeiro lixão... - Agora migramos pro Guaíba ou vamos direto pra Redenção? – Felix perguntou. - Guaíba, claro. É mais perto, e esses nossos amiguinhos primeiranistas precisam urgentemente aprender a voar – Antares respondeu, colocando a vassoura sob os ombros. O Guaíba era um lago cor de chocolate e sua correnteza corria rápida e avassaladora, levando tudo oque havia pelo caminho. Vindas da outra margem do lago, havia pequenas ilhas flutuantes, feitas de folhas, galhos e cipós. As ilhas, algumas com tamanhos assustadores, corriam rápidas junto com a correnteza do lago. - Esse lugar não é meio perigoso para sobrevoarmos? – Francine perguntou. O rio tinha 40 metros de profundidade. - O Guaíba é muito mais que um lago. – Antares proferiu. – Depois explico isso.

Em poucos minutos, estava todos sobrevoando o lago com suas vassouras. Pedro, Fracine e Murilo ainda um pouco tímidos e com medo de cair, mas já Antares e Felix... Eram verdadeiros experts naquilo. Praticavam até um esporte chamado Surfe na Vassoura. As vassouras pareciam extensões naturais de seus pés. Andavam de pé, fazendo guinadas bruscas, subindo, descendo, mergulhando... Pedro tentou fazer o mesmo. Colocou os dois pés na vassoura e começou a andar de pé. No início isso ainda era meio complicado, mas depois, ia melhorando. Logo o menino já estava subindo e descendo, com Murilo o perseguindo. O elfo ainda estava 59


sentado na vassoura, mas isso não o fazia perder a agilidade. Subia muito além da altura dos prédios que cercavam o lago, e depois voltava para baixo como uma bala de canhão. - Ahá! – Antares comemorou quando voltou de um dos seus mergulhos com um peixe enorme na mão. Deveria ter o tamanho de um braço adulto. Aquilo daria um bom almoço de sábado, mas o elfo devolveu o peixe rapidamente para as águas rápidas do lago. Pedro foi se aproximando cada vez mais da água marrom, até que decidiu mergulhar. Entrou com vassoura e tudo, mas vacilou. O objeto escapou de suas mãos e de suas pernas, e Pedro caiu.

Capítulo 14

O LAGO FUTURÍSTICO Um raio frio cobriu o menino dos pés a cabeça. Mesmo morrendo de frio, Pedro não parava de cair. Cair em direção ao fundo do lago, em direção a sua morte. Os olhos bem fechados, os pés balançando loucamente e as mãos tentando levalo a superfície a todo custo. Ele estava se afogando. Abre os olhos... A voz era feminina e praticamente cantava aos ouvidos cheios de água de Pedro. Era calma, poética... Abre os olhos... A voz não parava de repetir, mas sem perder a paciência. Pedro cedeu. Levantou as pálpebras. No início, seus olhos arderam. Na sua frente, uma cena acontecia, mas estava tudo embaçado. Os olhos do menino não estavam funcionando direito embaixo da água. Gritos, estalos, estampidos, pancadas... Era uma cena estranha, parecia que uma briga estava acontecendo nela... A cena já estava entrando em foco quando Pedro foi puxado pelo cangote para a superfície em uma velocidade imperdível. Enquanto uma mão forte o puxava, alguma coisa empurrava o corpo de Pedro para cima. Criaturas meio humanas, meio peixes...

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O menino vomitava água pela boca enquanto jatos saíam pelo seu nariz. Não se sentia morto, mas também não se sentia vivo. Alguma coisa estava empurrando seu peito, fazendo a água ser expulsa de seus pulmões. - Pedro? Pedro? Acorda Pedro... Não faz isso comigo... – era a voz de Antares. Pedro estava deitado na grama. Arranhado, afogado, mas vivo. São e salvo. Quando abriu os olhos, todos começaram a pular de alegria. Antares permaneceu ali, encarando o menino com aqueles enormes olhos verdes. Uma expressão de alívio cobria sua face. - Oque tu viu lá embaixo? – o elfo perguntou. - Não sei direito. Estava tudo tão fora de foco... – Pedro afirmou. Antares fez uma longa pausa. - O Guaíba é um lago mágico, Pedro. Uma das várias fontes de magia paranormal que restou em Porto Alegre... - Como assim magia paranormal? - O lago mostra o futuro. Muitos bruxos o procuram antes de tomar decisões importantes. Quando descobrem algo bom, maravilha, saem daqui felizes da vida, mas quando descobrem algo ruim... Vão daqui direto para o último andar do Edifício Santa Cruz, e de lá se jogam. Pedro se assustou com isso, mas estava tremendo demais para se importar com qualquer coisa. Antares lançou um feitiço que fez as roupas do menino secarem automaticamente, oque levou-o de novo a sua zona de conforto. Ficou mais feliz ainda ao ver que a varinha continuava muito bem presa na guaiaca.

Dali foram direto para o Parque da Redenção, onde Pedro jogou um dos jogos mais emocionantes de sua vida. O Jogo das Luzes consistia em lançar jatos de luz colorida contra os outros adversários. O participante que fosse acertado menos vezes, ganhava o jogo. Antares era craque naquilo. Desviava dando saltos, rolando, pulando de um lado para o outro... Provavelmente havia tido contato com aquele esporte havia anos. Pedro, Murilo e Francine foram bombardeados pelos dois mais velhos. As luzes os acertavam em todas as partes do corpo. Não queimavam nem machucavam, apenas deixavam marcas coloridas nas vestes deles, que logo sumiam.

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Pedro tentou acertar um jato de luz nas costas de Antares, que pulou para o chão e acertou um nas pernas dele. Murilo tentou acertar o irmão, que rolou e acertou o menino no meio do peito. Parecia capoeira, só que com muita magia e adrenalina.

Exaustos e esfomeados, os cinco migraram para um monumento que ficava no início do parque. Parecia um obelisco, só que de mármore e cheio de pichações. Ficava no meio de um labirinto de arbustos baixos e amarelos. Na base do obelisco, uma porta aparecia e desaparecia, como uma televisão com defeito. Antes que a imagem da porta vacilasse novamente, Antares agarrou a maçaneta de cobre que aquilo tinha e arrastou a pesada porta de mármore. Entraram dentro de um restaurante escuro, anormalmente movimentado para a madrugada de um sábado. A ansiedade de Felix pareceu aumentar quando entraram naquele lugar. Os olhos brilhavam como se tivesse acabado de ver um tesouro ou uma coleção inteira de bonecos de ação do Star Wars em uma das mesas do lugar, que também feita de mármore. Tudo ali era feito de mármore, até os copos e pratos. Oque mudavam eram as cores da pedra: vermelha, branca, negra, azul para os torcedores do Grêmio... - Se me dão licença... – Felix se afastou do grupo sem aguardar resposta. Foi juntar-se a uma menina linda, sentada em uma mesa localizada no canto mais bem iluminado do restaurante. Tinha jeito de baiana. Pele curtida de sol, bandana azul... Lia um livro quando Felix chegou na mesa. A menina deixou o livro cair no chão e foi abraçar o nerd. - Ah, o amor... – Antares comentou. - Quem é aquela ali? – Francine perguntou, com ciúmes. - Estuda na escola de Salvador. Ela e o Felix já namoram faz uns anos... O nome dela é Larissa, se eu não me engano. Formam um casal bonito, vocês não acham? Antares pediu um prato vegetariano para eles e abandonou os três primeiranistas na mesa. Foi conversar com a garçonete, uma elfa linda e loira. Terminaram o prato bem a tempo. O demônio havia entrado no restaurante. Marta estava de mãos dadas com José Mayer. O casal infernal olhava para tudo e para todos com extrema repudia, como se estivessem ali por obrigação e não por vontade própria. Aquilo irritava Pedro. Eles se achavam demais!

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- Pera, a Marta não é casada? – Murilo perguntou enquanto ele e os outros quatro se arrastavam pelo chão do lugar, em direção a porta. - Pior que é, mas o marido nem desconfia que é corno. A pompa que ele possui não permite – Antares disse enquanto enfiava os dedos ossudos na porta, abrindo-a. Antes de sair do lugar, Felix chapou um beijo na boca da namorada baiana. A menina corou. Os dois se despediram, e Felix, junto com os quatro amigos gaúchos, saiu porta afora. O portal mais próximo ficava no Monumento ao Expedicionário, uma estrutura de granito enorme, em forma de arco duplo. Na frente, uma inscrição: “À Força Expedicionária Brasileira – A Pátria agradecida”. As letras se embaralharam quando os cinco chegaram perto do portal disfarçado de monumento e formaram a frase “PAMPAS via REDENÇÃO”. Dessa vez não precisaram de vassouras. Simplesmente brotaram no oco de uma Figueira enorme, no meio da floresta. Antares os guiou até o Cercado. Pedro adormeceu logo que se deitou na cama recém-arrumada por algum empregado da escola. Teve sonhos cheios de águas cor-de-chocolate, luzes ofuscantes e parques durante a noite.

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Capítulo 15

LENDAS REGIONAIS Para fugir do carma de domingo, Antares foi para a superfície meditar. Pedro e Murilo foram juntos para respirar o ar frio que lá fazia e observar um grupo de turistas que havia tirado o dia para olhar cada canto da ruína. Ficaram na torre de entrada, até o Quasímodo aparecer. Simplesmente se materializou em uma janela lá no auto. - Esses turistas... O que tanto vem fazer nessas pradarias? Perturbar o sono e o sossego das velhas almas nativas e guerreiras que aqui descansam, ou eles vem apenas para tentar entender a emaranhada história trágica que seus antepassados fizeram parte? O quasímodo comentava, quietinho lá em cima, na janela. Como ninguém via ele?! - Aqui não é uma Notredame, concordo – além de estranho, ele também falava sozinho. Completamente louco. – Mas é tão grandiosa quanto! E eu me arrisco em dizer... Talvez seja até mais importante que a famosa catedral parisiense, a julgar pela importância que teve na formação da imensa nação deste nosso Rio Grande. Ele falava bonito, não havia como negar. Aquilo era praticamente poesia. Poesia vinda de uma pessoa que não sabia nem escrever o próprio nome, mas que criava versos inéditos e muito bem construídos. Se soubesse escrever, poderia até publicar um livro. Sucesso na certa! Infelizmente, Pedro e Murilo não conseguiram escapar da maldição que domingo possuí. Após o almoço (típico churrasco de domingo, conhecido e praticado 64


