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da classe que vive do próprio trabalho confirmando que a nação segue constituída de modo a não caberem todos os povos e todas as pessoas. Segue existindo um “outro problemático” cuja vida é de distinta magnitude. Os mortos não envolvidos em confronto armado com a força policial seguem sendo concebidos como efeitos colaterais aceitáveis, pois podem contribuir para que toda a “boa sociedade”, constituída pelas pessoas que realmente importam, possa viver em paz e segurança.
Padrão de acumulação capitalista e direitos humanos As recentes incursões policiais em grandes comunidades populares têm deixado atrás de si um volumoso rastro de sangue e denotam uma forma particular de imperialismo e de militarização do controle social (Ceceña, 2007). Compreendendo que o imperialismo vem sendo operado por um “sistema de Estados” (Wood, 2003) e que o Estado é a conjunção da sociedade civil e da sociedade política, hegemonia couraçada pela coerção (Gramsci), é preciso indagar sobre o significado dessas ações para além da correta compreensão de que é um grave atentado contra os direitos humanos. É isso, mas é muito mais do que isso. O padrão de acumulação em curso no Brasil e na América Latina, sintetizado em um amplo processo de expropriação (Harvey, 2004) – incluindo grande parte dos tributos, por meio do pagamento da “dívida” pública, da reprimarização e da hiper-exploração do trabalho – não é capaz de abrir vias virtuosas para a melhoria das condições sociais dos trabalhadores e da juventude em particular. As contradições extremas geram tensões e conflitos sociais de grandes proporções. Preventivamente, os Estados estão lançando mão do uso crescente da violência contra os sujeitos que vivem-do-próprio trabalho, em particular os habitantes das favelas, os trabalhadores negros9, jovens e, por meio do aparato judicial, da polícia e da segurança privada, a serviço inclusive de grandes empresas, contra representantes dos movimentos sociais engajados na luta socialista.
O quarto de século de políticas denominadas pelo Banco Mundial de “ajuste estrutural” foi devastador para a América Latina. Imagens como as do filme “Memória do Saqueio” (Memória del Saqueo, 2004) de Fernando Solanas, nos oferecem um quadro particular da erosão da vida social provocada pelo neoliberalismo e pela mafiocracia que o acompanhou. Essa situação serviu de combustível para diversas revoltas populares que derrotaram governos reacionários – estes festejados pelo BM, pelo FMI e por Wall Street como exemplos de governos comprometidos com as “boas políticas” – como as do Equador (1997, 2000, 2005) e da Bolívia (2003, 2005), abrindo caminho para a vitória de Morales em 2005; a do Peru, quando uma enorme mobilização de massas expulsou Fujimori e sua ‘ditadura constitucional’ (2000) e, em 2001, o da Argentina quando o presidente da suposta ´centro-esquerda´, Fernando de la Rua, havia traído suas promessas eleitorais de abandonar as políticas neoliberais (Borón, 2007). Frente a esse quadro de mobilizações massivas, levantes e prenúncios de insurgências, o “11 de Setembro” foi um acontecimento providencial para uma alteração na relação entre consentimento e coerção, em favor desta última dimensão, guiada pela estratégia da Guerra Infinita10, uma guerra sem objetivos e alvos definidos que permite que qualquer potencial ou pressuposta ameaça à ordem seja combatida como guerra ao terror. Nessa forma de guerra, os efeitos colaterais têm implicações educativas, compondo a pedagogia do terror. Na ausência de focos evidentes de organizações “terroristas”, Washington rapidamente criou seu próprio índex latino-americano do terror e de governos hostis, como as FARC na Colômbia e o governo de Cuba. A identificação de inimigos internos e territórios hostis não é nova, vide a Doutrina da Segurança Nacional. A prática dos Conflitos de Baixa Intensidade é parte desse tenebroso histórico que provocou massacres que não podem ser esquecidos, como os 200 mil mortos e 50 mil desaparecidos na Guatemala; os 30 mil desaparecidos na Argentina; os 3,2 mil desaparecidos no Chile; os 75 mil mortos e desaparecidos
9. A proporção de homicídios no total de mortes é mais alta para as pessoas negras de todas as idades, embora muito mais acentuada na faixa etária de 14 e 19 anos. Nessa faixa registra-se a maior distância em relação aos brancos: enquanto ela é de 2,8% aos 13 anos de idade, aos 14 sobe para 10,3% e aos 19 anos chega a 17,2% (Lemgruber, 2006). 10. O Documento Estratégia de Segurança Nacional (NSS) escrito sob a direção de Condoleezza Rice era altamente agressivo. “Defenderemos os EUA, o povo americano e nossos interesses em casa e no exterior, identificando e destruindo as ameaças antes que elas cheguem às nossas fronteiras. Ao mesmo tempo em que os EUA tentarão recrutar o apoio da comunidade internacional, não hesitaremos em agir sozinhos, se necessário, para exercer nosso direito de autodefesa, agindo de maneira preventiva”.