Revista Metamim

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número 1  edição 1  junho de 2011  15 reais



Estou fadada ao fim.

Analiso e provoco.

Apresento teorias e obras.

Falo das linguagens e dos códigos.

Falo das traduções intersemióticas.

Falo do presente que interfere no passado.

Falo do passado que interfere no presente.

Falo do tempo.

Falo da cultura contemporânea.

Falo de mim, de você e dele.

Sou a parte e sou o todo.

Não sou presa ao mundo material,

Sou meta.

Sou única e a primeira por aqui.










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Ernesto Diniz

SOCOS, ZUMBIS E MONSTROS MARINHOS

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WATCHMEN

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TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA COMO EVOLUÇÃO

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KEEP CALM

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EXPOSIÇÃO NACIONAL DE ARTE CONCRETA

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POESIA CONCRETA

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Mariana Bergo

FORÇA VERDE

Ricardo Oliveira

LEI MICKEY MOUSE

Ernesto Diniz

ENTREVISTA Luli Radfahrer






um texto é um espaço multidimensional onde diversas escritas — nenhuma d


delas original — misturam-se e colidem  Roland Barthes, 1971




TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA COMO EVOLUÇÃO:


por que os super-heróis podem pular dos quadrinhos para as telas sem perder a identidade texto Flávio Augusto Queiroz e Silva

O

termo tradução intersemiótica foi cunhado por Roman Jakobson em um ensaio de 1959, Aspectos linguísticos da tradução, para designar “a interpretação dos signos verbais por meio de signos não-verbais” (MEURER, 2010). Neste texto, queremos analisar uma característica inerente à tradução intersemiótica e que, na visão de alguns filósofos e linguistas, é também uma faceta própria da linguagem e da significação: a evolução e a mudança. Para tanto, vamos explorar conceitos-chaves de três autores que, ao nosso ver, permitem entender a evolução dos usos e sentidos da linguagem, aplicando-os aos casos de tradução intersemiótica (especialmente, os super-heróis de quadrinhos e suas adaptações para o cinema). São os autores: Charles S. Peirce (1839–1914), filósofo americano e “pai” da semiótica (ou ciência lógica dos signos), Mikhail Bakhtin (1895–1975), linguista russo, e Ludwig Wittgenstein, filósofo austríaco da linguagem (1889– 1951). Nosso objetivo não é esmiuçar a tradução intersemiótica ou analisar suas aplicações a situações específicas, mas, sim, fornecer elementos para um entendimento geral de como o processo de tradução ocorre — e, isto, a partir da característica central desse processo, a saber, a possibilidade de transformar seus conteúdos sem denegri-los. Com isso, evitamos a postura purista de acreditar que qualquer adaptação cinematográfica de um quadrinho de super-heróis pode “arruinar” sua identidade.

Flávio Augusto Queiroz e Silva é mestrando na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, na linha de Teorias e Tecnologias da Comunicação. MEURER, Clio. Miró, Magritte: sobre a ilustração literária como tradução intersemiótica. Semeiosis: semiótica e transdisciplinaridade em revista. Setembro de 2010. [suporte eletrônico] Disponível em: <http://www.semeiosis.com. br/miro-magritte-sobre-ailustracao-literariacomo-traducaointersemiotica>. Acesso em 26 maio 2011.


PEIRCE E A SEMIÓTICA: ícones, índices e símbolos na abertura evolutiva do sentido

SANTAELLA, Lucia; VIEIRA, J. A. Metaciência como guia de pesquisa: uma proposta semiótica e sistêmica. São Paulo: Editora Mérito, 2008. Um signo tem sempre três correlatos: o próprio signo, o objeto e o interpretante.

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A semiótica trata das condições gerais dos signos sendo signos — trata consequentemente das leis de evolução do pensamento, que coincide com o estudo das condições necessárias para a transmissão de significado de uma mente a outra, e de um estado mental a outro (SANTAELLA; VIEIRA, 2008). Para Peirce, o signo (ou tudo aquilo que possui significado, substituindo outra coisa) pode manter com o objeto substituído pelo menos três tipos de relações: ícone, índice ou símbolo. Grosso modo, o ícone tem a capacidade de representar seu objeto por semelhança:

uma qualidade que ele possui qua coisa torna-o apto a representar. (PEIRCE, 1932) (1932) PEIRCE, Charles Sanders. Ícone, indicador e símbolo. In: Semiótica e Filosofia. São Paulo: Cultrix, S/ DATA. Faneroscopia é a fenomenologia peirceana. Desenha-se como uma ciência que se propõe a deslindar as características do faneron ou fenômeno, dividindo-as em três categorias.

Essa semelhança ou qualidade em relação ao objeto representado é uma característica imprecisa do signo, difícil de apreender a não ser pela sensação pura e simples; refere-se, nas três categorias da Faneroscopia, à primeiridade, que é a categoria em que se dão as experiências únicas, sensitivas, monádicas e, por isso mesmo, difíceis de descrever. Uma certa imagem do Homem-Aranha é um ícone do Homem-Aranha à medida que é semelhante, em algum aspecto, a este super-herói. Desse modo, o que a imagem nos sugere, por essa relação de semelhança possível, é: “o Homem-Aranha deve ser assim”. A relação indicial é estabelecida entre signo e objeto quando o primeiro mantém uma conexão física com o último.

Um índice genuíno e seu objeto devem ser individuais existentes (sejam coisas ou fatos), ou um índice é um signo cujo caráter representativo consiste em ser um segundo individual. (PEIRCE, 1932) Essa relação independe de nossas interpretações e se dá na arena bruta dos acontecimentos físicos. O fogo, quando queima, produz fumaça (mesmo se nunca avistarmos o incêndio), e por isso a fumaça é índice do fogo. Pegadas na areia são índices do caminho percorrido por alguém. O índice, diz Peirce, é como um dedo que aponta, e exerce sobre nós uma impressão física que nos força a mente a procurar a conexão: estamos de tal modo dispostos que quando vemos uma ventoinha apontando para certa direção, temos a atenção chamada para aquela direção, e quando vemos o instrumento alterar a direção somos forçados, por uma lei do espírito, a imaginar que aquela direção se relaciona com a do vento. (PEIRCE, 1932) O índice relaciona-se à categoria faneroscópica da secundidade, que subsume o real em suas ocorrências físicas, brutas, diádicas. Uma experiência típica da secundidade, incluindo uma relação icônica, é fortemente marcada pela ação-reação, pela irrupção do acaso, pelo contato bruto com o mundo, pela emergência daquilo que não conseguimos controlar, pela fatalidade e pela falibilidade.


A relação de símbolo estabelecida entre o signo e seu objeto define-se pela convenção: um símbolo é um signo cujo caráter representativo consiste precisamente em ele ser uma regra que determinará sua interpretação. (PEIRCE, 1932) Essa relação prepara e antecipa, no próprio signo, a interpretação que virá, os usos que se farão do signo etc. Significa também que o signo tende a simbolizar-se, isto é, a tornar-se convencional à medida que a comunidade utiliza-o: o símbolo se relaciona a seu objeto por força da ideia do espírito-que-usa-o-símbolo. (PEIRCE, 1932) Por força do hábito, e isso porque a semiótica de Peirce é uma doutrina pragmatista, os símbolos apresentam seus significados e os enraízam nas recorrências com que são usados, gradativamente, para representar a mesma ideia. O símbolo relaciona-se com a categoria faneroscópica da terceiridade, categoria que torna possível amortecer, organizar e controlar, em certa medida, a brutalidade dos fatos da existência, pois caracteriza a mediação, o pensamento disciplinado, o autocontrole, a regularidade, o hábito, a inteligibilidade dos conceitos. O grande ponto dessas categorias, tanto as do signo quanto as faneroscópicas — e que infelizmente escapa à maioria dos estudantes e analistas do assunto —, é que uma classificação não elimina a outra. Para Peirce, a existência é uma questão de níveis, e por isso um signo pode ser ícone, ícone e índice, ou ícone e índice e símbolo. Na verdade, essas três categorias são aspectos que se sobressaem dependendo da situação, como a luz do sol que, ao atravessar um prisma, pode revelar diversas cores. Além disso, o signo é um fenômeno, ocorre como produto vivo do mundo da experiência, e nesse mundo é praticamente impossível isolar a interpretação, o signo e seu objeto. A semiótica peirceana, portanto, procura mostrar a ação dos símbolos dentro de um conjunto significante no qual estão envolvidos ícones e índices. Para nossa discussão aqui, vale lembrar que um entrelaçamento entre esses tipos de signos e os símbolos ocorre nas situações de comunicação em geral, o que é importante tanto para estabelecer a conexão dos símbolos com a realidade, por meio do aspecto indicial, quanto para o uso dos símbolos na elaboração de hipóteses abstratas sobre essa mesma realidade, por meio do aspecto icônico (GHIZZI; MACHADO; SOUSA, 2010). Significa dizer que toda comunicação, sentido ou pensamento sustentado por símbolos não se exime de abrir espaço para as sensações, as conjecturas puras, os sonhos, ou ainda para a conexão com o mundo físico onde a realidade se desenrola. Deste modo, podemos inferir que o uso recorrente de um símbolo é o que vai aplicando-lhe sentido e coerência. Por exemplo, espera-se que determinado super-herói, de adaptações em adaptações, inscreva-se na mesma esfera de ação, cumpra os mesmos papéis, use o mesmo uniforme, relacione-se com os mesmos per-

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GHIZZI, Eluiza Bortolotto; MACHADO, Amanda Pires; SOUSA, Richard Perassi Luiz de. Ícones, índices e símbolos em um trecho de O Nome da Rosa. Semeiosis: semiótica e transdisciplinaridade em revista. [suporte eletrônico] Disponível em: <http://www. semeiosis.com.br/o-nome-darosa/>. Acesso em 26 maio de 2011.


Em sequência: o Batman dos quadrinhos de Bill Finger e Bob Kane e o das telas de Cristopher Nolan e de Tim Burton.

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sonagens, tenha os mesmos objetivos. Ora, o Batman não pode relacionar-se com Mary Jane, e o Homem-Aranha não pode usar uma capa preta. A convenção, isto é, o hábito estabelecido pelo uso recorrente, confere sentido às personalidades desses heróis. Porém, contendo um aspecto também icônico e indicial, o símbolo abre-se para a possibilidade da renovação, na conexão com o ideário que o caracteriza. É deste modo que uma adaptação de Batman para as telas do cinema pode sempre receber novas roupagens dependendo do diretor, das condições de produção, dos atores, dos roteiristas, dos técnicos envolvidos na filmagem etc. Todos eles imprimem, ao universo de Batman, índices de seu estilo de trabalho e índices de como imaginam e concebem esse universo (às vezes mais sombrio, às vezes mais tecnológico, às vezes mais psicótico). Por sua vez, a imaginação ou concepção que fazem desse universo é marcadamente icônica, pois é uma ideia geral de como é esse universo. Como exemplo, basta tomar o Batman de Tim Burton e o Batman – T he D ark K night de Cristopher Nolan, com todas as nuances ou diferenças gritantes entre uma versão e outra. Aí vemos usos diferentes para a figura do herói, dos vilões, efeitos de câmera, narrativa. No entanto, trata-se do mesmo (embora não totalmente) Batman, o homem-morcego da capa preta que tem por adversários o Curinga, o Pinguim, dentre outros. As mudanças de uma versão para outra são possíveis porque o símbolo Batman, de diversas características convencionadas por suas aparições recorrentes, nos mostra, por ser também ícone e índice, as novidades que pode incorporar sem perder a identidade. Outro conceito que deve ser introduzido nesta discussão é o de “hábito”, entendido dentro do pragmatismo de Peirce como regularidade ou regra de ação. Para o filósofo, o estudo das diferenças entre “mente” e “matéria” deve se focar não em suas substâncias ou essências, mas em sua capacidade de lidar com hábitos. Na filosofia peirceana, portanto,

“pura matéria” poderia ser descrita como pura escravidão ao hábito, enquanto que “pura mente” poderia ser descrita como pura mudança. Ambos fenômenos seriam, claramente, meras abstrações ou possibilidades, uma vez que qualquer atualização (física ou mental) destes se caracterizaria em uma mudança no hábito inveterado da ‘matéria pura,’ ou uma regularidade na mudança sem fim da “mente pura”. (FARIAS, 1999) FARIAS, Priscila L. Semiótica e cognição: os conceitos de hábito e mudança de hábito em Peirce. In: Revista Eletrônica Informação e Cognição, São Paulo, V. 1, n. 1, p. 12-16, 1999. A citação CP refere-se aqui aos Collected Papers of Charles Sanders Peirce. O primeiro número refere-se ao livro, e os outros ao parágrafo. No nosso caso, sexto volume, parágrafo 613

A principal característica da mente é a plasticidade, a mudança e a criatividade, ao passo que o teor principal da matéria está na fixidez e na regularidade. Para Peirce, então, entre a dicotomia mente-matéria, existe uma série de gradações por onde se dão os acontecimentos do mundo. Se a mente enrijece-se na regularidade absoluta, perde sua capacidade de criatividade inerente. Isso não é possível, porque “a mais alta qualidade da mente envolve uma grande prontidão para adquirir hábitos, e uma grande prontidão para perdê-los” (CP 6.613). Na nossa discussão sobre a tradução intersemiótica, esta introdução ao hábito, à mente e à matéria é importante porque nos


faz ver por meio de qual postura intelectual Peirce sugere que a ação do signo está sujeita a crescer infinitamente (definição de semiose). Visto que a estabilidade absoluta só pode existir na coisa, é inevitável, quando lidamos com qualquer produto de comunicação e significação, situá-lo num quadro de mudança perpétua. Neste caso, uma nova tradução intersemiótica é sempre possível. Uma vez que hábitos, e mesmo uma tendência intrínseca para perdê-los, são propriedades primárias, podemos dizer que o que realmente diferencia um sistema usuário de signos é a efetiva mudança ou quebra de hábitos. Esta capacidade para modificar seus hábitos deve estar necessariamente presente em qualquer sistema usuário de signos, embora possa se apresentar em graus e níveis diferentes. (FARIAS, 1999) Assim, toda vez que um super-herói é lançado em quadrinhos, seu destino já está traçado: além de ter de salvar o planeta, deverá, também, passar por adaptações, mudanças e traduçõescontínuas.

