Domésticas cotidianos na comensalidade por maria luisa jimenez jimenez

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO FACULDADE DE COMUNICAÇÃO E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA ECCO

MARIA LUISA JIMENEZ JIMENEZ

DOMÉSTICAS: COTIDIANOS NA COMENSALIDADE

CUIABÁ-MT 2016


MARIA LUISA JIMENEZ JIMENEZ

DOMÉSTICAS: COTIDIANOS NA COMENSALIDADE

Dissertação apresentada, para obtenção do título de Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea, à Universidade Federal de Mato Grosso, no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea, na Área de Concentração Estudos Interdisciplinares de Cultura, Linha de Pesquisa Comunicação e Mediações Culturais.

Orientadora: Profa. Dra. Juliana Abonizio

CUIABÁ 2016




Dedicatória

Dedico estes escritos a todas as mulheres, trabalhadoras domésticas que lutam por dignidade e direitos na nossa sociedade. Especialmente às empregadas ignoradas e esquecidas pelo corpo social, àquelas às quais nunca se dá a devida atenção, que não possuem oportunidade de expressar o que pensam e o que sentem, pois, infelizmente, ainda são invisíveis aos olhos de quem pode decidir o que deve “aparecer”. Junto a essas mulheres oprimidas, resistindo à imposição colonial do pensamento, considero justo lembrar e enaltecer a importância de pesquisadores que se dedicam a essa linha de estudos culturais, dado que preconizam saberes na desconstrução da ordem cultural hegemônica. A ideia de civilização sempre esteve associada à de “branquitude” 1 e, por isso, acentua as diferenças desmedidas que alienam os não brancos das possibilidades de sermos, nós mesmos, produtores de discursos válidos sobre quem somos. Pois, descolonizar nossas ideias tem sido uma luta travada em terreno minado, pelas potentes armas epistemológicas do ocidente dentro da lógica da dominação. Sendo assim, incluo nesta dedicatória todos os pensadores que mostraram a necessidade de se combater a visão etnocentrista e racista, que reduz a cultura não ocidental a objeto de estudos marginais e exóticos, mas nunca a vê como território de produção do conhecimento. Esta pesquisa, portanto, é dedicada, especialmente, às mulheres esquecidas e aos pesquisadores que resistem à imposição de saberes e modos de fazer coloniais, que de alguma maneira fazem prevalecer, como resistência, os saberes subalternos.

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Entendo o conceito branquitude de Ruth Frankenburg (2004, p. 312), como sendo "um lugar estrutural de onde o sujeito branco vê os outros e a si mesmo, em uma posição de poder não nomeada, vivenciada em uma geografia social de raça/cor como um lugar confortável e do qual se pode atribuir ao outro aquilo que não atribui a si mesmo”.


AGRADECIMENTOS Agradeço, “em primeiro lugar”, à mãe Natureza por sempre ser cuidadosa e oferecer a oportunidade de conhecer mais de perto a vida de mulheres tão especiais como as apresentadas neste trabalho. Agradeço do fundo do meu coração, ao meu parceiro e incentivador, pela paciência e apoio nas horas mais difíceis, pelas palavras de força, fé e esperança. Obrigado meu amado e eterno “enquanto dure”, companheiro Salomón Morales Cano Jimenez. Tenho muita gratidão pela minha família que sempre esteve ao meu lado, mesmo distante. Especialmente meu pai, in memoriam, Luis Jimenez Lupiañez, que me ensinou a ter a coragem de ser o que sou. Com muito carinho, também agradeço a professora orientadora e amiga Juliana Abonizo, cujo perfil de paciência, dedicação e confiança, fez dessa experiência algo tão construtivo e grandioso. Além disso, não poderia deixar de agradecer a todas as pessoas que estiveram próximas nesse processo, principalmente, meus alunos com ênfase em todo o ensinamento que adquiro em nossas parcerias. Agradeço a todos meus amigos, em especial aos incentivadores Angela Malta e Enio Dorado Rodrigues, que sempre me encorajaram com palavras de apoio e carinho. Sou grata, também, a todos da família Tales, Cooperativa Educacional Tales de Mileto de Chapada dos Guimarães, que me acolheram e apoiaram nessa caminhada. Agradeço ainda à Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado do Mato Grosso (FAPEMAT) pelo investimento e auxílio, essenciais nesta pesquisa. A todos os professores do Programa de Pós-graduação em Estudos de Cultura Contemporânea ECCO, especialmente, Lucia Helena Vendrúsculo Possari, Ludmila Brandão, Patricia Silva Osorio, Yuji Gushiken, Icléia Lima Gomes e Débora Cristina Tavares pelo auxílio em sugestões de leituras e aulas, que me orientaram e incentivaram a continuar. Cabe-me ainda, agradecer aos pesquisadores de consumo pela oportunidade de ter participado do VII ENEC Encontro Nacional de Estudos de Consumo, por importantes conversas e exposições que tanto me inspiraram nesta área da pesquisa alimentar. Obrigado à professora Janine Collaço por todas as dicas e incentivos, sempre muito produtivos. Agradeço pela atenção e disposição do querido amigo e secretário do Programa de Pós-graduação em Estudos Contemporâneos, Glaucos Monteiro.


Como vocês compreendem, entretanto, a resistência não é unicamente uma negação: é um processo de criação; criar e recriar, transformar a situação, participar ativamente do processo, isso é resistir. (FOUCAULT, 1999).


RESUMO

Com o objetivo de desvendar o modo como a alimentação representa um cenário de disputas simbólicas entre patroas e empregadas domésticas em Chapada dos Guimarães, recorri a entrevistas semi-estruturadas, conversas informais e observação participante com dezenas de domésticas e patroas selecionadas através de uma metodologia de conveniência embasada pelos referenciais teóricos da Sociologia do Cotidiano, da Antropologia da Alimentação e dos Estudos de Consumo. Levando em consideração as narrativas coletadas, percebi que os modos de fazer e as trocas de saberes entre empregadas e empregadoras representam e atuam nas construções sociais do gosto que se refletem nas escolhas de consumo, sempre mutantes, dessas mulheres. Apesar da assimetria da relação entre patroa e doméstica, foi possível perceber que, se por um lado, o consumo atua como marcador de fronteiras, ele também as abole, atuando como espaço de tréguas e construções de espaços de contrapoder pelas empregadas domésticas.

Palavras-Chave: Domésticas. Cotidiano. Consumo. Comensalidade. Modos de fazer. Trocas de saberes. Saberes subalternos. Contrapoder.


ABSTRACT

Aiming to unravel why food represents a dispute scenario between employers and housekeepers at Chapada dos GuimarĂŁes, I used semi-structured interviews, informal talks, and observation with dozens of housekeepers and employers selected through a convenience methodology based on theoretical references of Everyday Sociology, Food Anthropology, and Consumption Studies. Taking into account the collected stories, I noticed that the way of doing things and knowledge exchange between employers and housekeepers represent and act on social constructions of taste, which are reflected in these women's ever-changing consumption choices. In spite of the asymmetry in the employer/housekeeper relationship, it was possible to observe that, if consumption acts as a border marker, it can also erase those borders, acting as a space of truce and building countervailing power areas for the housekeepers.

Keywords: Housekeepers. Every day. Consumption. Commensality. Ways of doing things. Knowledge exchange. Subaltern knowledge. Countervailing power.


RESUMEN

Con el objetivo de desvelar el modo como la alimentación representa un escenario de disputas simbólicas entre empleadoras y trabajadoras del hogar en Chapada dos Guimarães, recurrí a entrevistas semiestructuradas, conversaciones informales y observación participante, con decenas de trabajadoras del hogar y empleadoras seleccionadas a través de una metodología de conveniencia, fundamentado por los referenciales teóricos de la Sociología de lo Cotidiano, la Antropología de la Alimentación y de los Estudios de Consumo. Llevando en consideración las narrativas colectadas, percibí que los modos de hacer y el intercambio de saberes entre las empleadoras y las trabajadoras representan y actúan en las construcciones sociales del gusto, que se reflejan en las elecciones de consumo, siempre mutantes, de esas mujeres. A pesar de la asimetría de la relación entre la empleadora y la trabajadora, fue posible percibir que, si por un lado, el consumo actúa como marcador de fronteras, el también las elimina, actuando como un espacio de treguas y construcciones de espacios de contrapoder por las trabajadoras del hogar.

Palabras Clave: Trabajadoras del hogar. Consumo. Comensalidad. Maneras de hacer. Intercambio de saberes. Saberes subalternos. Contrapoder.


SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS ........................................................................ 12

DOMÉSTICAS: DA ESCRAVIDÃO À VIDA CONTEMPORÂNEA 1. Da senzala à cozinha ....................................................................................... 21 1.1 Da senzala ao quartinho de empregada ..................................................... 28 1.2 Empregadas incomodam: manuais, blogs e discursos reacionários ........ 31 1.3 Emancipações da mulher pobre, negra e escrava ...................................... 45

DOMÉSTICAS: MULHERES EM CARNE E OSSO 2. Sociologia do cotidiano: as mulheres domésticas ........................................ 51 2.1 Domésticas: quem são elas? ......................................................................... 58 2.2 Domésticas: por elas mesmas ....................................................................... 79

DOMÉSTICAS: LUGARES, ESPAÇOS E CONSUMOS 3. Espaços e consumos ........................................................................................ 86 3.1 A casa: limpar .............................................................................................. 93 3.2 A cozinha: cozinhar ...................................................................................... 99 3.3 A mesa: sentar............................................................................................. 108 3.4 Fronteiras simbólicas ................................................................................. 114 3.5 Consumos na comensalidade ..................................................................... 117

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 136

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................ 140


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CONSIDERAÇÕES INICIAIS A suposição de que a identidade de uma pessoa transcende, em grandeza e importância, tudo o que ela possa fazer ou produzir é um elemento indispensável da dignidade humana. (...) Só os vulgares consentirão em atribuir a sua dignidade ao que fizeram; em virtude dessa condescendência serão «escravos e prisioneiros» das suas próprias faculdades e descobrirão, caso lhes reste algo mais que mera vaidade estulta, que ser escravo e prisioneiro de si mesmo é tão ou mais amargo e humilhante que ser escravo de outrem. (ARENDT, 2007, p. 163).

Pesquisar empregadas domésticas, hoje, fez-me rever minhas relações com essas mulheres trabalhadoras, tanto na infância como na vida adulta. Surgiram, então, inúmeras recordações de tudo que vi e vivi em relação a elas. Quando criança, minha mãe sempre tinha empregada em casa e, geralmente, morava conosco em um quartinho do lado de fora da casa, na lavanderia, junto a um banheiro que chamávamos banheirinho da empregada. Como qualquer criança, tive muita curiosidade sobre quem era aquela mulher, de onde vinha, se tinha filhos e família. Minha mãe não gostava de me ver conversando com as domésticas e sempre chamava minha atenção dizendo: “Não quero que fique enfiada no quartinho da empregada”. Lembro, também, que nenhuma das empregadas se sentava à mesa com nossa família na hora do almoço ou jantar. Comiam depois, numa mesinha separada da nossa, na área de serviço. Minha mãe, atualmente com 80 anos de vida, ainda mantém uma doméstica trabalhando em sua casa há cerca de 20 anos. Josi, a trabalhadora em questão, hoje não tem “quartinho e banheirinho” de empregada. Além disso, ela se senta à mesa com todos da família para as refeições e come a comida preparada por minha mãe. Conversa com todas as filhas da patroa, é conselheira de minha mãe, participa das festas e comemorações na casa da empregadora e sua casa é frequentada pela família da patroa e vice-versa. Refletindo sobre essa experiência pessoal com a presença do outro na escrita do eu, e a leitura que faço a partir dessa vivência na relação minha mãe - patroa e Josi - a empregada, noto que tal história é muito similar à que será apresentada nas próximas linhas: as relações pessoais e laborais transformam-se por meio de conflitos enfrentados pelos envolvidos, como consequência de processos de criação, que se apresentam como resistências, e que modificam todas as relações de subalternidade. Agora, como pesquisadora cultural em Chapada dos Guimarães, Mato Grosso, tenho a oportunidade de debruçar minha atenção, novamente, sobre essas trabalhadoras. Contudo, sob uma perspectiva diferente.


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Os estudos aqui apresentados fazem parte de uma pesquisa maior denominada: “O que se põe à mesa: hábitos alimentares e fronteiras sociais em Cuiabá-MT”, desenvolvido pelo grupo de pesquisa - BACO – Banalidades Cotidianas, coordenado pela Professora Doutora Juliana Abonizio.2 Chapada dos Guimarães, onde moro, é considerada uma cidade turística por abrigar inúmeros pontos geográficos atrativos, como cachoeiras e trilhas ecológicas. Segundo o IBGE (2014), a área territorial é de 6.256,994 km², conta com 18.548 habitantes, desses 11.000 na zona urbana e 7.548 na zona rural. O índice de desenvolvimento humano (IDH) é de 0,688, o valor do rendimento mediano mensal per capita na zona rural é de R$305,00 e, da zona urbana, R$500,00. Pessoas ocupadas no município somam 1.983, com índice de pobreza de 40,50%, limite superior ao da incidência de pobreza estabelecido pelo governo federal. É uma cidade que recebe muitos turistas e, por isso, há grande circulação de dinheiro. Mas, em contraposição a essa característica, também enfrenta inúmeros problemas sociais como a pobreza, educação precária, saúde sem estrutura, abuso de álcool e de drogas ilícitas, prostituição e trabalho escravo. A cidade foi fundada e tem sido construída por indígenas e negros e traz consigo um rastro de desigualdades, tanto na área urbana quanto na rural. A zona rural da cidade é a área mais extensa do município, onde se concentra a maior população carente, com grande índice de miséria. É nessa região onde estão concentrados os grandes fazendeiros, tanto pecuaristas quanto produtores de soja. Pouco se sabe dos indígenas que viviam nas aldeias, dos quais se especula que ou foram exterminados ou fugiram da região. Já no que diz respeito aos negros, é possível perceber uma quantidade significativa deles, especialmente entre a população mais carente. Herdeiros da escravidão, seus antepassados vieram de diversas regiões da África, sendo a maioria moradores da periferia ou da zona rural de Chapada dos Guimarães, ou ainda em comunidades quilombolas. Esses indivíduos, os mais pobres, que prestam serviços domésticos nas casas da classe mais abastada da cidade. São eles: cozinheiros, jardineiros, piscineiros, caseiros, vigias, entre os quais figuram as empregadas domésticas, que são os sujeitos desta pesquisa. São poucos os estudos que discutem a cidade sob esse ponto de vista, dos mais pobres, porém encontrei um artigo de Symanky (2010), “Cerâmicas, identidades escravas e crioulização nos engenhos de Chapada dos Guimarães (MT)”, que cita uma tese de doutorado de Seckinger

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Disponível em: dgp.cnpq.br/dgp/espelholinha/3814081629523121338086.


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(1970), “Politics in Mato Grosso: 1821-1825”, na qual pesquisa os quilombolas nessa região. Essas pesquisas estudam as representações das identidades quilombolas em Chapada dos Guimarães. Vejamos uma análise na década de 70 sobre a região: Uma rígida estratificação social era mantida nesses estabelecimentos. Muitos dos senhores de engenho residiam nessas propriedades somente durante a estação seca, entre abril e novembro, supervisionando a colheita da cana e a preparação do açúcar e seus derivados, retornando com suas famílias, no final desse período, para Cuiabá, onde podiam satisfazer suas necessidades sociais e cuidar de seus interesses políticos e econômicos (SECKINGER, 1970, p. 69 apud SYMANSKY, 2010, p. 295).

O fragmento citado é significativo, uma vez que ainda predominam no município pessoas detentoras de maior poder aquisitivo, condição esta que lhes permite manter casas, fazendas e chácaras em Chapada, mas que se consideram moradores oficiais da capital, Cuiabá, dando continuidade à história. Em outros termos, mantêm seus trabalhadores domésticos cuidando de seus bens em Chapada dos Guimarães. Ter Chapada dos Guimarães como lugar de passeio é apontado, em diversas entrevistas realizadas com as domésticas, como opção de lazer de seus patrões. O papel principal desempenhado por elas é cuidar das casas de veraneio de seus patrões, que vêm à cidade, na maioria das vezes, para descansar, se divertir, passear. Essa continuidade histórica leva-me a apontar a importância desta pesquisa, visto que proponho compreender como essa recorrência acontece e persiste até os dias atuais, fazendo ressurgir questões como: quem são as mulheres que continuam a cuidar das casas dos patrões? Diferentemente do que tem sido apresentado sobre essas mulheres no discurso majoritário midiático e acadêmico, apresento a moção desta discussão, a partir do ponto de vista das domésticas de Chapada dos Guimarães. Sendo elas filhas, netas e bisnetas de escravos, que nunca disseram o que pensam ou o que sabem sobre esse vínculo de trabalho, povoado de contradições, reconhecimentos, amizades, desencontros, afetividades, dor e proximidades. A proposta é proporcionar reflexões sobre aspectos desse convívio de séculos, com histórico de disputas, subalternidades e poder na construção nacional que reverbera nos dias atuais. Dessa maneira, se percebe que existe uma relação tensa e nada simples. Além disso, o estudo visa a demonstrar que o tratamento dado pelo imaginário social dessas relações trabalhistas pode estar equivocado, já que não se dá voz nem espaço às mulheres que sobrevivem deste trabalho e que, na maioria dos casos, estão dando continuidade à história da família por gerações e gerações. Dessa maneira, a pesquisa visa a identificar práticas sociais e culturais como forma de comunicação; o consumo alimentar e sua relação com as protagonistas dessa pesquisa


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sustentam tais análises, posto que, nada mais são que práticas comunicacionais. De modo que, esta aprendizagem é pertinente aos estudos da cultura, visto que procura entender a travessia dessa comunicação para os saberes e modos de fazer. O que se pretende, então, é perceber o que o consumo comunica para buscar apreender a cultura contemporânea por meio do cotidiano dessas mulheres. Feyerabend, filósofo da ciência, que conheci na época de graduação, já alertara sobre o interesse e a valorização do entendimento da vida privada como ela é, e a importância de perceber a subjetividade encontrada nestas analises com os indivíduos “comuns” na sociedade. (FEYERABEN, 1992). Portanto, O cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha), nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão no presente. [...] “O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior”. [...] “É uma história a caminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada”. [...] Talvez não seja inútil sublinhar a importância do domínio desta história “irracional”, ou desta „não história‟, como o diz ainda A. Dupont. “O que interessa ao historiador do cotidiano é o Invisível [...]” (CERTEAU, 1994, p. 36).

Certeau (1994), em “A invenção do Cotidiano”, examina as maneiras que as pessoas individualizam a “cultura de massa”, alterando as coisas desde os objetos utilitários até rituais, leis, linguagem e a forma de se apropriar disso. O foco do autor citado nos estudos culturais é o consumidor e não o produto ou o produtor. Ele denuncia a falta de análise nos estudos sociais em examinar como as pessoas se reapropriam das coisas em situações cotidianas. Além disso, enfatiza a cultura comum e cotidiana enquanto apropriação ou reapropriação, e o consumo ou recepção é considerado como uma maneira de praticar. Existe uma necessidade de elaborar trabalhos que analisem essa trajetória dos consumos, uma linha de pesquisa que busque entender essas práticas, cuja intenção, segundo explica ele, é: [...] de esboçar uma teoria das práticas cotidianas para extrair de seu ruído as maneiras de fazer, que majoritárias na vida social, não aparecem muitas vezes senão a título de resistências ou de inércias em relação ao desenvolvimento da produção sócio cultural. (CERTEAU, 2008, p.16-17).

Entendo o olhar no cotidiano preocupado em como o agente, o protagonista se vê e pensa da situação em que vive, como ele se contextualiza, pois “mais importante que o mundo em si mesmo é a forma como ele é dito e interpretado, ou seja, o mundo pensado e dito, o mundo relatado, é o mundo por excelência.” (PAIS, 2002, p. 70). Em muitos trabalhos sobre a temática, nota-se a desigualdade nas relações entre as domésticas e patroas, porém o consumo alimentar não aparece abordado em toda sua potencialidade.


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É sabido que são relações conflitivas, mas não se sabe como elas aparecem no cenário da alimentação e de tudo que está relacionado ao comer, e como essas mulheres se entendem e se percebem nessa ação e acabam se relacionando, já que existe no alimentar-se uma ligação muito mais poderosa vinculada a “fatores espirituais em exigência tradicional, que aos próprios imperativos fisiológicos." (CASCUDO, 1983, p.28). As pesquisas que estudam as relações entre empregada e empregadora levam a acreditar que, apesar das relações de poder evidentemente desiguais entre esta e aquela, é a ambiguidade afetiva da relação que exige mais análise. É na troca afetiva entre as que podem pagar pela ajuda doméstica e as mulheres pobres que oferecem seus serviços que as relações de classe são praticadas e reproduzidas. (GOLDSTEIN, 2000). Sendo assim, para entender as análises nessa pesquisa sobre o consumo alimentar, é necessário compreender que esse consumo é assimilado como um todo, ou seja, o consumo aqui percebido é de tudo que está ligado à ação de se alimentar, tanto no preparo, quanto no comer. Para apresentar o consumo alimentar dessas mulheres em relação aos objetos e ações que permeiam esse processo, procurei um conceito que abrangesse todo esse universo que existe na alimentação; optei por escolher, portanto, o termo comensalidade. A proposta do uso da palavra comensalidade e todo o significado desse conceito vem do esforço de se encontrar um termo que abarcasse para além do comer. A intenção era encontrar uma palavra que traduzisse tudo que está ligado a essa ação, tanto simbólica quanto materialmente falando. Englobando, então, o comprar, o preparar, o arrumar, o escolher, o enfeitar e o inventar. O termo comensalidade foi escolhido levando em consideração que: Comensalidade significa comer e beber juntos ao redor da mesma mesa. Esta é uma das referências mais ancestrais da familiaridade humana, pois aí se fazem e se refazem continuamente as relações que sustentam a família. A comensalidade é tão central que está ligada à própria essência do ser humano enquanto humano. Há sete milhões de anos teria começado a separação lenta e progressiva entre os símios superiores e os humanos, a partir de um ancestral comum. A especificidade do ser humano surgiu de forma misteriosa e de difícil reconstituição histórica. Entretanto, etnobiólogos e arqueólogos nos acenam para um fato singular: quando nossos antepassados antropóides saíam a recoletar frutos, sementes, caças e peixes não comiam individualmente o que conseguiam reunir. Tomavam os alimentos e os levavam ao grupo. E aí praticavam a comensalidade: distribuíam os alimentos entre si e comiam-nos grupal e comunitariamente. (BOFF, 2008).

Assim, é possível argumentar que a cultura alimentar é constituída por hábitos alimentares, levando em consideração Certeau, Giardi e Mayol (1997), quando afirmaram que os hábitos alimentares constituem um domínio, no qual a tradição e a inovação têm a mesma


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importância, em que o presente e o passado se entrelaçam satisfazendo as necessidades do momento. Em outros termos, a cultura alimentar não diz respeito apenas aquilo que tem raízes históricas, mas, principalmente, “aos nossos hábitos cotidianos, que são compostos pelo que é tradicional e pelo que se constitui como novos hábitos.” (BRAGA, 2004, p. 5). No âmbito da cultura material, a alimentação destaca-se como o aspecto mais importante das estruturas da vida cotidiana. Cada indivíduo passa, em média, quinze anos da sua vida comendo, e senta-se à mesa umas cem mil vezes. (PASINI, 1997, p. 15).

A comensalidade permeia “todas as relações sociais humanas, bem como as diferentes classes de uma mesma sociedade, apresentando sempre uma dimensão cultural.” (DANIEL; CRAVO, 2005, p.61). Sendo assim, pode-se compreender que “as práticas alimentares revelam a cultura em que cada um está inserido, já que comidas estão associadas a grupos em particular.” (MINTZ, 2001, p. 36). Quando se discute a alimentação em uma dimensão simbólica, se aponta para o que a comida comunica: o que um grupo escolhe para comer e acompanhar esses momentos diz sobre ele mesmo, a época, o grupo. Sendo que, “ [...] toda substância nutritiva é alimento, mas nem todo alimento é comida.” (DAMATTA, 1986, p. 20). Entender que há diferença entre comida e alimento é importante porque é neste ponto que o aspecto cultural da alimentação vem à tona. Quando se concebe que existe a transformação do alimento em comida, percebemos também o aspecto cultural da alimentação. Alimento é algo universal e geral. Algo que diz respeito a todos os seres humanos: amigos ou inimigos, gente de perto e de longe, da rua ou de casa, do céu e da terra. Mas a comida é algo que define um domínio e põe as coisas em foco. Assim, a comida é correspondente ao famoso e antigo hábito de comer, expressão equivalente a refeição, como de resto é a palavra comida. Por outro lado, comida se refere a algo costumeiro e sadio, alguma coisa que ajuda a estabelecer uma identidade, definindo, por isso mesmo, um grupo, classe ou pessoa. (DAMATTA, 1986, p. 22).