pelo Rio Grande do Sul inteiro), se dirigiram ao Cercado e lá ficaram até às 16h. Estudando, falando sobre os professores, sobre os alunos... Pedro aproveitou o dia amaldiçoado para colocar a matéria em dia. O caderno de História da Magia ‘Europeia’ era o único que continuava imaculado, sem nenhuma letra. Depois que cansaram de ficar no dormitório, os dois se dirigiram ao enorme açude que a escola tinha. O lugar estava muito bem movimentado. Alunos, alunas, professores e até alguns fantasmas se divertiam nas águas cristalinas. Pedro ainda estava traumatizado com o lago Guaíba, mas não havia nada a temer naquele açude da escola. Em boa parte dele, a água não passava da altura do peito do menino. A outra parte era proibida: funda demais, e cercada por lendas. Uma delas era verídica: uma serpente negra, com língua e olhos de fogo e com pelos nas costas morava ali. Era extremamente perigosa, mas havia um feitiço que a impedia de chegar na parte mais rasa do açude, graças a todos os Deuses. Lá pelas 18h os alunos começaram a montar seus fogos de chão e queimar uns brinquedinhos estranhos. Esferas verdes, que, ao jogadas no fogo, se rompiam e se transformavam em algum ser mágico ou não, todo feito de fogo. Pedro pegou uma bolinha daquelas com Murilo e a jogou no fogo de chão. Imediatamente, uma mulher feita de labaredas apareceu ali. Seminua, cabelos perfeitos e muito bem presos, expressão tímida no rosto... Francine acertou um livro na cabeça dos garotos, que pararam imediatamente de observar a musa de fogo. A mulher imediatamente desapareceu. - Eai bobocas, querem ir ao atoleiro? O Tauro tá promovendo uma competição de Boleada lá, me mandou chamar vocês e os outros primeiranistas. Quem sabe assim nós aprendemos alguma coisa? Os dois meninos foram imediatamente. Ambos estavam apaixonados pelo esporte bruxo. No atoleiro (um enorme açude, desativado há quinze anos. A água havia se transformado em barro puro, e isso dava nome ao lugar), meninos muito mais velhos que eles cruzavam o céu em suas vassouras. Algumas extremamente rápidas, outras mais lentas. As da escola eram fáceis de identificar: viviam dando trancos que quase derrubavam quem estava em cima delas. Um menino de capacete de ferro era o grande destaque do time. Manuseava as boleadeiras com experiência e habilidade invejável. Tauro demonstrava grande favoritismo por ele. O menino derrubava qualquer um ao lançar sua boleadeira. O objeto girava e se enroscava nos pés do coitado que havia servido de alvo, que despencava da vassoura em direção ao lodo infinito. Caiu tá fora. 65


Pedro começou a entender melhor o esporte depois de cinco minutos se acotovelando com os outros alunos que assistiam ao jogo. Todos de pé no gramado que cercava o lugar. A boleada, diferente do futebol, podia ser jogada com vários times. As partidas eram dividas em tempos, que variavam de acordo com as condições físicas dos atletas. Assim como um dos tempos podia durar 1h, podia durar 11h se os atletas aguentassem. O jogo mais longo havia durado dois dias consecutivos, e Tauro havia participado deste jogo histórico. No fim do primeiro tempo (que durou 2h30m), Pedro levou um susto: o melhor atleta do time, na verdade, era uma menina. Negra, alta, com os cabelos cacheados, lábios carnudos... Mais bonita que muitas daquela escola. Ao tirar o uniforme do time, Pedro pode ver que usava uma camiseta simples e fina, condizente com o mormaço do fim de tarde que cobria toda a escola. A bombacha estava meio suja devido ao lodo que ficava respingando do lugar. Tauro ofereceu água e três barras de cereais para a menina, que aceitou. Mesmo cansada, era realmente linda. Já era noite quando o jogo acabou. O placar era confuso: 10,5,5,2,2,2,2,1,0. O time que havia ganhado somado 0 era o ganhador e, por coincidência, este era o time da menina linda. Zero era o jogadores haviam sido derrubados da vassoura. O time que havia somado 10 (todos os participantes haviam sido derrubados) era formado por uns meninos mimados e arrogantes. Andavam com o nariz empinado, mãos no bolso... Era engraçado de ver a cena. Todos estavam mancando, completamente quebrados. Um deles até dizia ter quebrado a perna, mas quando viu Francesca se aproximando com seu kit salva-vidas, tratou de desmentir tudo. Provavelmente havia dito aquilo apenas para não precisar ir à aula no dia seguinte. Vagabundo... Antes do jantar, alguns professores e alunos mais velhos haviam inaugurado uma cerimônia da fogueira, onde contavam histórias dos mais diversos tipos, tudo na beira do fogo de chão. Contavam sobre uma cobra gigante devoradora de crianças que rastejava pelos terrenos rio pardenses, sobre uma casa sem portas nem janelas, lar de uma fortuna imensa, sobre lobisomens e elfos negros... Todos foram dormir com medo naquele dia. O pior eram que as lendas realmente existiam. Até os lasqueados conheciam ela. Mas o pior monstro de todos não constava nas lendas. Ele estava lá, deitado em um colchão de penas de fênix na mansão do Conselho. Cheia de cremes na cara, cabelo preso...

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Marta era o pior pesadelo que qualquer um poderia ter.

Capítulo 16

COISAS SELVAGENS A segunda-feira chegou, e com ela, o mau humor de Pedro regressou. Roque Tavares não compareceu na sua sala de aula naquele dia, e isso deixou os alunos livres para fazerem oque quiserem durante 45 minutos. Pedro ficou treinando alguns feitiços mais complicados que havia achado no livro de Felix, enquanto Murilo roncava audivelmente ao seu lado. O elfo havia tido uma noite terrível de insônia. Havia brigado com a mãe, oque o fez ficar acordado a noite inteira pensando em suas ações. Pedro, sem querer, ateou fogo a manga da blusa do menino, mas imediatamente o extinguiu. Depois reconstruiu o tecido com uma facilidade de quem já havia feito aquilo várias vezes. Tudo corria bem, até a aula de Segredos do Mundo Animal. Gemma estava disposta a mostrar algo novo e fascinante para os alunos, então levou uma fênix para sua aula. O animal estava preso dentro de uma gaiola minúscula, com as duas pernas presas por pesadas correntes no poleiro. A ave soltava longos e tristes pios, triste. - Isso é TORTURA! - Pedro explodiu com a professora antes que Gemma pudesse se explicar. Murilo se segurava na cadeira de plástico para não pular na cara dela. - Chi se ne frega, signore Bandiera? – Gemma estufou o peito, resoluta. - Não sei onde a senhora se esfrega ou deixa de se esfregas, mas isso que tu tá fazendo é tortura! A senhora não pode fazer isso, animais também sentem dor! – Murilo 67


havia levantado da cadeira, tremendo. Francine imitou o elfo. Em seguida, metade da turma fez isso, indignada. O queixo de Gemma caiu. A mulher estava perplexa. Nunca nenhum aluno havia deixado-a em uma situação como aquela. - Mantenere il controlo, ragazzo... – a professora começou a dar alguns passos para trás. Francine abriu a porta da gaiola e, com todo cuidado do mundo, retirou a fênix dali. Gemma começou a gritar, mandando a menina parar. Narciso de Mattos estava passando por ali quando Gemma começou o fiasco. O professor, mesmo sem vontade nenhuma, perguntou se a mulher estava precisando de alguma coisa. Gemma apontou para os alunos que estavam de pé. - Senhor Bandeira, será que poderia vir comigo um momentinho? – o professor se dirigiu exclusivamente a Pedro. Nem chegou a olhar para a cara dos outros dois. Pedro seguiu o vampiro, cheio de bravata. O professor não parou de caminhar enquanto não chegaram na frente ao prédio do Conselho. O menino sentiu-se uma vaca a caminho do abatedouro. Marta não demorou a aparecer na porta do lugar. Pedro estava sentado na escadaria, fingindo tranquilidade. Abriu um sorriso falso quando viu a conselheira ali, toda vestida de cinza, com cara de vaca. Narciso sussurrou algo no ouvido dela, e em seguida, transformou-se em morcego e saiu voando. - Senhor Bandeira, será que poderia vir aqui um momentinho? – Marta disse, calmamente. - As ordens – Pedro levantou-se e se dirigiu a conselheira como um assassino que se dirigia a vitima. Ela não se intimidou. Ao menos, não aparentemente. - O senhor está expulso. – Marta proferiu, encarando o menino nos olhos. Uma bomba caiu no estômago de Pedro, mas o menino não deixou isso transparecer. - Sim, estou. Marta não ficou confusa nem demonstrou estar desconfortável com a resposta de Pedro. Continuou ali, parada, com aquela indiferença estampada no rosto. - Tens meia hora para juntar teus pertences e sair desta instituição de ensino. Terá de providenciar transporte para a sua casa, se é que tu tens uma. A escola não irá disponibilizar nenhum dos ônibus pra ti. Caso não sair da escola no prazo... 68


Um homem invadiu a cidade, montado em um unicórnio. Cambará parecia cansado e chateado ao mesmo tempo. - Tu não podes fazer isto, Marta... – o professor começou. - Não só posso, como devo. Este aqui já causou problemas demais para esta escola. Rodrigo de Cambará lançou um olhar pesaroso para Pedro. Por dentro, o menino estava desesperado, mas por fora, mostrava-se indiferente. - Se tu expulsar ele, eu me demito. E tu sabes como é difícil achar um bom professor de Defesa Pessoal neste estado. Assim como a notícia da expulsão, aquilo caiu como uma bomba no estômago de Pedro. Por que o professor estava defendendo tanto assim o ele? - Tu não podes fazer isso... – Marta mostrou um fio de preocupação na voz. - Não só posso, como devo. Pedro se segurou para não rir da resposta muito bem planejada do professor. - Tu vai te arrepender de ter nascido, professor Rodrigo... – Marta disse, espumando de raiva. Entrou no prédio do conselho e bateu a porta, fazendo as vidraças explodirem com a força do impacto. Cambará passou os braços nos ombros de Pedro e bagunçou o cabelo do menino. - Tu és uma coisa selvagem, Pedro Bandeira. E eu admiro isso em ti. – o professor confessou enquanto ajudava o menino a montar no unicórnio. – Mas cara, uma dica: pisa mansinho perto dela. Marta Elizandra Junqueira de Queiróz pode fazer coisas muito mais cruéis do que te expulsar daqui, rapaz. Muito piores. Pedro assentiu, curioso. - Tu te importarias em passar lá em casa hoje de noite? Gostaria de falar contigo. - Sem problemas, professor – Pedro aceitou. O professor abriu a boca novamente, mas dessa vez se dirigiu ao unicórnio: - Leva o Pedro pra aula de Feitiços, Saraiva. E eu te proíbo de passar perto da floresta novamente. Da última vez os elfos vieram me falar que tu quase mascou o cabelo de uma elfa que estava no banho... O unicórnio soltou um relincho que mais parecia uma risada. Foi impossível não rir.