BAKHTIN E WITTGENSTEIN: signo como jogo, diálogo e evolução constante Vamos agora conhecer o trabalho de dois autores que seguem uma linha semelhante ao pensar o funcionamento da linguagem, e que poderemos consultar para prosseguir entendendo a tradução intersemiótica mais como evolução do que adaptação: o austríaco Wittgenstein e o russo Bakhtin. Wittgenstein escreveu duas obras maiores: o Tratado Lógico -F ilosófico , em que procurava encontrar a estrutura lógica de todas as linguagens, e o Investigações Filosóficas, em que, abandonando totalmente suas primeiras convicções, procurava entender o funcionamento da linguagem associado intimamente ao contexto de seus usos. É a partir disso que se pode entender o conceito de “jogo de linguagem”, amplamente explorado por ele nas Investigações

Cabe dizer que outro jeito de perceber a manifestação da semiose está no seguir sem fim de interpretantes. Interpretante é a imagem que o signo produz na mente de quem interpreta, e é, ele também, um signo — capaz de produzir, por sua vez, outro interpretante, e assim infinitamente. O sentido do signo está, portanto, na possibilidade de ser interpretado continuamente ad infinitum. Isto nos permite alargar o conceito de tradução intersemiótica para além de uma adaptação de um sistema (veículo, meio) a outro (como pensava Roman Jakobson), pensando-a também como característica inerente do ser do signo.

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Filosóficas. Wittgenstein compara enunciados a jogos, o que lhe permite entender a linguagem não como sistema, mas como amálgama de usos, atos particulares compondo uma pluralidade fluida. Essa pluralidade não é nada fixo, um dado para sempre; mas novos jogos de linguagem nascem e outros envelhecem e são esquecidos. (WITTGENSTEIN, 1991, §23) WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. São Paulo: Nova Cultura, 1991.

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Ao mesmo tempo, esses jogos não são produzidos ao acaso ou confinados a situações particulares — o que incorreria em um nominalismo; é claro que sua multiplicidade se deve ao contexto fugaz e irrepetível da enunciação, mas ao mesmo tempo eles possuem uma generalidade que lhes permite ser compreensíveis e os conecta à regularidade: são as regras do jogo. Os jogos de linguagem recebem certa estabilidade a partir das regras. Não obstante, nem mesmo as regras propiciam um ponto de referência fixo, porque sempre admitem interpretações divergentes, e se constroem no uso que se faz deles. Significa que as normas não podem ser fixas e absolutas. Pensar em normas fixas conduzindo a linguagem pode conduzir a duas armadilhas: a suposição de que o sentido é estático (o que, de acordo com esta perspectiva, não pode ocorrer pois o jogo de linguagem é sempre uma novidade) e que há algo fora da linguagem ou do pensamento a ser conhecido (o que é uma contradição, pois para conhecer recorremos a ambos). A partir disso, pode-se dizer que existe um elemento de convenção na linguagem. A “lógica” da linguagem não pode decidir a priori sobre a verificação possível das proposições;

ocorre, sim, que todo sentido — e também toda verdade — são relativos às regras da forma e da designação, que são introduzidas por nós de maneira convencional. (APEL, 2000) APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia: filosofia analítica, semiótica, hermenêutica. São Paulo: Edições Loyola, 2000.

É necessário tomar cuidado nesse ponto. A inteligibilidade convencional da linguagem não implica em que ela seja governada por normas fixas.

Pensar que “uma convenção” implica algo necessária e puramente artificial é o que está equivocado. É certo que no simbólico e convencional há uma medida de arbitrariedade, mas o convencional não carece de elementos naturais. (ANDACHT, 2010) ANDACHT, Fernando. Fernando Andacht: no podríamos vivir un instante sin signos. Santiago: Faculdade de Artes da Universidade do Chile, 2010. Disponível em: <http:// www.artes.uchile.cl/preview/ noticiaImp.jsp?id=46201>. Acesso em: 30 abril 2011.

Por isso, o convencional também está sujeito a mudanças, expondo a mutabilidade dos conceitos e das palavras (e, no nosso caso, nos espaços de atuação dos super-heróis). É possível entender que os conceitos têm uma medida de instabilidade (mas não de total instabilidade), porque estão sujeitos ao uso, sendo resumos aproximados, e não cópias exatas, dos fatos. Procurar no uso da linguagem a construção do seu sentido requer também que pensemos os fundamentos desse uso — que, como vimos acima, se sujeita à flexibilidade da utilização contextual, mas que, ao mesmo tempo, é restringido pelas regras. O significado pode variar dependendo do contexto em que a linguagem é utilizada e do propósito desse uso. Ela não deve ser


apenas usada para descrever a realidade, como supunha a semântica tradicional, mas também para realizar algo objetivo como fazer uma saudação, um pedido, dar uma ordem, agradecer, contar piadas, fazer um relato, descrever uma ação. Recoberto de objetivos práticos, o uso da palavra vai além da simples denominação de objetos. Denominar é algo análogo a pregar uma etiqueta numa coisa. Pode-se chamar isso de preparação para o uso de uma palavra. Mas sobre o que se dá a preparação? (WITTGENSTEIN, 1991, §25), pergunta-se o filósofo, referindo-se ao fato de que esse denominar circunscreve-se numa esfera maior, num uso prático pautado pelas necessidades que o contexto impõe, numa “forma de vida”. Em torno das necessidades dessa forma de vida gravitam as ideias de outro autor, o russo Mikhail Bakhtin, que já na obra Marxismo e Filosofia da Linguagem defendia com afinco a concepção de uma linguagem evolutiva, mutável. O linguista russo sugeria que se lançarmos um olhar verdadeiramente objetivo sobre a língua, abstraindo a consciência individual subjetiva,

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nós não encontraremos traços de um sistema de normas imutáveis. Ao contrário, nós nos confrontaremos com a evolução ininterrupta das normas da língua. (BAKHTIN, 1977) A linguagem tem suas normas, mas isso não contradiz sua natureza evolutiva. Para dar conta da realidade concreta da língua, faz-se necessário elaborar uma teoria que considere a relação entre o enunciado e as formas de vida responsáveis por elaborá-lo:

BAKHTIN, Mikhail. Le marxisme et la philosophie du langage: essai d’aplication de la méthode sociologique en linguistique. Paris: Les éditions de minuit, 1977.

A enunciação realizada é como uma ilha emergindo de um oceano sem limites, o discurso interior. As dimensões e as formas desta ilha são determinadas pela situação e por seu auditório. A situação e o auditório forçam o discurso interior a se realizar em uma expressão exterior definida, que se insere diretamente no contexto não verbalizado da vida corrente, realiza-se neste último pela ação, gesto ou resposta verbal dos outros participantes na situação de enunciação. A pergunta completa, a exclamação, a ordem, o pedido são enunciações completas típicas da vida cotidiana. (BAKHTIN, 1977) Se a participação do ouvinte é tão importante na materialização da “enunciação completa típica da vida cotidiana” — ou, em outras palavras, do jogo de linguagem —, ela só pode ser pensada num ambiente de diálogo, em que não há linguagem privada. A fala se constitui na expectativa de ser compreendida, aguardando uma recepção pelo outro em uma compreensão ativa. Qualquer tipo genuíno de compreensão deve ser ativo, contendo já o germe de uma resposta. Só a compreensão ativa nos permite apreender o tema, pois a evolução não pode ser apreendida senão com a ajuda de outro processo evolutivo. Compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica (BAKHTIN, 1977). A compreensão é então uma forma de diálogo, e a linguagem


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só pode acontecer no espaço entre duas consciências, entre interlocutores a cuja união pertence a significação da palavra; o sentido não se realiza senão no processo de compreensão ativa, implicando uma resposta. Wittgenstein tem um célebre exemplo, que ilustra um operário A pedindo a um operário B que lhe traga lajotas sem gritar expressamente a ordem, mas dizendo apenas “lajotas!”. Ele sugere que o sentido do comando está no “papel que o pronunciar dessas palavras desempenha no jogo de linguagem” (WITTGENSTEIN, 1991, §21). Se o jogo de linguagem, incluindo suas regras, e portanto o sentido, nasce de uma situação específica, marcada pela intencionalidade e pelos fins práticos, que se constrói no espaço entre ao menos dois interlocutores e antecipando uma resposta (ou ação), inscrita num quadro de compreensão ativa, então o jogo de linguagem só pode ser dialógico. Prosseguindo, significa que jamais a comunicação verbal poderá ser compreendida e explicada fora dessa ligação com a situação concreta. A comunicação verbal está inextricavelmente entrelaçada com outras formas de comunicação e cresce com elas sobre o terreno comum da situação de produção. (BAKHTIN, 1977) De certa forma, todo modo de discurso é parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele responde, refuta, confirma, antecipa respostas e objeções potenciais, procura um apoio etc. (BAKHTIN, 1977) Por um lado, Wittgenstein preocupa-se em entender o funcionamento do jogo de linguagem, suas regras, possibilidades de uso e as formas de vida. Por outro, e em continuidade, Bakhtin projeta esse jogo em um fluxo evolutivo sugerindo que, para o sentido, a resposta e o ouvinte têm papel tão central quanto as regras. Para o linguista russo, também, existe uma relação entre duas faces da linguagem (o uso e as normas) de modo que a cada vez que se profere a palavra, carregando-a de um acento de valor ligado ao imediatismo do contexto, o sistema de regras da língua reconfigura-se e evolui. Gostaríamos de finalizar esta breve exposição sobre a filosofia da linguagem de Bakhtin sinalizando o grande ponto de sua proposta: o cuidado de não excluir desse estudo a carga contextual da linguagem, isto é, seu horizonte inegavelmente social — lembrando que o social, neste caso, é pensado na perspectiva de uma materialidade do signo fundada na experiência, na linguagem corrente do dia-a-dia e no contato com o outro. É justamente para compreender a evolução histórica do tema e das significações que compõem a palavra que é indispensável ter em conta a apreciação social. A evolução semântica na língua está sempre ligada à evolução do horizonte apreciativo de um grupo social dado. (BAKHTIN, 1977) O acento valorativo que reveste o sentido da palavra não po-


de ser isolado do estudo da linguagem sob a pena de levar inevitavelmente ao fato de que a significação, sem lugar na evolução social viva (onde ela está sempre misturada com a apreciação), se torna objeto ontológico, se transforma em um ser ideal, cortado da evolução histórica. (BAKHTIN, 1977) Bakhtin e Wittgenstein se interessavam por questões que parecem fora da alçada da tradução intersemiótica, das adaptações de obras culturais etc. No entanto, já que muito do que discutem se dirige à palavra — unidade de uso da linguagem — ou à linguagem mesma, de forma geral, pensamos que um contato desses autores com a tradução semiótica é possível e frutífera — já que todo o material cultural que nos rodeia são usos da linguagem. O mais interessante, nos parece, é poder olhar a tradução para além da adaptação de um sistema de signos a outro. A adaptação volta-se para os aspectos que se conservam e que se mantêm no processo de tradução. Aqui, o enfoque é outro: queremos ressaltar que, sim, para além daquilo que se conserva, existe algo que se perde, mas que, por isso, se renova e evolui. A partir deste eixo, temos três desenvolvimentos possíveis, que apresentamos na seguinte ordem: a semiótica de Peirce, que, dentre tantas classificações e contribuições, permite, por meio do ícone, do índice e do símbolo, pensar a evolução do sentido e do pensamento; os jogos de linguagem de Wittgenstein, que são usos específicos da linguagem, marcados pela intencionalidade e inseridos em um contexto preciso, e, por isso, fugaz; o dialogismo de Bakhtin, maneira de entender a linguagem travado como diálogo entre o sujeito que fala e a presença do outro, marcando a coletividade e, por isso mesmo, a instabilidade desse falar. De todo modo, como o próprio sentido, este debate está fadado a crescer e incrementar-se pelas leituras e contribuições de futuras respostas. A ideia aqui é a de apresentar elementos para que a discussão prossiga, tanto quanto os super-heróis que não cessam de voltar às telas e ao papel.