As diferentes classes que subjazem a relação entre patroa e empregada são manifestas na comensalidade e compreender isso é um dos objetivos deste trabalho. Nas camadas mais baixas, onde a refeição está essencialmente centrada na materialidade da comida, não se formam elementos reguladores da gesticulação. Nas mais altas, ao contrário, nas quais o simples ato material de comer é dominado pelo prazer de estar junto até a sua culminação pelo menos, é o que se diz de estar em "sociedade", surge um código de regras, que vai desde como segurar faca e garfo, até os temas convenientes de se falar à mesa, para regular o comportamento dessas camadas. Prestando-se atenção nos quadros, a imagem de um jantar em ambientes refinados aparece como algo totalmente esquematizado, regulando os movimentos dos indivíduos, em comparação com o jantar em uma casa de campônios ou num evento operário. (SIMMEL, 2004, p. 3).


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É interessante observar o comportamento da empregada no trabalho, como acontece o fazer, preparar, limpar, cuidar no ambiente do outro, na casa da patroa. Para depois captar como esses modos de fazer se traduzem na própria casa, com a sua família. A sociedade complexa que tenho em mente [...] é uma sociedade na qual a divisão do trabalho e a distribuição de riqueza delineiam categorias sociais distinguíveis como continuidade histórica, sejam classes sociais, estratos, castas. [...] Por outro lado, a noção de complexidade traz também a noção de heterogeneidade cultural que deve ser entendida como coexistência, harmônica ou não, de uma pluralidade de tradições cujas bases podem ser ocupacionais, étnicas, religiosas. [...] problema, mais uma vez, é verificar o peso relativo dessa experiência em confronto com outras como a identidade étnica, a origem regional, a crença e ideologia política. Uma questão interessante em antropologia é, justamente, a procura de localizar experiências suficientemente significativas para criar fronteiras simbólicas. (VELHO, 1987, p.16).

Seguindo esse caminho, a incorporação do alimento para cada uma das mulheres aqui estudadas pode significar fronteiras simbólicas entre os dois universos quando se esbarra no mesmo espaço, mas também podem-se perceber convergências entre suas “culturas” e modos de fazer os alimentos. Já que: A estrutura da jornada alimentar (número de tomadas alimentares, formas, horários, contextos sociais), a definição da refeição, sua organização estrutural, as modalidades de consumo (comer com a mão, com palitos, com faca e garfo...), a localização das tomadas alimentares, as regras de colocação dos comensais [...] variam de uma cultura para outra e no interior de uma mesma cultura segundo os grupos sociais. (POULAIN, 2006, p. 256).

Entendo que essas mulheres transformam com inteligência aquilo que consomem e trocam seus saberes, que cada uma acrescenta algo ao universo da outra: “As mulheres manejam utensílios e ingredientes, colocando para funcionar uma „inteligência‟ sutil, cambiante e de descobertas iminentes […] enfim, uma “inteligência bem comum.” (GIARD, 1996, p.220). A alimentação é um fato da cultura material, da infraestrutura da sociedade; um fato da troca e do comércio, da história econômica e social, ou seja, parte da estrutura produtiva da sociedade. Mas, também, é um fato ideológico, das representações da sociedade, religiosas, artísticas e morais, um objeto histórico complexo, para o qual, a abordagem científica deve ser multifacetada. (CARNEIRO, 2003, p. 166).

Segundo Daniel e Cravo (2005, p.57) "a seleção [...] e a proibição de certos alimentos existem em todos os grupos sociais e são norteados por regras sociais diversas, carregadas de significações". Algumas dessas significações são símbolos; como vimos, os alimentos simbolizam costumes, culturas, estados emocionais, relações sociais e certamente muitas outras coisas.


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Além dos alimentos terem significações individuais, Daniel e Cravo (2005, p. 57) apontam que "[...] o modo de preparar e servir certos alimentos exprime identidades sociais, confirmando assim o caráter simbólico da comida”. O ser humano "[...] depende de crenças para construir sua identidade pessoal, familiar e cultural”. E algumas dessas crenças são refletidas nas relações individuais e sociais com a comida. Portanto, “[...] a comensalidade permeia todas as relações sociais bem como nas diferentes classes sociais de uma mesma sociedade, apresentando sempre uma dimensão simbólica.” (IBIDEM, 2005, p.61). Alicerçado nessas ideias, o trabalho de campo se fez a partir de contatos iniciais com alunas do EJA no Ensino Público na periferia de Chapada dos Guimarães. Em um primeiro momento, verifiquei um clima de desconfiança por parte das entrevistadas, porém com o tempo, criou-se um vínculo de confiança entre pesquisadora e pesquisadas. A priori, a pesquisa não foi realizada por meio de perguntas e respostas, pois não foi permitido que se ligasse o gravador de voz, por isso, houve uma adaptação aos sinais das interlocutoras, criando vínculos e diálogos constantes e profundos, não só tratando a temática proposta, mas sobretudo questões do próprio viver. Nesse primeiro momento da pesquisa aprendi que: A conversa é a causa infinitesimal, porém contínua e universalmente atuante, de todas as formações e transformações sociais, não apenas linguísticas, mas religiosas, políticas, econômicas, estéticas e morais; uma elaboração de certo modo emaranhada, cuja importância tem sido profundamente ignorada. (LAZZARATO, 2006, p. 162 apud TARDE, 1903, p.195).

Um diálogo sincero e atencioso sustentou o trabalho de campo que durou um ano e meio. Nesse período conheci e conversei com 12 domésticas e 7 patroas. Estive na casa da maioria delas. Conheci suas famílias e encontrei-as nas ruas, mercados, feiras, salões de beleza, escolas, bancos, praças. Com o convívio, essas mulheres demonstraram confiar neste trabalho e começaram a falar sem medo de sua realidade. Na verdade, o que compreendi dessa relação é que tais mulheres nunca foram ouvidas e que todo ser humano tem necessidade de se fazer ouvir, de dizer o que pensa e o que sente. Especialmente quando quem ouve deixa claro que está interessado no que está ouvindo. Acredito que, no decorrer da pesquisa, tais mulheres fizeram narrativas importantes para se entender a sociedade. É relevante ressaltar que as protagonistas sabem que suas vozes foram invariavelmente caladas durante toda a história de seus antepassados. É neste sentido que proponho a apresentação da doméstica como protagonista desta pesquisa, localizada na cozinha, apresentando seus saberes e modos de fazer através de sua narrativa.


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Para tanto, utilizei a metodologia da Sociologia do Cotidiano e realizei observação participativa com mulheres que se identificaram como empregadas domésticas e patroas, ora em grupo, ora individualmente, que apresentarei a seguir. Sendo assim, o primeiro capítulo trata sobre o que representa a escravidão em nosso país para o trabalho doméstico e a relação que o constitui; que tipo de relação é edificada entre patroa e empregada e qual é a construção social do lugar da doméstica nessa contextualização. Ainda traz uma exposição de estudos realizados sobre as domésticas no Brasil, apresentando análises de como essa relação é apresentada através de manuais da década de 60/70 e os blogs de hoje em dia, “ensinando” como lidar com essas trabalhadoras para que a patroa alcance uma relação satisfatória com a empregada doméstica. Para encerrar o capítulo, foi apresentada a situação dessa classe trabalhadora sob a vertente atual, englobando resistências, lutas e conquistas. Compreendido o percurso da mulher e do trabalho doméstico desde o tempo de escravidão aos dias atuais, parto para o segundo capítulo, que relata como aconteceu o processo de investigação em campo, a metodologia escolhida como suporte e quais foram às bases teóricas eleitas. É tratado, ainda, como essas mulheres chegaram até mim e eu a elas; e delimito, então, como aconteceram às interpretações dos discursos e como as domésticas, por elas mesmas, se apresentaram. Toda essa discussão leva a considerações sobre a interação entre pesquisador e pesquisado, e consequentemente, a toda subjetividade que essa relação representa nesses estudos. No terceiro capítulo há uma reflexão sobre lugares que aparecem no cotidiano das pesquisadas, especialmente espaços e consumos que contextualizam o convívio da doméstica com a patroa; a casa como espaço de intimidade e a empregada como intrusa na propriedade privada, tensões através de valores sociais distintos; a cozinha, o espaço ocupado pelas mulheres, considerado historicamente como lugar subalterno, contudo lugar percebido como local dos modos de fazer, de criatividades, resistências e tréguas na relação; a mesa e a diferença na concepção deste lugar e, portanto, o incômodo e as situações desconfortáveis que aparecem quando existe a ação de sentar-se junto aos patrões e vice versa; levando então à discussões sobre as fronteiras simbólicas, que despontam entre os espaços, lugares e ações. Os aspectos citados no capítulo produzem desigualdades e revelam, de diferentes formas saberes, ações e simbologias compreendidos por configurações distintas entre patroa e doméstica, criando ideias incompatíveis entre os sujeitos, de onde, portanto, surgem inúmeros conflitos, levando a relação a sofrer constantes transformações. Para terminar o capítulo,


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levanto a discussão sobre o consumo alimentar mediado na relação patroa e empregada, as diferenças entre elas e o que o consumo comunica. Apresentadas essas discussões, nas considerações finais procuro realizar algumas ponderações tendo como base meu aprendizado durante esses estudos epistemológicos e no campo, as construções de saberes, práticas e de mundo que este trabalho proporcionou. Posso adiantar que ainda há muito para se pensar sobre essa temática, saberes e práticas de um ponto de vista da pesquisa do consumo, alimentação, subalternidade e do contemporâneo.

DOMÉSTICAS: DA ESCRAVIDÃO À VIDA CONTEMPORÂNEA

1. Da senzala à cozinha Havia uma doçura nas relações entre senhores com escravos domésticos, onde a casa-grande fazia subir da senzala para o serviço mais íntimo e delicado dos senhores, vários indivíduos como amas de criar, mucamas [...]. (FREIRE, 2006, p.146).

Para levantar uma discussão sobre as relações cotidianas entre patroas e empregadas foi preciso, primeiramente, entender como essa relação se constrói ao longo da história brasileira, do ponto de vista do trabalho doméstico feminino. Reflito o quanto esse vínculo tem sido perene na vida social burguesa de nosso país. A empregada doméstica existe desde que o trabalho escravo veio para o país e a ideia de moradia surge na organização social do novo mundo, designando mulheres negras, índias e pobres para limpar e cuidar das casas dos mais abastados em nossa sociedade. Essas constatações acabam por me levar a questionamentos de como se davam e ainda se dão as relações entre quem limpa e quem paga? Quais conflitos ainda aparecem? Existe afeto? Como ocorrem as trocas de saberes? Sendo essa relação hierárquica, há momentos em que a hierarquia se inverte ou momentos nos quais deixa de existir? Para compreender tais questões proponho uma análise a partir da comensalidade entre a trabalhadora e a contratante, enfatizando, especialmente, a doméstica. Será por intermédio da fala da doméstica que apresentarei minhas considerações. A vida social deste convívio entre patroa e empregada terá como foco o limite do espaço doméstico, a fim de se entender como essa relação se estrutura em torno de um vínculo hierárquico trabalhista que as une. Contudo, esse convívio, em inúmeros momentos, não pode ser limitado a uma relação estritamente profissional, porque faltam princípios, atribuições devem ser definidas, as fronteiras são difusas, e ainda existem confusões de direitos e deveres para a classe trabalhadora.


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Considerando o exposto, busco nesse capítulo apreender como acontece a construção no imaginário social brasileiro a fim de localizar o lugar da doméstica no corpo social do país. Para entender a vida cotidiana, Goffman (1985), utiliza-se da representação teatral e preceitos da dramaturgia, já que, grande parte do comportamento cotidiano é muito semelhante ao de atores no palco, levando em consideração que os sujeitos e grupos estão constantemente representando uns para os outros. Em torno dessa constatação, o autor esclarece, minuciosamente, em uma perspectiva sociológica a possibilidade de estudar a vida social explorando uma série de aspectos que “formam, juntos, um quadro de referência aplicável a qualquer estabelecimento social concreto, seja ele doméstico, industrial ou comercial.” (IBIDEM, 1985, p.9). Acredito que a ideia de relação social apresentada por Goffman é interessante para as análises devido a essa “encenação” da vida cotidiana, pois as estratégias utilizadas pelas mulheres a fim de superar as dificuldades do vínculo em questão acontecem mediante recursos verbais e não verbais: As duas formas de comunicação – expressões dadas e expressões emitidas – este trabalho levará em conta primordialmente a última, a de tipo mais teatral e contextual, a de natureza não-verbal e presumivelmente não intencional, quer esta comunicação seja arquitetada propositadamente, quer não. (GOFFMANN, 1985, p.14).

O que pude inferir, com base em Goffmann, é que relações de subalternidade consistem em comportamentos de status a que cada indivíduo pertence. Tanto a doméstica como a patroa necessitam seguir padrões para sustentar as distâncias sociais, com “reverente temor pela sagrada integridade atribuída ao ator.” (GOFFMAN, 1985, p. 68). Sob o mesmo ponto de vista e atenta à relação laboral dessas mulheres, deve-se levar em conta que os diferentes grupos sociais se expressam de maneiras distintas e que, comportamentos podem ser entendidos por meio de alguns atributos, principalmente pela condição social de posicionamento neste estudo: patroa e empregada. É um lugar-comum dizer-se que diferentes grupos sociais expressam de maneiras diversos atributos tais como idade, sexo, jurisdição, posição de classe e que em cada caso esses simples atributos são elaborados por meio de uma configuração cultural complexa distintiva de meios convenientes de conduta. Ser uma determinada espécie de pessoa, por conseguinte não consiste meramente em possuir os atributos necessários, mas também em manter os padrões de conduta e aparência que o grupo social do indivíduo associa a ela. O irrefletido desembaraço com que os atores desempenham estas práticas habituais conservadoras dos padrões não nega que tenha havido representação, mas apenas que os participantes tenham tido consciência dela. Uma condição, uma posição ou um lugar social não são coisas materiais que são possuídas e, em seguida, exibidas; são um modelo de conduta apropriada, coerente, adequada e bem articulada. Representado


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com facilidade ou falta de jeito, com consciência ou não, com malícia ou boa-fé, nem por isso deixa de ser algo que deva ser encenado e retratado e que precise ser realizado. (GOFFMAN, 1985, p.74).

As ações sociais podem ser performáticas, porém não há como negar uma carga histórica na relação analisada, posto que o emprego doméstico é o resultado de um conjunto de fatores desenvolvidos no decorrer da história brasileira. (HAUSER, 1959, p. 19-39). Com a chamada divisão sexual do trabalho, presente desde o surgimento das primeiras sociedades e seguindo tal desagregação, a mulher sempre esteve predeterminada ao trabalho doméstico e o homem ao trabalho externo. Isto significa que o trabalho doméstico está atrelado ao trabalho feminino, pois desde o período paleolítico cabiam às mulheres os trabalhos internos, ou seja, cuidar dos filhos, com a descoberta do fogo preparar a comida, a colheita dos vegetais. (AZEVEDO, 200, p. 26).

Quando se faz um apanhado sobre o trabalho escravo no ocidente, é visto que da mesma forma que o escravo ateniense de muitos séculos antes, o servo, no Brasil, era tratado como “ser predestinado a serviços subalternos, considerados inadequados a um cidadão livre, trabalhos esses, como cuidar do gado, lavoura, construções e serviços domésticos.” (FERREIRA, 2015). Na escravidão grega antiga o escravo podia denunciar seu senhor em caso de agressão. Já no Brasil eram “[...] permitidas agressões físicas, tratamento visto como direito do Senhor. [...] Essa condição traduz a inexistência do respeito para com o escravo e para com seus afazeres e responsabilidades.” (IBIDEM, 2015). Talvez por esse motivo o Brasil tenha tido tantas rebeliões e lutas pela abolição da escravatura. Porém, foi só após a Guerra do Paraguai (1865-1870) que aumentaram significativamente os movimentos populares pela libertação dos escravos, além das pressões internacionais para que a Abolição ocorresse no país. Esses movimentos resultaram em conquistas, por exemplo, na Lei do Ventre Livre (1871), a partir da qual todo filho nascido de mãe escrava poderia ser livre, desde que o escravo conseguisse dinheiro para comprar sua liberdade com a carta de alforria. Além disso, veio a Lei dos Sexagenários (1885) que declarou livres escravos acima de 65 anos. Somente em 1888, após “manifestações políticas e populares” a favor da abolição é que a Lei Áurea foi promulgada. (IBIDEM, 2015).

Não obstante, a abolição da escravatura em 1888 não garantiu, efetivamente, liberdade ao exescravo. Em uma sociedade sustentada pelo racismo, naquele momento não havia emprego para um negro que acabara de deixar o cativeiro. Sem opção, ele necessitava ficar na casa de


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seu antigo senhor. Desprovido de bens e residência, trocava seu trabalho por moradia e alimento, em condições não muito diferentes de antes de sua libertação. (FREYRE, 2006). Surgiu, assim, a figura do patrão benevolente: o ex-senhor que, não deixando seu ex-escravo passar fome, “acolhia-o”, dando comida e moradia em troca do serviço em sua casa e lavoura. O ideal de assistência do patrão doméstico em relação ao empregado doméstico e rural tem aí sua origem. (FERREIRA, 2015).

Nessas condições, os afazeres domésticos acabaram sendo executados por pessoas que fugiam da escravidão, mas não tinham como sobreviver sem casa e comida. É esta a razão pela qual o trabalho doméstico passa a ser considerado como atividade de mínima valorização, executado por alguém necessitado, como meio de troca. Dessa maneira, o trabalho doméstico inicia-se no Brasil, aonde viria a evoluir em condições e tratamento, mas sem se livrar do estigma original de caridade. Oficio de discriminação, tanto pela natureza do trabalho, entendido como subalterno, quanto pela pessoa que o executa, mulheres em sua maioria, ou negros libertos, o trabalho doméstico era “economicamente desvalorizado”. (RIBEIRO, 1995). Entendida a carga histórica acerca do emprego doméstico, proponho agora o aprofundamento da discussão sob a perspectiva da mulher, valendo mencionar que na sociedade Grega Antiga ela, também, era excluída. À mulher cabia a organização da casa, sendo do homem a liderança do poderio familiar. As mulheres não possuíam direitos políticos, sendo em um primeiro momento responsabilidade do pai e, após o casamento, do marido. Tal condição prolongou-se nas sociedades ocidentais dos séculos seguintes, ocorrendo situação semelhante no Brasil. (FERREIRA, 2015).

Nos séculos XVII e XVIII, a condição da mulher no Brasil pouco se alterou, exceto pelo fato da mulher maior de dezoito anos, casada, ter direito a exercer atividade comercial, desde que autorizada pelo marido. O trabalho externo feminino era complementar e acessório ao trabalho principal, o doméstico. O trabalho doméstico não era remunerado, já que era dever do marido promover a manutenção econômica da casa e, o da mulher, cuidar do lar. Ou seja, o trabalho doméstico foi sempre visto como uma obrigação/responsabilidade e não um trabalho que merecesse remuneração. No século XX, após as duas guerras mundiais, o mercado exigiu mão-de-obra feminina em setores variados, especialmente, no comércio e na indústria. Não obstante houvesse ainda trabalho tipicamente feminino como: a costura, a indústria têxtil, lojas, correios, secretária, sendo a mulher, contudo, impedida de exercer certas profissões.


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Em 1962 com a Lei que regia o Estatuto da Mulher Casada, a condição jurídica da mulher foi alterada em maiores proporções: as mulheres casadas durante, a sociedade conjugal, “deixavam de ser incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de exercê-los.” (AZEVEDO, 2001, p.70). Anos depois, com a aprovação da emenda constitucional à mesma lei, em 1977, foi instituído o divórcio e a dissolução do casamento. Atualmente, há a igualdade formal de tratamento entre homem e mulher instituída pela Constituição de 1988. Entretanto, a diferença efetiva de tratamento ainda é uma realidade, posto que em 2011as mulheres recebiam 72,3% dos 100% do rendimento dos homens, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Levando em consideração o levantamento das representações dos papéis sociais e históricos da mulher e sua relação com o trabalho doméstico, darei continuidade à discussão. Em um primeiro momento busco entender qual é a relação laboral entre as empregadas domésticas e suas patroas construída no imaginário social, por intermédio da história do nosso país, para posteriormente apontar alguns estudos que analisam essa construção. No Brasil, segundo Telles (2011), a passagem do trabalho escravo de mulheres negras para o trabalho doméstico atual não trouxe alterações em relação às atividades exercidas e, na maioria das vezes, não houve muitas mudanças no que se refere ao tratamento dispensado a essas trabalhadoras. Para a autora, as empregadas de hoje desempenham o mesmo trabalho que as negras escravas executavam, porém com outro nome, o de trabalho doméstico. Elas continuam a lavar, passar, engomar, limpar, cuidar e cozinhar. E, a ação de cozinhar é a que me interessa, pois servirá como pano de fundo para este estudo, já que, quero compreender a empregada que cozinha na cultura contemporânea, englobando suas múltiplas dimensões. Dada a importância da passagem do trabalho escravo para o doméstico, se encontram pistas para entender porque a relação trabalhista em questão difere da maioria, no sentido ao que cabe a sua própria história no labor do cuidar da casa dos “outros”, se está, portanto, relatando uma relação íntima e, ao mesmo tempo, laboral entre patroa e empregada. Outra característica a ser levada em conta é a contínua desvalorização do trabalho doméstico pela sociedade brasileira, visto que sempre foi considerado trabalho mal remunerado, realizado por pessoas sem estudos, mulheres de baixa renda e, a maioria, negra. (TELLES, 2011). Uma verificação que demonstrou ser lugar comum nos estudos é que essas mulheres não estão amparadas pelas mesmas leis de direitos trabalhistas do país, nem quanto à remuneração, e muito menos no relacionamento com seus patrões. As consequências do tratamento


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dispensado à tal categoria de trabalhadoras acaba reproduzindo um sistema altamente estratificado de gênero, classe e cor. Diversos são os autores que discutem a temática do trabalho doméstico e a relação de subalternidade entre patroas e domésticas, através desse foco. Dentre eles podemos citar os trabalhos de Azerêdo (1989); Barcellos (1996); Goldstein (2000); Kofes (2001) que apresentam relações sustentadas nas diferenças sociais. Constatações que podem ser verificadas em análises realizadas em outros países, por exemplo, Rollins (1990), em uma pesquisa, aborda as diferenças sociais envolvendo empregadoras e domésticas na década de 90, em Paris, e apresenta as desigualdades dessa maneira: A doméstica não pode tocar seu patrão e deve respeitar seu espaço privado, mantendo uma distância física... Ainda, a doméstica senta-se raramente na presença de sua patroa (a não ser nos momentos de almoçar). Mesmo se ela para por um instante de trabalhar para falar alguma coisa, ela permanece em pé. Todas essas convenções confirmam a desigualdade das relações e o valor maior dos empregadores. (ROLLINS, 1990, p. 73, tradução nossa).