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Em seguida, o animal disparou em direção a sala de Feitiços, que ficava do outro lado da cidade. O vento fazia os cabelos de Pedro balançarem. O menino gostou daquela sensação. Pedro roubou a cena ao entrar na sala montado em um unicórnio. Até o professor Augusto parou para observá-lo. O menino desceu do animal e em seguida o dispensou. Imediatamente, o unicórnio saiu galopando o mais rápido que conseguia. - Posso continuar minha aula, senhor Bandeira? – Augusto perguntou, com os dentes cerrados. - À vontade, professor. Vai no ensinar a transformar palito de fósforo em palito de dente hoje? – o menino debochou enquanto ia se sentar no fim da sala. Se Augusto ficou irritado com a resposta, preferiu não falar nada. Continuou a aula como se nada tivesse acontecido. Pedro se sentia invencível e indomável. Havia chegado mortalmente perto da expulsão, e no final, um professor que ele mal conhecia havia o protegido. Durante o almoço, lançou o feitiço Jopy na mesa dos conselheiros e pegou três cubos de açúcar importado da Europa. Presente para o unicórnio. A mesa dos conselheiros estava anormalmente vazia durante aquele almoço. Nenhum dos três havia dado sua graça ainda no salão. Provavelmente era esse o motivo dos alunos estarem fazendo tanto circo. Sem ninguém para moderá-los, lançavam feitiços à torto e à direito, gritavam, riam... Guerras de comida explodiam em cada canto do salão, fazendo uma lambança enorme. - Pensei que não ia te ver aqui hoje – confessou Murilo, indo se sentar ao lado de Pedro. - Eu também pensei que não ia ver mais esse lugar, mas o Cambará me salvou. Pedro contou tudo oque havia acontecido para o amigo elfo, que ficou perplexo. - Pedro, tu é louco! Só pode ser! Após Murilo terminar a frase, a guerra de comida tomou conta do salão inteiro. Saladas, carnes, molhos... Tudo voando pelos ares, procurando algum aluno para servir de alvo. Até o professor Augusto e Cambará haviam entrado na festa. A bagunça começou a sair do controle quando o Negrinho do Pastoreiro chegou. Explodiu mesas, cadeiras... Nem a cozinha ele perdoou. O cozinheiro, um ruivo, saiu correndo de seu lugar de trabalho, atordoado. Logo que o ruivo entrou na cidade Escolar e Administrativa, todos deram um jeito de sair do refeitório. Era como se a polícia estivesse chegando.

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O treino de Antifísica foi calmo. Tauro havia machucado a perna na noite anterior, então se limitou a só ensinar os alunos a montarem na vassoura. Ao menos já era um avanço. Depois de passar no vestiário, Pedro se dirigiu de Murilo e começou a se dirigir ao galpão onde o professor de defesa pessoal morava. Um lugar amplo, construído pelo próprio professor. Antes de entrar no galpão, Pedro entregou os cubos de açúcar para Saraiva, que relinchou, feliz da vida. A porta entrava entreaberta, então Pedro foi logo entrando. A primeira coisa que constatou era que o chão do lugar era de terra, cavado com pás até ficar liso. O professor estava sentado na beira de uma lareira mal feita, tomando chimarrão. - Sente-se, Pedro. Temos muito oque conversar.

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Capítulo 17

SARAIVA Pedro se sentou próximo ao professor, em um banquinho de couro. Cambará derramou um pouco de água quente na lateral da cuia e a entregou para Pedro, que bebeu o líquido com o auxílio da bomba. - Primeiramente, quero que saibas que não tenho nada contra ti. Não concordo com nada que a purgante da Norma falou. Velha charlatã... Não sabe oque fala Cambará estava com as mãos entrelaçadas. - Fiquei curioso com oque ela falou sobre mim... – Pedro comentou enquanto bebericava o chimarrão. - Eu também, mas ela não merece nossa atenção. Ela deve ter implicado contigo, só isso. - Parece que quase todo mundo implicou comigo nessa escola. Primeiro o professor Augusto, depois a Norma e em seguida a Marta...- Pedro sabia que faltava gente nessa lista, mas não quis comentar com o professor. - O Narciso, a Gemma... Metade do corpo discente não foi com a tua cara. confessou o professor. - Isso significa quê... - Que quanto tu precisar, todos eles vão te virar as costas. Tua ficha já tá suja com a Marta, não preciso nem falar o motivo. Mas aquilo foi injustiça. Era teu primeiro dia de aula! – Cambará exclamou, indignado.

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Pedro concordou, e o professor prosseguiu. - Três regrinhas básicas pra ti conviver com a Marta: não olhe, não fale, não escute, não pense. Seja um robô, programado pra só dizer ‘sim’. - Bem isso mesmo... – Pedro concordou com o professor e passou a cuia para ele. Cambará ficou pensativo por alguns minutos, e depois disse: - Minha mãe é uma mulher traiçoeira mesmo... Então Marta era mãe dele?! Até que eles eram parecidos, mas nada muito gritante. Provavelmente o sobrenome do professor era o mesmo que o do pai. Era difícil de acreditar que uma mulher como aquelas era mãe de um cara tão genial. Isso explicava muita coisa. O professor abriu a boca, mas logo fechou-a de novo. Haviam barulhos lá fora. Gritos desesperados de um ser que não sabia falar! O professor levantou-se com um pulo. Se dirigiu a parede do galpão, onde havia uma espingarda velha e pegou-a. Olhos na mira, foi direto para a porta do galpão. Mais gritos. Havia algum animal agonizando ali fora. A chaleira pulava no fogo, há muito sem água para esquentar. - Saraiva? – o professor chamou com um fio de desespero na voz. Um chifre prateado e meio enroscado rolou para dentro do galpão através da porta entreaberta. Junto com ele, um bilhete: VAI SE DEMITIR?

O professor pulou por cima do animal quando o viu deitado no chão, o sangue vermelho escarlate manchando sua pelagem branca. Cambará não parava de gritar o nome do animal. Estudantes moradores do Cercado começaram a aparecer entre a multidão que se aglomerava na volta do professor e do unicórnio. Saraiva respirava com dificuldade. Lágrimas escorriam de seus olhos equinos. As pálpebras do animal já estavam quase se fechando. Cambará tentou a todo custo parar com o sangramento de todas as formas possíveis. Pedro ficou parado, observando toda aquela cena, perturbado, com o chifre e o bilhete na mão. Varinhas haviam se acendido no meio da multidão.

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Murilo e Antares foram os primeiros a saírem correndo do meio da multidão. Em seguida, veio Felix. O professor berrava, mandando alguém chamar Gemma ou Francesca. Gemma estava ‘em reunião’, e Francesca não tinha formação alguma em veterinária. Cambará e a mulher carregaram o cavalo até a enfermaria e tentaram fechar o machucado enorme que praticamente cortava o pescoço do cavalo ao meio. Os últimos traços de vida iam sumindo aos poucos do rosto do unicórnio. - Saraiva, pelo amor de Deus, não me deixa! SARAIVA! Metade da escola observava aquela cena. Todos em silêncio, perturbados. O unicórnio morreu. De uma forma horrorosa, mas morreu. Cambará soluçava em cima do pescoço do animal. Estava descontrolado. - FOI A MARTA! – o professor levantou de forma brusca e começou a chutar tudo oque via pela frente. Francesca tentou controla-lo antes que ele quebrasse a enfermaria inteira. – AQUELA ORDINÁRIA! CHAMEM AS AUTORIDADES! TEMOS UMA ASSASSINA DENTRO DE UMA ESCOLA! O professor começou a marchar em direção a cidade, mas Antares e Felix o seguraram. - Professor, escuta: não vale a pena! Tua mãe é uma baita de uma pilantra, disso todo mundo sabe, mas o mesmo que ela fez com o Pedro, ela pode mandar fazer contigo! Murilo também ficou surpreso ao descobrir que Marta era mãe do professor Rodrigo. A noite terminou com muita gritaria e choro. Marta nem ousou aparecer por ali. O filho estava com tanta raiva que poderia lançar um Embi bem no meio da cara da mãe. E tudo aquilo havia sido culpa de Pedro. Se o professor não tivesse afrontado a conselheira, o cavalo estaria vivo ainda. Mas Pedro estaria bem longe dali, provavelmente roubando na sinaleira pela segunda vez no mês. “Antes o unicórnio do que eu” Pedro pensou.

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Capítulo 18

VAIAS ESTUDANTIS As quatro semanas seguintes demoraram a passar. Praticamente se arrastaram. O professor Rodrigo havia pedido demissão, mas prometeu para os alunos que antes do fim do ano estaria de volta. A professora que havia assumido a matéria era uma professora substituta. Felícia era uma mulher de nariz empinado e cabelo Chanel, elitista ao extremo. Até as aulas de Antifísica haviam se tornado chatas. Tauro estava sendo obrigado pelo Conselho a seguir a risca o programa imposto para a primeira série, então o máximo que o professor fazia era ensinar os alunos a montarem em uma vassoura e flutuarem a meio metro do chão. Os três conselheiros haviam se tornado ainda mais tiranos. Gemma estava aprendendo a ser igual a Mayer, e isso só podia significar uma coisa: estava distribuindo detenções pelos quatro cantos da Rio Pardo. Os alunos que haviam sofrido detenções falavam em tortura psicológica, chibatadas, cortes profundos feitos por penas-navalha... Pedro estava aprendendo a se controlar diante dos três tiranos, mas ainda nutria muito ódio por eles. Só de ver Marta passando ele já tinha vontade de lançar um Wegwerfen nela. E não era só Pedro que tinha essa vontade. Era mais da metade da escola. Todos haviam ficados chocados com a monstruosidade com que a conselheira havia castigado o professor Rodrigo. Todos sabiam que Saraiva era o xodó dele! Toda essa raiva nutrida pela conselheira não podia dar em outra: em uma manhã nublada, durante o café da manhã, Marta entrou no salão e, como era de praxe, a lei do silêncio baixou no lugar. Mas não durou muito tempo. 75


Dois terços do salão começaram a vaiar e berrar palavras de repúdio contra a conselheira. - ASSASSINA! – Francine berrava. Antares segurava a menina para que ela não jogasse o bule de café na direção da conselheira. HIPÓCRITA! MENTIROSA! SÍNICA! CASCAVEL! CHANTAGISTA! As palavras ecoavam pelos quatro cantos do salão em ruínas. Até os elfos e fantasmas haviam se tornado parte da gritaria. Marta tentava ignorar, mas era impossível. Ficou ilhada no meio do salão, com círculos de alunos e mais alunos cercando-a. Narciso de Mattos rompeu o círculo sem grandes dificuldades. Foi só mostrar os dentes que o mar de alunos se abriu. O vampiro cochichou algo na orelha da conselheira, e em seguida, os dois saíram do salão. Narciso nos calcanhares de Marta, cuidando para que nenhum aluno se aproximasse demais da conselheira. Ninguém tentou chegar perto de Marta, mas a gritaria continuou. Até Felix, que era todo certinho, estava gritando contra a conselheira. Marta mostrava-se impassível, como se nada estivesse acontecendo. Aquela hipócrita... - ALUNOS UNIDOS JAMAIS SERÃO VENCIDOS! ALUNOS UNIDOS JAMAIS SERÃO VENCIDOS! – o número de alunos que gritava a marchinha era tão grande que parecia que o próprio salão era que estava gritando. Alguns alunos, irritados, se retiraram do salão. Provavelmente, defensores do conselho escolar. Eram raros, mas estavam sempre ali, bastava olhar mais de perto. No quarto período daquele dia, o assunto não podia ser diferente: a pequena revolta contra a Marta. Aquilo nunca havia acontecido na história da Pampas! Marta sempre havia mandado e desmandado quando bem entendesse, sem ninguém bater de frente com ela. Isso durou 40 anos, até que... Até que Pedro Bandeira ingressou na escola. Era tudo culpa dele. Desde a morte do Saraiva, até a revolta que todos estava nutrindo contra o conselho. Mas aquilo não podia ir longe, podia? 76


A pergunta de Pedro foi respondida no fim daquele dia.