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WATCHMEN Rompimento com o cinema

texto Fรกbio M. Barreto


Fábio M. Barreto é jornalista há 15 anos, atua como diretor de cinema em Los Angeles e edita o site SOSHollywood.com.br.

Parto do princípio de que não se pode ser breve ao falar de literatura, ou obras oriundas de originais literários. Agora chega a hora de falar sobre Watchmen — O Filme. Sem especular, sem imaginar. Filme que me deixou incomodado, instigado e muito pensativo.

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lan Moore e Dave Gibbons reestruturaram o modo de se entender os quadrinhos em 1986 investindo numa história alternativa aterradora. Mais que uma graphic novel, Watchmen se tornou peça literária fundamental na época e assim permanece até hoje. Rompimento era a palavra de ordem, tanto estético quanto narrativo. Rompimento foi o que Adrian Veidt previu com seu plano infalível. Zack Snyder entendeu isso. Rompimento é o que Watchmen — O Filme promove em termos cinematográficos e, especialmente, no rumo que os filmes de super-herói tomaram desde que encontraram a rota do sucesso. Alan Moore não quis se envolver. Gibbons participou. Independente de suas razões, Moore errou. Um novo marco histórico se configura em 6 de março de 2009 e a corrida pelo texto “mais inteligente” sobre o filme vai ser interessante. Para criar sua história alternativa, Alan Moore não mudou um elemento histórico (o gênero se constitui basicamente em alterar o resultado de algum evento fundamental e, a partir disso, se especular os desdobramentos na sociedade), mas sim um importante conceito da sociedade norte-americana: a sensação de segurança. Quando a polícia não podia mais proteger os cidadãos, vigilantes mascarados surgiam. Assim foi com os Minutemen em 1940 e depois com os Watchmen, ou Crimebusters, como preferir, em 1966. Paralelamente falando, quando os filmes de super-herói não conseguem, e nem devem, se desvencilhar da grande demanda por ação, pancadaria e ritmo acelerado, Zack Snyder promove um freio narrativo e amplia as oportunidades visuais e literárias.

BLOCKBUSTER LITERÁRIO O ritmo de Watchmen — O Filme é único, especialmente por ser um blockbuster. Excetuandose algumas ampliações para efeitos dramáticos, todas as cenas de ação seguiram à risca a estrutura de Alan Moore. Assim também aconteceu com os monólogos e momentos contemplativos. Watchmen se dá ao direito e parar para que Dr. Manhattan (Billy Crudup) conte sua vida a partir do solo de Marte. As imagens servem como apoio para um momento quase teatral, ou melhor, literal. Uma leitura de um capítulo irresistível, surpreendente e repleto de suspense fantástico da melhor qualidade. Até aquele momento, Manhattan não passava de um sujeito azul com superpoderes, não se dava ao trabalho de vestir roupas e não ligava muito para as pessoas. Esse momento foi crucial, pois lhe foi atribuída uma humanidade que havia perdido há muito. Humanidade e pesar. Ótima edição e também a única chance de Crudup atuar sem os efeitos, que o prejudicam em alguns pontos, especialmente na recriação de seus lábios. Impressionante notar como Billy Crudup sempre se encaixa bem em papéis de época, como Quase Famosos.


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Entretanto, Dr. Manhattan luta para reencontrar sua ligação com a raça humana, é na essência de nossa espécie que reside a força motriz de Watchmen. E seus representantes máximos são Rorschach (Jackie Earle Haley) e Comediante (Jeffrey Dean Morgan). Morgan finalmente encontrou um papel de destaque que tanto precisava, mas desenvolveu certa paixão pelo personagem, algo curioso e positivo. O ator comentou que nunca conseguiu ficar com raiva do Comediante, mesmo ele tendo praticado os atos mais atrozes da história. E sua teoria faz sentido, uma vez que o personagem seja o único sem ilusões no meio de toda a revolução sócio-política de Watchmen. Ele sabe muito bem em que pé o mundo está e tenta aproveitar a situação para seu benefício próprio ou, pelo menos, para lavar sua alma. Ele sabe por que chegamos nesse ponto e comove quando descobre para onde vamos. Morgan foi um dos poucos que pode fazer grande trabalho em diversos momentos da vida do personagem, exigindo piedade e dó com seu Comediante velho e enrrugado, e inspirando pavor e insegurança com seu Comediante no auge da forma. Sem contar que o visual do personagem caiu feito uma luva para o ator.

ATUAÇÃO INESQUECÍVEL Já Jackie Earle Haley saiu de um ostracismo de anos longe das telas — foi um astro-mirim nos Estados Unidos, por conta de uma série de filmes sobre basebol — e retornou em 2006 com a interpretação intensa de um pedófilo em Pecados Í ntimos e maravilha a platéia em W atch men. Sua narração crua e amargurada, aliada a um trabalho corporal irreparável (uma vez que sua máscara, animada por computador, foi responsável pelas reações faciais), preparou terreno para o surgimento de um personagem mais assustador que Rorschach: Walter Kovacs, seu alter ego. O monstro dentro de todos nós. Haley irrompe como uma borboleta vingadora, despida de seu verdadeiro lar. Seu rosto, sua máscara, sua face. Rorschach é o arauto dessa criatura caótica e desesperada representada por Kovacs. Uma identidade retraída, e maldosa, escondida dentro de Mr. Hyde, destituído de qualquer influência do Dr. Jekyl. Não há concessões em W atchmen , assim como não há piedade na mente de Rorschach. É uma interpretação primorosa. Isolando apenas a sequência em que o psiquiatra tenta compreender sua conduta, ele é capaz de ser mais apavorante que todos os filmes de Freddy Krueger juntos, ou metade dos remakes de horror asiáticos que invadiram Hollywood ultimamente. Usando a expressão popular, ele carrega o filme nas costas.


�� “Filme”. Causa estranhamento se referir a essa obra dessa maneira. Assim como é incorreto chamar a versão original de história em quadrinhos, em vez de graphic novel. Entretanto, ainda falta um termo que classifique esse “não-filme”. A obra corretamente transposta para uma nova mídia. Uma situação peculiar assim como acontece como Bohemian Rhapsody, do Queen, que é muito mais que uma música. Essa é a primeira vez que Hollywood, em um de seus blockbusters, troca a linguagem cinematográfica por uma leitura aprofundada e inigualável. Daí surge o principal rompimento de Zack Snyder, que se aproximou ao máximo da proposta de Alan Moore e pode sofrer conseqüências negativas por parte do público casual. Afinal, o que vai pensar o casal de namorados que entrar no cinema esperando algo similar a B atman ou H omem de F erro e encontrar algo assim? É, sem dúvida, o filme que os fãs pediam. Violento, sexual e astuto, sem deixar de ser inteligente em cada linha de roteiro. O senso de emergência surge desde a impressionante cena de abertura, na qual o Comediante é atacado em seu apartamento. Richard Nixon está no poder, em seu terceiro mandato, e o desastre nuclear é inevitável. O fim está próximo e, para piorar as coisas, o único homem capaz de interromper o processo — Dr. Manhattan, o único sujeito com

superpoderes em toda a história, uma vez que os demais Watchmen são seres humanos com habilidades físicas impressionantes e grande inteligência, mas nada mais — pouco se importa com o mundo. Abandonada à sua própria vontade, a Humanidade não tem futuro. Trocar o termo “humanidade” por Hollywood aqui parece interessante, pois, excetuando-se algumas mentes mais brilhantes, Hollywood vê seu formato se esgotar e, mesmo registrando sucessos financeiros, pena para destacar um filme por sua qualidade, tanto que o vencedor do Oscar foi um filme inglês produzido na Índia. O fim está próximo, como diria Rorschach. Mas acreditar no fim das coisas não é característica de Hollis Mason (Stephen McHattie, de M andando B ala ), que participa pouco do filme, mas de forma digna e interessante. Autor de U nder the H ood , o livro dentro do livro, Mason aparece numa de suas “beer nights” com Dan Dreiberg, conta trechos de históricas de sua gloriosa carreira como combatente do crime, mas se torna marcante por uma razão. É em seus olhos cansados e rosto envelhecido que mora uma alma guerreira, pronta a cair de porrada no primeiro bandido que cruzar seu caminho. Embora sutil, é nesse aura de Hollis que está a chave para as grandes mudanças operadas em W atchmen , pelo menos


em seus personagens. O que ele sente naquele momento é apenas um reflexo de um passado glorioso, que viveu intensamente, e não pode repetir por conta de sua idade, porém, são os mesmos conflitos pelos quais os “jovens” heróis passam por conta da aposentadoria forçada. É uma espécie de chama que nunca morre, assim como seu livro, assim como seu personagem cujo destino trágico não foi mostrado pelo longa-metragem.

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O FIM ESTÁ PRÓXIMO Mas há um plano, secreto, desenvolvido pelo homem mais inteligente do mundo, Adrian Veidt, também conhecido como o Ozymandias. Eis o ponto que destoa com a graphic novel. Em vez de agir sozinho, Veidt envolve o Dr. Manhattan num plano engenhoso para acabar com a necessidade de combustíveis fósseis e, assim, podar a ganância humana que motiva guerras e, claro, a iminente hecatombe nuclear. Tudo mentira. Uma mentira para encobrir outra maior ainda. E eis que surge a maior de todas as mudanças: o desfecho. Na graphic novel, Ozymandias despacha uma criatura “alienígena” e uma bomba nuclear para Times Square, causando milhões de mortes, mas unindo o planeta contra a ameaça inesperada. Esse conceito foi bem construído e cumpre sua função, além de colaborar com a experiência diferenciada que é assistir W atchmen . Em primeira leitura, a duração do filme apontou como item desfavorável ao público comum, mas, sem dúvida, é um dos grandes trunfos para os fãs, afinal de contas, quanto mais tempo, mais conteúdo e, claro, mais proximidade com o original. É um soco no estômago atrás do outro, mas tudo se torma mais intenso ainda quando chega a hora do desfecho. No filme, Veidt constrói um reator que simula a energia do Dr. Manhattan e dá cabo de seis megalópoles simultaneamente, entre elas, Nova Iorque, Los Angeles, Moscou e Hong Kong. A Humanidade é atacada pelo Dr. Manhattan e se une contra esse “inimigo”, nada mais que um coadjuvante desavisado do plano de Veidt. O conceito foi bem executado, dentro de sua proposta, mas reorganizou alguns conceitos da graphic novel, entre elas a participação de Dr. Manhattan no desenvolvimento do plano, a ausência do monstro e um evento de proporções mundiais, em vez de algo centrado nos Estados Unidos. Visualmente, causa desconcerto. Imaginar tantas mortes é tarefa difícil, mesmo para mentes acostumadas aos filmes tragédia. O soco no estômago é garantido, por mais que se espere pela cena. Conhecer a conclusão, aliás, não constitui problema para o público por uma peculiaridade. Saber que Anakin Skywalker se transforma em Darth Vader não prejudicou Episódio 3, pois o foco estava em sua jornada de


�� perdição. Em Watchmen, por se tratar de uma leitura dramática com requintes de extremo luxo, o público é exposto a textos pungentes, atuais (mesmo tendo sido escritos na década de 80) e provocadores. É impossível permanecer impassível perante tamanha avalanche, assim como é impossível vislumbrar toda a composição de cores, coisas e falas acontecendo ao mesmo tempo. Se 300 era todo marrom e vermelho, Sin City – A C idade do P ecado mergulhava no preto e branco, Watchmen é um arco-íris caleidoscópico irresistível, assim como suas páginas físicas. Não há dúvidas sobre o cinema estar diante da melhor adaptação de Alan Moore, um longametragem tão marcante quanto a graphic novel que o originou e obra fundamental para o entendimento dos super-heróis. Em meio a tudo isso, Coruja (Patrick Wilson) e Espectral II (Malin Akerman) ligando toda essa loucura ao espectador. Embora sejam heróis, ambos almejam coisas mais simples. Carinho, amor e razão para viver. A exemplo do restante da obra, foram retratados com extrema fidelidade e fazem as vezes de espectadores de luxo de uma epopéia catastrófica. As seqüências são de tirar o fôlego e protagonizam a única cena de sexo do filme. A execução é primorosa e deixaria até Alan Moore satisfeito. É muito fácil se identificar com Dan Dreiberg e Laurie Júpiter, identidades secretas dos personagens. Eles não têm o jeito psicopata de Rorschach, o estilo exacerbado de Veidt — embora todos tenham sido retratados por Andy Wahrol, em vez de Marilyn Monroe — ou a sede sangue

do Comediante. Eles fazem com que o público queria participar do espetáculo, desferir alguns socos e, claro, tentar salvar o mundo. Eles falham — em suas vidas e também na tentativa de fazer sexo, que chega a ser desconcertante — e, como diz Zack Snyder, precisam de excitação, de uma razão mesmo para amar e encontra isso ao reassumir suas identidades secretas. É a preliminar sexual dos super-heróis, fazer algo estúpido e perigoso às 2 da manhã. E funciona! Todos os personagens são partes de um ser único e, eventualmente, perfeito. Indiferença, arrogância, paixão, loucura, introspecção e extrema sinceridade são traços desmembrados entre os personagens de W atchmen . Frações da índole humana, elevadas ao extremo, e colocadas à prova do grande público pelo trabalho de Zack Snyder. Será que a existência de personagens como Dr. House fará com que o Comediante seja aceitável? Ou que sucessos mascarados como B atman — O C avaleiro das T revas , com os eternos conflitos internos de Bruce Wayne, permitirá que Rorschach se posicione como o ápice da violência da psique? Mas uma coisa é certa: o fim está próximo. Hollywood e os super-heróis que se organizem depois desse rolo compressor de idéias. Fascinante por dias e dias, como um bom livro que nunca desaparece por completo.