Observo o detalhe de que a doméstica apenas se aproxima da patroa na hora do almoço. A situação apresentada me fez questionar se a ação de alimentar-se pode separar ou amenizar a barreira social entre as mulheres. O que será que acontece na ação de preparar a comida para essas mulheres? As narrativas que escutei da maioria das empregadas domésticas, muitas vezes, foi que o ato de preparar a comida aproxima os dois lados. Contudo, isso não quer dizer que as domésticas e patroas experienciam harmonia total durante a ação de cozinhar. Porém, na hora de preparar os alimentos, entre muitas domésticas e suas patroas, pareceu-me, em um primeiro momento, vigorar certa cumplicidade, sem que se possa, no entanto, afirmar categoricamente que persista uma trégua na subalternidade entre elas. Partindo destas constatações entendo que a comida, seu preparo e o que chega à mesa de refeições dessas mulheres nos mostrarão comportamentos e vínculos que demonstram como a sociedade percebe o trabalho doméstico e como constrói a relação entre empregada doméstica e patroa. Enfim, as questões relacionadas direta ou indiretamente à alimentação humana como tributária da cultura acabam por trazer indagações instigantes, fazendo com que este seja um campo de investigação amplo e frutífero. Dessa maneira, apesar dessas mulheres estarem ligadas a um convívio de confronto, de subordinação, as relações em torno da alimentação diferem: não obstante a patroa pagar o salário, nem sempre é ela quem determina o andamento do serviço e do convívio. É esta a razão pela qual compreendo que a patroa não é a protagonista dessa história. A partir dessa


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constatação, no andamento dos estudos, a empregada doméstica acabou ocupando o papel de protagonista na pesquisa. Entretanto, diferentemente de minhas suposições, a maioria dos discursos acadêmicos sobre a relação empregadora e empregada permeiam a ideia de que desde a época da escravatura, no Brasil, a subordinação total das trabalhadoras domésticas é uma realidade. A discussão majoritária em torno desse convívio apresenta-se através de conflitos sociais de classe e da sujeição da empregada doméstica aos patrões. Quando alguma doméstica se rebela e não cumpre as ordens ou “esquece” seu papel de invisibilidade na casa, ela é criticada e julgada por seus patrões como má, mal agradecida, exatamente como funcionava na época da escravidão, devendo ser punida por mau comportamento. (COSTA-BERNARDINO, 2007). Segundo essa perspectiva Telles (2011) levanta em suas pesquisas que: As identidades, rebeldias, desobediências e mobilidades registradas nos livros de polícia sugerem alguns aspectos sobre a condução do processo de transição do trabalho doméstico na capital. Proibida a revogação da alforria por ingratidão e positivado o direito costumeiro ao pecúlio para obtenção da liberdade, desmembrava-se, desde 1870, um dos alicerces fundamentais do controle escravista. Libertas de cor, destuteladas e livres, nascidas em outras paragens, trazendo na bagagem experiências do cativeiro e aprendizados sociais diversos, tiveram anotadas nas suas cadernetas aspectos da erosão do paternalismo senhorial e da reconfiguração das relações de poder e autoridade nas relações de convívio e trabalho do mundo doméstico. Trabalhadoras livres, muitas delas ex-escravas indispuseram-se as exigências e limitações impostas pelos patrões. (TELLES, 2011, p. 79).

Centralizada nas teorias da descolonização, que discutem o conceito de subalternidade, procuro repensar as narrativas a partir da razão subalterna, ou seja, entender o posicionamento da empregada doméstica através deste saber. Mignolo (2003) apresenta algumas considerações acerca deste conceito: [...] a razão subalterna é aquilo que surge como resposta à necessidade de repensar e reconceitualizar as histórias narradas e a conceitualização apresentada para dividir o mundo entre regiões e povos cristãos e pagãos, civilizados e bárbaros, modernos e pré-modernos e desenvolvidos e subdesenvolvidos, todos eles projetos globais mapeando a diferença colonial. (MIGNOLO, 2003, p. 143).

O conhecimento “subalterno” é entendido como expressão que se refere à perspectiva de pessoas, regiões e grupos que estão fora do poder da estrutura hegemônica, isto é, a condição de subalternidade subentende silêncio. O subalterno aqui, a doméstica, carece de alguém que lhe dê voz por sua própria condição de silenciada.


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Spivack (2010) em sua obra “Pode o subalterno falar?”, valoriza o feminismo através da reflexão sobre a consciência da mulher subalterna e o homem como dominante em um contexto colonial que exclui e deixa o feminino a margem da sociedade. As mulheres, enquanto subalternas, não têm história e não podem falar, são deixadas de lado como se não existissem na construção histórica social. Assim sendo, o subalterno é todo e qualquer sujeito marginalizado e esquecido que pertence “as camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante.” (SPIVACK, 2010, p. 13). Deste modo, como a senzala, na escravidão, estou abordando a doméstica e a cozinha como condições subalternas, de marginalizadas e esquecidas durante a construção da história da humanidade.

1.1 Da senzala ao quartinho de empregada Nasce, morre. Nasce, morre. Cada vez que a gente morre, nasce um tipo de gente – rico… japonês… pobre… preto… idiota. Deus é que vai escrevendo as missão que cada um tem que cumprir. Por que eu que tinha que nascer pobre, preta, ignorante? “Tu tá amargando uma outra vida cheia de luxo” Será? Minha avó foi escrava, minha mãe doméstica […] eu… sou doméstica. [sic] (DOMÉSTICAS, 2001).

Estudos que pesquisam ações ligadas à empregada doméstica são encontrados facilmente; existe um material amplo sobre a temática. Neste momento, o trabalho doméstico está em pauta, já que a legislação trabalhista da classe tem sendo um tema bastante discutido. Para Brites (2000), a literatura científica sobre a discussão do serviço doméstico só teve visibilidade a partir dos anos 70, influenciada por dois fatores: as teorias da modernização e as discussões feministas. Elisabeth Lobo (1991), que discute a reprodução das desigualdades trazidas pelas teorias da modernização e a preocupação com o trabalho feminino nas teorias feministas, insere este tema na pauta acadêmica no Brasil. Todavia, mesmo estando em voga essa discussão nos estudos da época, envolvendo principalmente pesquisadores focados na Sociologia do Trabalho, a relação entre patroas e domésticas se manteve praticamente nula. Lobo (1991), em seus estudos sobre trabalho e gênero, alertou que esta área do conhecimento estava intrinsecamente ligada ao sindicalismo. Para a pesquisadora, a falta de estudos sobre o trabalho feminino doméstico foi consequência da forte influência marxista que centrava toda a problemática na luta de classes, assumindo um ponto de vista universal e masculino.


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O campo da Sociologia marxista está balizado por alguns temas e conceitos recorrentes: sociedade dividida em classes, a industrialização capitalista e a luta de classes. Para Lobo, a universalidade da relação de classe apenas admite uma situação específica das mulheres enquanto mais exploradas frente ao universo masculino. (IBIDEM, 1991, p.2). A partir de estudos feministas, diversos pesquisadores e em diferentes momentos da história no país se debruçam para discutir a relação patroa e doméstica, com focos distintos. Helieth Saffioti, em 1976, anunciou a exclusão das mulheres nas discussões trabalhistas e, por este motivo, sugeriu a abertura, no país, de um espaço para discussões dentro da temática do trabalho doméstico para a consideração sobre a divisão sexual no trabalho, embora sua proposta de discussão não tenha alcançado nenhum êxito. Apenas em 1993, na Venezuela, surge um estudo com diversos autores que marca as pesquisas sobre o serviço doméstico na América Latina. Essa discussão acaba chegando ao Brasil por meio da obra “Muchacha, cachifa, criada, empleada, empregadinha, sirvienta, y... más nada.”, que reúne 22 artigos de diversas áreas e autores sobre a temática. Brites (2000) comenta a importância desses estudos, Nesta coletânea encontramos pela primeira vez na América Latina uma sistematização de dados que possibilita um olhar comparativo – tanto em termos das condições atuais do serviço doméstico, quanto da configuração histórica neste tipo de trabalho – sobre a realidade do serviço doméstico na América Latina e no Caribe. (BRITES, 2000, p.43).

Tais estudos denunciam que a atividade doméstica é ocupada, geralmente, por mulheres; que é um trabalho desvalorizado, tanto pelos governantes como pela população geral e, consequentemente, muito mal remunerado. Uma discussão antiga, mas que continua atual, é a relação entre patroa e empregada, desenvolvida em alguns estudos, refere-se à valorização pessoal e não profissional nesse vínculo. Esse tema foi apresentado em “Raízes do Brasil”, por Sérgio Buarque de Holanda, que propõe a discussão do forte culto à personalidade e o horror a um distanciamento social, ou seja, a impessoalidade nas relações interpessoais. Buarque de Holanda identifica na sociedade brasileira “uma necessidade de estabelecer relações pessoais sempre e em todas as instâncias.” (HOLANDA, 1936 apud REZENDE, 1995, p.16). Higman (1989) compreende que, [...] se o serviço doméstico foi desde sempre e primordialmente o meio de sustento para a mulher de baixa renda, ele também se caracterizou por ser o mais pessoal de todos os modos de trabalho, gerando ao mesmo tempo o contato e o confronto mais íntimo entre diferentes classes e raças. Porque a doméstica penetrou as fronteiras do mundo privado dos patrões, todo um


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conjunto de regras precisou ser criado para assegurar que sua posição de servente fosse claramente definida e demarcada. (HIGMAN, 1989, p.58).

A tese de Kofes (1991) abre uma discussão sobre a relação social das domésticas e patroas no ambiente doméstico, com a intenção de compreender a categoria mulher, papéis e funções, e a desigualdade social. Já Brites (2000) procura levantar, através da etnografia de conflitos trabalhistas entre patrões e empregadas em Vitória, capital do Espírito Santo, como acontecia na prática o direito trabalhista das empregadas domésticas. Na pesquisa, há vários confrontos de contratação e despedida de emprego demonstrando, na maioria das vezes, não existir nenhuma relação profissional, e que os patrões sempre saem ganhando nesta relação de poder e subordinação. Com esse estudo, Brites (2000) conclui que não existem políticas preocupadas com a profissionalização da categoria e que o Sindicato não funciona como deveria, já que as leis referentes à classe ainda não estão claras. Outro ponto de vista é desenvolvido por Soratto (2006), com base na psicologia, que analisa emoções e sentimentos vivenciados entre patroa e empregada. A pesquisa dela compreende que o trabalho doméstico proporciona alguns sofrimentos, mas também prazeres, discutindo uma relação conflituosa, íntima e comportamental da interação. Estudos de Nóbrega (2012) apresentam uma análise do universo feminino burguês, através dos conselhos de Clarice Lispector em suas colunas, nas quais apresenta dicas e sugestões para as donas de casa e suas relações de forma harmoniosa com suas empregadas, filhos e maridos. A autora levanta a discussão da identidade feminina das classes sociais abastadas no Rio de Janeiro, construída entre as décadas de 50 e 60 no Brasil. Nóbrega conclui que no estereótipo apresentado por Lispector, a mulher é representada como a rainha do lar, posto que o lar, representado pela casa, é o sustentáculo da relação da conselheira com a leitora, isto é, conselhos sobre como cuidar, limpar, cozinhar e manter-se bonita são os temas centrais dos artigos. Recorrendo a essas discussões, o que se percebe é a necessidade e importância da análise desta relação, através das protagonistas deste contato, como articuladoras de suas próprias histórias: a doméstica. Também se nota que apesar de muitos estudos aparecerem depois da década de 90, como já apontado, nenhuma pesquisa foi encontrada focando a análise através da alimentação, como forma de desmascarar esta relação através dos modos de fazer e trocas de saberes. Isso me leva a querer saber como foi e é percebida tal relação nos dias atuais através da internet e grupos que representam as duas categorias, as patroas e domésticas.


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1.2 Empregadas incomodam: manuais, blogs e discursos reacionários Por falar em empregadas, em relação às quais sempre me senti culpada e exploradora, piorei muito depois que assisti à peça As criadas [...]. Vi como as empregadas se sentem por dentro, vi como a devoção que às vezes recebemos delas é cheia de um ódio mortal. [...] às vezes o ódio não é declarado, toma exatamente a forma de uma devoção e de uma humildade especiais. Tive uma empregada argentina que era assim. (LISPECTOR, 1984, p.54).

Pais (2002) quando reflete sobre as fontes documentais em Sociologia do Cotidiano, reivindica uma historicidade do dia a dia e, para tanto, defende que o debate sobre documentos nas análises deve ser fomentado, pois, segundo ele, não existe motivo para que os estudos sobre a vida cotidiana fiquem reduzidos a facções cronológicas tão efêmeras como o dia. Seguindo esta reivindicação, proponho a utilização de manuais e blogs como fontes documentais sobre o cotidiano das empregadas domésticas. “Com olhar perscrutador, penetra no seio das famílias, a descobrir aí factos recônditos, pequenos incidentes da vida doméstica, onde, mais fielmente do que na vida pública, se reflectem os caracteres e as índoles.” (PAIS, 2002, p. 159). É exatamente do cotidiano doméstico, mais especificamente, sobre a relação entre as personagens citadas, que escapa aos sentidos, as interpretações e, principalmente, a atenção do pesquisador que está à procura dos “incidentes da vida doméstica, o modo de viver íntimo, [...] sabedoria popular, senso comum, onde se possa vislumbrar uma percepção sem dúvida elementar desse cotidiano.” (PAIS, 2002, p.159-160). No desenrolar da pesquisa, encontrei alguns manuais que tratam como a patroa deve se comportar com a doméstica. Na internet descobri blogs discutindo a mesma questão. Busquei entender essa realidade social por meio de fontes literárias, com a clareza de que elas apenas me dariam a versão de quem escreve, ou seja, as patroas. Pais (2002) explica que, [...] constituídos, por exemplo, por conflitos de classe ou por contradições entre aspirações individuais e condicionantes sociais. [...] Neste sentido, a análise de conteúdo de textos literários aparece como uma técnica de investigação que pode evidenciar esse paralelismo. Para que tal aconteça, a análise de conteúdo deve funcionar como instrumento de análise das condições sociais de produção de um discurso, das características das entidades consideradas como determinantes ou factores de especificidade do corpus analisado. (PAIS, 2002, p. 164).

Seguindo as considerações de Pais sobre textos literários, encontrei manuais entre as décadas de 1950, 1960 e 1970, um período marcado pela efervescência do movimento feminista que mudava suas prioridades, discutindo as relações conjugais e tudo que estava ligado a esse


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universo. Naquele período eram muito comuns os discursos normativos a respeito da importância da mulher no espaço doméstico e da assimilação de comportamentos femininos adequados. Os manuais de instrução femininos, graças àquelas mudanças, citadas, assumem importante papel no processo de adequação e conformação de identidades, comportamentos e responsabilidades exclusivamente femininas da dona de casa. (TOMÉ, 2013, p. 76-82). Segundo Cunha (2010a, 2010b), os anos 50, 60 e 70 são marcados por um contexto em que a classe alta se preocupava em impulsionar a modernidade, a urbanização e a industrialização no Brasil. Paralelamente a esses acontecimentos, o cotidiano das mulheres que podiam contratar empregados estava envolto em uma ambivalência entre o moderno e o tradicional. Foi neste contexto que os manuais de instrução femininos assumiram um importante papel, visto que, por intermédio de seus conselhos e ensinamentos, buscavam fixar padrões e valores da maneira “correta” da mulher comportar-se convenientemente para ser aceita na elite da época e ser uma boa dona de casa, mãe e esposa. Tomé (2013) apresenta quem eram as leitoras desses manuais, A maioria das leitoras dos manuais de instrução femininos era constituída por mulheres urbanas das classes sociais mais abastadas. As mulheres das classes menos favorecidas sempre tiveram mais liberdade e puderam circular livremente pelos espaços públicos, pois desde as sociedades pré-capitalistas, elas trabalhavam fora para ajudar no sustento da casa. (TOMÉ, 2013, p. 12).

Estudos de Norbert Elias (1994) sobre a história dos costumes apresentam análises de manuais do século XVI, pensando no cotidiano e preocupados em entender como acontecem as mudanças de pensamento quanto à ideia de civilidade dos costumes e hábitos que apareciam nestes manuais. O autor explica que, com o aparecimento dos Estados, surge a necessidade de se criar normas de como se comportar como um indivíduo moderno. Para ele, é a partir dessa ideia que aparece a propagação dos manuais de comportamento na sociedade ocidental. Foi no final do século XIX que manuais com essa envergadura chegam ao Brasil, quando estava ocorrendo o processo de urbanização com o objetivo de “civilizar” a população brasileira. E, a partir do século XX, os manuais passam a ser leituras preferidas das mulheres da classe alta brasileira, inclusive chegam a fazer parte dos currículos oficiais para a formação de professoras. (TOMÉ, 2013, p.12). O objetivo desta explanação está longe de cair no erro de confundir o contexto com a realidade, como alerta Machado Pais quando pede cuidado ao acreditar que, “ [...] tudo se explica pelo contexto[...]” (PAIS, 2010, p. 126), apenas busco entender de onde surgiram os manuais, quais eram os objetivos e quem eram suas leitoras.


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Segundo a literatura sobre os manuais domésticos (D‟INCAO, 2006; CUNHA, 2010a, 2010b; NÓBREGA, 2012; TOMÉ, 2013) existia a necessidade de a mulher brasileira seguir o ideal de dona de casa e, portanto, manter o lar arrumado, a roupa bem limpa e passada, a comida apetitosa, os filhos asseados, as compras em dia, sem esquecer-se de estar/ser “feminina”, bem vestida, cheirosa e sorridente, com a mesa pronta à espera da hora da chegada do marido em casa depois do trabalho; ainda segundo os manuais, toda a responsabilidade do lar, de mantê-lo em ordem, é da mulher. É dessa necessidade de ser boa mãe, mulher exemplar e dona de casa eficiente que aparece a busca pela ajuda de uma empregada doméstica. Porém, pelo analisado, essa busca sempre foi tarefa difícil. Encontrar e manter uma empregada, que conseguisse realizar suas atividades de maneira satisfatória e dar conta do recado e que, ainda, não incomodasse a intimidade da família, era e é algo quase impossível. Buscando amenizar essa dificuldade, é que aparecem os manuais que ensinavam a jovem dona de casa a preservar sua relação com a empregada doméstica. Grande parte das serviçais que se apresentam nas nossas portas não têm as mais rudimentares noções da profissão que pretendem exercer. São um festival de incompetência que as patroas, com maior ou menor paciência, maior ou menor habilidade, têm que domesticar às vezes domar como um bicho bravo. (KAUFMANN, 1975, p.22).

Nessa citação, logo na introdução, o manual apresenta a profissional que irá cuidar de sua casa, dos pertences, comida, muitas vezes de seus filhos, como um “bicho bravo” e incompetente, antes mesmo, inclusive, do primeiro contato, para depois ter uma ideia de quem é aquela mulher que trabalha como doméstica. Antes de qualquer contato, já se constrói o estigma de “gente rudimentar”, não profissionalizada. Isso deixa claro que a dona de casa, a patroa, é quem sabe como cuidar de um lar, e precisa de alguém para fazer o trabalho pesado e do jeito que ela acredita ser conveniente, mas para isso, é preciso, antes, “domesticar” o “bicho brabo”. Desde sua admissão, as medidas “acauteladoras básicas” sugeridas pela autora do manual, são: “Teve sempre esse peso? Ou emagreceu bastante, ultimamente? [...] As normolíneas são as candidatas preferíveis. Examine sua pele, seu cabelo, peça a carteira de saúde e olhe se está vacinada.” (KAUFMANN, 1975, p.28). Se você, “leitora amiga”, não sabe como “transformar sua empregada doméstica em auxiliar responsável, e amiga da dona de casa”, não sabe como conseguir, e manter, a tão sonhada “paz doméstica”, e sobretudo como “não perder na luta para não ficar fazendo o trabalho da empregada deixando de lado seus afazeres normais”, eis aqui alguns truques, alguns “jeitinhos astutos” para “amaciar”, “domesticar”, enfim, “domar como um bicho bravo” a sua empregada. (KAUFMANN, 1975, p. 52).


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Ou ainda, [...] se sua empregada não possuir rádio próprio, forneça-lhe um [...]; “dê as ordens em tom calmo e firme […] para não despertar a fera que existe em cada um[a] de nós”; “use a estimulante fórmula Nós. Por exemplo: „hoje nós vamos comprar peixe, „há muito tempo que não fazemos um cozido‟, „precisamos fazer faxina aqui na cozinha‟[…]” (IBIDEM, 1975, p. 54).

Conselhos como esses foram encontrados no “Guia prático da mulher independente”, intitulado “A aventura de ser dona-de-casa (dona de casa VS empregada): um assunto sério visto com bom humor”, escrito por Tania Kaufmann com o apoio da irmã Clarice Lispector (NÓBREGA, 2012, p.144), com a participação de feministas, como a presidente do Conselho Nacional de Mulheres no Brasil, Sra. Romy Medeiros da Fonseca que na contracapa do manual escreve: As mulheres que trabalham fora do lar são as que melhor poderão avaliar o valor deste Manual, e colher seus preciosos ensinamentos. Toda a gente sabe que as Leis Sociais não têm o poder de transformar as pessoas em profissionais competentes. (...) Transformar a empregada doméstica em auxiliar responsável e amiga da dona-de-casa é a meta para conseguir a paz doméstica. Eu mesma já estou utilizando os ensinamentos de Tania Kaufmann, para não perder minha empregada, e posso garantir-lhes que ela está certa. Parabéns à Autora. (FONSECA apud KAUFMANN, 1975, p.6).

Como já apontado, as patroas buscam uma aliada nos serviços domésticos, alguém a quem possam confiar suas responsabilidades de dona de casa, mas, para tanto, existe todo um caminhar, ensinamentos, conhecimentos, e isso leva tempo. Esses manuais explicam e ensinam como educar as empregadas domésticas que irão trabalhar dentro de sua casa e elaborar trabalhos que precisam ser bem feitos, pois as patroas são avaliadas neste momento da história social como boas ou más donas de casa. Se, de um lado, existe uma busca desesperada por uma relação harmoniosa, de outro, há uma maneira de avaliar essa mulher que chega para trabalhar como algo que, necessariamente, precisa ser “amansada”, ensinada. A maneira como se refere a essa classe de trabalhadoras é algo que hoje, depois de 40 décadas, no mínimo, o tom desse texto poderia gerar acusações que teriam como resultado direto um processo por racismo e violação aos direitos humanos. Acontece, porém, que em um segundo momento, quando analiso a literatura corriqueira nas redes sociais, blogs na internet, comentários sobre o assunto, o mesmo tratamento encontrado na década de 60-70 com essa classe trabalhadora continua presente no cenário contemporâneo da vida brasileira.


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Assim é que, apesar das discussões sobre direitos trabalhistas, direitos humanos, racismo, em contramão às discussões teóricas no âmbito da justiça brasileira, as classes média e alta ainda se comportam como se estivessem na época da escravidão. Digo isso porque são inúmeros e recorrentes os comentários reafirmando um tratamento preconceituoso e de exclusão acerca das empregadas domésticas. Alguns exemplos encontrados nas redes sociais atestam esta afirmação. Escolhi para análise um blog chamado “Corporativismo Feminino”

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, no qual diversas mulheres que se autodenominam

“corporativetes” discutem temas como: casa, beleza, culinária. Contam, atualmente, com 1.127 seguidores 4 . Em um post intitulado: “Empregada Doméstica: Melhor não precisar delas”, de autoria da “corporativete” Anália Maia (2012), relata histórias de sua casa e o quanto as domésticas são folgadas, espaçosas e más, deixando subentendido, inclusive, que são todas ladras, e que nenhuma serve para nada. Em um post, a “corporativete” afirma que sua mãe tem ideias contrárias às suas, que dispensa um tratamento diferenciado à trabalhadora. Ela chega, até mesmo, a acusar sua própria mãe de boba ou ingênua, por ser enganada pela doméstica. Indo contra o que é apresentado por Anália Maia, percebo que as domésticas também possuem suas regras para não se deixarem impor, tanto quanto as patroas. Tenho uma irmã de 2 anos e, toda vez que minha mãe saia e trazia um brinquedo para ela, também trazia um para o filho da Jucinete. Então, Jucinete era de nossa total confiança [...] até este Sábado. O marido dela (que trabalha para meu pai, como já explicado) avisou que era aniversário dele e que adoraria que a nossa família fosse. A Jucinete passou o dia avisando que ia ter que sair mais cedo, porque ia ter que confeitar um bolo para o marido e por aí vai. O fim da história? Meus pais foram no tal aniversário e era um churrasco, não tinha bolo nenhum, a Jucinete ficou tão morta de vergonha pelo fato de meus pais terem aparecido, que disse que ia ter que sair e não voltou mais. MENTIRA TEM PERNA CURTA, VIU, JUJU (JUMENTA!). Fim da história: a Juju tá com tanta vergonha que nem apareceu aqui em casa hoje. Minha mãe diz que, mesmo que ela tivesse vindo trabalhar normal, seria demitida. DU-VI-DO, viu? [sic] (MAIA, 2012).