Capítulo 19

CRIAM-SE GRUPOS Os Maragatos tinham uma única e importantíssima meta: a derrubada do Conselho Escolar e Administrativo. Todas as centenas de integrantes do grupo estavam cansadas dos diversos tipos de tortura que Marta aplicava a eles caso saíssem da linha. Além disso, aquilo que o Conselho estava fazendo era completamente ilegal. A escola deveria ter um diretor, e não um grupo de diretores que faziam de tudo para se manterem no poder. Felix foi quem teve a ideia, claro, mas quem a colocou em prática foi Antares. Convocou todos os alunos moradores do Cercado para uma reunião ordinária na noite de quinta-feira, à beira de um fogo de chão. - Não iremos parar enquanto o Conselho não der pra trás. – afirmou Antares, resoluto. Parecia o presidente de um Grêmio Estudantil; falava bonito, distribuía tarefas, criava metas... - Mas e se... Eles fizerem aquilo com nós? – uma menina perguntou, cheia de receio. - Nós somos a maioria. Se eles torturarem um de nós, terão de torturar todos! – Felix disse. Uma salva de aplausos acompanhou suas palavras. Em seguida, Antares foi bombardeado com milhões de perguntas. - Quando será nosso primeiro ato? – um menino baixinho e loiro perguntou, tímido.

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- Amanhã mesmo, durante o café da manhã. Vamos fazer a maior farra que jamais foi vista nas terras desta escola. Levem apitos, fogos de artifício, bombas de gás colorido... Tudo que fizer barulho e que seja capaz de chamar atenção. – Antares andava de um lado para o outro. A grama crescia conforme a ansiedade do menino ia aumentando. – Levem cartazes também. Bem grandes, com letras vermelhas... - Por que vermelhas? Não podia ser azul, não? – um torcedor do Grêmio perguntou, revoltado, lá no meio da multidão. - Vermelho foi a cor adotada pelos Maragatos originais durante a Revolução Federalista. – Antares disse, e convenceu todo mundo. – Usem lenços vermelhos também. Temos que ter algum objeto de identificação. O lenço vermelho vai ser nossa marca pessoal. Na hora de assinar o nome, faltou espaço na folha. Uma fila fazia voltas e mais voltas no Cercado. Dois terços e meio do lugar queria participar do grupo. A metade restante ou não estava presente, ou era lambe-botas do Conselho. Da onde já se viu, pobre ser defensor do Conselho Escolar?!

O primeiro ato foi um sucesso total. Fogos de artifício foram acesos, cadeiras e mesas foram viradas, cartazes foram colados, tinta vermelha foi espalhada pelas paredes da escola. “ABAIXO AO CONSELHO!” todos gritavam, emocionados. Marta, José e Gemma ficaram encurralados em uma das quinas do salão. Os alunos não recuaram nem com a presença do vampiro Narciso de Mattos, que foi impedido de entrar no salão por entidades fantasmagóricas. O Negrinho do Pastoreiro galopava feliz no ar, segurando uma bandeira vermelha, mal feita, com letras negras: “MARAGATOS NO PODER!”. Um lenço vermelho adornava o pescoço magro do menino. Pedro sentiu falta de Cambará durante aquele rebuliço todo. O professor com certeza iria adorar aquela revolução que estava nascendo no coração da escola. Os conselheiros, assustados, lançavam feitiços mais do que letais nos alunos, que revidavam. Não com feitiços letais, mas com um feitiço simples e direto: Mbovaipa. Anulava qualquer feitiço, por mais perigoso que fosse. E além disso, não exigia nada de experiência. Um feitiço leve, fácil e de extrema utilidade. Tudo estava muito bom, mas o quarto período estava chegando. Todos os Maragatos foram para suas respectivas aulas, deixando os membros do Conselho Escolar sozinhos em um salão revirado.

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Todos tomaram uma decisão antes da sineta tocar: o boicote geral das aulas de José Mayer e Gemma. Ninguém iria mais comparecer nas aulas de Ética nem de Segredos do Mundo Animal enquanto o Conselho Escolar não fosse dissolvido. A revolução havia começado.

Não tardou muito para ser divulgada as providências tomadas pelo Conselho Escolar diante de tal afronta; “Está decidido que, há partir de hoje, 29/04/13, todos os encontros estudantis em grande escala estão definitivamente banidos de nossa excelente escola. Caso esta regra for quebrada, os baderneiros serão severamente punidos e estarão sujeitos a expulsão coletiva.” - Agora somos vândalos, então? – Antares riu com gosto. – Quer saber? Se for assim, a baderna me representa! Pedro, Murilo e Felix concordaram. Estavam sentados em frente ao Bolicho, tomando chimarrão, até que um loirinho chegou até eles, correndo desesperado. Estava vermelho e arfava sem parar. - Vocês... Vocês viram isso? – ele perguntou, jogando uma folha amarelada com detalhes em dourado para Antares.

CHIMANGOS LUTE CERTO. LUTE CONTRA A OPOSIÇÃO.

Antares leu o papel e uma expressão divertida tomou conta de sua face. - Então temos fãs revoltados? – e passou o papel para Pedro e Murilo lerem. - Típico! – exclamou Felix, rindo da situação. – Quantos membros tu acha que eles conseguem? Quatro, cinco? - Duzentos e dezessete. Contadinhos. – o pequeno loiro disse. - Moradores do château, acertei? – o loirinho assentiu. - Oque é o château? – Pedro perguntou, olhando nos olhos do amigo elfo. - Um palácio enorme onde dormem os queridinhos do Conselho. O loirinho se despediu e começou a andar pela estrada de terra batida, até que parou no meio do caminho. Tirou um lenço branco meio amassado do bolso da bombacha e a jogou para Antares. 79


- É o símbolo deles – o loirinho disse antes de sumir na curva da estrada, apressado. Antares amarrou o lenço na testa, de maneira completamente desleixada. Olhou para os amigos com um sorriso torto e ao mesmo tempo escancarado estampado no rosto, exibindo os dentes perfeitos. Os quatro riram, e o dia terminou assim, de forma divertida. Ninguém estava nem ai para os Chimangos, e o Conselho Escolar nem passava por suas cabeças naquele momento. Enquanto riam e se divertiam, os três conselheiros tramavam as mortes de cada um deles.

Capítulo 20

CEROL Pedro havia andado tão ocupado com os Maragatos durante as semanas do mês de maio que acabará por se esquecer quase completamente da aula prática de Boleada Bruxa que estava por vir. A aula seria assistida por toda a escola. As aulas do dia 01/06/13 iam ser interrompidas no terceiro período, para que nenhum aluno ou professor perdessem o evento inédito. O professor Tauro havia organizado a primeira série em dois grupos de dez jogadores cada. Todos devidamente vestidos e calçados com os velhos equipamentos de proteção que a escola tinha. Os vinte alunos já haviam aprendido a montar em vassouras e atirar a boleadeira com perfeição, agora tinham que tirar a prova real disso. Caso saíssem um dedinho da linha, o professor cortava-os da equipe. Pouco antes do almoço, a escola inteira estava perto da enorme quadra de esportes que a escola possuía. Cadeiras de madeira haviam sido distribuídas pelo gramado, tão juntas que pareciam terem sido coladas umas nas outras. As únicas cadeiras mais soltas e confortáveis era a dos conselheiros. Poltronas chiquérrimas, estofadas com pelegos de ovelha dourada. As três figuras estavam lá, e olhavam fixamente para o campo, como se temessem olhar para os lados e serem bombardeados. Uma proteção mágica havia sido implantada em volta do camarote dos conselheiros, por “precaução”. A verdade era que os três, sem exceção, estavam com as calças borradas por causa dos alunos. Marta era a única que conseguia disfarçar isso maravilhosamente bem. 80