O presente artigo coloca lado a lado duas posições contrastantes sobre a ilustração literária de modo a explorar alguns dos aspectos centrais implicados nesta forma particular de tradução intersemiótica. Assim, o foco de atenção está voltado para os testemunhos, escritos e modos de agir dos dois artistas em questão, Joan Miró (1893–1983) e René Magritte (1898–1967), que servem de base à discussão proposta. Ao conferir visibilidade às posições de dois artistas que deixaram sua marca no movimento de expansão do conceito de ilustração no século XX, o artigo objetiva trazer à mostra a complexidade de fatores envolvidos na ilustração literária enquanto processo de tradução intersemiótica.

MIRÓ, MAGRITTE: sobre a ilustração literária como tradução intersemiótica texto Clio Meurer Clio Meurer é doutora em Histoire et sémiologie du texte et de l’image – Université Paris VII (2008), especialista nos pintores Joan Miró e René Magritte. Atualmente integra o Grupo de Pesquisa em Processos de Criação da PUC-SP.


PROBLEMA DA ILUSTRAÇÃO

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egundo Renée Riese Hubert (1992: 3), até meados do século XIX, salvo poucas exceções, os livros ilustrados privilegiavam relações miméticas entre texto e imagem, sendo que, na grande maioria dos casos, as figuras acompanhavam a escrita literária à maneira de uma paráfrase gráfica. De acordo com a autora, o artista que se investia no livro geralmente buscava transferir para sua própria linguagem a progressão do texto, enfatizando qualidades textuais como descrição e narratividade, buscando também, como um tradutor, velar pela legibilidade em seu meio expressivo, sacrificando ambiguidades e enigmas existentes no original.

O artista gráfico, ao selecionar “momentos” ou “metáforas” segundo critérios de origem consciente ou inconsciente, atuava como um crítico perceptivo mas submisso. Ele se sentia compelido a articular as leis ocultas da criação textual em sua série gráfica correspondente. (HUBERT, 1992: 3) O livro ilustrado começa a sofrer grandes mudanças no final do século XIX, quando artistas como Édouard Manet, Louis Marcoussis, Pierre Bonnard, Raoul Dufy, Odilon Redon e Maurice Denis ilustram textos de poetas e escritores que, como eles, trabalham no desenvolvimento de uma nova poética: Stéphane Mallarmé, Charles Baudelaire, Guillaume Apollinaire, Paul Verlaine, Arthur Rimbaud. O grande marco dessa mudança de paradigma é a junção de forças de Manet e Mallarmé na edição de 1874 de L’Après-midi d’un faune. A ilustração acompanha as transformações revolucionárias na literatura e nas outras artes, especialmente no que tange à sobredeterminação da linguagem. Como aponta Hubert (1992: 4), a poesia da avant-garde dificilmente poderia ser ilustrada de maneira tradicional, situação que forçava o artista a “descobrir, ou melhor, inventar novos relacionamentos entre texto e imagem ao mesmo tempo em que dependia dos princípios de representação que já lhe eram próprios”. A miríade de possibilidades criativas que então se abre ao ilustrador apenas coloca de forma mais evidente o grau de complexidade envolvido nesse tipo de processo de tradução intersemiótica. O ilustrador, como intérprete, não se posiciona apenas entre dois sistemas de signos de naturezas diferentes — verbal e visual —, mas entre um texto poético e a criação de um elemento visual radicalmente novo. De modo a compreender as questões que emergem a partir dos experimentos do modernismo e que fazem parte do trabalho de ilustração literária, apresentaremos lado a lado as visões radicalmente opostas de dois artistas — René Magritte e Joan Miró — que trouxeram um aporte significativo ao livro ilustrado no século XX.

HUBERT, Renée Riese. Surrealism and the Book. Berkeley: University of California Press, 1992.

O termo tradução intersemiótica foi cunhado por Roman Jakobson em um ensaio de 1959,Linguistics Aspects of Translation, publicado no Brasil em 1975. No ensaio, Jakobson estabelece uma divisão entre três espécies diferentes de tradução de signos verbais: a tradução intralingual (reformulação), que “consiste na interpretação dos signos verbais por meio de outros signos da mesma língua”; a tradução interlingual (tradução propriamente dita), que “consiste na interpretação dos signos verbais por meio de alguma outra língua”; e a tradução intersemiótica (transmutação), que “consiste na interpretação dos signos verbais por meio de signos não-verbais” (2007: 63). JAKOBSON, Roman. Aspectos linguísticos da tradução. In: Linguística e comunicação. Trad. Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 2007 (1975). p. 62-3.


RENÉ MAGRITTE: o encontro entre uma imagem e um texto

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Magritte adotou um posicionamento claro e firme em relação ao trabalho do ilustrador e à própria finalidade da ilustração, o qual se inseria dentro do contexto de uma longa reflexão pessoal sobre a natureza da imagem. O pintor belga julgava mais apropriado falar em termos de reunião ou de encontro entre um texto e uma imagem do que servir-se do termo ilustração — palavra, aliás, que ele gostaria de suprimir. Essa definição, que encontramos em seus escritos teóricos, cartas e depoimentos, condensa em sua aparente simplicidade questões fundamentais sobre o livro ilustrado que detalharemos a seguir. O primeiro aspecto que devemos examinar na posição teórica de Magritte diz respeito a sua própria escolha lexical para a definição de ilustração literária. O emprego dos termos reunião ou encontro faz propositalmente eco à famosa frase dos Chants de Maldoror apontada por André Breton como chave para a compreensão do espírito de beleza do surrealismo: belo [...] como o encontro fortuito sobre uma mesa de dissecação de uma máquina de costura e de um guarda-chuva. (LAUTRÉAMONT, 1973 [1869]: 233–234) Essa metáfora extraída da emblemática obra de Lautréamont foi, de fato, um dos pontos de referência de Magritte na formação de uma maneira própria de conceber e de abordar o livro ilustrado, como ele mesmo explica na carta de 24 de fevereiro de 1956 ao então colaborador Maurice Rapin:

LAUTRÉAMONT, Comte de [DUCASSE, Isidore]. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1973.

Esta imagem [desenho de La Place au Soleil] poderia, me parece, se reunir felizmente a um volume de La femme assise [de Apollinaire]. Se reunir, e não ilustrar... Não é por acaso que Lautréamont diz: O encontro de uma máquina, etc. e não: a composição de um conjunto que consiste em uma máquina de, etc. Ele também poderia ter dito A reunião de uma máquina, etc., sem trair aquilo que nós amamos. “A ilustração” subentende um trabalho aplicado à... cujo mecanismo simples ou complexo pode ser desmontado. A reunião ou o encontro de um texto e de uma imagem é imprevisível. (MAGRITTE, 2001: 485–486) O trecho acima, em que Magritte justifica a opção pelos termos reunião e encontro com base no texto de Lautréamont, nos permite examinar com mais exatidão sua postura teórica. Ele introduz em nossa discussão — e chegamos aqui ao segundo aspecto que gostaríamos de examinar — uma precisão importante: a expressão rencontre heureuse. Trata-se de um termo de sua autoria que aparece com certa frequência em seus escritos e que integra sua reflexão de ordem geral sobre a natureza da imagem e da representação. De modo a manter sua originalidade e estranheza, optamos por traduzi-lo aqui de maneira literal — encontro feliz — embora o espectro de significação da expressão em francês seja mais amplo. No caso da ilustração, a noção de rencontre heureuse, ponto fundamental no pensamento de Magritte, responde pelo fato de que, se o resultado do encontro entre uma imagem e um texto é sempre imprevisível, apenas certos encontros são capazes de revelar a existência de laços íntimos

LAUTRÉAMONT, Comte de [DUCASSE, Isidore]. Écrits complets: Édition établie et annotée par André Blavier. Paris: Flammarion, 2001 (1979).


e intangíveis. Suas longas pesquisas no domínio da pintura já haviam confirmado a relação de dependência operada pela vizinhança; no caso de um encontro “feliz”, os mecanismos ao interior dessa nova relação não poderiam ser desmontados. É a ênfase no elo, no espaço de significação imprevisível que emerge da vizinhança entre um texto e uma imagem, que explica o desconforto de Magritte em relação ao sentido tradicional da palavra ilustração e o consequente desejo de buscar um substituto mais adequado. “Evitemos pleonasmos pictóricos”, conclama o pintor num texto de 1963 (MAGRITTE, 2001: 582). Ele admitia no entanto o uso do termo ilustração quando empregado segundo uma única acepção específica, que ele explica no seguinte trecho de uma carta a Bosmans (19 de julho de 1961): Ao invés da ideia de ilustração, me parece preferível aspirar a imagens que acompanhem um texto. Essas imagens não seriam “comandadas”, “inspiradas” pelo texto, mas podendo encontrálo felizmente. Um outro sentido de ilustração é aceitável quando significa “que torna ilustre” [...]. (MAGRITTE, 1990: 180) MAGRITTE, René. Lettres à André Bosmans: 1958–1967. Bruxelas: Seghers/Isy Brachot, 1990.

Esse trecho contém o terceiro aspecto que escolhemos enfatizar: o de que a palavra ilustração só é aceitável no sentido de “tornar ilustre”, ou seja, quando a precisão do elo estabelecido entre figura e texto é capaz de fazer com que o trabalho resultante se torne notável, brilhante, nobre. O conjunto dessas reflexões nos mostra a que ponto o pintor belga era sensível às verdadeiras questões presentes no livro ilustrado. E é para confirmar a pertinência da reflexão de Magritte que retomamos aqui algumas observações de Anne-Marie Christin sobre a ilustração:

A ilustração é olhar. Vis-à-vis mudo, fora do texto, da cena do discurso, ela lhe rende homenagem pela evidência — mas que revela somente o livro aberto na página mesmo onde ela se expõe — de uma leitura que seria espetáculo, de uma palavra que seria mimo e desenho. Pouco importa se o ilustrador tenha ou não podido participar da diagramação das páginas que ligam suas obras ao texto que é sua fonte. O olhar da ilustração nasce da presença da imagem na vizinhança onde ela se inscreve. A miragem se opera ali, nessa dualidade estampada de um texto e de uma figura de onde surge uma dependência irresistível. (CHRISTIN, 1995: 185) CHRISTIN, Anne-Marie. L’Image écrite ou la déraison graphique. Paris: Flammarion, 1995.