Os comentários irônicos aparecem no discurso da blogueira, acrescentando que Jucinete foi “burra” ao mentir, junto com o marido, sobre seu aniversário para poder sair mais cedo, porém a trabalhadora jamais imaginaria que seus patrões apareceriam na festa. Por que Jucinete mentiu?

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Disponível em: http://corporativismo-feminino.blogspot.com.br/2009/12/empregadas-domesticas-melhornao.html. 4 Acesso em: 22 jan. 2016.


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Todos os seres humanos mentem; uns mais, outros menos. Em todas as culturas se mente, desde os mais novos aos mais velhos, dos mais inteligentes aos menos inteligentes, sejam os mais ricos, ou os mais pobres, todos mentem. Pode-se mentir por necessidade, piedade, maldade; inúmeros motivos levam uma pessoa a mentir. Às vezes, mentimos sem motivo, contudo, na maioria das vezes, mentimos por medo, por falta de diálogo, em busca de atenção, entendimento, enfim, mentimos para alcançar algum objetivo que a nosso ver é importante e/ou necessário. Longe de definir o que é mentira ou verdade, discussão filosófica antiga, penso no motivo que levou Jucinete a mentir em seu trabalho para sair mais cedo. Devo, então, focar na relação laboral e nas “regras” que regem essa relação, as leis trabalhistas, segundo as quais saídas antes do fim do expediente e atrasos devem ser negociados com o uso de um banco de horas. Nada que a patroa não possa negociar com a trabalhadora, pois o que é importante para uns pode não sê-lo para outros. Fica evidenciada tão somente uma dificuldade de comunicação e em relação à negociação dos direitos trabalhistas da doméstica com a patroa, sem a necessidade de mentir. Outra observação no discurso foi o incômodo expresso pela classe mais alta, com o acesso da funcionária ao direito de festejar, divertir, sair antes do trabalho e ter uma vida social. Esse tema é muito presente nas discussões midiáticas atuais, e mostra a dificuldade que as classes mais altas do país têm em aceitar o acesso das classes menos favorecidas a bens e experiências anteriormente exclusivos de quem se situava no topo da pirâmide social brasileira. Gente, estôu pasma com as empregadas de vocês. Tive 2 e não foram das melhores tb. Uma era preguiçosa, q um dia, meu marido perguntou por que ela não tinha lavado o lavabo, e eu disse q tinha, ele me chamou pra ver. Ela ficou com preguiça de ir buscar a escovinha de sanitário lá na área de serviço e não lavou!!!! E um dia pediu pra ver o orkut rapidinho, na outra semana também, mas o rapidinho, demorou 2h!!!!! E a outra, chamava meus filhos de néeeem (EU ODEIO ISSO) e era apaixonada pelo meu marido!!! [sic] (JOANA apud MAIA, 2012, grifo nosso).

As falas denotam raiva, mostram dificuldade em colocar-se no lugar do outro e, principalmente, desconforto, pois há um grande incômodo das patroas, o que me leva a relacionar essa reação à ideia de conflito social explicado por Georg Simmel. Em seus estudos sobre a natureza sociológica do conflito, Simmel (1983), explica que o conflito reproduz-se junto às ações interativas e relacionais sociais, ou seja, em todas as ações produzidas no interior da sociedade: Se toda interação entre homens é uma sociação, o conflito – afinal, uma das mais vivídas interações e que, além disso, não pode ser exercida por um


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indivíduo apenas – deve certamente ser considerado uma sociação. E de fato, os fatores de dissociação – ódio, inveja, necessidade, desejo – são as causas do conflito; este irrompe devido a essas causas. O conflito está assim destinado a resolver dualismos divergentes; é um modo de conseguir algum tipo de unidade, ainda que através da aniquilação de uma das partes conflitantes. (SIMMEL, 1983, p. 122).

Exatamente desta maneira é que os conflitos foram observados, tanto nos manuais como nos blogs aparecem como expressão social, já que possibilitam situações de construção e destruição diante das instituições, estruturas, processos, relações e interações sociais entre essas mulheres. Sendo assim, os conflitos sociais são socialmente importantes, “resolvem a tensão entre contrastes.” (SIMMEL, 1983, p. 123). São ações que prevalecem nas interações sociais, e sua virtude também está no fato de que criam um palco teatral social, um espaço no qual as partes podem se encontrar num mesmo plano, em uma mesma situação e, assim, acabam por se impor um nivelamento. Outra característica positiva apresentada pelo autor e de grande importância para o argumento, é que o conflito superaria os limites socialmente estabelecidos pelas oposições. Assim, existe nesta ação uma superação nas desigualdades sociais reproduzidas e estruturadas nas ações sociais ocorridas na sociedade, de modo que essa divergência é o fenômeno existente nas diversas relações entre indivíduos na sociedade. É fenômeno que faz parte da rotina e se expressa nas relações sociais muitas vezes cruel, podendo chegar até ao confronto físico, que se reproduz em uma multiplicidade de ajustes coletivos sociais. Sendo assim, percebo o conflito como um encontro social, com capacidade de produzir diferentes resultados, considerado como uma ação socialmente construtiva, já que desencadeia mudanças e reviravoltas sociais. Essa coisa de classe média alta e a quase obrigação de ter uma empregada é coisa do pensamento escravocrata ainda muito vivo na sociedade brasileira, aquela coisa do senhor do engenho e a sinhá... Concordo com a Andréia, o problema de precisar tanto assim de uma doméstica, realmente é a falta da divisão de tarefas na casa, que deixa a mulher sobrecarregada. Na Europa a classe média alta não tem empregadas fixas, diaristas só de vês em quando, porque é muito caro e porque eles tem o hábito das divisões das tarefas, o machismo é bem menor do que nessas bandas. [sic] (CRIS apud MAIA, 2012).

Esse discurso sobre o papel feminino nos mostra, novamente, o quanto se repetem as responsabilidades delas na sociedade, sobrecarregando ainda hoje a mulher nos serviços do lar, o que acaba por oprimir outras mulheres. Em decorrência da necessidade de buscar


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alguém que ajude nesses afazeres, e dessas relações, como nos mostra Simmel (1983), nada mais cotidiano que surjam os conflitos. Minha mãe tinha uma empregada que trabalhou uns 20 anos pra ela. Depois pegou a filha dela como empregada para continuar ajudando a família. Eu lembro que minha mãe dava tudo pra elas, comida, roupas, até material de limpeza. No natal dava presentes e doces pros filhos da empregada e o que aconteceu depois? A tal filha da ex empregada foi até "a justiça" que declarou, assim por nada, depois de toda a ajuda, que meus pais tinham que pagar 4 mil reais pra ela!!! Eles pagaram e até hoje se minha mãe vê ela na rua, quem morre de vergonha é a empregada, e com toda razão! [sic] (STÉPHANE apud MAIA, 2012).

São diversos os discursos analisados que remetem aos estudos de Maria Claudia Coelho e Claudia Barcellos Rezende (2010) em “Antropologias das Emoções”, pesquisas que discutem as dinâmicas sociais de inclusão e exclusão, que orientam as relações em grupo social: o nojo, o desprezo, a indiferença; ou as fontes de inconsistência dos laços sociais: a fidelidade, a gratidão, a compaixão. Segundo as autoras, as emoções “surgem perpassadas por relações de poder, estruturas hierárquicas ou igualitárias, concepções de moralidade e demarcações de fronteiras entre os grupos sociais.” (REZENDE; COELHO, 2010, p. 78). Um dos capítulos do livro supracitado, analisa as trocas de presentes entre domésticas e patroas. Além disso, trata do sentimento de gratidão como uma expressão afetiva da aceitação em lugar de dívida, marcada por hierarquização, “em que o sujeito entra em relação com alguém que pode mais, daí a afirmação de que a gratidão teria „um gosto de servidão‟.” (IBIDEM, 2010, p.90). Tal expressão – um gosto de servidão - surge com Simmel (2004b), pois “sentir-se grato seria a expressão emocional de uma impossibilidade de retribuir, o que colocaria o receptor em uma oposição de inferioridade hierárquica.” (IBIDEM, 2004b, p. 93). Ou seja, a submissão está voltada para uma relação marcada pela hierarquia contextualizada em uma dinâmica social. Rezende e Coelho (2010) concluem em suas análises que quando aparece a ingratidão mencionada em diversas falas aqui analisadas, isto representa, na verdade, uma contestação micropolítica das hierarquias sociais. Ou seja, toda vez que a doméstica não valoriza “como deveria”, aos olhos da patroa, o que recebe dela, de alguma maneira estaria protestando ou repugnando o lugar social hierárquico desta relação patroa e empregada. É isso mesmo. Empregada boa, era no tempo de antigamente, quando elas sabiam seus lugares. Hoje em dia é uma mais folgada, ladra, vagabunda e vadia que a outra. Chegam sempre com aquele papinho de que são ótimas que dão conta do serviço e no final do mês já estão deixando até a louça mal lavada. Bando de ordinárias isso sim. E você está a certa, a sua mãe é uma


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pamonha de tratar empregados como pessoas da família. Se você dá corda pra essa corja é só para se enforcar mesmo. Tratar bem é uma coisa, dar liberdade é outra e a linha não é tênue, é bem visível e grossa. Toda empregada deveria ser também muda, pra nos poupar de ter que aturar aqueles papinhos sem noção que elas sem mais e nem porque insistem em abordar conosco. Será que é pedir muito chegar, fazer o serviço decentemente, só responder quando for perguntada e ir embora no horário combinado sem pedir cada dia uma coisa diferente. Ainda se estivéssemos no tempo da escravidão, vá lá ter que aturar papinho de empregada, mas hoje em dia elas são bem remuneradas. Deveriam pelo menos fazer a parte que lhes cabe com decência. [sic] (FERNANDA apud MAIA, 2012).

A relação trabalhista que une patroa e empregada em um relacionamento acaba sendo negociada em plano afetivo como nos aponta os estudos de Rezende e Coelho (2010), visto que a boa empregada é aquela que demonstra estar agradecida, sabe se portar e não avança o estabelecido. Eu odeio a minha empregada ela sai mais cedo e deixa louça para mim é uma vagabunda estou com muita raiva, mas o pior é q é muito difícil achar uma empregada odeiooo ela aaaaa. [sic] (LETICIA apud MAIA, 2012).

Observamos no excerto acima que há um conflito na relação entre patroa e doméstica, e que o posicionamento de patrão - vítima passa pela raiva e humilhação. A “raiva” é, em um primeiro momento, percebida pelo futuro agressor como uma “concessão”, como um “igualar-se” que estaria implícito no reconhecimento da ofensa; a indiferença representaria, uma “elevação” do agressor diante da vítima. A constatação, contudo, por parte do próprio sujeito de que essa indiferença é “fingida”, não mais do que uma estratégia para simular uma superioridade que não existe. (REZENDE; COELLHO, 2010, p. 88).

Vejamos a raiva e a confusão nos afazeres da trabalhadora na casa: Foi a mesma conclusão a que cheguei. Empregadas domésticas sempre foram inimigas do patrão, só vivem dando patadas, acham que quem paga (bem) seu salário mensal é saco de pancadas delas, ainda mais porque a mídia só expõe um lado da história, o das patroas "exploradoras". Aqui em casa sempre pagamos bem, damos folga duas vezes por semana, feriados, férias, tudo, e pagamos bem, mais do que podemos até, por falta de alternativas, já que tenho de trabalhar e meu marido também. A anterior a esta de agora falava alto, era atrevidíssima, e depois que eu tive um problema de saúde e fiquei acamada ficou ainda pior. A que veio em seguida era louca e achei melhor dispensar logo de cara, pois ficava praguejando, falando sozinha e fumaça como caipora. Depois arrumei esta de agora, que ontem quase me bateu. No começo era extremamente calada, parecia até estranha de tão tímida e calada. Depois criou asa, passou a dizer o que passava pela mente suja dela e virou um saco de maldades. Praguejava, falava mal de todo o mundo, tentava humilhar pessoas humildes que vinham catar revistas ou jornais, dizendo que eu não devia ajudar, era racista, embora fosse escura, tinha aversão a nordestinos, embora fosse um deles, tratava mal o piscineiro, que é nordestino, mas vivia tentando fazer fofoca,


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no maior leva e traz. Não escapava ninguém do veneno dela. A única exceção era o meu marido, que ela achava bonito e, segundo ela, humilde. O resto ela passava o tempo inteiro esculhambando e só me dava alfinetada o dia todo. Aguentei porque ficava na dúvida. Até que há uns meses piorou muito e recentemente batia porta, armários, falava sozinha também, sempre dizendo coisas ruins, praguejando até que veio me dizer, pois eu fiquei desempregada, que eu tinha de ajudar ela no serviço, sendo que eu já fazia a minha própria comida. Eu disse que para pagar alguém assim não fazia sentido, seria melhor eu mesma assumir as tarefas domésticas. Ela recuou, disse para eu pensar melhor conversar com meu marido e eu disse que não precisava conversar nada com ele pois eu a havia contratado. Ela certamente não esperava essa minha reação, pois eu sempre fui excessivamente boazinha. Mais tarde conversamos e quando eu sinalizei abrir uma brecha para ela ficar, desde que mudasse o comportamento, ela pediu desculpas, assumiu que estava errada. No dia seguinte acordou novamente praguejando, dizendo que não quer ver nem os pais no Natal, que saiu à rua para brigar com um vizinho, que a ameaçou de bater com um pau, depois que ela segurou a pipa que ele empinava (o que fez para implicar, pois é a pessoa mais implicante e provocativa que já conheci na vida). À noite gritou comigo, me xingou de todos os nomes possíveis e imaginários e me ameaçou de violência física. Eu estava sozinha e quase precisei chamar a polícia para conter essa maluca, que, felizmente, consegui que fosse embora. Ela simplesmente não aceitou quando, diante de mais uma grosseria, eu mandei arrumar as coisas e sair. Achou demasiada "ousadia" de minha parte demitila, já que eu sempre fazia papel de trouxa. Aí ficou descontrolada, queria que eu batesse nela, para ela revidar e depois ir na Justiça se dizer injustiçada, ficou me ameaçando de agressão física, mandou eu sumir da frente dela me chamando de demônio e eu ainda tive de aguentar tudo isso pra ver se me livrava logo da louca, que estava arrumando as roupas para, felizmente, ir embora e me deixar em paz. Empregada doméstica NUNCA MAIS! [sic] (ANDRÉIA apud MAIA, 2012, grifo nosso).

Neste discurso, da mesma forma, a relação trabalhista fica abalada em virtude de a doméstica quebrar as regras hierarquizadas entre patroa e empregada, pois não assume o cozinhar como parte de seus afazeres no trabalho. Andréia, a patroa, cita que prepara sua própria comida como se fosse algo inadmissível, posto que paga alguém

para fazer todo o trabalho

doméstico. Surge, portanto, a ideia de que fazer sua própria comida é entendido como uma ajuda à doméstica e que a trabalhadora deveria ter gratidão eterna pela ação da patroa: cozinhar sua própria comida e assim ajudar nas tarefas da doméstica em sua casa. Pelo contrário, a doméstica não se comporta como o esperado e, mais uma vez, a ingratidão é apontada como contestação das hierarquias sociais que incomoda a patroa. Alguns aspectos de demarcação das diferenças aparecem na relação patroa e empregada. Para Higman (1989, p. 59), existem estratégias de definição ou demarcação de posições sociais “no mundo privado dos patrões”. O autor denomina esse processo de “racionalização” ou “ritualização” da diferença. Para ele, a própria natureza do serviço doméstico, uma vez que não se podem estabelecer espaços proibidos dentro da casa, o tratamento que geralmente


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existe para com a trabalhadora é “como se ela não estivesse ali”, como se ela fosse invisível. A empregada serve silenciosamente e quando ela aparece incomoda, é “folgada”. Percebo que a formação social do nosso país perpassa pela relação doméstica e patroa, já que o que se nota é a passagem do trabalho escravo ao trabalho assalariado perfeitamente representado nessas relações. Pois bem, é de conhecimento social que não se poderia entender o Brasil sem considerar uma figura peculiar como a empregada doméstica. (TELLES, 2011) 5. Porém, não haveria doméstica se não existisse a patroa e vice-versa, uma depende da outra, pois ambas fazem parte da mesma história. Este é o tema central da discussão, que nas análises dos discursos reacionários e cheios de ódio, perpassa pelas influências históricas e sociais na construção da mulher, principalmente das classes mais abastadas, e suas relações com a casa. É um espaço ao qual nos aprofundaremos mais adiante. Porém, neste momento, pretendo pensar na relação casa e mulher na formação histórica do pensamento social brasileiro, nos séculos XVIII e XIX, a fim de explicar, ou melhor, contextualizar os comentários do manual e do blog aqui apresentados, visto que de alguma maneira mostram que essa forma de pensar perdura até hoje. Segundo diversos pensadores (ELIAS, 1987; 1994; BACHELARD, 1996; HOMEM, 1996; PASINI,

1997;

SCHWARCZ,

2007;

BRITES,

2008;

MARTIN-FUGIER,

2009;

SCHETTINO, 2012), a relação entre a mulher e a casa é uma construção cultural e histórica que começa no século XVIII e acaba se tornando uma das características mais importantes da sociedade burguesa do século XIX. Neste momento, a maternidade é vista como a realização suprema feminina, sendo o papel de dona de casa percebido como essencial para a preservação e realização da família e da sociedade burguesa da época. Dessa forma, e voltando ao que já foi visto, o espaço privado fica definido como um lugar essencialmente feminino: É possível dizer que o homem seria o público, [...] e a mulher, o privado, sendo a casa o seu reino por excelência, onde exercia as tarefas conhecidas como prendas domésticas, relativas à solução das necessidades básicas, aliadas à missão de “mãe extremosa” e de “esposa devotada.” (HOMEM, 1996, p. 25 apud SCHETTINO, 2012, p. 23).

Com o fim da escravidão e a implantação da República, ocorre uma busca por um programa civilizador emergente, que teve início com a vinda da Família Real para o Brasil. Norbert Elias (1994) afirma que esse processo, no âmbito europeu, estava ligado ao modo de vida aristocrático que servia como modelo para a burguesia da época. 5

TELLES ( 2011) em sua dissertação de mestrado “Libertas entre sobrados – a ligação da escravidão com o trabalhador doméstico em SP” cita esse pensamento na epígrafe de seu trabalho.


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O processo civilizador no Brasil se relacionava diretamente com a urbanização que se opunha à civilização rural. Esse período se caracterizou pela dualidade entre o mundo agrário e o urbano, tendo como modelo os países mais desenvolvidos. No Brasil, até então, a população do campo era muito mais numerosa do que a urbana, que em 1890 representava apenas 9,54% do total. (SCHWARCZ, 2007, p. 117). Inúmeras reformas no país faziam parte do processo civilizador urbano, que se iniciou no século XIX e se opôs a civilização rural de tradição colonial, baseada no latifúndio, na mão de obra escrava e na autoridade patriarcal. A passagem do trabalho doméstico escravo para o livre, a adoção de um modo de vida capitalista e as transformações no papel social da mulher, importante agente transformador do espaço residencial, contribuíram para as modificações do espaço residencial, e consequentemente, a criação de novos ambientes, novas distribuições espaciais e as necessidades de uma nova concepção de casa. (THOMÉ; SCHETTINO & LEMOS, 2014, p. 320-321).

Junto, portanto, à relação da casa construída ao papel social da mulher na sociedade brasileira, o conceito de privacidade surge com a constituição dos papéis sociais de gênero, como resultado do individualismo burguês que propiciou uma revalorização do espaço privado e, consequentemente da família tipicamente burguesa e suas noções de intimidade. (GONÇALVES, 2006). A mulher se tornou um importante agente divulgador desses valores da responsabilidade do espaço privado junto ao gênero feminino, pois era por meio dela que se propagavam conceitos de civilização, conforto, privacidade, intimidade, domesticidade, conceitos estes diretamente ligados aos espaços residenciais. A partir do momento que a noção de privacidade foi introduzida, a mulher acabou se tornando responsável por definir conforto, privacidade, noções de domesticidade e de eficiência doméstica. Nas palavras de Gonçalves (2006, p. 19), “as revoluções, ao instaurarem uma esfera pública de poder separada do privado, reservaram o exercício desse poder aos homens, destinando o espaço privado às mulheres”. O conceito de conforto se desenvolveu depois da Revolução Francesa, transformando os espaços habitacionais. Nesse momento, se acentuaram as definições das esferas pública e privada através da valorização da família e da diferenciação dos papéis de cada sexo, criando uma oposição entre o homem político e a mulher doméstica. (SCHETTINO, 2012, p. 28).

Com a “extinção” do trabalho escravo a vida doméstica precisou ser adaptada à nova realidade e à falta de trabalho escravo doméstico, empregando mão de obra livre; mas o


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trabalho assalariado não sucedeu imediatamente o trabalho escravo, entre eles houve o trabalho livre, regido por um regime de servidão. (SODRÉ, 1967 apud SCHWARCZ, 2007). Para a alta sociedade, o lar possuía uma função pública servindo de palco para a realização das práticas sociais, enquanto que para os burgueses era considerado um refúgio do mundo exterior. As mulheres se tornaram meticulosas com cada detalhe do trabalho feminino: o asseio da casa, a obediência à moda e o controle rigoroso das contas domésticas. Esse modelo de domesticidade podia ser identificado nas camadas da burguesia, em diferentes graus que variavam de acordo com o poder financeiro. Foi nesse momento de exigência máxima com a mulher burguesa e o ambiente familiar impecável que explodiram os manuais de comportamento. O sucesso e a repercussão desses manuais demonstram a necessidade de criar um novo modo de vida, que deveria ser exclusivamente privado, já que a felicidade ideal se encontrava no círculo familiar e só poderia ser alcançada por meio de uma excelente administração do lar, do tempo e do dinheiro. Os manuais descreviam como organizar o tempo e os papéis sociais que os membros da família deveriam assumir o papel principal, era o da dona da casa, ela era a responsável pela vida privada tanto na intimidade familiar, nas refeições, limpeza e manutenção da casa, quanto nas relações entre a família e o mundo exterior que se davam nas recepções, bailes e saraus. (GONÇALVES, 2006, p. 96).

Além do exposto, vale mencionar que a dona de casa deveria organizar as tarefas domésticas de modo que todos, principalmente o marido, encontrassem em casa o máximo de conforto possível. O tempo dos homens era ditado pela vida pública e a vida privada, para eles, era o tempo em que descansavam do trabalho e de suas obrigações. O âmbito doméstico é considerado o lugar onde o tempo era destinado ao descanso. “A idealização do lar levava à idealização da dona-de-casa, era preciso que ela fizesse tudo com perfeição e ocultasse todos os esforços empreendidos para obtê-la, apenas o resultado deveria ser visto e não a execução.” (PERROT, 2009, p.129). Segundo CUNHA (2010, p. 86): A dona-de-casa deveria ser a primeira a acordar e a última a se deitar e estando sempre atenta a todos os detalhes do funcionamento da casa. Se ela não dispusesse de criados suficientes para todas as tarefas domésticas deveria pessoalmente se ocupar de algumas. Mas, sendo uma senhora abastada com muitos empregados, poderia passar a manhã se dedicando a atividades pessoais, como checar a correspondência, se exercitar ao piano e executar trabalhos finos como o bordado. Uma mulher respeitável não deveria sair de casa pela manhã, a não ser para participar de atividades filantrópicas e religiosas, as tardes eram dedicadas aos “deveres de sociedade.


