Bom Retiro

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bom retiro hiram latorre • marina liesegang



Ă€ Annabel, por nos ter feito olhar com tanto carinho para o EdifĂ­cio Anabela



1. tacada

desenvolvido com annick matalon e octรกvio zazzera



A exaustão de um bom retiro. Foi um dia inteiro dedicado ao bairro, me retirei da rotina e me preparei para o passeio, porém até chegar num retiro não foi nada bom.

Ainda era dez da manhã na antiga estação da luz. Vivenciei uma cena cotidiana no hall da estação, três seguranças expulsando uma mulher que insultava e bracejava palavras, cena de violência. A primeira impressão não foi boa, mas logo apertei o passo e cruzei o parque da luz, no coreto ao lado da pinacoteca tinha uma mulher ensaiando passos de dança enquanto alguém filmava. Alguns bancos pra frente uma mulher com cara exaurida mexia no celular, em seguida de cara para o chafariz vi um homem com traços oriental que lia um jornal coreano e ao lado do meu caminhar um senhor cantarolava uma música que por mim é desconhecida, ele andava mais rápido do que eu. Quando penso em retiro, já penso em estar a sós, mas ali pareciam todos estarem cruzando o jardim na direção de um retiro coletivo em que, juntos, não buscavam ver o que acontece das grades pra fora. Tomando destarte o parque o descolamento pela rua foi com os pés. A cada loja um manequim traduzia a expressão apenas com os cílios falsos, aqueles comprados na loja de 1,99 dois estabelecimentos ao lado, mas isso foi no final. Deslocado duas ruas a direita, era diferente o movimento que em tempos passava uma alma penada. Indagado de fazer um registro um senhor me para, e gritando, me proíbe de tirar foto. Câmeras de vigilância pareciam estar espiando, vazias de informação. Andando vagarosamente sem nenhum intuito um terreno vazio parecia ter um sofá minuciosamente colocado no meio do lote, sofá de blocos de concreto, areia e lona. Para frente o que enxergava eram duas faixadas opostas divididas por uma rua. Uma apresentava janelas totalmente tampadas com caixas em oposição uma faixada que parecia ser a continuação das lojas de festa mas que nos dois pavimentos acima eram aberturas vazadas

Entra no estacionamento, no fundo tem um elevador, aperta o único botão e você pode entrar no clube. Nunca tinha pensado no que pode dar a parede de um estaciona-

mento, sempre imaginei muros de arrimo ou o consultório de um dermatologista. Normalmente a porta abre e, não sei, não acontece nada demais. Mas, dessa vez a porta abriu e eu vi um campo com bolinhas brancas. Uma rede com torres muito altas. O Bom Retiro inteiro. É um campo muito alto. Eu não entro naquele campo, porque, se eu entrar, eu morro. Com que força se dá uma cajadada daquelas. Não param de cajadar. É uma arena redonda, um espetáculo em que a atração principal está na plateia cajadando e falando coreano. Eu não entendo nada. Tem um limite até onde eu posso entender. Entendo que estou alto, muito alto. Olho pela janela de uma fachada vazada e vejo a rua onde estava. Eu entendo que o campo é proibido, pelo próprio bem e que, para fazer o que fazem, é preciso uma precisão que é demais. Do que falam, não entendo nada. Todo mundo ali sabe que não estou entendendo. Pergunto se querem que eu entenda, acho que não. Ninguém parece se preocupar comigo, nem para minimamente pensar em como cheguei ali. Nas lojas debaixo, não havia uma viva alma que fosse curiosa o suficiente para entrar. Ao mesmo tempo, ninguém ali parecia se interessar por vestidos de festas. Um velhinho sorri apontando uma porta aberta, mas não estou apertada. Na outra porta tem uma escada. Desço. Não estou mais tão alto. O hotel não se responsabiliza por objetos esquecidos. Na loja de tacos de golfe nem o preço eu entendo. O vendedor, ao menos, parece se perguntar o que estou fazendo ali, assistindo a um programa que evidentemente não poderia me dizer menos. Esforço desnecessário para alguém que certamente não saberia o que responder. No bar, a garçonete fala português, mas não sei se senti falta. Tem a Prince Tower e aquela cerca não estava trancada. Por isso que não devem entrar. Mais do mesmo, a rua, os pavimentos com aberturas vazadas. Eu devia estar assistindo televisão. Perfeito, acho que achamos uma narrativa. Perdemos a foto na varanda. Agora, quem chama o uber?