O aporte de Magritte no campo da ilustração se encontra sobretudo em sua reflexão intelectual sobre as relações entre texto e imagem. No livro ilustrado, ele viu a ocasião de aprofundar suas pesquisas sobre a palavra, a imagem, os objetos e a representação — que remontam pelo menos à série de pinturas iniciada com La Clef des songes de 1927 e à reflexão condensada no texto Les Mots et les images publicado em 1929. No que diz respeito à prática em si, ou seja, à sua atuação como ilustrador, Magritte privilegiou contribuições pontuais a revistas de vanguarda — citemos aqui Au Volant (1919) dos irmãos Bourgeois, Distances (1928) do grupo surrealista belga, e Minotaure de Skira e Tériade (1933–1939) — e a edições limitadas de obras literárias (capas, frontispícios, ilustrações isoladas). Talvez em razão da desconfiança em relação à maneira tradicional de considerar o livro ilustrado, dedicou-se poucas vezes à concepção de projetos de li-

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vros inteiros. Por razões em parte técnicas, em parte de ordem conceitual, apenas em raras exceções o artista gravou ele mesmo suas ilustrações, preferindo realizá-las em bico de pena. Seus trabalhos mais importantes no domínio do livro ilustrado foram realizados em 1945. Na primeira metade do ano, Magritte realizou a maior parte da série de 77 desenhos para o projeto de reedição de Les Chants de Maldoror comandado pelas Éditions La Boétie, de Bruxelas. O livro, publicado apenas em 1948, constitui a edição surrealista mais amplamente ilustrada da obra de Ducasse. Em torno de novembro/dezembro de 1945, Magritte se lançou em um projeto com Paul Éluard, uma reedição de L es N écessites de la vie et les conséquences des rê ves précédés d ’E xemples . Essa colaboração, fruto de sua amizade, presta testemunho da comunhão de espírito entre o poeta e o pintor. A ridícula distância que nos separa nunca me foi tão insuportável, escreveu Éluard a Magritte durante a realização do projeto. A compilação de poemas de Éluard foi publicada em 1946 pelas edições Lumière em Bruxelas, contendo 12 desenhos de Magritte em bico de pena em página inteira, cujo traço remetia às obras de seu período do “surrealismo em pleno sol”.

JOAN MIRÓ: a arquitetura do livro e o espírito do texto Miró, ao contrário de Magritte, considerava a ilustração como uma questão de extrema importância. O pintor catalão trabalhou várias vezes como ilustrador, e consagrou, talvez mais do que qualquer outro artista de sua época, uma parte importante de suas forças e de seu tempo a essa atividade. Ele ilustrou cerca de 60 obras, em sua maioria livros de poetas — entre eles Benjamin Péret, Paul Éluard, Tristan Tzara, Robert Desnos e Michel Leiris. Na maioria desses trabalhos, trata-se de uma colaboração estreita entre pintor e poeta, o interesse mútuo pelo trabalho um do outro. Mais que de livro ilustrado, trata-se do que Yves Peyré denominou “livro de diálogo”: encontro de dois criadores (um poeta, um pintor) num espaço comum, aceito e investido por ambos: o livro. PEYRÉ, Yves. Peinture et poésie: Le dialogue par le livre 1874–2000. Paris : Gallimard, 2001.semeiosis

A veneração da poesia, essa grande força motriz no interior de sua obra, está na origem do investimento pessoal de Miró nesse espaço privilegiado de colaboração que é o livro ilustrado. Cada obra ilustrada permitia a Miró impor novas exigências e desenvolver não somente seus talentos de gravador, mas também seu


próprio universo pictórico. Jacques Dupin descreveu de maneira concisa a dedicação que Miró aplicava a esse trabalho delicado: Ele recusa todas as formas de coibição e pensa que é indo mais longe na afirmação de si e de sua própria escrita que ele tem a chance de encontrar o outro, o escritor vindo de fora, e de abrir a unidade de um espaço próprio de troca e de acordo. Ele é no entanto o leitor escrupuloso do texto. Ele se aproxima longamente, não sem candura, com um escrúpulo e um fervor minucioso. Ele se impregna do poema, ele adormece com as palavras, os ritmos, os aromas que dele emanam; ele os incorpora até a inconsciência e a cegueira. Ele deixa o escrito se introduzir e se fundir nele, despertar ecos, imagens, agir sobre seu próprio devaneio, e arrastar, alterando, contaminado, as figuras, os signos, as cores de sua linguagem de gravador. Desse encontro, e dessa alquimia interior, nascerão suítes de gravuras passíveis de um infinito debate sobre sua adequação ou não ao texto que acompanham, mas nas quais aparece em evidência que cada uma difere da outra na medida que cada uma encontra-se penetrada do texto e do espírito de seu autor. Miró não trata da mesma maneira os poemas luminosos e límpidos de Éluard e o sombrio fluxo enigmático de Tzara. Ele extrai de cada livro um enriquecimento decisivo, um sabor desconhecido, uma luz singular aos quais ele dá a réplica e o contracanto. (DUPIN, 1983: 11) Em 1975, Miró trabalhava em um projeto que acabou não se concretizando — ilustrar as Soledades de Gôngora. É num trecho da entrevista concedida a Georges Raillard nesse ano que o artista fornece uma das mais detalhadas descrições do espírito com o qual ele concebia a ilustração:

DUPIN, Jacques. Miró graveur I. Paris: Daniel Lelong, 1983.

Não, não [não faço provas sobre papel antes de atacar o cobre]. Mostrei-lhe a maquete de Gôngora: parto da arquitetura, da tipografia do livro, que é muito importante para mim; entro no espírito do poeta. Penso amplamente, em ambas as coisas ao mesmo tempo: a arquitetura do livro e o espírito do texto. Depois, faço muitos, muitos desenhos, rapidamente, em qualquer pedaço de papel. É a segunda etapa. E passo à terceira, a de agora. Uma vez penetrado no espírito do texto e na arquitetura do livro, desenho neste grande formato com cores. Feito isso, começarei a gravar o cobre com ácido. Muito livremente, quase sem levar em conta a maquete. A maquete é mais um estudo, que ajuda a não desviar e permite a Dutrou saber em que espírito deve trabalhar. Quando trabalho o cobre, não olho a maquete, ou só olho um pouco, o suficiente para não perder o contato. (MIRÓ, 1992: 141) Outros depoimentos reveladores de Miró sobre sua atividade de ilustrador se encontram em suas cartas ao editor Gérald Cramer sobre sua colaboração em À Toute épreuve de Paul Éluard. Miró e Cramer começaram a trocar uma correspondência abundante a partir de maio de 1947. O projeto era a concretização de um sonho antigo do artista catalão, o de uma colaboração com o amigo Éluard, cuja obra poética ele admirava. Miró via nele a oportunidade de ultrapassar a concepção tradicional de ilustração. É o que ele explica a Cramer em uma carta de 10 de junho de 1948:

MIRÓ, Joan. A Cor dos meus sonhos: entrevistas com Georges Raillard. Trad. Neide Luzia de Rezende. São Paulo: Estação Liberdade, 1992.

MIRÓ, Joan. Écrits et entretiens: Choisis, présentés et annotés par Margit Rowell. Paris: Daniel Lelong, 1995.

As possibilidades para fazer esse livro são imensas. [...] Eu fiz uns ensaios que me permitiram ver o que era fazer um livro, e não ilustrá-lo, a ilustração é sempre uma coisa secundária. O importante é que um livro tenha toda a dignidade de uma escultura talhada em mármore. (MIRÓ, 1995: 236) O resultado desse longo trabalho — cerca de 11 anos se passaram entre a concepção da edição e sua concretização em 1958 —

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foi um dos mais belos exemplos no século XX do chamado livro de diálogo. O êxito formal da coletânea À toute épreuve se deveu não somente a uma colaboração estreita entre poeta e pintor, mas também aos esforços criativos e inovadores do editor Gérald Cramer e do impressor Jacques Frélaut. Esta unidade já havia sido evocada em uma carta de Miró a Cramer de 1949:

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Eu estou particularmente feliz de comunicar que a maquete acaba de ser terminada. Várias páginas foram compostas em diversas etapas até atingir seu estado definitivo. Isto eu já havia previsto com exatidão; eu já sabia com absoluta certeza que, mesmo nos desenhos bem sucedidos, eu seria obrigado a mudá-los — uma simples vírgula da página precedente ou um ponto sobre o i da página seguinte [podendo] fazer entrar em derrocada tudo aquilo que eu havia feito isoladamente. Um livro deve ser feito com a precisão de uma máquina de relojoaria. Todavia, eu respeitei inteiramente a sua tipografia. Eu devo lhes felicitar, você e Éluard, pois ela é muito bem sucedida, a ideia de páginas em cores e de páginas de repouso é muito bonita... Esta trajetória de trabalho que nós percorremos até atingir uma completa unidade entre nós três foi dura e penosa, o que não fez que enriquecer o resultado final e torná-lo ainda mais comovedor e mais poderoso. (MIRÓ, 1995: 237) CRAMER, Gérard; MIRÓ, Joan. Introduction et notes par JeanCharles Giroud. Genève: Patrick Cramer, 2002.

À Toute épreuve foi publicado em 25 de março de 1958, portanto nove anos após essa carta que evoca a estreita colaboração entre pintor, poeta e editor. Impresso a 130 exemplares, este grande livro de mais de 100 páginas continha 80 xilogravuras de Miró. Éluard, falecido em 1952, não pôde ver a conclusão do projeto.

Ilustração de René Magritte para obra de Paul Éluard


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CONSIDERAÇÕES FINAIS De um lado, René Magritte, que trabalha no registro do anonimato do pensamento, enfatizando as redes de significação que emergem da vizinhança espacial que se opera no encontro de um texto e de uma imagem; de outro, Joan Miró, que se implica fisicamente em todo o processo, buscando entrar no espírito do texto, em sua sonoridade, na arquitetura do livro. Ambos desenvolvem sua própria linguagem no livro ilustrado, mas mostram o caminho para potencialidades diferentes das formas de interação entre palavra e imagem. O contraste entre essas duas visões de uma mesma forma de expressão traz à mostra toda a complexidade não só da ilustração poético-literária, mas também do trabalho do ilustrador em geral. Essa complexidade que buscamos evidenciar aqui é apenas parte — uma parte importante, certamente — de um conjunto maior de questões que devem ser levadas em conta ao se pensar a ilustração literária como tradução intersemiótica, seja do ponto de vista do artista, seja do ponto de vista do crítico. Questões como as noções de fidelidade (entendida aqui na concepção de Umberto Eco, de lealdade ao texto) e de equivalência; a posição do ilustrador (no caso dos exemplos estudados, um artista que é levado a mostrar algo de si e do qual não se espera que permaneça invisível em sua interpretação de um sistema de signos a outro); o projeto editorial; o encontro não somente de duas linguagens, verbal e visual, mas de dois universos pessoais — o do poeta e o do artista.

ECO, Umberto. Quase a mesma coisa: experiências de tradução. Trad. Eliana Aguiar. São Paulo: Record, 2007.



SOCOS, ZUMBIS & MONSTROS MARINHOS texto Ernesto Diniz ilustração Isabella B. Silva Ernesto Diniz é doutorando em Língua e Cultura, no Instituto de Letras da UFBA. É pesquisador na área de Tradução Intersemiótica, com foco nas recriações dos textos de Shakespeare nas redes sociais.

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s clássicos da célebre escritora inglesa Jane Austen estão sendo recontadas em uma cena de atualizações vistosas, que surgem em diferentes dinâmicas tradutórias: livros e trailers de livros que resultariam em filmes intrigantes. Já vimos representações cinematográficas

Orgulho e Preconceito

de R azão e S ensibilidade , E mma e O rgulho P reconceito ; quando digo “representações”, são traduções intersemióticas que não procuram atualizar tempo-espaço e tentam manter temas, gêneros e personagens da narrativa quase que intocados. Todos os filmes elogiados, mas procuram “preservar o original”. Entretanto, o que vemos agora é uma apropriação faminta dos romances citados acima. Vamos por ordem de aparecimento. Aquele livro curioso que apareceu na prateleira das livrarias. Diante da capa de Orgulho e Preconceito e Z umbis , podemos imaginar que tudo é possível de fato. Procuramos entender o que estava acontecendo, já que a “ousadia”, em geral, costuma aparecer no cinema e não nos livros; estamos diante de algo que pode facilmente virar um filme, mas a surpresa foi ainda maior ao deparar com o vídeo de divulgação do livro: prepararam um trailer com qualidade de cinema para lançar um livro. Até o ano de 2009, a Quirk Books era uma editora desconhecida. O editor Jason Rekulak passava o tempo livre no YouTube vendo mashups, vídeos que misturam trechos de clipes, filmes e programas de TV. Inspirado neles, criou uma forma de aplicar a técnica ao seu ramo: fez uma lista de clássicos com direitos autorais em domínio público (Dickens, Tolstoi, Austen) e uma de personagens que fazem todos rirem (zumbis, monstros marinhos, ninjas). e