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No período entre 1830 e 1914 as damas pertencentes à alta sociedade estabeleciam um dia da semana para receber visita em casa. Isso fazia parte das atividades das mulheres das classes privilegiadas. No final do século XIX, receber visitas durante o dia tornou-se algo inviável e, por isso, as recepções, aos poucos, passaram para a noite, o salão onde ocorriam essas recepções era, ao mesmo tempo, espaço público e privado. Por volta de 1880, as mulheres das classes altas frequentavam o centro da cidade, onde eram vistas em terraços de cafés, confeitarias e teatros. (MARTIN-FUGIER, 2009). Considerando o exposto, percebo que o trabalho da mulher dona da casa era o pilar para sustentar o papel social da família como feliz e bem sucedida; isso acarretou uma responsabilidade gigantesca sobre elas e, talvez com menos força, ainda se percebe até o mundo contemporâneo. Apesar do papel da dona de casa ter passado por transformações consideráveis nos últimos séculos, com a inserção da mulher no mercado de trabalho, que muitas vezes passa quase o dia todo fora de casa, ela acabou de alguma maneira sendo reconhecida no exercício laboral, no sentido de trabalhadora assalariada. Para dar conta das exigências dos afazeres domésticos, a mulher continuou precisando dividir suas tarefas do lar com o marido, domésticas, faxineiras, creches, escolas, promovendo, assim, a participação de outras entidades nas responsabilidades do lar e na criação de seus filhos. No entanto, Coelho (2002) discute esta mudança relatando que, apesar de terem ocorrido tantas alterações na questão da responsabilidade da mulher com a casa e a educação dos filhos, a carga principal de responsabilidade continua sobre ela. Isso pode ser percebido se observado que apesar da inserção da mulher no mercado de trabalho, permaneceram com ela as obrigações domésticas, pois mesmo que divida as tarefas, a responsabilidade final das atividades do lar recai toda sobre si. Wagner (2005) apresenta uma realidade observada em diversos contextos: apesar de trabalhar fora, em seu novo papel a mulher acaba acumulando funções e responsabilidades antigas como novas responsabilidades de sustento. O estereótipo de gênero por vezes se mistura ao estereótipo das tarefas, sendo algumas consideradas tarefas predominantemente femininas e outras masculinas. Sendo o trabalho doméstico exercido pelo homem visto como uma “ajuda” à mulher e não como responsabilidade do homem no zelo pela casa. (WAGNER; PREDEBON; MOSMANN; VERZA, 2005, p. 184).

Percebo que mesmo com as grandes conquistas da mulher, o seu papel ainda é permeado por ranços tradicionais, nos quais ela é vista como cuidadora da família e responsável pelo zelo da casa. Sendo assim, a mulher contemporânea soma sua inserção no mercado de trabalho às


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suas responsabilidades familiares, ocasionando dupla jornada de trabalho, dentro e fora de casa. Imagine o que essa situação pode gerar de sobrecarga, desconforto e depressão sobre as mulheres. Outra questão a ser considerada é que em outros países considera-se luxo contar com a ajuda de uma doméstica. Quando morei na Espanha, por exemplo, vivenciei uma situação em que a maioria de minhas colegas de doutorado ganhava um “extra” trabalhando como limpadoras nas horas vagas, visto que era trabalho muito bem remunerado. Dessa maneira, trabalhar limpando, em muitos países, tem pouca relação com um trabalho tão menosprezado como é em nosso país. Muito pelo contrário, lá estávamos sempre buscando esse tipo de ocupação. No entanto, também encontrei mulheres latino-americanas ilegais no continente europeu, prestando serviços domésticos, vivendo em condições análogas à escravidão. Levando em consideração o exposto, levanto questões importantes na análise: por que existe essa postura tão reacionária? Será que os discursos apresentados acima se explicariam pela própria característica do trabalho doméstico na construção social brasileira aqui apresentada? E por que persiste essa atitude reacionária? Longe de apresentar respostas que concluam pontualmente tais questões, mas com o objetivo de incitar o leitor a buscar reflexões ao longo da leitura, o que posso adiantar é que percebi certa revolta, raiva e até ódio mesmo nos discursos das patroas, culpabilizando as empregadas domésticas por suas responsabilidades do lar não serem atendidas como a sociedade gostaria e/ou cobraria delas. Porém, quando se atenta à essa dupla jornada, às cobranças e sobrecargas da patroa, é que tais comentários podem ser entendidos, mas jamais justificados, por serem eivados de reacionarismo.

1.3 Emancipações da mulher pobre, negra e escrava O povo-nação surge da concentração de uma força de trabalho escrava, recrutada para servir a propósitos mercantis alheios a ela, através de processos tão violentos de ordenação e repressão que constituíram, de fato, um continuado genocídio e um etnocídio implacável. (RIBEIRO, 1995, p.26).

A relação de trabalho escravagista entre patroas e domésticas acabou levando trabalhadoras à necessidade de se organizarem na conquista de uma mudança de tratamento e respeito à profissão. Costa (2007) apresenta, em pesquisa, que o movimento das domésticas como organização trabalhista começa em 1936, com a Associação das Trabalhadoras Domésticas, na cidade de Santos-SP, por Laudelina de Campos Melo. Como consequência dessa luta, em 1972 foi aprovada a lei que garantia a assinatura do contrato de trabalho em Carteira de


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Trabalho e Previdência Social. Em 2006, foi aprovada outra lei, que assegurava licença e estabilidade para a empregada gestante e concedia folgas no feriado, sem desconto em folha. Apesar de muita luta e esforço para que o trabalho doméstico fosse protegido por leis trabalhistas como qualquer outra ocupação no país, apenas em 2010/2011 a Organização do Trabalho Internacional (OIT), fundamentada na chamada agenda do Trabalho Decente, levou o tema para suas 99ª e 100ª Conferências que deu origem à Convenção 189 e à Recomendação 201 para Trabalhadores Domésticos. (BERNARDINO-COSTA, 2007). Graças a esses encontros, em 2012 surge uma discussão acalorada e de muita controvérsia em torno de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 66/2012, conhecida como a PEC das Domésticas no Brasil, que prevê a garantia da ampliação de direitos da categoria, amparados constitucionalmente, trazendo à tona todo o ranço desta visão escravocrata das classes média- alta nas grandes mídias e demonstrando, mais uma vez, que a sociedade brasileira ainda não emancipou a população negra e pobre do país. Segundo o Tribunal Superior do Trabalho, esta proposta estabelece 17 novas regras, entre elas a jornada de trabalho diário de 8 horas e 44 horas semanais, além do pagamento de horas extras, 13º salário, descanso semanal, férias e licença gestante. (TST, 2012). As controvérsias que surgem no cenário brasileiro a partir dessa nova proposta de garantias à classe referem-se aos direitos já assegurados nas leis trabalhistas a todos os demais trabalhadores em território nacional. O que é possível perceber são debates desconexos que dizem respeito às conquistas trabalhistas de um país democrático, que afirmam respeitar os direitos humanos e asseguram que a abolição do trabalho escravo é uma realidade desde 1888, com a assinatura da Lei Áurea. Vale mencionar que parte considerável das mulheres que compõem o grupo de domésticas no país é negra e tem baixa escolaridade. Oficializar o direito, garantido por lei, à essas mulheres causa, ainda hoje, muita discussão. Compreendo que isso demonstra, em certa escala, o quanto vivemos em um país racista, retrógrado e reacionário. O Dia Nacional das Trabalhadoras Domésticas é comemorado no Brasil em 27 de abril. A presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas – FENATRAD -, em Salvador-BA, Creuza Maria de Oliveira anunciou que em nosso País a atividade deriva do trabalho escravo e, por isso, grande parte da categoria é negra: O trabalho doméstico no Brasil é executado por mulheres negras, que não tiveram a oportunidade de ir para uma faculdade (por exemplo) e o trabalho que é valorizado é o acadêmico. [...] É um trabalho que tem grande componente de gênero, porque é exercido por mulheres, e também étnicorracial. No caso do Brasil, é feito por mulheres negras. Na América


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Latina, é um emprego exercido em grande parte por mulheres indígenas, afirmou a presidente. (LOPES, 2011, p. 111).

Nas comemorações de 2014, Creuza comemora, pois garante que “temos retrocessos, mas também avanços. Devemos, sim, comemorar as vitórias.” (PORTAL BRASIL, 2014). Aponta ainda a importância de o trabalho doméstico ter sido discutido em nível mundial pela Organização Internacional do Trabalho - OIT, em 2011, em Genebra, durante a realização da 100ª Conferência, na qual houve a participação de uma delegação brasileira, apesar do Brasil ainda não ter ratificado o documento. Segundo dados da OIT, o Brasil tem 7,2 milhões de trabalhadores domésticos, número que chega a 52,6 milhões no mundo. Segundo a agência, a maioria das pessoas que atuam na área enfrenta diariamente uma realidade na qual predominam baixos salários, longas jornadas, escassos ou nula proteção social, pouco tempo livre, más condições de vida e o descumprimento generalizado das normas laborais. (IBIDEM, 2014). Sobre a PEC das domésticas, no site da FENATRAD, Creuza deixa claro que: Se o texto for aprovado com as emendas propostas pela deputada Benedita da Silva, podemos comemorar o avanço. As emendas foram discutidas pela categoria e estamos de acordo com elas. Mas se não forem, teremos retrocesso e a equiparação proposta não terá sido alcançada. Aí, entraremos com uma ação de inconstitucionalidade e não vamos parar de lutar. (FENATRAD, 2014).

Apesar de ser evidente a necessidade de se proteger legalmente esta classe de trabalhadoras esquecidas e desvalorizadas no tempo, não houve apoio da maioria brasileira quanto à aprovação da PEC das Domésticas; pelo contrário, o que se viu foi a revolta das classes mais abastadas da sociedade contra a nova lei que regulamenta o trabalho doméstico. Prova disso é que, nas redes sociais e discussões das patroas que empregam essas mulheres, mantém-se o discurso reacionário da elite escravocrata do século XVIII, no qual se posicionava contra a Abolição e defendia que os negros não deveriam ser libertos, pois a sociedade brasileira iria sofrer com essa decisão, visto que o trabalho mais pesado sempre foi mantido por eles. Uma declaração contra a PEC ficou bastante conhecida em todo país, pela repercussão midiática que obteve. A socialite Danuza Leão (2013), que mantém uma coluna num dos periódicos mais lidos no Brasil, “A Folha de São Paulo”, publicou um artigo alegando que dar melhores condições às domésticas seria quase impossível e muito complicado para quem precisa da prestação desse serviço. Em sua justificativa ela argumentou que sairia muito caro para os patrões manterem seus empregados domésticos, que haveriam muitas demissões, o


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que seria um retrocesso para o país. É um contrassenso criticar a ampliação e regulamentação de direitos à essa categoria sob o argumento de que vai encarecer as contratações e que as empregadas serão demitidas Quem assim age continua recorrendo a um discurso retrógrado, de continuidade da exploração de mulheres negras no Brasil. Hoje, o movimento destas trabalhadoras no Brasil está representado institucionalmente pela Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD) que é uma, Associação formada por 26 sindicatos e mais uma associação. Ela representa uma categoria formada por, aproximadamente, 7,2 milhões de pessoas no Brasil. As organizações filiadas à Federação estão presentes em 15 Estados brasileiros: Acre, Bahia, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Paraíba, Paraná, Piauí, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina e Sergipe. (FENATRAD, 2014).

No contexto desse processo histórico, Oliveira (2014) aponta que a sociedade brasileira deveria destacar o valor social do trabalho doméstico para o desenvolvimento da economia e sociedade brasileira e até mesmo mundial. Já que, Não se trata apenas de igualdade de direitos, mas principalmente de inclusão e reparação histórica, diante dos absurdos já vivenciados por cerca de 8 milhões de trabalhadoras domésticas do país. No entanto, a visão da sociedade no geral, fundamentada no preconceito, é a de que o trabalho doméstico é uma atividade sem importância e que não gera lucro para o patrão. Diante desse ponto de vista, permeado por machismo e racismo, sempre houve evidente desvalorização do trabalho doméstico. As mulheres foram submetidas a condições degradantes e desumanas no que se refere ao desempenho de suas atividades, não tendo nem sequer a proteção das leis trabalhistas como os demais trabalhadores. (FENATRAD, 2014).

Um testemunho fotográfico da norte-americana Pamela Duffy, desenvolvido durante cinco anos no Rio de Janeiro e em São Paulo, mostra exatamente essa relação, de que a empregada entra e sai dos espaços da casa sem ser percebida; para a fotógrafa, a doméstica vive na invisibilidade. (BERND, 2014). Outro trabalho fotográfico que merece destaque é o da francesa Olivia Gay, que realizou uma pesquisa fotográfica no Rio de Janeiro em novembro e dezembro de 2012 intitulada “Contemplações”, inspirada por Gilberto Freyre e Thomas Hobbes. Gay (2012) apresenta o Brasil “através do corpo como expressão de uma vida de trabalho.” (GAY, 2012). As fotos dela mostram mulheres sozinhas trabalhando ou servindo outros corpos. Depois de manter contato via rede social facebook com a presidente da FENATRAD, exempregada doméstica e candidata a deputada federal pela Bahia, Creuza Maria de Oliveira 6, ela concedeu-me

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entrevista

por e-mail com algumas declarações acerca da temática

Entrevista cedida em maio de 2015 via e-mail.


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trabalhada. Expliquei que estava pesquisando os cotidianos das domésticas em Chapada dos Guimarães. Elaborei perguntas para Creuza e as respostas que entendi como significativas apresento abaixo: Infelizmente a trabalhadora doméstica na sua profissão, exerce várias funções: lavadeira, passadeira, cozinheira, cuidadora de idosos, crianças e até animais, cuida de jardins [...] mas não recebe o salário digno para todas as funções que exerce. Isso ainda é geral em todo o Brasil. [sic] (OLIVEIRA, 2015).

O discurso expõe que existe uma dificuldade de ambas as partes nas delimitações das responsabilidades na casa, onde muitas vezes não se sabe ao certo o que cada patroa vai solicitar para a doméstica causando, assim, falta de clareza nas obrigações que lhe cabe. Aponta, também, que o salário dessas trabalhadoras não é digno, e, na verdade, nunca o é, já que, por lei, não existe um teto salarial para a categoria, apenas se aponta que uma doméstica não deve receber menos do que um salário mínimo. Visto que um salário mínimo hoje equivale a R$ 880,00 (oitocentos e oitenta reais), nenhum salário baseado no mínimo será digno, posto que, com este valor ninguém consegue sobreviver dignamente em nosso país. Na carreira de trabalhadora doméstica hoje no Brasil não houve muitas mudanças, porém as mesmas atualmente estão mais escolarizadas, tem acesso às informações. Hoje já temos sindicatos da categoria em todo Brasil [...] essa geração já não ficam mais 20 anos, 30 anos em uma mesma casa [...] elas tem mais oportunidades de lazer- vão à festas, etc, mas ainda sofrem muita violência no local de trabalho - assédio moral e sexual, agressões físicas, ainda são violadas nos seus direitos trabalhistas, continuando assim, sem status social. [sic] (IBIDEM, 2015).

Apesar da presidente da FENATRAD começar sua fala indicando que não houve mudança nessa categoria, logo em seguida se contradiz, apresentando o espaço que essas mulheres conquistaram. Oliveira expõe, ainda, a continuidade do desrespeito aos direitos humanos a essa classe trabalhadora, justificando, assim, um sistema de relação servil, escravocrata, discutido anteriormente. O acesso ao consumo, realmente melhorou. As trabalhadoras domésticas, atualmente, têm aparelhos celulares modernos, em algumas casas encontrase TV's, plasmas, máquinas de lavar, microondas, sofás de boa qualidade, dentre outras coisas. Através do programa Minha Casa Minha Vida, muitas adquiriram casa própria. [sic] (IBIDEM, 2015).

O consumo a eletrodomésticos é apresentado como algo que melhorou, democratizando o acesso dessas mulheres a produtos antes impossíveis de comprar. Essa fala vem ao encontro do que os estudos contemporâneos identificam sobre consumo, visto que, os bens são investidos de “valores socialmente utilizados para expressar categorias e princípios, cultivar


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ideias, fixar e sustentar estilos de vida, enfrentar mudanças ou criar permanências.” (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2013, p.8). Na questão alimentar a categoria está a se alimentando bem. Isso não quer dizer, que tenham que se alimentarem igual aos patrões. O importante é que hoje, a categoria tem sua casa e tem a liberdade de comerem o que querem, pois quando morávamos nas casas dos patrões, éramos obrigadas à comer os restos. A exemplo disso, aqui em Salvador, conseguimos um Conjunto Habitacional (Conjunto Habitacional 27 de Abril, em homenagem ao dia nacional da Trabalhadora Doméstica) para as Domésticas, com 80 habitações, sendo que 55 são associadas do sindicato e Eu tenho participado de vários momentos de confraternização e percebo que há fartura na casas dessas mulheres. Elas fazem aniversários, cozinham, convidam os amigos e vizinhos [...] As filhas dessas trabalhadoras estão estudando, fazendo ENEM, contribuindo assim para a diminuição do trabalho doméstico infantil. As trabalhadoras domésticas ainda é uma categoria formada por mulheres negras, mães solteiras, vítimas de violência domésticas praticadas pelos companheiros (quando tem companheiros), mas que ainda tem muita resistência e dignidade para continuar lutando pela sobrevivência. [sic] (OLIVEIRA, 2015).

As narrativas apresentadas demonstram a relação de subalternidade, preconceito e desrespeito com esta classe, confirmando à pesquisa que esta relação sempre foi pautada pela hierarquização social, carregada de uma herança da relação escravocrata de quase 400 anos. Elas afirmam ainda mais o imaginário da elite brasileira, que relaciona esta categoria com algo ruim, traiçoeiro, mas que é imprescindível na realização de algumas tarefas como limpar, varrer, tirar o pó, lavar roupa, cozinhar, cuidar dos filhos e/ou recolher o lixo. Porém, não há como negar na fala de Creuza uma mudança substancial na qualidade de vida dessas mulheres, como exemplo, o acesso ao consumo de produtos, alimentos e até de casa própria, que antes era algo impossível. Sendo assim, o que posso perceber é uma resistência constante dessas mulheres na luta por uma vida mais digna. Embora a exposição de Marx comece pelo capital, sua investigação deve começar pelo trabalho e estar constantemente reconhecendo que na realidade o trabalho é que é primordial. O mesmo se aplica à resistência. Ainda que o emprego comum da palavra sugira o contrário – que a resistência é uma resposta ou reação –, a resistência é primordial em matéria de poder. Este princípio faculta-nos uma perspectiva diferente sobre o desenvolvimento dos conflitos modernos e o surgimento de nossa atual guerra global permanente. O reconhecimento da primazia da resistência permite-nos enxergar essa história de baixo e esclarece as alternativas que são possíveis hoje (HARDT; NEGRI, 2005, p. 98).


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DOMÉSTICAS: MULHERES EM CARNE E OSSO

[...] o indivíduo, ao falar do que sente, comunica-se consigo mesmo através dos outros, compreendendo, por meio desta expressão, aquilo que sente. (REZENDE; COELHO, 2010, p.62).

2. Sociologia do Cotidiano: as mulheres domésticas [...] o sistema de Marx contém uma contradição particular: por um lado, Marx construiu filosoficamente o sujeito da revolução, ou seja, formulou a hipótese de uma classe que, necessariamente, enquanto classe, por meio de um processo revolucionário, liberta toda a humanidade. Por outro lado, descreveu a sociedade capitalista de modo a demonstrar que as leis econômicas conduzem necessariamente a uma revolução histórico-social. [...] Não questiono o fato de que a classe operária possui um papel histórico extremamente significativo, pois a história contém exemplos eloquentes disso. Minhas dúvidas referem-se apenas à teoria de que só uma classe possa assumir o poder e ser a única representante da transformação. (HELLER, 1982, p.14, 17).

Entendo que não devem ser ignorados os contextos sociais das mulheres aqui analisadas, inclusive o dia a dia em torno da comensalidade de famílias classe médio-alta (patroa) e de classe baixa (empregada), pertencentes obviamente a contextos sociais distintos. Ainda que a maioria das patroas more em Cuiabá, a relação entre elas foi observada em Chapada dos Guimarães. Partindo da premissa que o objetivo deste estudo é compreender diferenças e semelhanças das domésticas e suas patroas, no que cabe a interações e representações em seus contextos sociais por meio da comensalidade, deve-se observar a interrelação entre ambas, na busca do entendimento do lugar da empregada na mesa de sua família e na da patroa. Seguindo este percurso, posso afirmar que os estudos do cotidiano correspondem a uma perspectiva metodológica que se “ [...] interessa mais pela mostração do social do que a sua demonstração.” (PAIS, 2002, p. 30). Desprendida de uma visão dogmática, acredito na possibilidade de um olhar indisciplinado sobre o objeto de estudo, já que a realidade social inexiste a não ser de forma interpretável, por meio de narrativas, visto que o foco aqui é como as protagonistas dessa pesquisa relatam seus mundos e realidades. Assim, dentro dos parâmetros apresentados, aponto nesta pesquisa algumas conversas e entrevistas semi-estruturadas em profundidade para constituir o ponto de partida desta análise proposta da vida comum e de seus atores sociais. Pretendo questionar o cotidiano de cada


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mulher, envolta na rotina das refeições, por intermédio de conversas e observações participantes a fim de, Contribuir não só para uma original aproximação a vida cotidiana, como ao mesmo tempo, para potenciar a própria subversão do cotidiano, entendida esta no sentido de uma re(invenção) do cotidiano. Em vez da ingestão passiva do cotidiano que nos é imposta do exterior, como dizia Durkheim. (PAIS, 2002, p. 175).

Observar o cotidiano é a meta, tendo as narrativas como matéria-prima para o seu entendimento, considerando os aportes teóricos de José Machado Pais (2002, 2003, 2006), no tocante às metodologias de pesquisa qualitativa com as rotas investigativas construídas no decorrer dos estudos. Segundo Pais (2003, p.17), a “Sociologia da vida cotidiana pode ser caracterizada por uma “lógica de descoberta”, que se afasta da lógica do preestabelecido.” Para o autor, a perspectiva metodológica, que toma o cotidiano como alavanca para o conhecimento, condena os percursos de pesquisas a uma viagem programada, guiada pela demonstração rígida de hipóteses de partida a uma domesticação de itinerários que facultam ao pesquisador a possibilidade de apenas ver o que os seus quadros teóricos lhe permitem. “O que se passa no quotidiano é „rotina‟, costuma-se dizer.” (IBIDEM, 2003, p. 28). Ao significado de cotidiano é possível associar a ideia de presente, mas não só isso, pois o cotidiano está imbricado naquilo que acontece todos os dias e que implica rotina de repetição. A rotina relaciona-se à ideia de caminho, de rota, que, por sua vez, pode estar ligada semanticamente a ruptura, ao corte, ao rompimento. Considerando a rotina, especialmente a vivida na casa da patroa, relacionei as interpretações sobre as formas como as mulheres que compõem o corpo do estudo “constroem” sua própria vida, reinventando seus modos de viver, seus rituais da comensalidade a partir dos seus consumos alimentares e do que é feito com eles, observando essas trajetórias, e levando em conta, ainda, as vivências cotidianas. Pais (2003, p.29), ao discutir a “rotina e ruptura” do cotidiano, faz uma varredura detalhada na paisagem social. Nesse percurso é necessário estar aberto a tudo que acontece, mesmo quando, aparentemente, nada ocorre. Embora a narração seja distinta da ação, “[...] ela é o elemento constitutivo, posto que, percebo a pesquisa como prática de observação e, como tal, coloca em relação à ação, a linguagem e a vida cotidiana dos sujeitos.” (MELUCCI, 2005, p. 40-41). “Um caminho escuro que se vai clareando à medida que se vai fazendo, isto é, à medida que o percorremos, porque „andando‟ se faz o caminho.” (PAIS, 2003, p. 64). A narrativa retrata o cotidiano


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como ele acontece e a interpretação lhe dá inteligibilidade através da evocação de novas palavras e de novas vozes. “Ao narrar, procedo a uma análise combinatória de observações dispersas que ganham sentido (analítico) no próprio processo (descritivo).” (PAIS, 2006, p. 24). Os caminhos dos estudos da vida cotidiana, trilhados com os apoios propostos nesta pesquisa, serão recursos que possibilitarão o desempenho do papel de intérprete, exercido pelo pesquisador, uma vez que as narrativas das mulheres são carregadas de conhecimentos e informações sobre o modo de reproduzirem ou modificarem as normas socialmente construídas. Contudo, esse caminho não se faz sem conflitos, sem dúvidas e incertezas, pois as dúvidas servem para direcionar a construção de respostas parciais e provisórias sobre a realidade que nos é dada ler. Seguindo tal raciocínio e com o objetivo de desvendar esses cotidianos em questão, escolhi conversas informais que foram realizadas ora individualmente ora em grupo, focadas na questão central: o consumo e a preparação de alimentos. Porém dentro desses diálogos apareceram fatores que estão ligados a essa discussão, a relação das domésticas com o seu trabalho, com sua vida e assim por diante, posto que as análises possuem uma abordagem em profundidade. Ditas conversas não foram uma escolha, mas uma consequência no percurso da pesquisa, visto que se constituíram em uma estratégia utilizada para que as entrevistadas ficassem à vontade, principalmente no início dos contatos. Para compor a pesquisa escolhi domésticas e patroas, que cozinhassem ou já cozinharam, preferencialmente empregadas que cozinhem na casa da patroa e cuja patroa também cozinhe, ainda que ocasionalmente. Foram observados os ambientes, os comportamentos, posicionamento e a relação com a cozinha, a mesa, maneira de fazer e explicar. [...] o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura de significado. (GEERTZ, 1989, p.15).