1. percurso



2. prince





prince tower

lubavitch

almuerzo

talmud torá

três rios

casa do povo

paróquia nossa senhora auxiliadora

3. paletas de cores





2. vestido



A Prince Tower só chama atenção pela tela que a envolve. Ela destaca a atmosfera interna da externa, dando-lhe o ar de intransponível. Quando resolvemos entrar, não

pensamos que consiguiríamos. Alguém nos barraria no meio do caminho. Acontece que entramos, sem complicação alguma pudemos circular livremente pelo conjunto. Estranharam nossa presença e, em momento algum, entenderam o por quê de estarmos lá, mas, conseguimos entrar. É isto o importante.

O aspecto mais marcante da Prince Tower é seu aspecto de ausência. Seu desligamento do entorno que lhe é exclusivamente conferido pela membrana. Não à toa, para

tarduzí-lo, bastaria envolver com uma tela um aspecto cotidiano. Tal tela, porém, deve ser facilmente removível. Ela ausenta o objeto de seu entorno, destacando-o. No entanto, se alguém se interessar por ele e decidir se aproximar, o mistério cairá facilmente. Basta querer.

O Bom Retiro é muito conhecido por sua tradição têxtil. Logo abaixo do campo de golf do Prince, existe a “Feira do vestido de festa”, um galpão enorme com os mais

variados tipos de vestidos. Não à toa, resolvemos traduzir a Prince Tower em um vestido.



1. desenho

Considerando nossas observações sobre o Prince, o conjunto deveria ser dividi-

do em duas partes: a capa transparente e seu conteúdo, o vestido propriamente dito. Toda sua força estaria na capa. O vestido em si deveria ser extremamente simples: curto, de cor pouco chamativa e com um decote que deixasse à mostra o corpo de quem o vestisse.

A capa deveria ser leve e bastante transparente, separando o corpo de quem a

veste dos demais. Por isso, deveria cobrí-lo inteiro, do pescoço aos pés. No entanto, deveria ser extremamente fácil de se remover. A capa é presa somente por um pequeno botão na gola. Quem o desprende, faz com que ela se desfaleça e revele um vestido normal.



2. modelagem

frente

costas



3. entorno

rua da graça

rua silva pinto

rua três rios

O experimeto do vestido só estaria completo se o levássemos para um ponto completamente antagônico ao Prince. O vestido só faria sentido em um local movimentado,

acessível a todos. Um local que represente o Bom Retiro como o imaginamos. Escolhemos, então, um cruzamento com cinco esquinas, no final da R. Três Rios, ponto bastante conhecido no bairro.

Por ele passam ônibus, inúmeros carros, bicicletas (na “pracinha” do meio há uma ciclovia) e os mais variados pedestres. Vendedores de lojas próximas (o ponto é cercado

por comércios e lanchonetes/bares), estudantes (no final da R. Três Rios há uma escola de ensino fundamental), pedestres gerais que passam por lá por conta da proximidade do metrô Tiradentes (menos de 10 minutos a pé) ou por conta da grande oferta de produtos, e moradores do bairro (do ponto se escuta quase tanto coreano quanto português).

Assim, o cruzamento de cinco esquinas é completamente oposto à Prince Tower. Todos que passam por lá o conhecem. Nos arredores do Prince, quando perguntamos às

vendedoras dos vestidos o que acontecia no espaço de cima, elas não sabiam responder. No cruzamento, nem há o que ser perguntado. Tudo é entendido somente por se estar lá.



4. experimento



No final de maio, colocamos o vestido no ponto central do cruzamento. Deu certo: ele não poderia ser mais alheio ao entorno. Em meio a um lugar extremamente fincional

(todos que passam por lá o fazem por algum intuito), um manequim de costura não faz o menor sentido fora de uma loja. Mesmo assim, se a capa não estivesse presente, um olhar rápido não destacaria o manequim do restante. É a capa, o involacro, que o faz ser percebido imediatamente. Sem ela, o vestido não passa de uma roupa comum. Exatamente como o Prince: só o notamos porque suas torres, em meio a tantas outras, estavam cobertas.