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Para passar do título, Jason chamou o escritor nas artes marciais e no combate armado pae roteirista Seth Grahame-Smith, autor de Co- ra defender sua propriedade. A trama básimo sobreviver a um filme de terror. ca é a mesma de Austen, com os zumbis (a O resultado, nas contas de Jason, é 85% Ja- quem todos se referem, com polidez inglene Austen — ainda estão lá as casadoiras irmãs sa, como “os não mencionáveis”) irrompendo Bennet e a profusão de intrigas sociais da In- em momentos escolhidos a dedo, conta Jason. glaterra do século XIX. Mas foram os outros 15% “Os personagens dela são muito contidos, seus que transformaram O rgulho e preconceito e conflitos são sempre internos. Então decidizumbis num fenômeno editorial, que inspirou mos que os zumbis seriam uma forma de exteoutros mash-ups literários, inclusive com clás- riorizar esses conflitos. Toda vez que alguém essicos literários brasileiros. tá sofrendo, ou tem os sentimentos feridos, os Ficou comprovado o sucesso, já que P ride zumbis aparecem” — diz o editor, citando uma a n d P r e j u d i c e a n d Z o m b i e s : D aw n o f t h e das cenas mais famosas do romance, o baile em D r e a d f u l s e S e n s e a n d S e n s i b i l i t y a n d S e a que Elizabeth é insultada por um pretendente Monsters (os títulos em inglês), são sucesso de (na nova versão, nesse momento o salão é invavendas da editora Quirk. Além da aposta nesses dido por uma horda de mortos-vivos). “mestres do domínio público” para desenvolver Austen é cânone da literatura anglófona. narrativas que transformam clássicos em best- Sempre vendeu bem e, como citado anteriorsellers trash recheados de improbabilidades e, por isso mesmo, imensamente divertidos, percebe-se também um gosto por brincar com tradições estéticas da literatura inglesa, como as Capítulo 1 infames “puns” ou trocadilhos, como as conheuma verdade universalmente conhecida que um cemos. homem solteiro possuidor de uma boa fortuAlém disso, haverá uma versão cinematográfina deve estar necessitado de uma esposa. Por pouca de Orgulho e preconceito e zumbis, que teria co que os sentimentos ou as opiniões de tal homem sejam conhecidos ao se fixar numa nova localidade, originalmente David O.Russell (Três Reis) na direessa verdade se encontra de tal modo impressa nos ção e Natalie Portman como protagonista. Entreespíritos das familias vizinhas que o rapaz é desde lotanto, depois de O. Russell abandonar a direção da go considerado propriedade legítima de uma de suadaptação do livro, o filme perdeu sua protagonisas filhas. — Caro senhor Bennet — disse-lhe certo dia sua ta. A atriz Natalie Portman desistiu de estrelar o esposa — já ouviu dizer que Netherfield Park foi filonga, por causa de conflitos na sua agenda, mas nalmente alugado? ela continua como produtora. Com essas duas perO Sr. Bennet respondeu-lhe que não sabia. — É como lhe digo — tornou ela — pois a Sra. Long das a Lionsgate deve adiar as filmagens, que coainda há pouco aqui esteve e contou-me. meçariam em novembro de 2011. O Sr. Bennet não deu qualquer resposta. Então, as palavras-chave são mashup e domí— Não lhe interessa saber quem o alugou? - exclanio público. Traduzindo: essas obras estão limou a mulher, impaciente. — Você é quem está querendo me dizer e eu não vres para transitar nas nossas mídias, que se faço nenhuma objeção a isto. desdobram em ritmos cada vez mais variados. Tal resposta foi como um convite a prosseguir Na versão de Jason e Seth, a Inglaterra é ví— Pois saiba, meu caro, que, pelo que a Sr.a Long me disse, Netherfield foi alugado por um jovem de tima de uma praga que faz os mortos se legrande fortuna do Norte de Inglaterra. Chegou na vantarem das tumbas e vagarem em bussegunda-feira, numa carruagem puxada por quatro ca de miolos frescos. Isoladas em seu casarão cavalos, para visitar o local, e ficou tão encantado que desde logo aceitou as condições do Sr. Morris. no campo, as irmãs Bennet se aprimoram

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mente, vários filmes já fizeram suas obras retornarem. No início do século XIX, enquanto o “macharal” (a ala masculina) inglês se divertia com as batalhas napoleônicas, as moças bretãs conduziam uma vida que deveria representar um estado entre a narcose e a pudicícia. O século XVIII foi marcado por um sistema de educação com fortes bases no Iluminismo, onde a razão era a peça chave para salvar a sociedade da corrupção moral (emoção). Nesse sistema, as mulheres não precisariam ser educadas. Ficar em casa sendo treinadas para cuidar do lar, dos filhos e obedecer ao marido já era existência suficiente. Havia diversos tratados de conduta para a educação doméstica das mulheres, livretos que enfatizavam o sucesso feminino no casamento e na sociedade através da religião e de talentos

Orgulho e Preconceito e Zumbis

(pintar, bordar, cantar, tocar piano, enfim, todo tipo de ocupação caseira disfarçada de “arte”) e, em contrapartida, que excluíssem do repertório qualquer outro tipo de conhecimento que as aproximasse da “natureza masculina”, pois não era de bom tom. A condicionada letargia feminina alcançou o auge na era vitoriana (1837–1901), tendo por base três fundamentos: austeridade, sobriedade e moralidade. A camisa de força era o espartilho. Com uma educação incomum para uma moça do seu tempo, Jane Austen (1775– 1817), uma das três mulheres de uma família religiosa de oito irmãos, algumas décadas antes, ousou escrever sobre o comedimento desmedido a que eram submetidas as mulheres inglesas. Uma ousadia discreta, conciliada por uma finíssima ironia, trabalhada para criticar toda a sociedade da época. A esses dados, acrescentemos o fato de que as obras de Austen são obrigatórias na maioria dos colégios de países que tem o cânone inglês no currículo e, obviamente, deve causar ódio voraz em seus jovens leitores, tão distantes do contexto desses romances. Então, por que não parodiar, atualizar, aproximar esses jovens do cânone? É o que afirma o editor da Quirk: “Hoje mesmo uma professora me escreveu dizendo que seus alunos de 15 anos adoraram o livro. São jovens que nunca se interessariam por Jane Austen, mas leram nossa versão de Orgulho e preconceito . Quer dizer que eles leram 85% do livro de Austen: é o suficiente para enganar na prova de fim de ano.” Contrariando um pouco o filósofo Roland Barthes, se ficarmos atentos a esses fenômenos fílmicos e literários cujo projeto é canibalizar as obras clássicas e, paralelamente, torná-las novidades populares pela intersemiótica, o autor não está morto. O "expressionismo zumbi" de Jason e Seth não agradou a todos. O editor conta que costuma receber reações raivosas de acadêmicos e fãs mais sisudos de Austen.

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MASHUPS LITERÁRIOS NO BRASIL

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A lista de clássicos obrigatórios da literatura nacional também ganhou seus próprios mashups. A Editora LeYa, através do selo Lua de Papel, acaba de lançar quatro mashups nacionais, misturando mortos-vivos, vampiros, bruxas e criaturas alienígenas às letras tradicionais de romancistas do porte de Machado de Assis e José de Alencar. A nova versão de D om C asmurro , fruto da “parceria” entre os escritores Machado de Assis e Lúcio Manfredi, traz uma nova visão sobre a conturbada história de Bentinho e Capitu. A trama romântica agora sofre a interferência de seres alienígenas e androides disfarçados sob os personagens originais de Machado. Outro que não escapou das adaptações foi o clássico dos clássicos M emórias P óstumas de B rás C ubas . A história do defunto autor ganhou mais algumas letras em Memórias Desmortas de Brás Cubas, escrita por Pedro Vieira. Espécie de “continuação” da obra machadiana — portanto, diferente das demais por não se tratar propriamente de um mashup — a obra, lançada pela Tarja Editorial, traz Brás Cubas narrando os fatos após sua morte, quando escapou de seu caixão, espalhando o caos pelo Rio de Janeiro. A E scrava I saura , romance de Bernardo Guimarães, em sua versão fantástica, se transformou em uma história recheada de sugadores de sangue no sugestivo A Escrava Isaura e o Vampiro, de Jovane Nunes, ator da Cia de Comédia Os Melhores do Mundo. Com um humor bastante peculiar, o livro (re)conta a história de Isaura, uma escrava que se vê cercada por estranhas criaturas mortas-vivas — além de ávidas por um bom gole de sangue — por todo lado. Destaque de ambos os livros, nesta história o vilão Leôncio assume ares de um vampiro bastante atrapalhado. O cearense José de Alencar também não escapou a essa reinvenção fantástica. Seu livro S e n h o r a recebeu elementos sobrenaturais e misteriosas feiticeiras celtas e se transformou em S enhora , a bruxa , pelas letras de Angélica Lopes. Nesta nova versão do romance clássico de 1875, o folhetim de época vira uma trama sobrenatural, com elementos de magia e bruxaria. A vingança de Aurélia contra o ex-namorado agora é elaborada com a ajuda das misteriosas irmãs Blair — feiticeiras celtas

em busca de vida eterna, que há mais de trezentos anos semeiam a discórdia entre os pobres casais apaixonados. Fechando a lista de mashups, O Alienista Caçador de M utantes , de Natalia Klein, revisita um dos contos mais famosos de Machado de Assis, que soma irreverência e nonsense ao humor ácido e politicamente incorreto do escritor carioca do século XIX. A vila de Itaguaí é alarmada pela queda de uma nave espacial e por uma névoa que causa mutações alienígenas. Quem cuidará do estranho caso é Simão Bacamarte, médico que recebeu do povo a alcunha de alienista, uma combinação dos termos alien e especialista. Como era de se esperar, o anúncio dos Clássicos Fantásticos causou reações as mais diversas entre os literatos e acadêmicos de plantão. Muitos, inclusive, acusando os autores de serem responsáveis pela derrocada da literatura nacional. Exageros à parte, os livros seguem uma tendência, se não controversa, ao menos bastante ousada, tornando-se uma maneira interessante de aproximar a literatura clássica da fantasia contemporânea.

Capítulo 1

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uma verdade universalmente conhecida que um zumbi, uma vez de posse de um cérebro, necessita de mais cérebros. E nunca tal verdade foi mais inquestionável do que durante os recentes ataques ocorridos em Netherfield Park, nos quais dezoito moradores de uma propriedade foram chacinados e consumidos por uma horda de mortos-vivos. — Caro senhor Bennet — disse-lhe certo dia sua esposa — já ouviu dizer que Netherfield Park foi alugada novamente? O Sr. Bennet respondeu-lhe que não sabia, e continuou absorto em suas tarefas matinais, que consistiam em afiar adagas e limpar mosquetes — já que os ataques dos não mencionáveis vinham aumentando de forma alarmante nas últimas semanas. — Pois foi — replicou ela. O Sr. Bennet não deu qualquer resposta. — Não lhe interessa saber quem o alugou? —exclamou a mulher, impaciente. — Mulher, estou cuidando dos meus mosquetes. Diga as asneiras que quiser, mas me deixe tratar da defesa de minha propriedade! Tal resposta foi como um convite a prosseguir, o que bastou para a Sra. Bennet. — Pois saiba, meu caro, que, pelo que a Sr.a Long me disse, Netherfield foi alugada por um jovem de grande fortuna.


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nada continua, mas nada acaba  autor desconhecido




Augusto de Campos é poeta, tradutor, crítico literário e musical, e ensaísta. Apresenta uma obra muito relevante dentro movimento de arte concreta.

Como processo consciente, pode-se dizer que m sincronização com a terminologia adotada pelas artes visuais e, até certo ponto, tudo começou com a publicação de Un Coup de pela música de vanguarda (concretismo, Dés (1897), o “poema-planta” de Mallarmé, a ormúsica concreta), diria eu que há uma poesia ganização do pensamento em “subdivisões prisconcreta. Concreta no sentido em que, postas de máticas da idéia” e a espacialização visual do polado as pretensões figurativas da expressão (o que ema sobre a página. Com James Joyce, o autor não quer dizer posto à margem o significado), as dos romances U lysses (1914–1921) e F innegans palavras nessa poesia atuam como objetos autô- Wake (1922–1939), e sua “técnica de palimpsesto”, nomos. Se, no entender de Sartre, a poesia se dis- de narração simultânea através de associações tingue da prosa pelo fato de que para essa as pala- sonoras. Com Ezra Pound e The Cantos, poema vras são signos, enquanto para aquela são coisas, épico iniciado por volta de 1917, no qual o poeta aqui essa distinção de ordem genérica se trans- trabalha há 40 anos, empregando seu método porta a um estágio mais agudo e literal, eis que ideogrâmico, que permite agrupar coerentemenos poemas concretos caracterizar-se-iam por uma te, como um mosaico, fragmentos de realidaestruturação ótico-sonora irreversível e funcio- de díspares. Com E.E. Cummings, que desintenal e, por assim dizer, geradora da idéia, criando gra as palavras para criar, com suas articulações, uma entidade todo-dinâmica, “verbivocovisual” uma dialética de olho e fôlego, em contato direto — é o termo de Joyce — de palavras dúcteis, mol- com a experiência que inspirou o poema. No Brasil, o primeiro a sentir esses novos prodáveis, amalgamáveis, à disposição do poema.