Franz Boas (1858–1942) e Malinowski (1884–1942), teóricos antropólogos, inspiraram o desenvolvimento de pesquisas que buscam a compreensão da sociedade sob o ponto de vista das pessoas que nela vivem. Assim, não é suficiente realizar perguntas, é necessário observar o que as pessoas fazem, as ferramentas que utilizam diariamente e como se relacionam entre si.


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Este processo de pesquisa, envolvendo teorias, práticas e experiências vividas, se desdobrou em um período de mais de dois anos e meio de duração. Neste período, fui sendo guiada na investigação com o objetivo de desvelar o universo feminino das empregadas domésticas na cidade de Chapada dos Guimarães, por meio do filtro da Sociologia do Cotidiano, centralizada nas relações dessas mulheres com a alimentação e todo vínculo que a comida fomenta. A proposta de investigação desenvolvida se baseia no estudo de um grupo social e suas práticas inseridas em um espaço privado: a cozinha, sendo este espaço inscrito num roteiro social contextualizado em uma cidade. [...] defendo que os conhecimentos dos antropólogos sociais têm uma qualidade especial, devido à área onde exercitam sua imaginação artística. Essa área é o espaço vivo de alguma pequena comunidade de pessoas que vivem juntas em circunstâncias em que a maior parte de suas comunicações diárias depende diretamente da interação. Isto não abrange toda a vida social humana, muito menos abrange toda a história humana. Mas todos os seres humanos gastam grande parte das suas vidas em contextos desta espécie. (LEACH, 1989, p. 50-51).

Estive atenta a teorias e pesquisas bibliográficas com o intuito investigativo direcionado às empregadas domésticas. E, como consequência dessas buscas, acabei por imergir no ciberespaço encontrando blogs, redes sociais, discussões e comentários sobre essas mulheres. Compreendo que a internet pode ser também uma fonte de análise de discursos relacionados ao tema, como Lemos (2007) pondera que, o ciberespaço ou cibercultura é um espaço não físico ou territorial, mas composto por um conjunto de redes de computadores através das quais todas as informações, sob as suas mais diversas formas, circulam. Cibercultura é a relação entre a técnica e a vida social, criada a partir da associação da cultura contemporânea com as tecnologias digitais, sendo uma realidade social planetária, caracterizada pela formação de uma conectividade telemática generalizada, que amplia assim as possibilidades comunicativas e promove agregações sociais. (LEMOS, 2007, p. 87).

Segundo Mariza Peirano (2008, p. 3), “todos podem „fazer etnografia‟, e a todos é desejável uma „perspectiva etnográfica‟.” Essa maneira, percebida como método, estaria acessível a qualquer pesquisador em busca de algum. Contudo, o que Peirano defende, em seu artigo “Etnografia, ou a teoria vivida”, é que etnografia não é apenas uma metodologia ou prática de pesquisa, “mas a própria teoria vivida. [...] No fazer etnográfica a teoria está, assim, de maneira óbvia, em ação, emaranhada nas evidências empíricas e nos nossos dados.” A teoria e a prática são inseparáveis, ou seja, o fazer etnográfico é perpassado o tempo todo pela teoria. Antes de ir a campo, para nos informarmos de todo o conhecimento produzido sobre a


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temática e o grupo a ser pesquisado; no campo, ao ser o nosso olhar e escutar guiados, moldados e disciplinados pela teoria; ao voltar e escrever, pondo em ordem os fatos, isto é, traduzindo os fatos e emoldurando-os numa teoria interpretativa. [...] os discursos e práticas nativos devem servir, fundamentalmente, para desestabilizar nosso pensamento (e, eventualmente, também nossos sentimentos). Desestabilização que incide sobre nossas formas dominantes de pensar, permitindo, ao mesmo tempo, novas conexões com as forças minoritárias que pululam em nós mesmos.” (GOLDMAN, 2008, p.7).

Os estudos de Clifford (1999) apontam que o trabalho de campo não supõe apenas ir, ver ou pegar amostras, consiste em um trabalho muito mais complexo, já que abrange uma “coresidência extensa, uma observação sistemática, uma interlocução efetiva, uma mistura de aliança, cumplicidade, amizade, respeito, coerção e tolerância irônica.” (CLIFFORD, 1999, p.94). Para o autor, o trabalho de campo baseia-se em estabelecer relações com pessoas e é a esse ponto que me restrinjo: as domésticas. O que costumamos denominar „ponto de vista do nativo‟, não deve jamais ser pensado como atributo de um nativo genérico qualquer, negro, de classe popular, ilheense, baiano, brasileiro ou uma mistura judiciosa de tudo isso. Trata-se sempre de pessoas muito concretas, cada uma dotada de suas particularidades, e sobretudo, agência e criatividade. (GOLDMAN, 2003, p. 456).

Na construção da pesquisa aqui proposta, são as domésticas da cidade de Chapada dos Guimarães que são ouvidas, o objetivo é dar voz a elas, contudo não foi dentro de um monólogo, em que somente elas falaram, mas um diálogo entre eu e elas. Seja, como for, a utilização de fontes orais permite a realização de uma história interpretativa a partir de uma matéria-prima (impressões, opiniões, sentimentos, crenças) que muito raramente se consegue extrair das fontes tradicionalmente utilizadas. Há que fomentar à institucionalização de uma história oral, incentivando a formação de arquivos, destinados a promover a investigação com base na utilização de técnicas de história oral, interrogando aqueles que vivem o quotidiano e que formam, segundo Robert Lemaire, a “memória dos sobreviventes.” (PAIS, 2002, p. 174).

Neste sentido, o objetivo é compreender os significados atribuídos pelos próprios sujeitos ao seu contexto, as suas formas de contar e agir. O foco está no comportamento social do sujeito, no seu cenário cotidiano, tendo como base dados qualitativos obtidos a partir de observações e interpretações feitas no contexto da totalidade das interações humanas. Os resultados da pesquisa são interpretados com referência ao grupo e ao cenário, conforme as interações no contexto social e cultural e a partir do olhar dos sujeitos participantes da pesquisa. Espero descrever minha pesquisa de campo exatamente como aconteceu. E se digo espero é porque não é fácil contar algo sem cronologia, como em uma linha do tempo, pois as coisas


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na realidade não acontecem assim. Gostaria de conseguir expor essa experiência como ela aconteceu, de modo, portanto, como nos alerta Machado Pais (2002), sem nenhum roteiro nas mãos. Meus primeiros passos na pesquisa de campo aconteceram dentro da sala de aula, com alunas e em grupos, ao pensar em uma estratégia de conversas, exposições de pontos de vista, de forma que, quando surgia oportunidade relacionada aos conteúdos, falávamos sobre temas como trabalho, patrões, alimentos, comprar, o cozinhar. Essas conversas eram todas anotadas. Logo depois de cada encontro, eram registradas as narrativas exatamente como expostas pelas pesquisadas, muito significativas, construídas em um ambiente de grupo, tranquilo e amistoso, em que as alunas se expressavam sem nenhuma intervenção. A conversa corria livre e solta, deixando as participantes à vontade para exporem sentimentos e opiniões sobre os temas discutidos. Muitas vezes, quando algum discurso destacava-se dos demais, anotava-o imediatamente em meu caderno de campo. Percebi que as conversas informais na sala de aula estavam se desenvolvendo bem e conclui que esse poderia ser um bom começo. Longe do grupo, em outros espaços, tentei propor sutilmente a realização de entrevistas, cogitando a gravação de nossas conversas, pedindo autorização para tanto, porém foi uma decepção. Algumas saíram correndo apontando a pressa como justificativa; outras ficaram sem graça e quase não falaram nada, esboçando uma reação muito diferente daquelas observadas em nossas conversas anteriores. Por isso, decidi começar de novo e cheguei à conclusão que precisava conquistar a confiança delas, em mim e na minha pesquisa, e que só conseguiria isso por meio de muitas conversas, contatos e, principalmente, de um posicionamento cristalino em meu discurso, isto é, deveria deixar claro para cada uma delas o meu apoio. Além disso, foi fundamental deixar claro às participantes da pesquisa que o que dissessem sobre seus respectivos empregos seria mantido em silêncio. Pairava uma preocupação neste sentido sempre que eu ligava o gravador. Duas delas chegaram a pedir que desligasse o gravador, argumentando: “Conversar é uma coisa professora, gravar é difícil, porque fica uma prova, né?”7 [sic] (DINA, caderno de campo, março, 2014)8. “Olha, não quero que grave o que falo; isso pode me prejudicar, tem como eu

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Tive muitas dúvidas em como citar conversas não gravadas no texto, seguindo as normas da ABNT. Não encontrando nenhuma regra, conversei com um bibliotecário que explicou não haver nenhuma regra nesses casos. Porém, sugeriu que usasse de maneira diferente as citações faladas e anotadas no caderno de campo das demais, poderia ser em itálico, por exemplo, desde que explicasse, logo na primeira citação da dissertação, essa escolha. Segui sua sugestão e toda vez que a citação estiver em itálico será uma fala que não foi gravada, apenas anotada no caderno de campo após o diálogo. 8 Os nomes apresentados das entrevistadas, domésticas e patroas, são fictícios e escolhidos aleatoriamente.


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falar e você só anotar, ai é mais difícil de eu perder meu emprego.” [sic] (FLOR, caderno de campo, março, 2014). As fontes orais permitirão sem dúvida, uma maior aproximação, tanto aquelas facetas do quotidiano que se encontram mais ligadas aos pequenos incidentes da vida doméstica, ao modo viver intimo, etc., como à realidade daqueles grupos sociais situados à margem das esferas de poder (elites, dirigentes políticos, grupos de pressão, associações, etc.) em relação às quais é possível deitar mão de documentos escritos. (PAIS, 2002, p. 175).

Voltei às conversas, porém comecei a encontrar também as alunas que são domésticas em lugares diferentes, fora da escola. Pelo fato de a cidade ser pequena, aproveitei e comecei a pesquisar onde essas mulheres iam, compravam, moravam, trabalhavam. Descobri, por exemplo, que não havia somente a feira de sábado na praça central da cidade, que outra funciona aos domingos na periferia da cidade, no bairro São Sebastião, próxima a escola que lecionava. Das mulheres pesquisadas, algumas vendiam produtos, enquanto outras compravam nesses comércios. Conheci um salão de beleza, “Beleza Mil”, localizado no mesmo bairro, onde duas delas trabalham, Rosa como manicure e Paty tingindo cabelos, fazendo chapinha e escova. “Sou diarista não cabeleira, faço só essas coisas que faço bem, pra ganhar mais dinheiro.” [sic] (PATY, caderno de campo, março, 2014). Catia, Tina e Gia frequentavam o mesmo salão. Estive lá algumas vezes e percebi, a cada encontro, maior proximidade entre mim e as mulheres pesquisadas. Em outro extremo, longe da periferia, conheci Beta há uns dois anos, nas aulas de hidroginástica e reencontrei-a na feira de sábado, na praça do centro da cidade, mais frequentada pelas patroas. Ela fazia compras para sua patroa. Conversamos algumas vezes sobre cozinhar, patroas, suas receitas e contei-lhe sobre minha pesquisa. Notei-a muito receptiva e combinamos de nos reencontrar. Mesmo focada nas domésticas, mantive contato com algumas patroas, uma vez que, como já foi dito, a doméstica só existe na contextualização laboral entre ela e seus empregadores. A aproximação com as patroas aconteceu em espaços aonde estou acostumada a ir: conversei com algumas na feira de sábado, no trabalho, no supermercado e visitei algumas casas. Fui convidada por uma delas, Val, 48 anos, casada, mãe de dois filhos adultos, a experimentar angu de milho verde com frango caipira, comida típica mineira que ela disse não dispensar nos finais de semana. Em um ambiente alegre e descontraído, conversei com as mulheres, ora com as patroas, ora com as domésticas. Essa experiência, posso afirmar, foi a base de minha pesquisa, posto que,


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a partir das conversas informais, no convívio social de Chapada dos Guimarães, foi que consegui ter acesso a algumas informações, que muito provavelmente não teria obtido com um gravador ligado. Nossas conversas eram compostas de perguntas, mas tanto eu como elas, mergulhávamos na informalidade de uma animada conversa de feira em um sábado ou domingo. “[...] a relação com as palavras do outro é sempre um encontro acontecimental, e não uma simples troca (linguística) ou um reconhecimento (intersubjetivo).” (LAZZARATO, 2006, p. 164). Depois da relação construída em diversos contatos, encontros, diálogos, a prevenção contra o gravador de voz mudou; liguei o gravador do celular inúmeras vezes, com a autorização das pesquisadas e, quase sempre, seguindo sugestão delas. É imprescindível deixar claro que à rejeição à gravação das conversas só ocorreu porque essas mulheres ainda não tinham construído uma relação de confiança comigo. Após alguns meses, as personagens da pesquisa já não se preocupavam se eu ia ou não gravar as conversas. Com isso compreendi que o problema não era o gravador, mas a confiança que precisaram ter na pesquisadora. Tudo isso leva à reflexão apontada por Pais (2002, p. 55-59), quando apresenta dois tipos de pesquisadores: o turista e o viajante. O turista apenas circula, faz o seu tour, segue roteiros que definem seus passeios, espaços, campos de ação e de procura, apontando para um pesquisador condicionado por conceitos e teorias, com rotas preestabelecidas. Já o pesquisador viajante é aquele que está localizado na Sociologia do Cotidiano, das descobertas, que não segue as rotas estabelecidas, muito pelo contrário, esse pesquisador é um explorador que se atém as descobertas e não aos roteiros. Pois então, seguindo as descobertas e não as rotas estabelecidas, assumindo a versão viajante de descobrimento é que apresentarei quem são essas mulheres domésticas em carne e osso e quais revelações foram surgindo nas explorações da pesquisa.

2.1 Domésticas: quem são elas? Que nada nos defina, que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância, já que viver é ser livre. (Simone de Beauvoir, Segundo Sexo, vol. II).

Independentemente de o interesse estar na empregada, apresento também algumas patroas que conheci no desenrolar da investigação, pois como já foi dito, não há como falar de doméstica sem patroa, visto que é a partir dessa relação laboral que elas existem como tais. Explanarei, então, como construção de minha pesquisa, algumas relações que mantive com essas mulheres.


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Os contatos aconteceram com 12 domésticas e 7 patroas. No que diz respeito às domésticas, dez delas moram na periferia da cidade, uma na casa da patroa e outra na zona rural; todas as patroas vivem ou visitam a cidade para veraneio em bairros mais centrais da zona urbana, locais preferidos de moradia das classes média e alta. É Interessante ressaltar, posto que tal dado vem ao encontro ao primeiro capítulo, que todas as empregadas são negras, e as patroas são todas brancas, inclusive as que ascenderam socialmente. De mundos parecidos, mas com realidades bem diferentes, foram essas as mulheres com quem mantive contato. Em quase todos os casos visitei a casa das pesquisadas, principalmente na cozinha, observando a preparação de algumas receitas. [...] A uma produção racionalizada, expansionista além de centralizada, barulhenta e espetacular, corresponde outra produção, qualificada de „consumo‟: esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos próprios, mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante. (CERTEAU, 1994, p. 39).

A ação de cozinhar é “[...] a manifestação de arte mais completa. Você imagina, elabora, cria, planeja, produz, executa, testa, serve para outras pessoas e come sua própria criação. É um processo antropofágico requintado, em que o prazer é o privilégio maior. Pena que engorda.” (PAIVA, 1995 apud NASCIMENTO, 2007, p. 107). A apreensão e percepção das vivências pessoais, situações e eventos que surgiram na pesquisa de campo, as relações intersubjetivas entre entrevistador e entrevistado são de fundamental importância para permitirem o acesso aos significados atribuídos pelos indivíduos envolvidos nos estudos, já que são recíprocas as influências entre eles neste processo de interação no contato. Por esse motivo apresentarei essas mulheres a partir de nossas vivências, sob meu ponto de vista com a preocupação de responder: Quem são essas mulheres? Respeitando o que elas quiseram falar e falaram sobre si, e o que eu pude conhecer no período de contato da pesquisa em um ano e meio. Em alguns casos foi possível construir uma trajetória de vida; em outros, não. Graças ao contato realizado, foi possível compreender algumas escolhas, ideias para o futuro, e, por meio de suas narrativas, entender como pensam e expõem seus conhecimentos sobre alimentos, trabalho, escolhas, preparações e vida. Pois bem, começarei com Marga, 44 anos, casada, mãe de 2 filhos e avó de 1 neto. Ela nasceu em Chapada dos Guimarães. A princípio muito desconfiada, depois de algum tempo em que nos encontrávamos para conversar sobre comida – é impressionante como este assunto abre


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portas e relaxa as entrevistadas – convidou-me para ir à sua casa, fez questão de mostrar como preparava o bolo de fubá, inclusive, revelou seu segredo, que é colocar erva doce ao invés de fermento ou bicarbonato. Marga não pôde estudar, sempre trabalhou como empregada doméstica, sua família era toda da zona rural, mas ela nasceu e viveu na cidade, casou bem nova e, aos 17 anos teve seu primeiro filho. Muito organizada, cuidadosa e dedicada no trabalho, sempre trabalhou por anos a fio na mesma residência, ajudando a criar os filhos das patroas, a cuidar de patrões enfermos, das casas dos outros. Agora, com 44 anos voltou a estudar, quer conseguir ler um livro inteiro um dia, gosta de romances e de histórias de países e costumes. Ela tem casa própria, ocupada há 10 anos, ajuda a formar os filhos na faculdade, um em Direito e outro em Pedagogia. Seu marido, Luiz, é jardineiro, cuida de muitas casas na cidade, fica com a chave de todas elas. O casal não tem dia de folga: nos fins de semana os patrões estão na cidade e, consequentemente, os empregados devem estar no trabalho. Essa mulher gosta de cozinhar, tem suas receitas preferidas, cozinha na casa da patroa, porém é na sua cozinha onde elabora as melhores receitas. Adora preparar pratos para sua família e amigos, “sem pressão”, e confessou-me que o melhor era ser a primeira a experimentar o que tinha feito com suas próprias mãos, mas que essa sensação nem sempre era possível na casa da patroa, explicando que de um bolo ou uma torta, por exemplo, não há como tirar um pedaço para provar se ficou bom. Marga revelou seus segredos como um tesouro, valorizando nossa relação, posto que, o segredo é percebido como um recurso importante na preparação de uma receita, isto é, o uso do segredo faz parte de estratégia de convencimento e na produção de uma sensação de propriedade que, frequentemente, fica oculto ao próximo. Relembrando Simmel, que apresenta o segredo como algo positivo, quando se refere a ele como mecanismo de alcançar certos fins na produção de um senso de propriedade: “[...] mais variadas espécies de propriedade interior adquirem mediante a forma de segredo, um valor característico; o conteúdo do que é silenciado cede em importância ao simples fato de permanecer oculto aos demais.” (SIMMEL, 1906, p. 20). Outra doméstica que participou da pesquisa foi Beta, 53 anos, viúva, mãe de 2 filhos, nascida em Cárceres. É moradora de Chapada dos Guimarães há 8 anos e reside na casa da patroa, em um condomínio fechado. Seu quarto e banheiro, separados, ficam dentro da casa, no mesmo corredor dos outros quartos e banheiros da moradia. Estive com ela muitas vezes. Como já nos conhecíamos, o contato foi bem tranquilo. Ela ensinou-me a fazer um pão de queijo no liquidificador que aprendeu em um dos cursos de


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culinária que sua patroa fez questão que frequentasse. Segundo Beta, essa iguaria é muito prática porque pode ser congelada e servida no café da manhã quentinha ou oferecida à uma visita inesperada. Além disso, afirmou que quando vai à Cáceres prepara o pão de queijo para seus familiares e eles adoram. Beta casou-se duas vezes; revelou-me que tem “dedo ruim para homem”: o primeiro era muito fechado, não gostava muito de sair, estava sempre na casa da mãe, era rude e mal humorado, ao contrário dela, que é expansiva, gosta de sair, dançar, beber cerveja. Dada a diferença entre os dois, não tiveram um bom relacionamento. Seu esposo morreu doente, mas ela cuidou dele até o fim. O segundo era alcoólatra e batia nela e nos filhos, não dava dinheiro em casa, “a coisa ficou tão feia que eu tive que fugir de casa com meus filhos, senão íamos morrer.” [sic] (BETA, caderno de campo, janeiro, 2014). Apesar de trabalhar muito e ter poucas folgas, gosta muito de dançar, disse que sempre que pode vai dançar nos bailes. Também gosta de namorar, mas não quer mais casamento, diz ter dois namorados, cada um em um baile diferente: “gosto de dançar, aí em cada baile tenho um namorado diferente, e bem longe: um é em Cuiabá e outro em Cáceres; vejo eles pouco, porque trabalho muito, mas às vezes eu vou dançar e marco com eles no baile; é bom, a gente esfria a cabeça e eu gosto de homem, de safadeza (risos).” [sic] (BETA, caderno de campo, março, 2014). Beta assumiu o gosto pela culinária, mas prefere fazer doces, sabe fazer muita variedade, e gosta de receber elogios quando cozinha. Ela é muito vaidosa e sempre se preocupa com os cabelos, unhas, corpo. Em todas nossas conversas esse assunto ressurgia, o que estava fazendo, gastando e comprando para melhorar algum aspecto de seu corpo. Nina, 23 anos, solteira, mãe de 2 filhos pequenos, morava até há pouco tempo com a mãe e uma irmã; nasceu na zona rural do município, tem namorado, quer fazer faculdade de enfermagem, foi a única que citou o desejo de cursar o ensino superior. Quando questionada sobre o que gostava de fazer em suas horas livres, surpreendeu-me revelando gostar de ler romances. Quando ouvi isso, julguei-a instantaneamente pensando em romances vendidos em bancas de jornal do estilo Sabrina e Bianca. Fui surpreendida, porém, quando perguntei qual o último livro que lera e que mais tinha gostado e ela respondeu: “Adorei Primo Basílio, de Eça de Queiroz, têm uns livros na biblioteca do centro da cidade muito bons, eu gosto.” [sic] (NINA, caderno de campo, abril, 2014). Ela é uma pessoa muito comunicativa, conversávamos bastante quando nos encontrávamos na rua ou na escola, tínhamos sempre muito assunto. Quando fui a sua casa preparou uma galinhada, que aprendeu com sua tia-avó e que é um sucesso. Nina afirmou que é seu prato


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predileto e sempre serve na casa dos patrões, atendendo à solicitação deles. Gosta de cozinhar pratos que tem certeza que ficarão bem feitos, não gosta muito de inventar, prefere fazer comidas do dia a dia do que doces e tortas. Nina tem uma história muito difícil, saiu da zona rural muito nova para trabalhar em casa de família na cidade, não pôde estudar na época, era uma mulher/moça que sabia se posicionar e com muito senso crítico de sua própria realidade. No próximo subcapítulo, quando darei fala à elas mesmas, leremos sua trajetória de vida, que a meu ver é forte, emocionante. Uma das patroas participantes é Val, 48 anos, casada e mãe de 2 filhos formados e casados, morando em outra cidade. Ela nasceu no interior de Minas Gerais, por muito tempo teve funcionária em casa, mas no momento não tinha ninguém, às vezes, uma faxineira. Conversei com ela em seu trabalho, em uma das escolas onde eu lecionava. Val demonstrou interesse por minha pesquisa, sempre perguntava sobre ela e, em seguida, falava de suas próprias experiências. Convidou-me para experimentar seu angu de milho com frango caipira e quiabo, explicou ser uma comida mineira que aprendeu com sua mãe, que por sua vez diz ter aprendido com sua avó, que passou de geração a geração. Ela conta que é comida de família, de carinho e de amor. Val declarou que ama cozinhar, mas só quando é para muita gente. Isso fica evidente em sua cozinha, pois é repleta de grandes panelas, formas gigantes, muitos pratos, fogões industrial e a lenha. Val também tem uma história de vida muito interessante, de superação. Ela nem sempre foi patroa, fez suas refeições sentada à mesa, coordenou uma escola. Conhecidas as primeiras descobertas e, como anunciado que a narrativa não é linear, penso ser este o momento de contar mais detalhadamente como tudo começou, visto que os primeiros contatos em grupo foram muito interessantes e importantes para definir o processo de entrevistas com as protagonistas dessa história. Vale ressaltar que ainda estava definindo como, onde e quando escolher as mulheres que fariam parte da pesquisa, porque a escolha das personagens que trabalhavam como doméstica para participarem das entrevistas estava um tanto quanto indefinida na minha mente. Essa indefinição gerava uma preocupação grande sobre como seria a aproximação com as atrizes sociais de meu estudo. Foi por meio das aulas de história para turmas do EJA (Educação para Jovens e Adultos), ensino fundamental, oportunidade em que atuei durante um ano com temáticas relacionadas ao Trabalho e Produção de Alimentos no Brasil, que tudo começou. Isso se deu no meu trabalho dentro da sala de aula.