3. conceituação



Nossa meta era, agora, dar às cinco esquinas um involacro. Pretendíamos torná-las tão misteriosas e percebíveis quanto o Prince. Não à toa, nossa primeira ideia foi cobrir

o cruzamento inteiro com um tecido meio transparente, daqueles usados em obras, preso a uma grande altura do chão. Dessa forma, ele seria marcado e pessoas poderiam avistá-lo de outros pontos do Bom Retiro. Quem viesse até lá veria, em meio à confusão habitual, um cavalete para uma pessoa se deitar. Assim, as esquinas poderiam, literalmente, ser vistas de uma perspectiva completamente diferente da usual, gerando certa estranheza.

Infelizmente, o projeto seria inviável. Primeiro, para prender o tecido na altura que gostaríamos, seria preciso acessar os andares superiores das edificações, de uso estri-

tamente privado (o pano teria que ser preso nas janelas). Além disso, há no cruzamento muitos fios e postes, impossibilitando que se erga qualquer coisa (ao darmos conta de que não conseguiríamos prender o tecido, pensamos em usar hélio, mas continuaria sendo inviável).

Precisávamos, então, usar outros artifícios para dotarmos as esquinas de certa estranheza. Já contávamos com o cavalete. Ainda assim, seria necessário conhecer melhor

o local, suas dinâmicas, as relações que ele procura estabelecer com seus pedestres. Para isso, por uma semana, frequentamos o Bom Retiro todos os dias.



1. segunda-feira

Pretendia começar a entender o ponto por meio de suas esquinas. Por isso, na segunda-feira, queria desenhar cada uma delas. Tão logo comecei a primeira, não ficava

satisfeita com nada. O lugar era tumultuado demais, não conseguia atentar a uma coisa só. Comecei, em vão, quatro desenhos para só então perceber que deveria desenhar o que estava vendo, nada além disso. Ao contrário das outras vezes, comecei o desenho pelo térreo, pelas pequenas lanchonetes e as pessoas que as habitavam. Fui subindo as linhas e, pouco tempo depois, o desenho estava pronto.

Não me agradou muito, (não era o que queria ter feito aquele dia, senti ter desperdiçado uma tarde inteira), mas foi necessário para ver que, antes de conseguir desenhar

esquina por esquina, precisava decodificar uma confusão. Só assim conseguiria me concentrar a ponto de desenhá-las exclusivamente. No final da segunda-feira, percebi que o local conseguia ser ainda mais confuso do que tínhamos imaginado.



2. terça-feira

rua da graça

rua silva pinto

4

3

5

rua três rios

2

1

Para decodificar melhor o lugar, numerei cada uma das cinco esquinas. Depois, ainda de casa com o street view, desenhei as fachadas das construções de cada quarteirão

de cada uma das três ruas que o cercam. O desenho está fora de escala, mas nele procurei estabelecer a relação correta entre as alturas dos prédios, a quantidade de entradas q eles têm e o formato/desenho de suas janelas. Cada desenho deste seria acompanhado por outro bem mais simples. Neste, seriam retratados somente o volume de cada construção e suas cores aproximadas de suas respectivas fachadas.

Chegando no Bom Retiro, completaria o primeiro desenho, o em preto e branco, com o nome de cada estabelecimento e sua localização no prédio. O segundo desenho, o

colorido, seria preenchido por todos os outros escritos presentes na fachada, que também contribuíam bastante para a confusão do cruzamento.



costas

Ao fazer estes desenhos, percebemos que o cruzamento é composto por diversos “micro-universos”, que desejam, antes de qualquer coisa, se fazer ver. Se tratam de

inúmeras lojinhas dos mais variados produtos, que concorrem entre si. Por isso, sua intenção é dar ao pedestre (encarado como um possível cliente) a maior quantidade de informações possível. Seus clientes, na maior parte das vezes, não compram pela marca, e sim pela oferta mais conveniente. Não à toa, há, na altura dos olhos, diversos anúncios de promoções, lançamentos e oportunidade de emprego. Não me lembro de uma vitrine que não anunciasse ao menos o preço de um produto do interior da loja.