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texto Augusto de Campos foto Klaus Werner

POESIA CONCRETA

O texto Poesia Concreta é um marco. Lança, pela primeira vez e a nível internacional, o termo poesia concreta. Até então utilizava-se a denominação concreto apenas em outras formas de manifestação artística. Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos


diz ele em Antiode, e nada mais faz do que teoria da poesia concreta. O J ogral e a P rostituta N egra (1949) é outro salto construtivo de vanguarda, dessa vez logrado por um novíssimo, Décio Pignatari. Nesse poema, Pignatari lança mão de uma série de recursos “concretos” de composição: cortes, tmeses, “palavras-cabide” (isto é, montagens de palavras, possibilitando a simultaneidade de sentidos: al(gema negra)cova = alcova, algema, gema negra, negra cova), todos eles convergindo para a temática que é a do poeta torturado pela angústia da expressão. É a dúvida hamletiana aplicada ao poeta e à palavra poética: até que ponto ela exprime ou deixa de exprimir, “vela ou revela”? E eis o poeta, clown-sacerdote a compor de carti-lagens e moluscos a poesia-prostituta negra-hasard que aqui — como o “mudaria o Natal ou mudei eu?” do soneto de Machado de Assis — explode em um único verso: “Cansada cornucópia entre festões de rosas murchas”.

Flor é a palavra flor, verso inscrito no verso, como manhãs no tempo

blemas, pelo menos em determinados aspectos, é João Cabral de Melo Neto. Um arquiteto do verso, Cabral constrói seus poemas como que a lances de vidro e cimento. Em Psicologia da C omposição , com F ábula de A nfion e A ntiode (1946-1947), atinge a maturidade expressiva, já prenunciada em O Engenheiro.

João Cabral de Melo Neto Brasil (1920–1999)

Texto publicado em Noigandres 2, em 1955, em Forum, órgão oficial do Centro Acadêmico 22 de agosto, da Faculdade Paulista de Direito, ano I, número III, outubro de 1955

Ezra Pound Estados Unidos (1885–1972)

Stéphane Mallarmé França (1842–1898)

Edward Estlin Cummings Estados Unidos (1894–1964)

James Joyce Irlanda (1882–1941)


Décio Pignatari, 1949 em O Carrossel, 1950

Tudo passa neste rio, menos o rio.

Teu lustre em volutas (polvo barroco sopesando sete laranjas podres) e teu leito de chumbo têm as galas do cortejo:

É a hora do rio, o grosso rio que lento flui flui pelas navalhas das persianas, rio escuro. Espelhos e ataúdes em mudo desterro navegam: Miraste no esquife e morres no espelho. Morres. Intermorres. Inter (ataúde e espelho) morres.

A legião dos ofendidos demanda tuas pernas em M, silenciosa moenda do crepúsculo.

É à hora carbônica e o sol em mormaço entre sonhando e insone.

Cansada cornucópia entre festões de rosas murchas.

Onde eras a mulher deitada, depois dos ofícios da penumbra, agora és um poema:

O Jogral e a Prostituta Negra Farsa Trágica

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Cansada cornucópia entre festões de rosas murchas.

Suspenso o fôlego, inicias o grande ciclo subterrâneo de retorno às grandes amizades sem memória e já apodreces:

Choremos por todos – soluço, e entoandum litúrgico impropério a duas vozes compomos um simbólico epicédio AAquela que deitada era um poema e o não é mais.

Tua al(gema negra)cova assim soletrada em câmara lenta, levantas a fronte e propalas: “Há uma estátua afogada...” (Em câmara lenta! – disse). “Existe uma estátua afogada e um poeta feliz(ardo -o em louros!). Como os lamento e como os desconheço! Choremos por ambos.”

(Modelo em repouso. Correm-se as mortalhas das persianas. Guilhotinas de luz lapidam o teu dorso em rosa: tens um punho decepado e um seio bebendo na sombra. Inicias o ciclo dos cristais e já cintilas.)

Cansada cornucópia entre festões de rosas murchas.

Minérios, flora e cartilagem acodem com dois moluscos murchos e cansados, para que eu te componha, recompondo:

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EXPOSIÇÃO NACIONAL DE ARTE CONCRETA

Esse foi o primeiro encontro nacional das artes de vanguarda realizado no país, tanto no que se refere às artes visuais quanto à poesia concreta. (PIGNATARI, 1957)

texto Cláudia Aranha

Cláudia Aranha é graduada na faculdade de Artes Visuais da Universidade de Brasília e atualmente trabalha como colaboradora no site Itaú Cultural

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ealizada por iniciativa do grupo concreto paulista, a Exposição Nacional de Arte Concreta tem lugar em São Paulo (Museu de Arte Moderna de São Paulo – MAM/SP, dezembro de 1956) e no Rio de Janeiro (Ministério da Educação e Saúde, janeiro e fevereiro de 1957), com artistas das duas cidades. A exposição é composta de cartazes-poemas, obras pictóricas, esculturas e desenhos, além de palestras e conferências. Além da exibição de obras de diversos artistas plásticos, participam como convidados especiais do evento os poetas Décio Pignatari (1927), os irmãos Haroldo de Campos (1929–2003) e Augusto de Campos (1931), Ferreira Gullar (1930) e Ronaldo Azeredo (1937–2006). A Exposição Nacional de Arte Concreta dá expressão nacional ampliada às tendências concretas que se manifestam nas artes visuais desde as décadas iniciais do século XX, e que remontam às experiências do grupo De Stijl. A seguir são apresentados os trabalhos expostos do grupo Noigandres, composto pelos poetas Augusto de Campos, Décio Pignatari, Haroldo de Campos e Ronaldo Azeredo.












�� Augusto de Campos página 63

salto, 1954

página 64

ovo novelo, 1956

página 65

tensão, 1956

Haroldo de Campos série o â mago do ômega, 1955–1956 página 66

o â mago

página 67

si len cio

página 68

no â mago

Décio Pignatari página 69

terra, 1956

página 70

um movimento, 1956

Ronaldo Azeredo série de a a z, 1956 página 71

a

página 72

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KEEP CALM Keep Calm and Carry On é um cartaz produzido pelo governo britânico em 1939, início da Segunda Guerra Mundial, com o objetivo de levantar a moral da população no caso de uma invasão. Na época, o cartaz não chegou a ser divulgado, mas acabou redescoberto em 2000, ganhando centenas de adaptações e reinterpretações e se tornando um fenômeno na internet.



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as memórias fazem com que o passado não seja visto de uma maneira estáti

e as tornando agentes de mudanças recíprocas e constantes  Eduardo Berline


ica, mas um elo com o presente, levando a uma releitura de ambas as partes

er, 2000




ENTREVISTA Luli Radfahrer texto Ernesto Diniz foto Luli Radfahrer

Qual a sua experiência com literatura? Como você segmenta a literatura em termos pessoais? Há clássicos, livros para se distrair? Acho que todos os livros são para me distrair, inclusive os de ciência e os clássicos. Só não encaixo nessa categoria os livros técnicos, pois preciso lê-los com um marca-texto na mão e depois voltar para referência posterior. Não tenho pudores, claro, de abandonar uma leitura pela metade e como considero que existem muitos livros que valem a pena ser lidos — mais do que eu poderei ler — praticamente não leio o que não é, pelo menos, bem escrito. Como você enxerga a relação entre as imagens da literatura e as imagens das narrativas audiovisuais? As da literatura e das narrativas em áudio são muito melhores, por serem interativas. O leitor contribui com sua parte de imaginação e acaba se envolvendo de uma forma muito mais rica e duradoura. Já o vídeo, ilustrações e fotos, salvo em raríssimos casos, empobrecem a experiência ao limitála ao óbvio. Por isso é tão importante o trabalho de artistas conceituais como Tim Burton no cinema. O modelo comunicacional jackobsoniano (emissor, mensagem, receptor) linear e simétrico sobrevive no mundo de hoje? Só quando a mensagem é muito forte, a ponto de desequilibrar o diálogo. Isso vale tanto para a mídia TV, indiscutível pelo alcance e frequência; e para a grande literatura, como o Saramago, que cala os leitores em respeito e admiração. Para o resto há todas as respostas, de fanfic a mídias sociais. Você acha que a multiplicação dos textos em mídias diferentes dispersa a mensagem? Há uma mensagem nos textos, sejam eles literários ou publicitários (ou a comunicação é potencialmente subversiva em relação a essa mensagem)? Acho que a multiplicação deve fazer sentido e ter um porquê. Senão seu efeito é o contrário, ele só dilui e enfraquece a mensagem. Quantas são memoráveis hoje em dia?

Luli Radfahrer é PhD em comunicação digital pela ECA-USP e professor da instituição há mais de 15 anos. Fundou a Hipermídia, uma das primeiras agências de comunicação digital do país, hoje parte do grupo Ogilvy. Passou pela a AlmapBBDO, StarMedia (NY) e dpz. com. É diretor associado do MAC (Museu de Arte Contemporânea) e dirige o LOV (Laboratório de Orientação Virtual), focado em distribuição de conhecimento


Você acha que a superdistribuição e a constante reinterpretação de textos cria obras soberanas ou elas estarão sempre relegadas ao derivativo? Por quê? De novo, depende da força — especialmente a qualidade do discurso. Reinterpretar Chico Buarque é para pouquíssimos. Shakespeare continua imaculado, por mais que se tente revêlo. O mesmo vale para os clássicos do teatro grego. Como você enxerga os fenômenos da cultura do remix e do mashup? Como fica a autoria no século XXI? Não muda muita coisa, não. Por mais que pareça. As pessoas sempre comentaram e imaginaram histórias paralelas com os personagens que vêem. A Internet só tornou essa discussão pública. As mídias sociais já foram mais influentes, hoje estão caindo no discurso público e se concentrando. Como ocorreu no começo da imprensa e da literatura. Hoje, parece haver a necessidade, por parte do leitor (se é que esse papel pode ser determinado com precisão), de se experienciar o texto e não apenas “lê-lo”. Você acha que isso é uma marca da contemporaneidade por conta das possibilidades trazidas pela tecnologia ou há fenômenos semelhantes no passado? Há fenômenos no passado. É a necessidade de se envolver com a obra. Hoje os tempos são só mais barulhentos. Como será o futuro do livro? E, num exercício profético, como as convergências entre as mídias em geral alterarão os paradigmas de consumo cultural? O livro continuará igual. A TV praticamente não mudou o teatro. Talvez — provavelmente — surgirão híbridos. Será interessante lê-los. Você acha que essas convergências potencializarão as mídias ou criarão mais distrações e superficialidade? As duas coisas. A técnica não faz a arte, só a potencializa. Mas também amplifica o barulho.

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texto Ricardo Oliveira ilustração Isabella B. Silva

LEI MICKEY MOUSE

O loby dos direitos autorais


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ickey é o personagem mais fácil de se identificar da história da ficção — mais até do que Papai Noel, de acordo com pesquisas. Analistas dizem que, se um dia, Mickey resolvesse sair da Disneylândia, onde se encontra com outras criações de Walt Disney desde 1928, ele não o faria por menos de US$ 3 bilhões, o valor estimado do personagem.

Mickey Mouse estaria sob domínio público desde 1998, não fosse a aprovação pelo congresso americano da lei de prorrogação do copyright (lei essa que ganhou o apelido de Lei Mickey). Esta proteção está sendo acusada de impedir o desenvolvimento de novas manifestações artísticas, uma vez que prende material artístico por tempo demasiado. Somente gerações mais distantes poderão utilizar o material como base para a sua criatividade. Naturalmente, a Disney não pensa assim e liderou o lobby que acabou criando a mais longa proteção

de direitos autorais do planeta. Tudo isso para que personagens como o Mickey Mouse não acabassem no domínio público e a empresa perdesse receita. De fato, Mickey já seria de domínio público em 2004 se uma lei não fosse aprovada pouco tempo atrás. Agora, só em 2024 as pessoas poderão usar o personagem sem ter os advogados da Disney batendo na porta. O prazo de 96 anos obtido pelos americanos, quando o padrão mundial é de 50 anos, foi motivo de críticas. O primeiro desenho animado com o personagem, S teamboat Willie, era uma paródia direta do filme de Keaton (famoso cômico de 1928), S teamboat B ill . Na primeira página do script até existiam os dizeres: “Orquestra começa a tocar versos de Steamboat Bill”. Lawrence Lessig,famoso advogado que ten

�� tou sem sucesso se opor à lei dos 95 anos, disse: “Tente fazer um desenho animado baseado em algum filme da Disney e começando com uma música copiada deles”. C ultura livre , livro-manifesto de Lawrence Lessig, editado no Brasil pela Trama Universitário/Editora Francis e publicado originalmente em 2004, tem como premissa “como a grande mídia usa a tecnologia e a lei para bloquear a cultura e controlar a criatividade”. Lessig alega, e prova, que criatividade não depende de indústria para defender o conceito de generosidade intelectual que deu origem ao Creative Commons. Cultura Livre está disponível para download e é licenciado através da Creative Commons. Importa muito esclarecer que Creative Commons é uma licença que dá aos autores o direito de escolher como proteger a sua obra. Contrapõe-se ao “todos os direitos reservados” e ao “alguns direitos reservados”. É o modelo do “um para poucos” do século passado contra o “todos para todos” que, especialmente na internet, ganha corpo.