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Nos primeiros dias, nas apresentações, percebi que a maioria das mulheres eram trabalhadoras domésticas, cozinhavam, ou já tinham exercido essa profissão, todas conheciam de perto esse trabalho e falavam dele com naturalidade e desenvoltura; foi inacreditável: ao invés de ir buscá-las, elas vieram até mim e eu aproveitei a situação. Contei sobre meus estudos e falei da pesquisa, mesmo sem ter definido ainda muito bem aonde queria chegar, mas sabia que o trabalho estava relacionado com o consumo alimentar e com as domésticas. As alunas escutaram e pareceram aprovar com a cabeça, mas percebi que não entenderam muito bem o que aquilo significava. Mesmo sem saber qual seria o resultado das conversas, levantei muitas discussões em classe, falamos sobre o trabalho doméstico na cozinha, a preparação de alimentos para a família e no trabalho. A maioria delas tinha essa experiência. No que diz respeito aos alunos do sexo masculino, eram minoria em sala de aula e, geralmente, não compareciam. Quando começamos as discussões sobre o trabalho de cozinhar na casa de outras pessoas, as alunas se identificaram rapidamente. Todas se consideraram boas cozinheiras ou, como disseram: “de mão cheia.” O grupo é constituído por mães e avós e, geralmente, são elas que alimentam toda a família. Inclusive algumas dessas mulheres alimentam seus filhos, netos, genros e alguns familiares que contribuem com as compras da casa ou não, sendo, inclusive, o preparo da comida, na maioria das vezes, uma responsabilidade delas. No início das conversas em grupo elaborei e tentei seguir um roteiro de entrevistas que havia criado antes dos primeiros contatos. Contudo, acabei por usar o roteiro apenas na primeira conversa, por alguns minutos, ao me dar conta de que aquele não era o melhor caminho a seguir. Resumidamente, apresentarei essas mulheres, alunas do ensino fundamental, pessoas que em um primeiro contato não eram minhas conhecidas, pois eu era a professora e elas alunas; vivíamos uma relação em que, do ponto de vista da hierarquia, de alguma maneira eu representava o poder. Continuando as apresentações, a doméstica Flor, 34 anos, casada, 4 filhos, moradora da zona rural, muito simpática, falava bastante e dava suas opiniões sem rodeios, era segura ao falar, contou que trabalhou em muitas casas e cozinhou na maioria delas. Afirmou, ainda, que não quer mais trabalhar cozinhando em casa de patroa, a não ser em restaurante ou bar. Ponderou que é muito difícil e, apoiada por todas as mulheres da sala de aula, continuou explicando: “é complicado cozinhar para patroa, porque em todas as casas tem que cozinhar do jeito que a patroa manda e não do nosso jeito.” [sic] (FLOR, caderno de campo, abril, 2014).


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Flor aponta que a comida nunca fica boa e declara que não entende o comportamento das patroas, visto que ela sabe cozinhar, sempre cozinhou desde pequena, aprendeu muito cedo com sua mãe, pois era a filha mais velha e tinha que ajudar na cozinha. Cozinhou para muita gente e, seguindo seu argumento, afirma saber cozinhar melhor que as “donas”, porque as patroas não têm a experiência que ela tem. Explica que é difícil não poder fazer à sua maneira e que, para piorar, quando ela faz como a patroa quer, a comida fica sem gosto. Então perguntei o que mudava, e ela respondeu que muda tudo: “quantidade, hora de refogar, ingredientes.” [sic] (FLOR, caderno de campo, abril, 2014). Disse que a patroa exige que use bem menos óleo, sal, açúcar, temperos; também afirmou que na hora de colocar os ingredientes nas comidas é tudo diferente, ela se perde, esquece o esquema e é muito ruim. Indaguei-lhe se ela sempre cumpriu as regras da patroa e Flor responde com essas palavras: “Eu não tenho paciência com essas madames, era só ela não estar olhando que fazia do meu jeito, e pior, todo mundo elogiava.” Todas as pessoas da sala de aula dão risada, e a maioria tem uma história para contar sobre desobedecer e acham isso natural e engraçado. Aparentemente, a imposição do modo de fazer não é aceita pelas domésticas que, por isso, não a executam, visto que quando possível fazem do jeito delas e dizem ser elogiadas. A conclusão a que se chega é que, quanto aos modos de fazer, há um flagrante desacordo no que diz respeito ao preparo do alimento, pois cada uma - patroa e empregada – quer fazer ao seu modo. Outra personagem é Creuza, com 46 anos, 3 filhos, casada pela segunda vez e nascida em Chapada dos Guimarães, trabalhadora doméstica desde os 14 anos, agora na função de diarista. Afirma preferir a limpeza, porque fazer faxina é mais fácil do que cozinhar. Testemunha em seu discurso, para suas colegas, que “as patroas são sebosas” e, além disso, nem sempre conseguia preparar o que elas queriam, acrescentando que a maioria das receitas eram esquisitas. Outra aluna, concordando com as falas de suas colegas, pergunta à Creuza quais receitas esquisitas ela fazia? Responde que são muitas, mas cita as que tinham verduras refogadas no vapor, sem tempero, como muito sem graça e sem gosto. Termina sua fala afirmando que não quer mais trabalhar cozinhando em casa de família. Nas discussões, Clara, 54 anos, casada, mãe de 4 filhos e avó de 2 netos, nascida na zona rural e moradora do bairro Sol Nascente, também é diarista em casa de pessoas que vêm de Cuiabá para veraneio; em uma delas faz o almoço de sábado, geralmente para 8 a 15 pessoas. Conta que sempre vem muita gente e, por isso, faz a comida de fim de semana. Dentre os pratos que prepara, mencionou os seguintes: feijoada, rabada, lasanha, Maria Izabel, churrasco completo:


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arroz, mandioca, vinagrete, prepara a carne temperada para assar. Diz achar que seus patrões gostam de sua comida, pois nunca reclamam, mas também não elogiam. Afirma ser bom cozinhar para eles, porque nunca dizem como ela deve fazer, aparentam não se importar com isso e ela pode fazer à sua maneira. Explica gostar de trabalhar nessa casa, por comer a mesma comida dos patrões, mas não junto com eles e revela que prefere assim. Depois do almoço, Clara lava a louça, limpa a cozinha e vai embora, só volta segunda-feira para limpar a sujeira que deixaram. Diz haver o lado ruim, que é a bagunça que fica, anuncia que são “porcos”, porque sujam tudo, mas o dinheiro pago é bom e ninguém diz nada para ela, por isso está nesse trabalho há 3 anos. Depois de algum tempo, Tina, 55 anos, casada, 6 filhos, 5 netos e 1 bisneto, chapadense, participa da conversa e conta que é empregada doméstica há muito tempo, mas há 1 ano está neste último trabalho, e só cozinha quando a patroa pede, mas não gosta e a patroa sabe disso. Quando cozinha, prepara o que quer, como se fosse um favor, “ela nem pede muito, só faço em extrema necessidade”, diz. Em diversas conversas, muitas delas sobre assuntos diversificados, mas sempre ligados ao cozinhar, as mulheres começaram a falar sobre como são humilhadas, maltratadas e mal remuneradas, não sendo compreendidas na maioria das casas onde trabalharam ou trabalham; todas tinham algo a contar a respeito dessa situação. Flor, por exemplo, conta que em uma das casas onde trabalhou, comia na mesa da cozinha depois que todo mundo tinha se alimentado na mesa da sala de estar. E, na maioria das vezes, comia restos, porque nunca sobrava quase nada; isso a deixava com raiva, se sentia mal e humilhada. Continuou expondo que na sua casa come sempre de pé, porque é mais rápido, serve todo mundo e depois come ali mesmo ao lado do fogão. Mas, na casa da patroa não pode, explica que um dia foi comer de pé e foi olhada com reprovação; não disse nada, porém entendeu rapidamente que era para sentar e, então, obedeceu e agora come na mesa da cozinha, sentada, todavia quando não tem ninguém come em pé, ali mesmo ao lado do fogão, como faz em sua casa. Desabafa que sentiu muita vergonha e se sentiu inferior naquele momento, pondera: “acho que rico senta na mesa porque é educado, tem educação, eu já não tenho isso não, então deu vergonha, me senti por baixo.” [sic] (FLOR, caderno de campo, março, 2014). A patroa reprova a atitude de Flor, já que ao contrário de sua família, não tem o mesmo hábito de sentar-se à mesa na hora de comer, apesar de não se sentarem juntas. Esse conflito entre sentar-se ou não à mesa me remete a teoria sobre habitus de Bourdieu (1977), que chama atenção para a estrutura social a qual cada indivíduo pertence e representa.


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Percebo pelo discurso de Flor que existe uma troca entre o objetivo e o subjetivo, entre as individualidades dessas mulheres, ou seja, é um sistema de esquemas individuais, porém constituído de disposições estruturadas socialmente, sendo adquiridos pelas experiências práticas, constantemente orientadas pelas ações do agir cotidiano. Isto é, pensar nessa relação sobre sentar-se à mesa implica num habitus que configura um sistema de ordenação para a ação, desenvolvida por cada indivíduo, em virtude da posição que ocupa na estrutura social. Portanto, a patroa impõe a maneira de sentar-se à mesa como algo indiscutível e rigoroso, inclusive superior, já que socialmente, para ela, esse hábito é a maneira “correta” de se alimentar. Clara contou ter o costume de comer coisas diferentes, nas casas das patroas, com aparência de serem gostosas, principalmente - da geladeira - iogurte, pudim. Explica ter vontade porque são alimentos que na casa dela dificilmente existem, e justifica dizendo sempre comer bem pouco, pedaços bem pequenos só para experimentar ou apenas um, pois assim ninguém nota que ela comeu. Na sequência da discussão, Clara afirma que nenhuma patroa nunca disse nada a ela, mas um dia, em outra casa na qual trabalhava, comeu um pedaço de bolo e a patroa lhe avisou, no dia seguinte, para pedir quando quisesse comer alguma coisa, porém Clara alegou ter vergonha de pedir e que nunca pediu, sempre comeu escondido. Termina sua fala justificando que se as coisas estragavam na geladeira, qual era o problema de comê-las: “na minha casa negar comida pra alguém é pecado; não pode não.” [sic] (CLARA, caderno de campo, junho, 2014). As domésticas participantes da pesquisa relataram que já passaram por diversas humilhações. Citarei as histórias mais significativas. Um dos exemplos é Rosa, 25 anos, casada, tem uma filha e nasceu na zona rural; moradora do bairro São Sebastião, conta que uma vez fez feijoada para agradar uma patroa. Foi ao açougue, comprou na conta da patroa, como de costume, escolheu as melhores peças, orelha, rabo, lombinho, segundo ela, “só coisa boa”, preparou a mesa para o almoço colocou os pratos, os talheres, os copos, a feijoada, o arroz, o vinagrete, a farofa, a couve “tudo bem feitinho.” Quando a patroa chegou e viu a comida não gostou, disse ser muito gordurosa e fazia cara de nojo, ninguém comeu. Rosa contou que fez outra comida e foi embora chateada. No outro dia a patroa tinha jogado toda a comida que ficara na geladeira no lixo. Indignada, disse que a patroa poderia ter-lhe dado a comida, e que entendia aquela atitude como um desaforo e que nunca mais quis agradar patroa nenhuma. A discussão sempre esquentava quando surgiam situações sobre as humilhações sofridas pelas trabalhadoras. Outro exemplo é Paty, 43 anos, 2 filhos, nascida na zona rural, também moradora do bairro São Sebastião, muito indignada em uma dessas conversas, levantou a mão


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para falar, anunciando em tom de seriedade que o que ia dizer não devia sair dali, e declarou que todo mundo que estava na sala e trabalhava como doméstica passava muita raiva e humilhações, e disse: quer ver? Referindo-se aos alunos disse em tom alto: “Quem aqui se senta na mesa com os patrões à vontade e de verdade? Quem aqui come o que quiser da geladeira da casa dos patrões?” [sic] (PATY, caderno de campo, abril, 2014). Todos olharam concordando com a fala de Paty, em seguida, ela mesma respondeu: “só a Rosa é um pouco melhor tratada porque está fazendo faxina na casa de um homem bom e sozinho, e só quando a filha dele não está em casa, porque o resto isso nunca acontece, porque sempre tudo é separado”, afirmando ainda, “eles convidam para sentar à mesa, mas quando a gente senta, os patrões fazem cara feia e não gostam da presença da gente na mesa”, e diz que é a mesma coisa com comida: oferecem, mas se você aceita eles não gostam e termina afirmando que isso é muita humilhação. Essas falas anunciam alguns temas interessantes que posso trazer para reflexão sobre o que essas mulheres apresentam sobre a relação de cozinhar para outra família. Em uma análise focada na cultura alimentar, quatro ações que chamam a atenção: a prática alimentar, a desobediência, a ingratidão da patroa com as comidas preparadas pelas domésticas e o não sentar-se à mesa com seus patrões. As práticas culinárias dessas mulheres não são, como se vê, as mesmas que as de suas patroas, estou me referindo tanto aos alimentos como a preparação deles. Entendo que a prática de se alimentar ultrapassa a natureza biológica, porque envolvem imaginários, símbolos, escolhas, classificações, modos de fazer, organizações, gostos, visões de mundo e tempo, etc. Estes depoimentos apresentam gostos e maneiras de fazer distintos na hora de preparar um prato. As percepções sensoriais e emotivas proporcionadas pela prática de alimentação e de culinária imprimem, nessas mulheres, conhecimentos sobre ações que estão sendo realizadas, de como preparar uma comida ou qual alimento escolher. A desobediência apresentada pelas domésticas de não seguir o que a patroa diz sobre como preparar um prato também é algo a ser analisado, já que essa atitude não é revelada, ao contrário, apenas quando a dona de casa não está vendo é que a doméstica faz à sua maneira. Tal atitude é relacionada ao estabelecimento de confiança da patroa na empregada sobre o modo de preparo do alimento. Em, em todos os discursos o que se viu foi, num primeiro momento, a negação do modo de fazer da doméstica, para em seguida patroa e família comerem a comida que a doméstica preparou ao seu modo, e, sem saber disso, até elogiarem o prato que a empregada preparou.


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Os estudos de Rezende e Coelho (2010) tratam sobre emoções e a gratidão como sentimento nas falas das relações de poder. Coelho observa a troca de presentes entre patroas e empregadas, em que a gratidão era o sentimento esperado pelas patroas em retribuição aos presentes dados às empregadas. Elas não esperavam nem desejavam que o presente fosse retribuído materialmente, mas demonstrações de gratidão que, em alguns casos, não acontecia. Esperar gratidão da empregada ou recusar o presente material ofertado pela empregada, como em um exemplo trazido por Maria Claudia Coelho (2010), significa destacar o lugar de servidão no qual as empregadas eram colocadas nessa relação. Por outro lado, a recusa em mostrarem-se agradecidas e o sentimento de indiferença que expressavam pelos presentes da patroa, seria uma forma de negar esse lugar de subalternidade ao qual eram relegadas. Assim, a gratidão esperada pelas patroas teria um “gosto de servidão” para as empregadas que, ao se mostrarem, em alguns casos, “ingratas”, na verdade expressavam uma reação micropolítica de contestação das hierarquias sociais. O que se percebe nesses discursos é um sentimento de ingratidão invertido, das patroas pelas domésticas, porque as empregadoras não gostam de alguns pratos que as trabalhadoras preparam, verificando-se, assim, uma troca de papéis sociais. O que quero apontar é que na ação de cozinhar, as mulheres subordinadas às “ordens” da patroa permutam seus papéis sociais de subordinação e se colocam no poder, porque foram elas que prepararam o prato e, assim, elas detêm o saber - o conhecimento - de preparar a comida. De seu lado, quando a patroa não aprova a preparação, demonstra ingratidão pelo conhecimento da empregada doméstica na feitura da comida e, portanto, invertem os papéis de poder dentro da relação de subalternidade. A ingratidão, do ponto de vista da doméstica, tem como exemplo, Tina, que julga a patroa ingrata, já que não sabe valorizar um prato bem feito, segundo o seu ponto de vista. Sendo assim, quero afirmar, em relação à gratidão, que o que acontece é uma inversão hierárquica. Desta maneira, Coelho e Rezende (2010) estavam certas quando afirmaram que uma análise social nos mostra que as emoções são marcadas por contextos socioculturais e históricos particulares. O não sentar-se à mesa junto com os patrões é uma fala recorrente tanto quanto os demais temas mencionados nos primeiros encontros em sala de aula, relacionados a humilhações, em virtude do que, compreendo fazerem parte do cotidiano dessas mulheres. Rezende e Coelho (2010, p. 88-89), apresentam a relação entre empregada e patroa marcada pela hierarquia na dinâmica emocional, na qual existem estratégias para simular uma superioridade que não existe. Segundo as autoras, a humilhação - apresentada nos discursos pelas domésticas - surge


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como sentimento que fala de princípios morais e hierarquias, já que o sentir-se humilhado diz respeito à perda do controle da identidade, quando alguém se sente inferiorizado perante outros. Certeau (1994) considera o estudo do cozinhar como um campo privilegiado, já que para o autor, preparar refeições é uma maneira de elaborar estratégias sociais, tática esta na qual o “fraco” é possível criar subversões naquilo que foi estabelecido pelos “fortes.” Pois, o saber cozinhar está associado a uma arte de fazer, não é algo que só se aprende em cursos, também é um aprendizado do dia a dia. Portanto, é uma prática cotidiana que depende de um conjunto de procedimentos, de esquemas de operações e manipulações. “Habitar, circular, falar, ler, ir às compras ou cozinhar, todas essas atividades parecem corresponder às características das astúcias e das surpresas táticas: gestos hábeis do “fraco” na ordem estabelecida pelo “forte”, a arte de dar golpes no campo do outro.” (CERTEAU, 1994, p.104). Considero como estratégia “o cálculo das relações de força que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder é isolável de um „ambiente‟.” (IBIDEM, 1994, p.46). A estratégia tem um lugar próprio e pode ser observada, segundo o autor, em questões relacionadas à nacionalidade política, econômica ou científica. Analisando as falas das empregadas, entendo, assim como Certeau (1998), que as práticas cotidianas e as formas como a relação - doméstica e patroa - se comportam diante das determinações estruturais dispostas na sociedade, apontam para a noção de que, em várias situações aquilo que é imposto ao indivíduo pelas instituições (as estratégias) pode ser subvertido no momento da prática, principalmente quando são criadas possibilidades de ação (as táticas) que escapam do previamente estabelecido (quando a doméstica não segue o que a patroa pede), pois se não contrariam totalmente a estrutura, ao menos aproveitam as brechas deixadas pela ordem social estabelecida para proveito próprio. Essas narrativas sobre práticas e saberes foram adquirindo proporção maior do que as discussões em sala de aula, e os assuntos foram se expandindo aos encontros no corredor, nos intervalos, nas festas da escola e, com o tempo, as conversas começaram a acontecer também fora do ambiente escolar. Conhecia Beta, como disse, há mais ou menos 2 anos, ela não foi minha aluna; logo de início, quando começamos a falar de seu trabalho, ela relatou que era a patroa quem pagava sua academia e o salão de beleza, mas que isso não era nada que compensasse seu trabalho. Tal fala me deixou bastante curiosa. Beta sempre está na feira de sábado fazendo compras para a casa onde trabalha. Ela é doméstica de domingo a domingo, tira férias uma vez por ano. Declarou que já levou o filho da patroa algumas vezes em suas próprias férias na casa da mãe,


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em Cárceres. Depois de muita conversa, marcamos um encontro por telefone e Beta chegou com uma hora de atraso, com muito calor, de short laranja, mini-blusa roxa e tamanco plataforma vermelho, cabelo esticado bem preto e unhas compridas vermelhas, com uma sacola grande amarrada na bicicleta. Abri o portão, entramos e servi-lhe água gelada; sentamo-nos à mesa, ela de um lado e eu do outro, perguntei-lhe como estava e começamos a conversa formalmente. Ia falando e abrindo a sacola gigante, de onde começou a tirar calcinhas, sutiãs, roupas e afirmar, olhando fixamente nos meus olhos: “é sua cara isso, escolhi pra você,” respondi com a cabeça que sim, fiz cara de quem estava gostando e oferecilhe um café. Beta aceitou e com aquele olhar fixo de novo nos meus olhos, afirmou em tom sério: “você vai ter que comprar alguma coisa,” justificando ter feito um esforço enorme para estar ali. Respondi que iria comprar algo, que ficasse tranquila. Tomamos café, eu e ela suávamos muito, liguei o ventilador, começamos a nos refrescar e logo estávamos mais à vontade, rindo, aproveitei o clima e direcionei a conversa para o seu trabalho, perguntei se podia gravar, ela disse, meio desconfiada, “sei não, depende, melhor não, não sabia que ia gravar”. Considerando sua solicitação não gravei nossa conversa, mas disse que anotaria para não esquecer, ela concordou e começou contando sua história. Como fui anotando tudo na hora e logo em seguida repassei as falas, serei o mais fiel possível na transcrição de seu discurso: Vou contar minha história neste trabalho para você entender porque a C (patroa) me ajuda que eu te falei. Há 25 anos trabalho com a C e cuido do filho dela desde os 3 meses, ele nasceu altista e cego. Sempre limpei a casa e cozinhei, ela é médica não para em casa, temos uma faxineira que vem 2 vezes por semana, e uma passadeira que vem uma vez por semana, eu que organizo tudo, ela não tá nem aí i. Lá a gente sempre come 3 tipos de salada, arroz, feijão e uma carne, às vezes duas saladas cruas e uma de legumes cozido, a salada cada um tempera no prato. Eu que preparo a mesa, coloco nas travessas de vidro, eu que escolho o cardápio, mas escolho as comidas pelo gosto da patroa, come todo mundo junto, primeiro dou a comida pra ele e depois a gente come. Eu mando na geladeira, tudo é do meu jeito, eu faço a lista de compras e ela vai comprar, do jeito que eu quero; só as marcas que ela escolhe. Na minha casa em Cáceres é diferente, a gente come arroz, feijão e uma salada, com bem menos tempero, minha mãe é diabética e tem pressão alta é hipertensa, ela que cozinha. Adoro cozinhar, gosto de fazer sobremesas, bolos, faço um bolo de milho delicioso, pão de queijo que aprendi em Rio Preto com minha tia avó. A C me pagou dois cursos de culinária, logo no começo quando entrei na casa dela, aprendi a fazer bolos, sobremesas, comidas diferentes, antes eu não sabia fazer nada além de arroz e feijão. [...] Cozinho desde meus 11 anos, mas não sabia nada fora arroz feijão e fritar bife, ovo, foi nessa casa que aprendi, com os cursos. [sic] (BETA, caderno de campo, março, 2014).