Uma coisa curiosa é que, na imensa maioria das vezes, os nomes das lojas não dialogavam em nada com seus produtos. Por exemplo, não vamos pensar que a loja “Charm”

venda aviamentos, só o sabemos porque está escrito logo abaixo do seu nome (“Charm Aviamentos). Isso também ressalta muito o caráter funcional do local. Quem está lá não o faz por querer andar e conhecer alguma coisa. Se a loja não anunciar o que é vendido, ninguém vai entrar e descobrir. Os estabelecimentos tem que se vender da melhor forma mais literal e informativa possível.

Isso faz com que estes “micro-universos” sejam extremamente coesos em si mesmos. Quando vemos a fachada de um deles, o entendemos por completo. Seus escritos só

fazem sentido estando ali. Pensando dessa forma, as esquinas não são tão confusas assim. desenhos esquina 02



3. quarta-feira

esquina 01



esquina 02

esquina 03

esquina 04

esquina 05



4. quinta-feira

Depois de ter finalmente entendido as esquinas, resolvi me focar em um só edifí-

cio e entender como os anúncios eram dispostos nele. Para isso, o desenhei em uma escala aproximada a 1:100 (uma folha A3) e, por cima, fui gravando os anúncios.

Não constatei nada de muito diferente. Todos os anúncios procuram dialogar di-

retamente com o pedestre e, portanto, se encontram em uma altura confortável ao olho. Os únicos anúncios altos são os de aluguel/venda de imóveis, posicionados na janela do apartamento em questão.

Dentre os escritos das vitrines foi possível separá-los em dois grupos: aqueles que

dialogam com possíveis fregueses (muito mais frequentes) e aqueles que procuram funcionários. Os primeiros são, logicamente, muito mais chamativos, podendo, muitas vezes, ser lidos do outro lado da rua. Os segundos são muito menores e discretos, sempre escritos em preto no fundo branco e posicionados em pontos estratégicos. Dialogam diretamente com quem procura um emprego e, conhecendo a dinâmica local, consegue identificar rapidamente o que precisa cada estabelecimento.



5. sexta-feira

Após uma semana, pretendíamos, ainda, envolver um ambiente extremamente usado e conhecido em uma redoma. Para isso, resolvemos nos utilizar justamente de seu

maior artifício: os escritos e anúncios. Em suas devidas posições, eles montam pequenos universos comerciais, extremamente coesos. Porém, se encaixarmos os anúncios de uma loja em outra, eles não farão sentido algum. Ao sair de suas vitrines, eles perdem toda a sua coesão.

Ainda tínhamos o cavalete. Se o colocássemos no cruzamento, criamos um ponto de descanso onde sequer existem bancos. Ao se apoiar no cavalete, o pedestre é forçado

a contemplar as esquinas de uma perspectiva completamente diferente da cotidiana. Além disso, no cavalete haverá alguns espelhos. Segurando um deles, é possível transpor os escritos de uma esquina à outra, esvaziando seu sentido literal.

Essa foi a melhor forma que encontramos de implantar a Prince Tower em um lugar diametralmente oposto.



4. cavalete



1. ideia

2.00

corte aa

corte aa



2. projeto

4.00 0.045

1.20

nota: dobradiças aço com pino reversível 3.1/2"

nota: caibro 4,5x4,5

nota: cabo de aço 5 mm

1.00

0.5

0.5

2.00

corte aa

nota: placa de compensado 1,20x2,00



3. experimento

Para ficar do jeito que gostaríamos e conseguir sustentar uma pessoa, o cavalete acabou ficando pesado demais. Assim, não conseguimos movê-lo tanto quanto gostarí-

amos. O posicionamos em frente ao Edifício Anabela (esquina 02). Também não conseguimos levar os espelhos. O cavalete acabou servindo mais como espaço de contemplação. Não à toa, ele não foi muito bem aceito. As pessoas que passavam passavam com pressa (tinham que logo chegar ao metrô, buscar o filho na escola ou simplesmente não paravam para nos escutar). Dos poucos que pararam, muitos ficaram com medo: o cavalete não parecia estável o suficiente. Chegaram a pensar que estávamos filmando alguma pegadinha de internet. Os que subiram subiram depois de bastante relutância (uma até pediu ajuda para subir e para descer).

A baixa aceitação, no entanto, não foi uma surpresa. Quando levamos o vestido, ou desenhamos, quase ninguém parou para ver. O ponto é funcional demais, usado de-

mais, conhecido demais. Ele jamais poderia ser transformado no Prince. No fundo, isso é bastante bom.





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