Lessig crê e defende o poder transformador da internet por fornecer acesso livre ao conhecimento. E o prova através de uma análise detalhada e cuidadosa. Confronta a mídia de massa estadunidense, critica o controle da criatividade artística e o engessamento da produção cultural através da ampliação do alcance do copyright. Dedicado ao projeto desde 1997, Lessig mostra que o interesse das corporações da indústria cultural é dissociado dos processos criativos e do comportamento da sociedade da informação, sedenta por mais e melhores musicas, arte, conhecimento, conceitos. Desmonta as estruturas de proteção amparadas pela lei movida a interesses lobistas. Só a Disney desembolsou U$ 800 mil para sustentar a bancada do copyright no congresso americano nas eleições de 98. A derrota de Lawrence Lessig acendeu o sinal amarelo para o desenvolvimento da cultura. Os argumentos e dados levantados por Lessig são surpreendentes. Sobre pirataria, ele remonta as práticas abusivas dos americanos para obras literárias estrangeiras. Só os autores americanos tinham direitos autorais nos primeiros 100 anos

da república estadunidense. “Nascemos de certa forma uma nação pirata”, assume. Contunde mesmo as leis dominantes do país dos eleitores de Bush quando inicia o capítulo quatro: “Piratas”. “Se pirataria significa usar a propriedade intelectual de outros sem sua permissão, a história da indústria de conteúdo é a história da pirataria”. Conforme revelado no livro, a lei de copyright, promulgada nos EUA em 1790, estabelecia em 14 anos o tempo de propriedade autoral de uma obra. Ao final deste período, estando vivo, o autor poderia estender o seu direito de propriedade por mais 14 anos. Se não, a obra viraria de domínio público. De lá pra cá, a lei só foi distendida, não cumprida. Por fim, Lessig propõe ações. Procura um termo bom entre regulação e a necessária produção cultural —

sempre vivida com intensidade iluminista nos EUA, porém sufocada pelo radicalismo fundamentalista imposto pela sociedade capitalista: a ideologia do lucro. Ele sugere reconstruir liberdades previamente presumidas, reconstruir a cultura livre, vigências de copyrights mais curtas e a liberação da música. “A lei deveria regular certas áreas da cultura, mas deveria regular a cultura apenas onde o controle vier para o bem. Porém os advogados raramente testam seu poder, ou o poder que promovem, com esta simples pergunta pragmática:”isso é para o bem?”. Quando desafiado a ampliar o alcance da lei, o advogado respon-

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Ricardo Oliveira é advogado formado na Universidade de São Paulo (USP) e especialista em direitos autorais e propriedade intelectual.

de “por que não?”. Deveríamos perguntar “por quê?”. Me mostre por que sua regulamentação da cultura é necessária. Me mostre como ela promoverá o bem. E, até que consiga demonstrar as duas coisas, mantenha seus advogados bem longe”. Walt Disney buscou no domínio público inspiração, que resultou numa série de filmes animados que até hoje são bastante conhecidos de todos.


Alice no País das Maravilhas (1951) é baseado no livro do escritor inglês Lewis Carrol, publicado pela primeira vez em 1865

Cinderela (1950) é um dos contos de fadas mais antigos de todos os tempos. A animação da Disney foi baseada na história escrita pelo francês Charles Perrault, publicado em 1697

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Peter Pan (1953) foi inspirado na peça infantil Peter and Wendy, que originou um livro homônimo publicado em 1911,ambos de autoria do também inglês J. M. Barrie

Pinocchio (1940) é baseado em um personagem do escritor italiano Carlo Collodi, que apareceu pela primeira vez em Storia di un burattino, livro publicado em 1883

A Bela Adormecida (1959) é outro conto de fadas conhecido, também publicado por Charles Perrault em 1697 no livro Contos da Mãe Gansa

Fantasia (1940) mistura trechos de temas musicais eruditos com poemas clássicos, como de Goethe, em O Aprendiz de Feiticeiro, ou de Hoffman, em O Quebra-Nozes, musicado por Tchaikovsky em um conhecido balé

A Branca de Neve e os sete anões (1937) se inspirou num dos inúmeros contos infantis dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, os famosos Irmãos Grimm


Ainda há mais diversos casos, inclusive nos desenhos mais recentes. A Pequena Sereia (1989) é uma adaptação de um conto do século XIX escrito pelo dinamarquês Hans Christian Andersen; Alladin (1992) é tirado do ramo sírio da monumental obra A s M il e U ma N oites , enquanto P ocahontas (1995) é baseado numa personagem conhecida da história dos Estados Unidos, assim como O C orcunda de N otre D ame (1996) é um personagem criado pelo francês Victor Hugo em N otre D ame de P aris , publicado em 1831, e Mulan (1998) se alimenta de um poema chinês do século V, chamado A balada de Mulan, e por aí vai. O uso de personagens do domínio público por parte da Disney é até um caso exemplar de como se buscar inspiração no passado. Walt Disney lançou a carreira do seu personagem mais popular fazendo o que hoje os advogados da sua empresa não permitem que seja feito com suas criações: reciclando material original produzido por outros autores. Se em todas essas histórias os estúdios Disney tivessem que pagar os copyrights pela reprodução e adaptação, é certo que as animações nem existiriam.

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FORÇA VERDE texto Mariana Bergo



FORÇA VERDE Zé Ramalho

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Ainda há pouco era apenas uma estrela Uma imensa tocha antes do Mergulho Agora vem a tona Sua ira é intensa E voce deseja saber Se há algo que possa acalmá-lo outra vez Os pássaros A lua cheia e todo o céu leitoso E todas as formas da natureza Mostravam a grandeza do mundo em lágrimas Condenado como Ulisses E como Priamos... Morto com seus companheiros Morto com seus companheiros Morto... apareceu No momento em que a lua ia se elevando E todo pranto forma a imagem do homem


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982 foi um ano complicado para Zé Ramalho. Pouco depois de lançar seu LP F orça Verde, o cantor e compositor foi alvo da revista Veja por conta da música que dá nome ao disco. Com uma acusação feroz, a revista alegou que Força Verde era, na verdade, plágio de um poema do dramaturgo e poeta irlandês William Butler Yeats. Diz o poema:

�₀� Mariana Bergo é estudante de Design na Universidade de Brasília e cinéfila de plantão.

Ainda há pouco era apenas uma estrela cadente Parecia uma imensa tocha antes do mergulho A letra usada por Zé Ramalho só exclui a palavra “cadente”, mantendo a mesma estrutura da poesia. Como se isso não bastasse, fãs das histórias em quadrinhos do Incrível Hulk, publicadas pela Marvel, acusaram e entraram com um processo contra o compositor, já que a mesma letra foi utilizada como introdução por Roy Thomas à história de Hulk e publicada no Brasil dez anos antes de Força Verde. Curiosamente, a própria Marvel não tomou nenhuma atitude contra Zé Ramalho, uma vez que ela utilizara o poema sem autorização e sem creditar Yeats. Posteriormente, o cantor brasileiro admitiu ter de fato se inspirado no texto da história em quadrinhos, mas que não sabia como dar os créditos e acabou deixando por isso mesmo. Ainda assim, Zé Ramalho passou um tempo ausente dos holofotes graças às acusações, voltando ao sucesso apenas em 1990. Em 2009, O Diário de Curitiba o entrevistou e questionou a respeito da polêmica de Força Verde.

Página da HQ O incrível Hulk com o poema de W.B. Yeats


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Zé Ramalho O plágio é um fenômeno que acontece entre artistas e a mídia. Artistas como George Harrison, que teve um super sucesso mundial com My Sweet Lord, foi acusado de plágio e teve de responder pessoalmente nos tribunais, perdendo a causa! Ou Roberto e Erasmo, acusados também de plágio na música O Careta, também responderam na Justiça. No meu caso, nunca fui a um tribunal nem recebi acusação judicial formal. Foi puramente inveja da mídia em geral, pois eu estava em muita evidência naquela época.


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Capa do vinil Força Verde, do Zé Ramalho, lançado em 1982




C

B

A

cultura livre, pág. 92

un coup de dés, pág. 58

une correspondance à toute épreuve, pág. 44

o corcunda de notre dame, pág. 95

raillard, pág. 43

a cor dos meus sonhos: entrevistas com georges

contos da mãe gansa, pág. 94

como sobreviver a um filme de terror, pág. 50

collected papers of charles sanders peirce, pág. 26

la clef des songes, pág. 41

cinderela, pág. 94

chants de maldoror, pág. 40

the cantos, pág. 60

a branca de neve e os sete anões, pág. 94

bohemian rhapsody, pág. 35

a bela adormecida, pág. 94

batman – the dark knight, pág. 26

batman (tim burton), pág. 26

batman, pág. 26 e 35

a balada de mulan, pág. 95

à toute épreuve, pág. 43

au volant, pág. 41

aspectos linguísticos da tradução, pág. 23 e 39

l’après-midi d’un faune, pág. 39

o aprendiz de feiticeiro, pág. 94

antiode, pág. 59

alladin, pág. 95

alice no país das maravilhas, pág. 94

o alienista caçador de mutantes, pág. 50

I

H

F

E

D

investigações filosóficas, pág. 27

o nome da rosa, pág. 25

índices e símbolos em um trecho de

incrível hulk, pág. 101

graphique, pág. 41

l’image écrite ou la déraison

homem de ferro, pág. 35

força verde, pág. 98

finnegans wake, pág. 58

vivir un instante sin signos, pág. 28

fernando andacht: no podríamos

fantasia, pág. 94

fábulas de anfion, pág. 59

a escrava isaura e o vampiro, pág. 50

a escrava isaura, pág. 50

o engenheiro, pág. 58

emma, pág. 47

annotée par andré blavier, pág. 40

écrits complets: édition établie et

dom casmurro, pág. 46

distances, pág. 37

diário de curitiba, pág. 101

N

M

L

K

J

notre dame de paris, pág. 95

des rêves précédés d’exemples, pág. 41

les nécessites de la vie et les conséquences

my sweet lord, pág. 102

mulan, pág. 95

como tradução intersemiótica, pág. 23

miró, magritte: sobre a ilustração literária

miró graveur I, pág. 43

minotaure, pág. 41

as mil e uma noites, pág. 95

proposta semiótica e sistêmica, pág. 24

metaciência como guia de pesquisa: uma

memórias póstumas de brás cubas, pág. 50

memórias desmortas de brás cubas, pág. 50

marxismo e filosofia da linguagem, pág. 29

mandando bala, pág. 35

lettres à andré bosmans: 1958–1967, pág. 41

keep calm and carry on, pág. 74

o jogral e a prostituta negra, pág. 59


R

Q

P

O

razão e sensibilidade, pág. 47

o quebra-nozes, pág. 94

quase famosos, pág. 33

tradução, pág. 45

quase a mesma coisa: experiências de

psicologia da composição, pág. 59

pocahontas, pág. 95

la place au soleil, pág. 40

peter pan, pág. 94

peter and wendy, pág. 94

1874–2000, pág. 42

peinture et poésie: le dialogue par le livre

a pequena sereia, pág. 95

pecados íntimos, pág. 35

oeuvres complètes, pág. 40

orgulho e preconceito e zumbis, pág. 47

orgulho e preconceito, pág. 47

V

U

T

S

veja, pág. 101

under the hood, pág. 35

ulysses, pág. 58

semiótica, hermenêutica, pág. 28

transformação da filosofia: filosofia analítica,

tratado lógico-filosófico, pág. 27

surrealism and the book, pág. 39

storia di un burattino, pág. 94

steamboat willie, pág. 92

steamboat bill, pág. 92

star wars — episódio 3, pág. 36

soledades de gôngora, pág. 43

sin city — a cidade do pecado, pág. 37

sense and sensibility and sea monsters, pág. 48

senhora, a bruxa, pág. 50

senhora, pág. 50

mudança de hábito em peirce, pág. 26

semiótica e cognição: os conceitos de hábito e

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W watchmen, pág. 33

300, pág. 37

watchmen ­— o filme, pág. 33





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