Às 11h30, os dois times já estavam em formação. Cada um em uma das extremidades da quadra. O professor assegurou aos dois times de que a quadra estava magicamente protegida e, ao serem derrubados, do chão eles não passavam. Os dois times assentiram, e o professor apitou. Pedro estava com um pressentimento ruim, mas mesmo assim, não pensou duas vezes à respeito de tirar os pés do chão. Foi um dos primeiros a dar impulso quando o professor apitou. Vassouras começaram a voar de uma lado para o outro a quadra, como animais com vontade própria. Alguns alunos mais apressados, já haviam jogado suas boleadeiras. Duas pessoas do time de Pedro foram derrubadas, seguidas de perto por uma do time adversário. A menina negra e linda observava o jogo lá de baixo, com os olhos brilhando a luz do sol do início de tarde. Pedro ficou admirando a beleza da moça e quase foi derrubado da vassoura. A boleadeira passou logo acima do couro cabeludo do menino, e em seguida voltou contra quem havia atirado-a. O garoto do time adversário se enroscou na própria armadilha e não tardou em cair da vassoura. Pedro subiu o mais alto que pode e ficou observando tudo lá de cima. Os times adversários continuavam se confrontando lá embaixo. A disputa estava acirrada. 3 para o time de Pedro e Murilo, 3 para o time adversário, do qual Francine fazia parte. O menino já estava começando a pensar que haviam esquecido dele, quando um zum-zum-zum rápido começou a vir em sua direção. Uma boleadeira, girando como as hélices de um helicóptero. Ele desviou com facilidade, e voltou a relaxar, mas, da mesma forma que o zumzum-zum havia ido, estava vindo novamente na direção de Pedro. - Mas que... – Pedro não teve tempo de terminar a frase. Mergulhou em direção ao solo, ainda montado na vassoura, tentando a todo custo fugir da boleadeira que não parava de persegui-lo. A plateia notou que havia algo errado com o menino. Estava descrevendo um zique zague perfeito no ar, com a boleadeira o seguindo incansavelmente. - ALGUÉM ME AJUDA?! Ele mergulhou em direção a plateia. Alguns alunos que estavam assistindo foram obrigados a pular para o lado para não serem atropelados pela vassoura. Um mar de cadeiras foi derrubado durante a fuga de Pedro. A boleadeira continuava girando em sua direção. O menino sacou a varinha, desesperado, e começou a lançar todos os tipos de feitiço letais que conhecia em direção ao objeto que não parava de persegui-lo. Nada 81


adiantou. O feitiço batia e a boleadeira o absorvia sem causar dano algum a sua estrutura. Mais cadeiras foram tombadas. O jogo havia sido interrompido, e os jogadores estavam parados no ar observando a situação caótica. Pedro parecia estar brincando de pega-pega com as boleadeiras! Mesmo sem querer, Pedro estava chegando cada vez mais perto do camarote dos conselheiros. As três figuras observavam a cena, mas não faziam nada para tirar o menino daquela. Ao chegar a 20 metros do camarote, Pedro bateu em uma parede invisível e foi arremessado para longe. O mesmo aconteceu com a boleadeira. Com a mesma força que bateu, o objeto foi arremessado, deixando-o perigosamente perto de Pedro. O menino entrou na floresta da escola, em meio a uma medida desesperada de tentar fugir, mas não havia condições de voar lá. A mata era muito fechada, o perigo de bater em um tronco e ser arremessado para a frente era imenso. A boleadeira enroscou-se em um galho de árvore, mas simplesmente cortou-o ao meio, oque assustou Pedro. Oque aquele objeto tinha?! Uma boleadeira normal ia ficar amarrada no galho até que alguém fosse ali para retirá-la. Pedro tirou o lenço do pescoço e jogou-o na direção do brinquedo maligno. O tecido vermelho foi imediatamente cortado, como se fosse algum legume sendo jogado em direção a um triturador. A facilidade com que a boleadeira havia cortado o lenço deixou Pedro amedrontado. Se havia feito aquilo com o lenço e com o galho de árvore, oque não poderia fazer com as pernas dele?! Alguns professores surgiram lá no solo, jogando feitiços contra o objeto amaldiçoado, mas nenhum surtiu efeito. Uma professora magrela, tatuada e de cabelo curtinho tentou até arremessar raízes e plantas grossas que possuíam vida própria para deter o objeto, mas as cordas da boleadeira fizeram picadinho com as plantas. Redes metálicas foram jogadas pelos centauros moradores da floresta, mas nada conseguia deter aquele brinquedo assassino. Pedro já estava começando a ficar exausto em cima da vassoura. Sentiu que ia apagar até que... Um homem começou a voar em direção ao objeto. O professor Rodrigo de Cambará estava de pé na vassoura, como se o objeto fosse parte dos ossos dele. A mão estava estendida, revestida com camadas e mais camadas de luvas de couro de dragão. Rodrigo pulou da vassoura em direção ao objeto, e infelizmente, por um erro na hora da mira, acabou tendo que se segurar na corda por alguns segundos. Um líquido vermelho escarlate surgiu de buracos feitos na luva. O professor trocou a mão de lugar 82


rapidamente, e dessa vez, pegou no lugar certo. Agarrou-se nas esferas de pedra que ficavam na extremidade do objeto, e os dois começaram a despencar em direção ao solo. Por algum milagre, Augusto Saramandaia acertou o feitiço e retardou a queda do professor segundos antes de Cambará chegar ao solo. Pedro fez a vassoura dar uma guinada violenta e começou a ir em direção ao professor, lá no solo. Alunos e mais alunos curiosos haviam o cercado, formando círculos perfeitos. A boleadeira havia arrebentado no meio, mas não sem antes fazer um enorme estrago nas mãos do professor. Já despidas de qualquer tipo de luva, Pedro pode ver o estrago: a boleadeira amaldiçoada quase havia amputado os dedos do professor fora. - Podes ter certeza que isso é cerol... – o professor disse, limpando o sangue que não parava de escorrer de seus dedos na bombacha novinha em folha. Os alunos mais acostumados ao mundo bruxo começaram a se perguntar oque era cerol. Mesmo sentindo pontadas de dor, o professor respondeu, entre os dentes: - É uma mistura perigosíssima, de origem lasqueada. Vai tudo quando é porcaria nela... – o professor disse, mas logo se calou. Francesca havia chegado com o kit de primeiro socorros em mão. – Pedro, chama os maragatos e me encontra no Cercado hoje de noite. – o professor disse, e em seguida, apagou. Ou ao menos fingiu que apagou, para fulgir das perguntas. Como Cambará sabia dos Maragatos, Pedro não sabia, mas foi logo dar o recado aos colegas. O mar de gente se abriu logo que o menino demonstrou que pretendia sair dali. Era como se acreditassem que Pedro desse azar ou estivesse contaminado... Sentiu os olhares pesarem sob seus ombros enquanto andava entre o mar de gente, mas não olhou para trás. Olhou apenas para frente, como um cavalo de carroça.

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Capítulo 21

MENOS UM Pedro, Murilo, Antares, Felix, Francine e meia legião de Maragatos se encontraram com o professor Rodrigo de Cambará, mas foi bem longe do Cercado. O motivo era simples: os Chimangos e os conselheiros provavelmente já sabiam da reunião marcada para aquela noite, e com toda a certeza do mundo mandariam espiões para o Cercado. Cambará guiou-os até o meio da floresta, onde, para a surpresa de todos, havia uma mansão colossal. Parecia uma enorme caixa branca, com o telhado vermelho, sem janelas nem portas. Aparentemente abandonada há muito, muito tempo. Cortinas de vinhas cobriam as paredes externas da casa, uma pequena parte do telhado havia desabado, as flores dos jardins estavam mortas... Era de dar arrepio. E, além disso, um clima de filme de terror cobria toda a Rio Pardo. Um temporal estava a caminho, então, vira e mexe, raios estouravam nos céus rio pardenses. - M’Boboré, uma casa construída com magia por um velho e bom índio bruxo... Dizem que abriga os maiores tesouros do Rio Grande do Sul - Cambará comentou, atiçando a curiosidade dos Maragatos. Naquela noite, não havia fogo de chão no meio da floresta. O fogo iria chamar atenção desnecessária. O máximo de iluminação que havia ali hoje era a dos vagalumes e a da lua cheia que brilhava lá no céu. - Então, meus companheiros, qual dos três vocês acham que mandou a boleadeira atrás do Pedro? – Cambará perguntou, resoluto e cheio de certeza. Os alunos custaram para entender, mas Pedro, como bom entendedor que era, foi logo respondendo: 84


- E o senhor ainda têm dúvidas?! A Marta, claro! Todos concordaram. Era de conhecimento público que Marta era a conselheira que mais implicava e odiava com Pedro. - Mas aquele lance do cerol... – um menino disse, aproximando-se mais do professor Rodrigo. – Vocês não acham que é se rebaixar demais? Os alunos o vaiaram de forma controlada. Uma vaia silenciosa, mas mesmo assim, uma vaia. - Não, esperem, vocês entenderam errado! Eu não tenho nada contra os lasqueados. Meu pai e minha mãe são dois grandes lasqueados. Mas a Marta tem, e vocês sabem disso! Lembram-se do jeito que ela tratou aquela mãe lasqueada no ano passado? Os alunos do segundo ano em diante assentiram, e logo foram contando a história para os novatos. Cada um adicionava um detalhe diferente, tornando a história rica e verossímil. Pelo visto, Marta havia praticamente expulsado uma mãe lasqueada de dentro da escola na cerimônia de abertura do ano passado. A mulher havia saído aos prantos, com o filho de treze anos junto. - Sabem aquela ridícula revista que teve no início do ano? – o professor Cambará disse enquanto tomava um gole de chimarrão. Antares havia acabado de passar a cuia para ele. – Então, não era bem uma revista. A varinha dos conselheiros mudava de cor quando a família do aluno não tinha nenhuma ligação com o mundo mágico. Por acaso vocês viram os filhos de lasqueados depois daquele dia? Todos negaram, mas Pedro não pensou atenção naquilo. A varinha não havia mudado de cor quando havia passado por ele! Seus pais eram bruxos! A notícia caiu como uma bomba nuclear no seu estômago, mas logo começou a ser digerida, de forma lenta e gradual. Então era por isso que havia recebido a carta, e não por um feliz engano! Pedro só voltou ao mundo real quando o professor solicitou sua atenção. - Tu andou aprontando alguma com o Mayer ou com a Gemma desde que eu parti? - Nem nas aulas deles eu fui! – Pedro exclamou. – Nem eu nem todos os Maragatos... – disse essa frase em um tom baixo, aborrecido. Provavelmente o professor ia xingar eles. - Quer saber?! Eu apoio vocês, gurizada! – Cambará foi aplaudido. – Como o próprio Antares estava me falando antes de eu me encontrar com vocês... A baderna me representa! 85


Papo vai, papo vem, mas as horas não paravam de correr no relógio. A reunião foi acabar era quase 1h. Os alunos, morrendo de medo, seguiram de perto o professor Cambará quando ele começou a guia-los até a saída. Pedro teve certeza de que, se fosse outro professor, eles já estariam mortos naquela hora, mas Cambará parecia ter passe livre naquele lugar. Todos os monstros e forças sobrenaturais o respeitavam, e ele as respeitava também. Respeitar para ser respeitado, a frase soou na cabeça de Pedro. Ficou decidido naquela reunião que, no dia seguinte, ninguém tocaria na comida do almoço nem compareceria a nenhuma das aulas. Esta mensagem deveria ser repetida para todos os Maragatos que haviam faltado naquela reunião. Iriam todos almoçar 2h mais tarde. Cambará também tinha passe livre na cozinha da escola. - Quero te mostrar uma coisa – Murilo segurou Pedro pelo braço, e os dois pegaram um atalho que ficava à esquerda do caminho que estavam percorrendo. Andaram alguns metros e acabaram saindo em um lugar belo e brutal. Mais brutal do que belo. Provavelmente já havia sido um lugar bonito, mas agora estava em ruínas. Uma placa de madeira brotou do chão logo que os rapazes pisaram no solo de grama morta do lugar.

