Revista Esquinas - Nº 51

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Para Julierme Sales Gomes, trabalhar com Sérgio na Coopere alterou a maneira como encara a vida. “Antes eu era o tal, o único, e não aceitava ser corrigido”

das na rua o fizeram resistente ao abrigo que lhe era concedido nessas casas. Francisco foi um dos expoentes na recuperação de Sergio, sempre confiando em sua recuperação. Conforme os dias passavam, Sergio começou a receber um “tipo de iluminação”, nas palavras dele, uma paz interior que o fazia ignorar os problemas em volta e se concentrar em sua melhora. “Eu achava que todos me odiavam, até ser eleito o coordenador da casa de recuperação. Naquele dia eu senti uma mudança inexplicável dentro de mim. Depois que ele me deu essa oportunidade, eu deslanchei.”

O REI VOLTOU Quando saiu da clínica, acreditando que havia se recuperado, voltou para Itapira, sua cidade, para mostrar a todos que “o rei havia voltado”, nas palavras do presidente da Coopere. Logo viu que a convivência com os antigos amigos não daria certo. Resolveu tentar a sorte em São Paulo. Durante o redirecionamento de sua vida, percebeu que, talvez, a boa vontade não seria o suficiente. Cedo ou tarde acabaria retornando para as ruas. O desejo de voltar às drogas, somado à falta de oportunidade de emprego, fez com que seu desespero aumentasse. “Não tinha documento, experiência e habilidade em nada. Depois de uma semana procurando trabalho, percebi que ia voltar ao crack. Passadas duas semanas, eu já olhava para os lugares pensando onde eu poderia dormir. Entrei em pânico.” Enquanto esperava conseguir dinheiro suficiente para comprar passagens para alguma cidade sem cracolândia, Sergio trabalhou em uma cooperativa de reciclagem, a Corpel. Todas as tardes, após o trabalho, ele pedia a uma irmã de caridade por uma passagem para ir embora da cidade. “Ela perguntava para onde eu queria ir, com um mapa na mão. De cidade a cidade eu recusei, porque

já tinha passado pela maioria ou sabia que tinha ponto de droga”, lembra Sergio. Eles fizeram um acordo: todos os dias ela lhe daria três reais e um lanche. Ao fim de uma semana teria dinheiro suficiente para uma passagem. Porém, “ela sempre falava que me daria no dia seguinte e não dava. Assim, fui sentindo amor na reciclagem, vendo que as pessoas eram iguais a mim.” Ele se acostumou com a rotina. Mais que isso, se apaixonou pelo ofício da reciclagem. O morador de rua não acreditava mais na vida, mas o trabalho com o lixo transformou a sua percepção do mundo. “A reciclagem te faz parte desse planeta. Faz você acreditar no mundo de novo”, reflete Longo. Sergio não imaginava, mas, o cargo de coordenador na Coopere, seria o divisor de águas em sua vida. “Eu nunca mais fui o mesmo. Nunca mais ninguém conseguiu ganhar de mim e eu nunca mais consegui perder para ninguém. Também nunca me senti menos do que sou”, explica. Somente nesse momento ele percebeu há quanto tempo não erguia a cabeça – sequer para olhar o céu. “Eu fiquei 15 anos sem ver as estrelas”, conta emocionado. O trabalho com a reciclagem mudou até a maneira com que tratava as pessoas. “O lixo me tornou educado”, assume. O ex-morador de rua percebeu que não era apenas um lixeiro, que seu trabalho ajudava a transformar o mundo. “Eu descobri que era melhor do que um médico”, afirma ele com empolgação. Sergio não tem ambição de enriquecer, mas, sim, de continuar tendo uma vida digna. Com uma casa simples para morar, tendo o que vestir e comer. Sonhos, ele aprendeu a ter: quer construir, com seriedade, uma grande casa de recuperação para dependentes químicos.

VIDAS RECICLADAS Após ter permanecido quase toda a juventu-

de à margem da sociedade, Sergio, hoje, se dedica também a ajudar moradores de rua e das cracolândias. Entre estes está Julierme Sales Gomes, 35 anos, um ex-transformista. “Antes as pessoas me amavam pelo o que eu tinha, pelo dinheiro e glamour. Aqui não, aqui eles me amam pelo Sales, não pelos meus strass e paetês”, conta. Há dois meses, Sales conheceu a Coopere. “Passei aqui e eles me acolheram com muito amor. Logo comecei a trabalhar”, conta. Recém-chegado da Itália – onde morou por quatro anos no luxo fazendo shows como transformista –, a primeira impressão que teve sobre Sergio foi a de ser um homem rígido. E por mais controverso que possa parecer, ele acredita que essa característica do coordenador lhe está “fazendo bem”. “Eu o admiro porque é sincero. Estou aprendendo com ele. Antes eu era o tal, o único, e não aceitava ser corrigido. Quem ama, disciplina. E eu não sabia disso”, comenta Sales. Assim como Sergio e Sales, Olinda Pedro da Silva, 66 anos, encontrou na reciclagem uma oportunidade de transformar a própria história. Ela trabalhou das mais variadas formas para criar sozinha os dois filhos: vendeu cafezinho, foi cabeleireira, manicure e diarista. Mas num determinado momento se viu desempregada e desamparada. “Eu não era moradora de rua, era uma cidadã que perdeu tudo e tinha filhos para criar”, conta. Na Coopere Centro há oito anos, seis como coordenadora-secretária, Olinda dá palestras em diversos locais, inclusive em órgãos públicos, como a Câmara Municipal. Ela diz que o material reciclado salvou a sua vida. “Assim como o Sergio costuma dizer, aqui nós reciclamos vidas. Reciclamos a vida dele, a minha e a de várias pessoas”, garante ela. “Eu cheguei aqui e só vi aquele monte de lixo. Não sabia que lixo dava dinheiro”, relata. Aos 66 anos, Olinda deseja realizar muitos sonhos, como terminar o ensino médio e cursar faculdade de Gestão Ambiental. “Tenho um projeto: quero fazer sabão para aumentar a renda do pessoal.” Se não der certo, já que os utensílios são caros, ela pretende sair da cooperativa e se manter como palestrante.

O MELHOR QUE PODERIA SER Quando Olinda chegou à Coopere, Sergio já estava lá. “Ele é uma pessoa batalhadora. Não tem interesse em nada para si próprio, não quer guardar nada. Quer ajudar. Tudo o que tem, ele dá”, revela. Ela conta que Sergio só anota o horário que chega à cooperativa, nunca o de saída, já que trabalha muito além do horário que, de fato, seria o seu dever. Trabalhando juntos há oito anos, eles criaram um ambiente agradável na cooperativa. Colaborando um com o outro, fazem a Coopere se destacar. Dão palestras juntos e programam atividades para enriquecer o dia a dia dos cooperados. “Eu brinco falando que quero ficar rica. Ele não. Fala que é rico de amor, de querer cuidar das pessoas, não de dinheiro”, sintetiza Olinda. Com humildade, Sergio confessa: “Eu não falo que sou melhor que os outros. Sou o melhor que posso ser.”

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2012

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