livro: poéticas digitais

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a outra, ou, ainda mais, da passagem de um estágio do processo de metamorfose de uma imagem para outra. Manifestação sintomática dessa tendência é o grande afluxo de multidões gerado pela exposição Body Worlds dos cadáveres plastinizados pelo anatomista alemão Gunter Hagens, que atraíram “mais de 14 milhões de pessoas em oito países” (COELHO, 2004, p. 83) numa paródia macabra da arte contemporânea. Segundo Teixeira Coelho, “body worlds leva quase às últimas consequências a lógica geral da atual sociedade humana, em toda parte: a ‘objetificação’” (COELHO, 2004, p. 85). Aqui a vida retorna como farsa e os corpos desses “mortos-vivos” imitam, poderíamos dizer, macaqueiam - em quadros estereotipados, as vidas dos “vivos-mortos” que se extasiam com essa identificação espe(ta)cular. Espectro, espetáculo, espelho: Virilio aponta significativamente o radical comum que exprime na origem etimológica esta “avidez” (VIRILIO, 1994, p. 93) de tudo devassar a uma visibilidade total que recusa quaisquer opacidades. Escândalo, se o escândalo ainda fosse possível numa era em que nada mais escandaliza, muitos desses corpos foram doados em vida por seus próprios “donos”. Estranho epitáfio o desse narcisismo espectral que se quer exibir em espetáculo após a própria morte. O pior de tudo talvez seja o fato de que famílias inteiras acorrem a este espetáculo macabro da banalização da dignidade do Outro, levando suas crianças a participar inocentemente de um jogo que é tudo menos leve e divertido como um passeio de fim-de-semana deveria ser. Se passamos a conviver com Outro como coisa e em seguida como imagem, a exibição desse Outro coisificado, como cadáver, fascina pela sua própria aparição como coisa, se o horror e a indignidade da operação não se evidenciar à nossa consciência. 139


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