LAGO NEGRO Construído em homenagem ao excelentíssimo C.E.A.P.R.P - Janeiro de 1977 -

Logo que Pedro descobriu que o lugar havia sido construído em homenagem ao conselho, já começou a desconfiar de que havia alguma armadilha ali. O lugar era amplo, cheio de neblina, e possuía um lago de águas verdes carregadas bem no meio. Pinheiros cercavam o vale de ponta a ponta. - Os pinheiros foram importados da Floresta Negra alemã – Murilo disse, apontando para as árvores altas. – Bem a cara do conselho, tu não acha? Pedro assentiu, mas sua atenção foi fisgada por um pedalinho em forma de cisne branco que navegava solitário pelo lago. Os pedais faziam barulhos estranhos, como se estivessem há séculos em desuso. - Esse lugar foi fechado após um incêndio em 2001 – Murilo comentou enquanto jogava pedrinhas no lago. – É um lugar para demônios, tu não acha? Nem as criaturas da floresta ousam vir aqui... Acham que esse lugar trás má sorte, e além disso, abriga demônios dos piores tipos...

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- Então por que eu e tu estamos aqui?! – Pedro se arrepiou dos pés a cabeça. Uma brisa forte e gélida cobriu o lugar, como um tsunami. - Por causa daquilo ali – Murilo apontou para uma ilhazinha minúscula que ficava no meio do lago. Nela, uma árvore enorme crescia, carregada de frutos gordos e dourados. - E oque exatamente são aquelas frutas? - Aquelas frutas são o café da manhã, almoço e jantar do meu avô. Sempre venho aqui para colher elas. Hoje decidi te trazer porque acordei com um pressentimento ruim, e, além disso, sempre é bom ter alguém por perto. Se um monstro aparecer, eu te entrego pra ele e saio correndo – Murilo abriu um sorriso brincalhão, e Pedro bagunçou os cabelos dele, rindo. – Vou colher as frutas. Volto já. E o elfo saiu andando. Andando, tranquilamente, sob as águas. Pedro assistiu a cena boquiaberto enquanto o amigo seguia adiante, na maior naturalidade. Murilo percebeu que estava sendo observado e chamou Pedro pra tentar também. - Tu tá até doido que eu vou ai! – Pedro exclamou em voz alta, e provavelmente foi isso que denunciou o paradeiro dos dois alunos. - Ué, tá com medo, bruxo?! – Murilo riu. Pedro aproximou-se da água e tocou nela. Estava um gelo! E além disso, a água não tinha vida. Era escura, opressiva, graxenta, parecia querer segurar os dedos de Pedro ali. Imagina se fosse o corpo todo? Um mergulho ali seria morte na certa. Murilo estava coletando a árvore, e o cheiro da fruta espalhou-se pelo ar. Era um cheiro doce, lembrava mel, flores silvestres, grama recém cortada... Pedro só percebeu que estava sendo atraído pelo cheiro quando viu que seu pé já estava indo de encontro com a água grotesca. O menino recuou, assustado, e afastou o maravilhoso cheiro de seu nariz. Murilo já estava a meio caminho andando quando aquilo aconteceu. Um tiro foi disparado no ar. O barulho ecoou pelos quatro cantos da Rio Pardo, e em seguida, uma voz idêntica a voz de Pedro gritou, desesperada: - MURILO! - QUIÉ?! O elfo se desconcentrou, assustado, e afundou na água. Sua ponte invisível provavelmente havia se partido ao meio.

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Pedro levantou-se de um salto e começou a ir em direção as águas do lago. Já estava tirando as botas quando um jato de luz vermelha passou de raspão ao seu lado, fazendo a roupa dele ficar meio chamuscada. O menino olhou imediatamente para o lugar de onde o jato havia partido, mas só viu o mato se movimentado. Alguém estava fugindo. Ou salvava o amigo, ou ia atrás da coisa que havia tentado matar ele. Escolheu salvar o elfo. Pela primeira vez na vida, não foi egoísta. Pedro pulou no lago, completamente isento de roupa. Exatamente como no Guaíba, o primeiro choque foi o do frio. Ao menos ali, no Lago Negro, Pedro conseguia enxergar embaixo da água. Murilo estava indo em direção ao fundo do lago quando Pedro chegou para salvá-lo. Meteu a mão nas costas do elfo que se debatia, e começou a ir em direção a superfície. Não foi fácil carregar o seu peso e o do elfo, mas o menino tentou resistir ao máximo que pôde. Jogou Murilo na ilha que ficava no meio do lago, mas então entrou em pânico. Sua varinha não estava mais na guaiaca. Pedro analisou os terrenos que cercavam o lago. Nada de sua varinha. Voltou ao fundo do lago. Sua varinha estava no verdadeiro fundo do lago, localizado há uns 20 metros abaixo da superfície. O objeto mágico estava preso no fundo do lago por causa de alguns tocos de árvore cheios de raízes em formatos medonhos. O menino começou a lutar com as raízes para conseguir pegar oque era seu por direito. Quando conseguiu soltar a varinha, todo o ar que ainda restava nos pulmões dele se esvaiu em grandes bolhas. As bordas de sua visão começaram a ficar cada vez mais enegrecidas, até que Pedro viu uma mão mergulhar no fundo do lago e o puxar com força total. Logo que emergiu, Pedro respirou o mais fundo que pôde, ainda agarrado na mão forte que o buscará. Parecia ter ficado uma eternidade lá dentro daquele pesadelo esverdeado. - Te liga, guri! Nunca mais invente de vir pra esse lado da floresta sozinho! A pessoa que o havia puxado do fundo do lago o largou ajoelhado na superfície da água, agora sólida novamente. Quando a visão de Pedro começou a entrar em foco, ele viu o mesmo índio que havia visto antes de cair no sono em sua primeira noite na Rio Pardo. Agora pôde observar com mais detalhes o rosto do homem: era jovem e liso, com uma cicatriz estranha na testa. Estava vestido com roupas mais do que simples, e tinha um sorriso no rosto antes de desaparecer.

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Aquele jovem estava começando a irritar Pedro. Afinal, por que só aparecia de vez em quando, e por que nunca falava nada complexo?! Pedro estava encharcado dos pés à cabeça, assim como Murilo. O elfo já havia acordado e respirava normalmente. Os frutos dourados continuavam muito bem presos em sua guaiaca. - Eu não devia ter te trazido aqui. – Murilo sussurrou, cheio de culpa. – Eu quase te matei! - Não, alguma coisa quase nos matou. Antes de mergulhar, vi que tinha uma criatura nos observando, mas nem os olhos dela eu consegui ver. Só consegui ver a correria que ele fez quando viu que eu tava olhando pra ele. O menino decidiu não falar nada sobre o jato vermelho. Pedro e Murilo decidiram não contar nada sobre aquela noite para ninguém. Aquela situação havia sido aterrorizante demais, e coisas assim não devem ser contadas ao populacho. Só servem para meter medo nas pessoas. Se bem que era de conhecimento público que a floresta era um lugar para demônios, e não para bruxos. Os monstros que ali moravam queriam que tu te perdesses no meio da mata, e as árvores não te ajudavam a se localizar em nenhum ponto. Viviam mudando de lugar. Os dois jovens adormeceram de forma mais rápida possível. Em um piscar de olhos, estavam mergulhados no mais profundo sono. Mal Pedro sabia que era observado de perto enquanto dormia.

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Capítulo 22

JÚNIOR MESQUITA Junho chegou e, junto com ele, o frio dos pampas. A escola estava coberta de geada de uma ponta a outra, dando-a um estilo um tanto quando europeu. Alunos e professores tomavam chimarrão à beira do fogo de chão para se aquecer, até que a queridíssima conselheira Marta proibiu o fogo de chão na escola. - Agora só falta era proibir o mate! – Cambará exclamou, nervoso. – Se proibir, ai sim vai ter uma verdadeira revolução nas mãos. Lá pelas tantas do inverno, alguns alunos começaram a aparecer vestidos com uma tal de capa especial, uma capa mágica que tirava o frio do corpo de quem a usasse. Mas a vestimenta custava algumas dezenas de pilas e mais algumas onças de ouro, então a maior parte da escola estava usando blusões de lã grossos e ponchos, infinitamente mais baratos que a capa. O frio era tanto que o açude havia congelado e alguns alunos praticavam patinação no gelo nele. E foi nesse frio de renguear cusco que começou a temporada de Boleada Bruxa na escola. Toda semana, uma turma diferente entrava em campo. De 2ª série em diante, já que a 1ª tinha muito oque aprender ainda, e o professor Tauro ainda estava assustado com oque havia acontecido com Pedro. Já que a 1ª série estava desclassificada e as aulas de Ética e Segredos do Mundo Animal estavam boicotadas, Pedro e Murilo decidiram passar o tempo livre que tinham na biblioteca da escola. Pedro aproveitou esses momentos naquele verdadeiro palácio da leitura e aprendeu novos feitiços, um mais perigoso que o outro. Descobriu também que haviam feitiços proibidos, mas estes ele não conseguia fazer de jeito nenhum. Embi, Aya, Tekoavy...

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Eram tão perigosos que os livros didáticos nem mostravam seu significado ou efeito em português. Por mais que o inverno estivesse rigoroso, os Maragatos não desistiram da luta. Criaram bonecos de neve meio murchos, já que não nevava tanto assim no Sul, em volta da cidade Escolar e Administrativa. Alguns bonecos representavam José Mayer, com nariz vermelho de palhaço, outros representavam Gemma, rechonchudos e vestidos com uma cortina enorme, e outros representavam Marta, com chifre de diabinho e tudo. Mas oque mais surpreendeu o grupo durante o mês de junho foram as mentiras que o recém-fundado jornal da escola estava emitindo. Um dia, Antares chegou estressado na mesa durante o café da manhã e jogou o amontoado de folhas sob a mesa. Nele, lia-se:

MARAGATOS DIZEM: Que a Rio Pardo se exploda! Será que nosso grupo de revolucionários quer mesmo nosso bem?

- Temos que ir tirar satisfações! – Felix disse, rasgando o jornal no meio e arrancando as folhas das mãos de quem estava perto dele. - Onde que fica a redação desse lixo? - Rua do Tinteiro, C.E.A – Pedro leu. - Ah, claro, não podia ser diferente! Pode ter certeza que é algum dos membros do conselho que comanda a redação! – Antares deu um soco na mesa, fazendo várias folhas verdes brotarem no lugar da pancada. E lá foram os quatro fundadores do grupo, inconformados, bater um papo amigável e obrigar o redator a desmentir tudo. A redação do jornal era um prédio lindo e quadrado, cheio de esculturas de criaturas esquisitas na fachada. Antares foi quem bateu na porta, com força. A porta de madeira abriu-se de imediato. Nela, um menino mais do que estiloso. RayBan verde no rosto, calça laranja, camiseta com decoração psicodélica. O cabelo acaju era arrepiado na parte de cima, e ele calçava alpargatas de couro. - Posso ajudar? – o menino perguntou. Perto do peito dele, um crachá: Júnior Mesquita – Jornal Escolar. - Nós somos os Maragatos, e queremos explicações. – Antares proferiu, e o menino, que já era pálido, ficou mais ainda. - Entrem, por favor. 91


Do lado de dentro, a redação do jornal era o lugar mais desorganizado do mundo. Folhas de jornais voavam por todos os lados, indo em direção a máquinas antigas e cheias de manivelas, que giravam magicamente. Júnior os conduziu ao seu escritório, que ficava no fundo da zona. Antares agarrou uma folha da próxima edição que havia acabado de ser impressa. Nela, uma foto dos três conselheiros, com aquela mesma expressão solene de sempre. A legenda era: Saiba mais sobre os verdadeiros defensores da Rio Pardo. Felix segurou Antares antes que o elfo acertasse uma voadora nas costas do redator. - Qualé o problema que tu tem com nós?! – Antares exclamou, a voz fazendo eco na sala vazia. - Eu sigo ordens – Júnior deu um sorrisinho cheio de significados e começou a girar a varinha de ouro puro entre os dedos. - Bastava não cumpri-las! - Mas eu gosto de cumprir elas. A nossa querida conselheira é como uma mãe pra mim – o redator continuava com aquele sorriso sínico na cara. - Então tu é um filho da... - ANTARES! – Felix chamou a atenção do elfo. O nerd não suportava palavrões. – Não vale a pena. - Respeito em primeiro lugar, se não eu mando chamar a Marta! – Júnior estava começando a ficar desesperado. - Vai, chama! – Pedro se manifestou pela primeira vez naquele dia, tomando a dianteira do grupo. - O papo não chegou na 1ª série ainda, piá – o redator começou a andar para trás. - Mas na boate gay chegou faz tempo, pelo jeito! Murilo se segurou para não rir. Ninguém ali tinha preconceitos, mas Júnior estava jogando sujo. Ele merecia. - Nupã! – Júnior exclamou, apontando a varinha na direção de Pedro. - Mbovaipa! – Antares exclamou antes que o jato cor-de-rosa chegasse ao peito de Pedro. – Como tu ousas lançar um feitiço deste nível em um primeiranista?! Covarde! - Oque que está acontecendo aqui?! – a voz irritada de José Mayer invadiu o cômodo.

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- Invadiram a redação do meu jornal, conselheiro! – Júnior vou o primeiro a reclamar. José Mayer entrou no lugar, seguido de perto pela conselheira Marta. A conselheira fuzilou todos ali com um único olhar. - Ah, tinha que ser este grupinho mesmo. – José Mayer disse, vermelho. Olhando de perto, seu nariz realmente parecia o nariz de um palhaço. Redondo, vermelho e meio achatado na parte superior. O conselheiro olhou para Marta. - Não te estressa, José. As férias estão chegando. – e a vaca puxou o conselheiro para o lado de fora. Os quatro relaxaram. Nenhum havia levado nenhuma detenção, ao menos por enquanto. O que estava por vir era pior do que uma detenção. - Será que podem me dar licença? – Júnior pediu, sem educação nenhuma. - Olha aqui cara, – Antares chegou tão perto do redator que provavelmente Júnior ficou tentado a chapar um beijo na boca do Maragato. – mais uma palavra que tu publicar a nosso respeito, eu volto aqui, mas volto pra ser expulso. Levo esse prédio abaixo em dois minutos. E saíram rua afora, deixando um amedrontado Júnior Mesquita1 lá dentro. - Ah, e tem mais... – Antares voltou para a porta da redação – Nós não somos um grupinho. Nós somos uma legião.

1 O personagem extremamente fascista e gay que é Júnior Mesquita não representa a opinião do autor a respeito dos gays. O autor não possui nenhum tipo de preconceito, assim como Antares ou Felix.

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Capítulo 23

PORTO ALEGRE É QUE TEM No último dia de aulas do primeiro trimestre, pouco antes do recesso escolar, o grupo de sempre viajou novamente à capital. Desta vez usaram o túnel localizado logo abaixo do Mangrulho, construção de origem militar meio torta e velha, onde eram dadas as aulas de Astronomia e Astrologia. O túnel era infinitamente mais amplo que o anterior, mas as paredes eram igualmente de terra. Parecia ter sido cavado por uma retro escavadeira. Antares disse que um dragão passaria ali sem dificuldades. O lugar ficava logo abaixo da superfície, então em alguns pontos era possível ouvir e sentir o trânsito da capital sob suas cabeças. Pedro ficou com medo do lugar desabar em cima dele. - O túnel é reforçado magicamente – Antares disse, como se tivesse lido os pensamentos de Pedro. Naquela noite, Felix estava vestido de forma mais desleixada, oque significava que sua namorada baiana não estaria presente. Estava com olheiras fundas e a roupa estava meio surrada. Havia passado a madrugada inteira jogando World of Warcraft. O túnel, desta vez, deu em uma parede falsa no viaduto da Avenida Borges de Medeiros, uma ponte colossal e muito bonita, apesar das centenas de pichações espalhadas pelo lugar. Provavelmente havia sido construída com o auxílio de magia. Os cinco sentaram-se no Monumento aos Açorianos e ficaram observando a Rampa de skate na outra quadra. O apelido do prédio da administração era óbvio: um de seus lados havia sido construído com a forma de uma rampa enorme. O sonho de qualquer skatista da capital, bruxo ou não. Ficaram tomando chimarrão e comendo sanduíches de folha de mandrágora com abóbora, tudo preparado por Felix.

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- Sabe... – Murilo começou a falar – Às vezes eu penso que Porto Alegre foi construída por bruxos. Aqui têm tantos portais, lugares mágicos, paranormais ou não... - Talvez foi, ninguém sabe. – Felix disse com a folha cheia de folha de mandrágora. - Da mesma forma que a Pampas. Não sabemos se ela simplesmente apareceu lá ou algum bruxo a construiu. Há lendas que dizem que ela foi construída pelos índios... - A Marta reluta em assumir isso – Francine disse, dando uma mordida violenta no sanduíche. A atenção dos cinco foi puxada por várias vozes que vinham de um dos lados da rua. Uma multidão de gente gritando, com os rostos pintados, segurando cartazes. Por um momento, Pedro quase lançou um feitiço dos fortes neles. - Que isso?! – Murilo disse, se abaixando perto da estrutura do Monumento aos Açorianos. - Manifestações, meu caro irmão – Antares disse, com os olhos brilhando ao ver a multidão. – O povo acordou. Os cinco passaram um tempo observando a manifestação que corria solta pelas avenidas da capital. Um mundaréu de gente, todos caminhando, um atrás do outro. Usavam bandeiras do Brasil como capa, cartazes com palavras de ordem erguidos no ar, tinta verde e amarela na cara... Aqueles lasqueados eram criativos mesmo. O momento de observação não durou muito tempo. Logo, a Brigada Militar chegou para conter o protesto, lançando tiros de borracha e bombas de gás em tudo e todos. Pedro ficou tentado a atear fogo em algum deles com o uso da varinha. Agora ele tinha capacidade para isso. Perto da meia-noite, um divertido jogo das luzes desatou-se no Parque da Redenção. Felix e Antares estavam ganhando de lavada, como sempre. Corriam de um lado para o outro, eliminando uma, duas, três vezes Pedro, Francine e Murilo. O bar de mármore estava fechado naquela noite, então os três tiveram que ir para outro bar bruxo, também localizado na redenção. A existência deste era tão óbvia que Pedro ficou perplexo. Como as lasqueados não haviam visto aquilo antes? Ficava em uma cabaninha de madeira perto do lago onde geralmente ficavam os pedalinhos. Algumas tartarugas dormiam próximas a porta. O bar lá dentro era uma desordem completa, mas ao mesmo tempo, confortável. Os cinco escolheram um lugar próximo à lareira, que estava acesa e cheia de chamas. Fazia frio naquela noite, mas não um frio normal. Um frio intenso, sufocante. O mesmo frio que fazia no Lago Negro ou nas profundezas do Guaíba. - Estou notando que algumas energias negativas estão se formando à nossa volta... – Antares proferiu, no meio do jantar, fazendo todo mundo perder a fome.

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- Frescura, mano – Murilo deu um tapa amigável nas costas do irmão e continuou comendo a salada de vegetais mágicos. Antares remexeu na sopa de batatas isenta de carnes que estava em sua mesa. O elfo tinha uma aparência cansada e desconfiada. - Acho que... – a voz do elfo falhou no meio da mensagem. – Precisamos voltar para a Pampas. - Mas já?! – o português dono do bar perguntou, a bigodeira quase furando os olhos de Antares. - Já sim, seu Emanuel. – Felix foi se despedindo, preocupado. – O senhor sabe, quando elfos tem sensação esquisita, ou algo está acontecendo ou uma dor de estômago das fortes está por vir... Despediram-se e foram em direção ao portal mais próximo, localizado perto de um monumento em ruínas, tão acabado que nem dava para ver a luz azulada que vinha de dentro dele. Todos colocaram as mãos sob o monte de pedras amontoado e, passados alguns segundos, foram transportados para o túnel abaixo do Mangrulhão. Cada um em tempos diferentes. Antares foi o primeiro à chegar, mas esperou os outros para abrir o alçapão feito por uma placa de metal localizado no teto do túnel. Colocou a cabeça para fora, olhou o ambiente de uma ponta a outra, e em seguida voltou para dentro. - Preparem as costas.

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PARTE DOIS

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Nota do editor: a segunda parte deste livro não é recomendada para pessoas com o coração fraco. Tapas, feitiços proibidos, cenas de luta, quebra-quebra e tortura são comuns nas páginas que estão por vir. Estejam avisados.

Capítulo 24

MARTA Marta Elizandra Junqueira de Queiróz andava de um lado para o outro de seu escritório, como um pêndulo diabólico. Era um salão grande, em estilo europeu. As várias janelas espalhadas pelo lugar estavam tampadas com cortinas negras e densas, feitas para não deixarem nenhum fiapo de luz escapar do lugar. A mesa do conselho ficava em uma das laterais, enorme, de madeira tão maciça que parecia ferro tingido, numa elevação que tinha como único objetivo intimidar quem tivesse à sua frente. Das três cadeiras da mesa, a do meio era a mais sólida e ornamentada. Uma cadeira similar a um trono, feita inteiramente de pedra. Corujas, quero-queros, pavões e corvos magricelas estavam esculpidos por todas as partes do móvel, com os olhos fitando fixamente quem estivesse à frente da mesa. Pedro tentava ao máximo disfarças a ansiedade que havia tomado conta de seu corpo, mas estava difícil. Sua vontade no momento era de esganar a conselheira que os deixava ali esperando sem falar nada. Que falasse logo oque tinha que falar! Aquela vaca... - Chamou, madam? – José Mayer interrompeu a abominável lei do silêncio que cobria o lugar de uma ponta à outra. Antares encarou fixamente o conselheiro, como se estivesse tentando mata-lo virtualmente. Mayer entrou na sala, todo pomposo, com o seu pijama de linho egípcio bordado com ouro e Gemma entrou logo atrás, ainda meio sonolenta, mas com o mesmo sorriso cheio de malfazejos no rosto. 98


- Deves estar ciente de que estou expulsando estes aqui – Marta enfim disse, curta e grossa. Seus cabelos castanhos curtíssimos e crespos estavam presos em um rabo de cavalo apertado. Pedro já sabia que estavam expulsos, mas ouvir aquilo sido pronunciado em alto e bom som fez seu estômago revirar. Murilo provavelmente estava sentindo as borboletas no estômago também, pois não parava de se remexer na cadeira. - Já estou a par da situação, madam. O retrato me falou tudo. – Mayer disse, apontando para um velho gordo e com jeito de europeu, pintado no retrato mais próximo. Gemma viu que estava sobrando na sala, então decidiu fazer algo. Deu um passo à frente e fez um gesto amplo. O feitiço foi tiro e queda. Logo que lançado, Pedro e seus companheiros começaram a sentir seus membros cada vez ficando mais rígidos, parecidos com pedras. - Seus bandidinhos – Mayer disse, inclinando-se na direção dos Maragatos. - Bandidinho é a senhora tua mãe – Pedro respondeu, com a língua meio presa por causa do feitiço. Estava sem medo. Sabia que já estava expulso mesmo. A situação não podia piorar, ou podia? Mayer fechou a cara. - Como tu ousas falar assim com o conselho, rapazote? – o conselheiro vociferou, claramente desconcertado – Cadê tua varinha? - Que é, pensou que o gurizinho ia ficar calado? – Pedro continuou encarando-o. Tentou rir, mas sua garganta estava enferrujada por causa do feitiço de corpo preso. – Minha varinha? Eu escondi antes de vir pra cá, claro. Pedro mentiu. Mesmo com o corpo inteiro transformado em pedra, conseguia sentir a varinha dentro das botas. Marta dirigiu-se aos seus dois comparsas, irritadíssimas. - Estes ai merecem mais do que a expulsão. Eles fazem jus ao... - Ill pozzo? – Gemma perguntou, uma fagulha de esperança e felicidade acendendo-se em sua voz. - Ao poço. – Marta concluiu, resoluta – Duas semanas lá, até o fim do recesso escolar. Ninguém vai sentir a falta deles, e caso sentirem, iremos dizer que por algum acaso não voltaram das férias. Que tal? - Exato! – Mayer praticamente começou a dançar de tanta felicidade. Pedro ainda não havia entendido oque era o tal do poço. - Pozzo vai fazer minha mão na tua cara – Francine disse, com a língua tão presa que chegava a babar enquanto falava. Marta encarou Francine por alguns segundos e em seguida falou, entre os dentes:

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- Será que alguém pode me informar qual o sexo dessa criatura? A cara é de guria, mas a roupa não faz juz. Francine debateu-se tanto na cadeira que caiu no chão. O feitiço de corpo preso parecia ter feito o dobro do efeito nela. - Ah, – Marta abriu a boca, debochada. – ela vai tentar me bater. A conselheira demoníaca inclinou-se em direção a Francine, que chorava no chão. Gritos arranhavam a garganta da menina, mas não saiam da boca dela. Marta virou a cabeça e deixou a bochecha próxima à mão da menina. - Vai, bate. Se conseguir, é claro – um sorriso diabólico estava estampado no rosto da conselheira. A menina continuava se debatendo no chão, provavelmente doida para pular na cara da conselheira. Se o feitiço saísse pela culatra, Marta estava ferrada. Mas o feitiço não falhou. Gemma havia lançado o dito cujo com perfeição. Marta afastou-se da menina, que soluçava meio sufocada no chão. - Conselheiro José Mayer, será que poderia me auxiliar a transportar estes ai até o poço? – Marta perguntou, puxando as mangas de seu manto até a altura dos cotovelos. Gemma lançou outro feitiço sob eles, e Pedro apagou.

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Capítulo 25

NO FUNDO DO POÇO Pedro acordou lentamente. De olhos fechados, sentia o corpo absurdamente pesado. Um gosto amargo aflorava em sua boca seca. Tentou se levantar, mas seus músculos começaram a reclamar por qualquer movimento que o menino fazia, por mais mínimo que fosse. Abriu os olhos. A luz que vinha das varinhas de seus amigos não eram suficientes para clarear todo o quarto. Se é que aquilo era um quarto. Estava deitado em cima de sacos de lixos carregados até o lugar pela água das chuvas. O lugar cheirava mal, e era tão frio que Pedro pensou que estivesse em uma geladeira. As paredes do lugar, assim como as dos túneis que passavam por baixo da escola, eram de terra. - É um fosso – Felix disse, fazendo os pensamentos de Pedro se confirmarem. - Têm comida? – Pedro perguntou. Estava morto de fome, os dentes mascavam a própria língua. Felix balançou a cabeça, negativamente. - Os elfos não conseguiram plantar nada. O fosso é fundo demais, e a terra é salgada. Murilo e Antares estavam dormindo em um dos cantos do túnel. Ao ver o elfo mais velho, o peito de Pedro encheu-se de raiva. Era culpa dele. Se não fosse por ele, eles não estariam presos ali. Ele que havia feito os cinco voltarem para a Rio Pardo. 101


Pedro tentou ir para cima de Antares, mas Felix não deixou-o avançar. O menino girou nos calcanhares e começou a socar a parede mais próxima até os punhos começarem a doer. A cabeça latejava. - Há quanto tempo estamos aqui? - Um dia. - Já tentaram chamar alguém? Se o fosso é tão fundo aqui, deve produzir um belo eco. - A escola tá vazia. – Pedro percebeu que a armação dos óculos de Felix estava quebrada e as lentes, trincadas em vários pontos – Todos saíram de férias. Lembra, recesso escolar... Pedro começou a socar a parede novamente. Quando os punhos começaram a sangrar, tentou cravar as unhas nas paredes do lugar, em uma medida desesperada de cavar um túnel de fuga. Meteu a mão na bota, mas oque procurava não estava ali. - Cadê minha varinha? - Confiscaram as varinhas de todo mundo aqui. O menino respirou fundo, e começou a fazer novas perguntas: - Cadê a Francine? - Não sabemos. Felix estava tão mal informado quanto Pedro. - Os pais deles não trabalham aqui na escola? – Pedro apontou para os elfos que dormiam amontoados em um canto. - Com toda a certeza a Marta vai falar para eles alguma mentira. Pedro começou a ter mais um surto de raiva. Rasgou os sacos negros que estavam abaixo de seus pés e começou a rasgá-los. Alguns ratos pararam para observar o garoto. Felix estava parado ali, olhando aquela cena com olhos cansados. - Eu entendo oque tu estás sentindo, Pedro, mas te controla cara! O descontrolado, furioso, jogou uma casca de banana mais do que velha e bolorenta na cabeça de Felix. Até verde estava. O nerd retirou a casca e a jogou no chão, com uma despreocupação que fez Pedro ficar desconcertado. Como ele conseguia controlar a raiva até aquele ponto?! A barriga de Felix roncou como um ogro adormecido, e Pedro abraçou o nerd, ligeiramente arrependido do que havia feito.

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A primeira semana do recesso escolar foi longa e extremamente tortuosa. Não havia como fabricar comida no fosso, mas graças aos Deuses, chuva era oque não faltava na Rio Pardo no mês de julho, então ao menos água tinham. Água servida em garrafas PET cortadas, vindas direto do lixo. Pedro tentou escalar o fosso em direção à superfície, mas falhou e caiu lá no fundo novamente. Cortou a pedra em uma garrafa de vidro durante a queda. Agora, além de esfomeado, tinha que enfrentar uma feia infecção na perna direita. As duas semanas do Recesso Escolar foram silenciosas no fundo do fosso. Ninguém comentava nada, ninguém fazia piada alguma e, além disso, ninguém conseguia respirar direito. O cheiro de lixo estava sufocante. As ânsias de vômito eram frequentes no dia-a-dia. Por mais que as aulas voltassem logo, isso não era garantia de que seriam resgatados. Não sabiam onde o fosso se localizava. Poderia ser na Cidade, assim como podia ser no meio da mata.

O resgate demorou mais uma semana para chegar, mas chegou. Um bilhete despencou pelo buraco que levava a superfície e pousou sob uns sacos de lixo no chão. Antares foi o primeiro a vê-lo. Todos ali estavam magros e subnutridos, pele e osso estavam tão próximos um do outro que chegava a doer. Oque estava rabiscado no bilhete era tão estranho que nem pareciam letras. Garranchos grossos e tortos. Letras de um analfabeto. Ten algem hai? - Têm!!! – Antares exclamou, usando toda a energia que ainda restava em seu corpo descarnado. A plataforma de concreto cheia de limo que cobria a entrada do buraco foi arrastada, e um ser bizarro pôde ser vislumbrado através da abertura. O quasímodo assustou-se ao ver os quatro jovens dentro do túnel. Saiu correndo, desesperado, fazendo Pedro irritar-se. E se aquele idiota estivesse indo chamar alguém?! Mas não chamou. Quando voltou, tinha uma corda improvisada nas mãos. Feita de vários cobertores e fronhas meio sujos de terra e extremamente gastos. O monstrengo atrapalhado jogou uma das pontas da corda lá embaixo e quase despencou junto. Amarrou a outra ponta na árvore mais próxima e se afastou. Os jovens usaram todas as suas energias restantes para subir. Há tempos que não efetuavam a respiração celular, ou no caso dos elfos, a fotossíntese. Se é que elfos faziam fotossíntese. Logo que saíram do buraco infernal, o quasímodo indígena os conduziu até sua torre. Uma torre de pedras meio acabada, mas dava para o gasto. Pedro se perguntou se

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ele nĂŁo estava armando para cima deles. Qualquer ato de gentileza jĂĄ fazia o menino ficar desconfiado.

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