Depois de uma conversa de quase 3 horas, comprei algumas roupas, já que ficara claro ser essa a moeda de troca da entrevista. Na hora da compra, Beta justificou que eu tinha que


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comprar para ajudá-la, pois ela estava juntando dinheiro para terminar de pagar a casa da mãe, em Cárceres. Depois desse encontro, estive na casa da patroa, onde Beta mora, por duas vezes, aprendi a fazer o pão de queijo, conheci sua patroa que foi muito simpática mesmo sem saber quem eu era e me disse para ficar à vontade. Conversamos muitas vezes sobre fazer comida e seu trabalho. Por esses dias encontrei Beta na rua, ela estava com uma bicicleta elétrica, contou-me que ganhou de sua patroa; disse: “fica mais fácil e rápido para comprar, ir ao cabeleireiro, ao pilates ao açougue.” Chamou-me para darmos uma volta no quarteirão “Vem, monta na garupa que quero que você experimente.” [sic] (BETA, caderno de campo, junho, 2015). Beta mulher de 53 nos, viúva, 2 filhos maiores e uma mãe que depende dela financeiramente, se mantém no trabalho pelo dinheiro, mas coloca seus limites, cuida do filho da patroa com problemas mentais e físicos há 23 anos e isso faz com que seu salário e “mimos” sejam valorizados nesta relação. A organização da casa é totalmente sua responsabilidade, desde que use as marcas que a patroa está acostumada e deixe tudo limpo e organizado. Beta comenta que sua patroa diz: “Você faz como quiser, mas se ficar mal feito aí fico brava, quero tudo limpo, brilhando, principalmente quando recebo gente em casa.” Observo que mesmo a patroa não estando diretamente ligada com a ação de limpar, cozinhar, organizar, a responsabilidade nos julgamentos dos resultados recairá sobre ela e não na doméstica. De acordo com a fala de Beta é possível inferir que as marcas consumidas pela patroa são distintas das consumidas pela doméstica, contudo, isso não significa que a doméstica, em algumas situações, não utilize as escolhidas pela patroa, principalmente quando falamos de produtos de limpeza. Segundo o raciocínio de alguns pensadores, (FALK; CAMPBELL, 1997; BARBOSA; CAMPBELL, 2006), o cidadão é percebido com uma racionalidade econômica que permite diminuir distâncias sociais quando focados nas análises de escolhas de alguns produtos. Na obra coletiva, “The Shopping Experience” de Falk e Campbell (1997), os autores ressaltam a importância de evitar noções simplistas sobre a autoconstrução dos indivíduos pelo processo de aquisição de bens, pois isso pode levar ao engano de reduzir os consumidores a grupos e/ou identidades sociais fechadas. Para não cair nesses reducionismos, nas análises de consumo é importante que se perceba que a autoconstrução identitária pelas compras não é redutível à aquisição e exibição dos bens. É um processo complexo que inclui experiências, imaginários e reflexões que se alternam nas interações com os lugares de consumo e as mercadorias.


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Os autores também ponderam que as reflexões que acontecem perante as escolhas e compra dos bens desencadeiam inúmeras experiências sensoriais e ações imaginárias com as quais o sujeito acaba por colocar alguns questionamentos a si mesmo: esse produto é para mim? Isto pode ser para mim? Gostaria de usar isso? Essas questões levam a autoconstrução de o que se quer e o que se é, ou se pensa ser. (FALK; CAMPBELL, 1997, p. 42). O capítulo “Cultura, consumo e identidade: limpeza e poluição na sociedade brasileira contemporânea”, do livro “Cultura Consumo e Identidade” de Lívia Barbosa e Colin Campbell (2006) apresenta um estudo sobre práticas de higiene e de lavagem de roupas de mulheres brasileiras de diferentes segmentos sociais. Entre algumas revelações nesta pesquisa, o que me interessou é que a escolha do sabão em pó entre as domésticas e as mulheres de classes medianas e altas foi a mesma. “As práticas de lavagem e as razões de seus procedimentos sugerem que a conduta dessas mulheres encontra-se enraizada em uma mesma lógica cultural, apesar das grandes diferenças geográficas.” (BARBOSA; CAMPBELL, 2006, p. 114). Essas escolhas, muitas vezes, parecidas nos mostram que: Essa “etnografia” da lavagem de roupa entre mulheres de baixa renda de todo o Brasil indica a existência de princípios e lógicas culturais tão claros e tão profundamente enraizados nas práticas cotidianas que muitas vezes não são sequer explícitos, e que são transmitidos informalmente e através da observação prática entre mulheres de diferentes gerações. Esse habitus exercem um claro poder coercitivo, na medida em que as mulheres que os transgridem sofrem restrições do ponto de vista simbólico acerca de seus desempenhos como donas-de-casa e mães de família. Eles influenciam também o consumo de determinados produtos e marcas, na medida em que estes sejam considerados aqueles capazes de produzir o padrão adequado de limpeza e brancura almejado. (BARBOSA; CAMPBELL, 2006, p. 20).

O que se verifica é que quando se quer ter certeza do resultado positivo, no caso específico da limpeza, é melhor não arriscar, já que a compra “equivocada” do produto poderá colocar todo o trabalho a perder; vem à mente, então, o conhecido ditado: “O barato sai caro.” Quando comecei a trabalhar em casa de família percebi que as roupas, o chão, o banheiro ficava mais limpo, branco, brilhavam e lá em casa não. Ai fui vendo que não adianta comprar sabão barato, produto de limpeza barato, o barato sai caro, é melhor comprar coisa boa de qualidade, mais cara que você vai ter a casa mais limpa, é igual a roupa bem lavada, cheirosa, usa sabão ruim que você nunca vai conseguir deixar tudo cheirosinho, limpinho. [sic] (BETA, caderno de campo, julho, 2014).

Essa racionalização do consumidor também aparece nas pesquisas de Lívia Barbosa (2006), com mulheres e suas escolhas de sabão em pó, a marca de um produto que é considerado para


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a classe A e ou B, pode estar sendo escolhida pelas classes C, D e E dependendo da situação, principalmente, quando se tem um objetivo a alcançar. Essa lógica do “barato que sai caro” não se restringe ao sabão em pó. Ela se aplica também à escolha e à compra de outros produtos, para os quais a experimentação de novas marcas apresenta uma alta dose de risco quanto à certeza do resultado. Em vários grupos focais, compostos de mulheres dos segmentos C, D e E (critério Brasil) tanto no Nordeste quanto no Sul do país, para a análise do comportamento do consumidor, verificou-se o mesmo tipo de comportamento em relação a uma série de outros produtos, como arroz, feijão, café, etc. Na situação de compra em que a marca preferida não se encontra disponível, as mulheres vão a outros supermercados até encontrar a de sua preferência. Não se trata aqui de uma vitória, manipulação ou domínio do marketing sobre a mente entorpecida de consumidoras, fascinadas com os estilos de vida descritos nas embalagens ou nos encartes de jornais, como afirmar vários autores, mas de um simples raciocínio econômico descrito com precisão no relato a seguir: “- Veja, no caso do arroz X, eu sei que cinco quilos vão durar exatamente quase três semanas. Eu sei o quanto este arroz rende. No caso de uma outra marca, pode acontecer, como já aconteceu, que não dê para todo esse tempo. Além de não ser aquela que todo mundo gosta eu ainda vou gastar mais dinheiro.” (Mulher, divorciada, “amigada”, 60 anos, classe E, de Curitiba, PR). É importante lembrar também que o uso da lógica, “o barato sai caro” não se aplica nem a todos os produtos, nem a um mesmo conjunto fixo de produtos, como bens provisionais, e ela não impede que essas mulheres experimentem novos produtos. Essa lógica social é aplicada de forma personalizada a um conjunto específico de produtos e regula como ocorre a experimentação de novos produtos. As pessoas, em vez de comprarem a cota mensal de determinado produto, compram a menor embalagem disponível deste, com fins de experimentação. (BARBOSA; CAMPBELL, 2006, p.119).

Gilles Lipovetsky (2008, p. 46-47) ao discutir o hiperconsumo na sociedade contemporânea explica que vivemos, atualmente, uma relação emocional com as mercadorias e que já não compramos mais um produto e sim “uma visão”, um “conceito”, um “estilo de vida” associado a uma marca. Exatamente dessa maneira foi percebida a escolha das marcas por Beta, já que concordava em comprar as marcas escolhidas pela patroa, contudo, não necessariamente aceitava para sua vida as mesmas marcas, conforme é possível observar abaixo: Eu acho bom, coisa boa, cara, mas não é tudo que é caro que é bom, o shampoo, sabonete, desodorante, por exemplo, esses produtos de uso pessoal antes ela ia comprar para ela e também comprava para mim, gastava um dinheirão e eu não gostava não, ai falei para ela que me desse o dinheiro e eu comprava do meu gosto, da marca que eu gosto, ai sabe o que aconteceu? Sobra sempre dinheiro e eu compro mais alguma coisinha. Ela não sabe comprar! Ela compra produto de gente veia, eu não gosto, quero coisa de gente jovem, sempre fui assim. [sic] (BETA, maio, 2014).

As escolhas e posicionamentos mostram que no “fazer do meu jeito” existem insubordinações, tanto nas escolhas diferenciadas, quanto nos julgamentos e modos de


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preparar dessas mulheres. O que verifico é que a doméstica exerce poder sobre as patroas, que “aceitam” ou fingem que não veem, as desobediências. De modo que, o que se constata é que assumir essas tarefas é muito pior do que transferi-las a uma “folgada e ingrata.” Compreendo que ninguém quer assumir, nem o homem nem a mulher, o papel de “donos da casa”, pois são tarefas menosprezadas e delegadas a outras pessoas que não pertencem à família. Geralmente as pessoas que prestam esse tipo de serviço são mal remuneradas, e realizam tarefas que ninguém gosta de fazer. Clara, personagem já apresentada, foi minha aluna durante dois anos. Encontrei-a na feira de domingo com sua filha mais velha vendendo frango caipira. Relatou que a patroa não tinha vindo no final de semana e, por isso, aproveitou para vender uns frangos que tinha em casa. Clara é uma senhora sorridente, calada no começo do contato, cabelos brancos presos, de bermuda jeans, camiseta branca de propaganda de supermercado, avental e chinelo. Ofereceume água, pois estava bem quente, sentei em um banco que ela me ofereceu, ao lado da banca. Clara me apresentou sua filha dizendo: “essa é minha professora de história, aquela que falei que gosta de conversar e ouvir nossa opinião sobre as coisas.” [sic] (CLARA, caderno de campo, maio, 2014). A filha sorridente disse: “Minha mãe adora as aulas da Senhora.” [sic] (FILHA DE CLARA, caderno de campo, maio, 2014). Sem muito movimento na feira, começamos a conversar e falei dos meus estudos, valorizei o trabalho doméstico e defendi a necessidade de melhorar as condições de trabalho dessa classe. Depois de algum tempo, Clara começou a falar de sua trajetória, contando que trabalhava na mesma casa há 14 anos, em uma chácara. O marido dela é caseiro lá há 20 anos e ela limpa e cozinha para a família. Disse que o patrão fica mais na casa, ao passo que a patroa prefere Cuiabá. Porém, todo final de semana os patrões passam em Chapada dos Guimarães, às vezes só vêm sábado. Lá ela cozinha o básico, arroz feijão, frita bife, frango. Ajuda a cortar os temperos, alho, cebola, tomate, salsinha. Falou bastante sobre sua casa, onde ela e a filha cozinham e comparou sua cozinha com a da patroa dizendo que a da patroa é muito mais chique e as comidas também são mais refinadas. Contou nunca ter visto bacalhau, alcachofra, frutos do mar e que tem nojo deles, nunca comeria nada proveniente do mar, talvez peixe, mas só se não tivesse nada para comer. Também disse preferir cozinhar em sua casa, pois se sente mais à vontade e que, na casa da patroa tem muito medo de errar e ela ficar brava e dar bronca, pois isso já aconteceu algumas vezes, no começo. Clara conta que não tem carteira assinada, mas nem fala nada porque fizeram um acordo que assinariam a carteira de seu marido e que assinando a dele já estava


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bom. Encontrei essa mulher em outros momentos no açougue, na rua, na escola, fui a sua casa, conheci sua família, a última vez que a vi gravei nossa conversa com sua autorização. Em se tratando de Catia, que foi minha aluna por meio semestre, encontrei-a uma vez na porta do banco, e ela disse que estava a pé e ia voltar para o bairro (é como os chapadenses chamam a periferia da cidade), eu moro na fronteira entre centro e bairro. Aproveitei e fui caminhando com ela rumo a minha casa. Ela é crente, estava com um coque no cabelo, saia jeans abaixo do joelho, camisa verde claro de rasteirinha e bolsa no ombro. Começamos a falar sobre trabalho, ela disse que procurava uma casa para faxina, perguntou se eu sabia de alguma; eu disse que ia ver, que deixasse seu telefone. Perguntei-lhe se tinha experiência em cozinhar e ela respondeu que sim. Sem que eu dissesse nada, anunciou que poderia gravar nossa conversa, se eu assim desejasse. Trabalhei em várias casas limpando e em algumas cozinhando, tenho muita experiência, sou da zona rural, não tenho muita frescura, mas sou boa cozinheira e limpadora. Hoje eu só quero limpar, não quero mais cozinhar porque é muito difícil cozinhar para os outros. Tem umas coisas que eu nem sei fazer, nunca tinha visto camarão, aprendi a fazer, mas tinha um nojo, no dia que fazia nem comia, tinha vontade de vomitar, a senhora já pensou fazer uma coisa que tem nojo, Deus me livre. Num quero mais não. E também todas minhas patroas queriam me ensinar a cozinhar, do jeito delas isso é muito difícil e chato, não quero não. [sic] (CATIA, outubro, 2014).

No decorrer da conversa contou que, mesmo sendo chato cozinhar para outras famílias, havia aprendido fazer muita coisa com as patroas, mandioca frita tipo cubinhos, macarrão de forno, bolo de chocolate, brigadeiro. Disse que seus pratos são mais “coisas da roça” como o arroz com galinha, farofa de banana, que os patrões gostavam, mas queriam coisa diferente. Aprendeu com uma patroa a fazer farofa de alho com manteiga, ela aponta ter gosto ruim, mas eles adoravam, em umas 3 casas onde trabalhou gostavam dessa farofa. Já ela não, preferia a de banana. Explicou que ensinou também muita coisa, que sabia muito mais que as patroas e se incomoda em obedecer a uma coisa que está errada, porque fazer comida sem sabor, sem sal, sem óleo, está errado e, se fica ruim, a culpa ainda cairia nela. Afirmou que se precisar cozinhar em casa de família faz, mas não é seu desejo. Nunca mais vi Catia, não foi mais ao colégio, disseram-me que estava cuidando de uma casa junto com seus familiares na zona rural. Rosa, além de faxineira, faz unhas e pinta cabelos no salão de beleza “Beleza Mil”, que já mencionei. Relatou, no intervalo de aulas, na escola, que sábado à tarde o salão ficava lotado e era quando ela ganhava mais dinheiro. Muito vaidosa, cabelos vermelhos, unhas sempre coloridas, azul, verde, roxo, magrinha e pequena, tem uma motocicleta biz e está sempre


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correndo. Dado desenrolar da conversa, marquei um sábado à tarde para fazer minhas unhas, cheguei às 15h00 horas e esperei uns 20 minutos. Ela estava atrasada, li algumas revistas e observei seu comportamento, bem alegre e falante. Chegou minha vez, começamos a conversar sobre quais os dias em que fazia unha e quais limpava casas de como tinha uma vida corrida. Disse que trabalhava como doméstica e que cozinhava há 4 anos em uma casa em que morava apenas um homem e sua filha, mas a moça estudava em Cuiabá e, por isso, ficava pouco em Chapada. Limpava a casa três vezes por semana e, às vezes, quando chegava visita, trabalhava sábado cozinhando e limpando para os convidados de seu patrão. Nos outros dias, trabalha de faxineira, passadeira e gosta de fazer unha e pintar cabelo também, dependendo das freguesas que têm hora marcada. Em um dos encontros, conversas, risadas, unhas e descontração, na casa dela, gravei nossa conversa com sua autorização: Adoro cozinhar, é o que mais gosto de fazer. Ele me diz toda semana o que eles querem comer, ele é legal, a filha dele é chatinha, fica me dizendo o que tenho que fazer, revisa o que eu limpo, eu nem ligo, levo minha filha desde quando ela nasceu no trabalho e eles não ligam, inclusive já deixei ela com minha patroa para ir fazer uma unha do outro lado da cidade, ela ficou e não disse nada. A gente liga a TV e deixa ela lá, ela é quietinha. Comemos todos na mesma mesa, eu minha filha e ele, quando a filha vem não, ai comemos depois. [...] Prefiro cozinhar mais na minha casa, fico mais à vontade e posso inventar, lá ele não gosta de sal e sempre pega no meu pé, não põe muito sal Rosa, quer me matar do coração? Ai fica, às vezes, sem sabor. Ele sempre me dá frutas, carne, brinquedos e a gente se dá super bem. Ainda não assinou minha carteira, mas disse que vai assinar. Ele não gosta que tire as coisas do lugar, me liga depois nervoso que não está achando as coisas. Na casa dele tem Sky ele disse que foi também pra minha filha ver desenho, ele é bom. [sic] (ROSA, abril, 2014).

Rosa teve alguns problemas de saúde, depois de alguns meses ela melhorou, mas não pode mais limpar, então comprou um pedaço de terra na horta comunitária do bairro São Sebastião e, atualmente, vende alface, rúcula, cebolinha e couve; virei sua freguesa. Como disse, acabei por manter contato com algumas patroas; conheci Val na escola onde lecionava em 2013; era Coordenadora pedagógica de outro período em uma das escolas em que trabalhei. Baixinha e sempre de calça jeans, camiseta e rasteirinha, sotaque mineiro arrastado e muito simpática, com uma fisionomia de cansaço, trabalhava nos dois períodos e em duas escolas. Num sábado de manhã encontrei-a na praça e paramos para conversar. Contei sobre minha pesquisa e, em seguida, ela se inseriu como protagonista contando sua experiência: “Sabe que a maioria das comidas daqui de Mato Grosso eu aprendi com minhas secretarias (nome dado às empregadas que teve). Sou mineira, moro aqui há 33 anos e não conhecia um monte de coisa, tipo maxixe, farofa de banana e Maria Izabel. Eu amo cozinhar,


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sempre recebo muita gente em casa, então gosto de aprender coisas novas.” [sic] (VAL, caderno de campo, julho, 2015). Também aprendeu a fazer furrundu (doce do caule do mamoeiro), e disse estar contente com seu novo conhecimento. Mencionou que adorava essa iguaria e que fazia sempre. Contou que agora só moravam ela e seu marido, cozinhava menos no decorrer da semana, mas nos finais de semana sempre tinha gente em casa e ela aproveitava para cozinhar. Cheia de orgulho, convidou-me a provar sua comida, afirmando que as pessoas adoravam. Pegou meu telefone, me ligou, marcamos e fui à sua casa. Falamos das relações entre as empregadoras e domésticas e depois de muitas conversas na praça, na escola, na rua, sem gravador, ela sugeriu: Que se eu quisesse poderia gravar no meu celular uma conversa que estávamos tendo no banco da praça. Acho que minha relação com as secretárias sempre foi boa , elas nunca quiseram sentar na mesa, vou falar da última que ficou bastante tempo comigo, sempre comiam depois, a mesma comida, claro, mas depois e num banquinho longe da mesa. Aliás, esse hábito de sentar à mesa surgiu quando entrei na faculdade, não tínhamos esse hábito lá no interior de Minas, a gente servia o prato no fogão e sentava onde dava, tinha uma mesa na cozinha, mas ela servia de apoio. Quando comecei a ir em casas de amigos da faculdade passei a sentar na mesa e comecei a gostar, ai comecei a colocar meus filhos e marido na mesa, agora todos nós, inclusive na casa da minha mãe e irmãs, comem na mesa, é um hábito nosso agora. [sic] (VAL, fevereiro, 2014).

Conversamos sobre como é bom cozinhar e comer e como é difícil não engordar quando se cozinha muito bem. Val fez questão de contar sobre a relação comida e família: Minha família cozinha muito junto, existem pratos que fazem parte da nossa história, tipo a pamonha, pão de queijo, alguns doces, polenta de milho, a gente sempre se reúne com comida e todo mundo põe a mão na massa, os homens participam mais quando assa carne. Quando cozinhamos o clima é de festa, é como se fosse um evento, antes mesmo de cozinhar a gente já pensa nos ingredientes, comprar, preparar o melhor. Ai junta todo mundo, marido, filhos, genros, noras, netos, amigos dos amigos, é muita gente. Nossa família mora a maioria na zona rural então aqui acaba sendo um ponto de apoio na cidade. Isso me enche de orgulho, as pessoas elogiam a comida, se divertem em torno do que fizemos; é muito bom. Sabe o que mais, vou preparar uma comida típica mineira lá de casa e se você quiser pode fazer entrevista comigo, tá? Ponho-me a disposição. [sic] (VAL, agosto, 2014). Estive com Val em diversas situações, conversamos muito sobre o tema, fui à casa dela três vezes, comi uma comida mineira deliciosa que ela preparou com todo o carinho, ficamos amigas. Essa mulher não mostrava, em nenhum momento, que houvesse uma relação


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complicada com suas empregadas, quando conversávamos focava sempre no tema cozinhar, era algo de que gostava muito, preparar pratos para outras pessoas. Por acaso, encontrei Vera no comércio de sua mãe, sempre bem arrumada e maquiada, de salto alto, cabelos com luzes, unhas feitas, perfumada e bem sorridente. A loja estava sem movimento e ela perguntou o que andava fazendo; aproveitei para conversar sobre a pesquisa. Em seguida, Vera disse achar interessante o tema de minha pesquisa, contou que tinha empregada desde quando casou há 10 anos. Teve muitas, mas só duas pararam e foram boas. O resto, disse em tom de desprezo, “um horror.” Contou que antes tinha uma babá e outra que cozinhava e limpava, agora só tem uma que limpa, cozinha e cuida das crianças. Pondera que “aqui em Chapada é muito difícil arrumar gente qualificada, responsável, não querem trabalhar.” [sic] (VERA, caderno de campo, agosto, 2014). Como num desabafo diz não ter tempo para nada, pois tem 3 filhos pequenos, fica difícil e sempre precisa de alguém para ajudar. Explica que seus filhos vão todos à escola a tarde, e ela trabalha no mesmo período, é nessa hora que a empregada limpa a casa. Pela manhã seus afazeres correspondem a ajudar a dar banho nas crianças, dar almoço, preparar para irem para a escola. Me puxa pelo braço e fala baixo: [...] essa agora que eu estou nem é muito boa, mas Tati minha filha maior ama ela, então eu me adapto a situação. Não sou muito de cozinhar gosto mais de limpar, mas sinceramente não faço nada disso em casa, sempre estou cheia de serviço, fora que minha mãe sempre precisa de ajuda aqui na loja, meu marido fica a semana toda na fazenda, então eu fico com toda a carga da casa nas costas [...] me liga que a gente marca. [sic] (VERA, caderno de campo, agosto, 2014).

Estive com Vera mais duas vezes e em uma delas fui à sua casa na hora do almoço. A empregada, Judith, estava preparando o almoço e conversamos as três por alguns minutos, ela faz a comida e senta junto com as crianças e Vera à mesa, mas na verdade Judith senta para dar comida às crianças, a mais velha come sozinha, os menores comem com o auxílio da mãe e da empregada. Judith não come direito, só depois que todos saem da mesa é que ela almoça e volta, em seguida, para o serviço doméstico, sem descanso. Este foi um dos únicos casos que a patroa disse que a doméstica sentava à mesa na hora das refeições, mas quando estive lá constatei que Judith não senta junto, mas ajuda a dar comida ao filho menor. Todas as mulheres deram seus celulares para contato; depois de encontros e conversas, consegui visitar nove domésticas e duas patroas em suas casas, e gravei entrevistas. Num primeiro momento tinha a ideia de conhecer a geladeira das casas e ver o que havia dentro e como eram armazenados os alimentos, porém pedir para abrir a geladeira foi algo que


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incomodou

bastante,

principalmente,

as

empregadas;

como

não

queria

causar

constrangimentos deixei de lado essa ideia. Outra patroa que conheci foi Fer, considerada mulher da alta sociedade, casada com um médico e fazendeiro, e que mora em uma casa enorme construída em dois terrenos, com piscina, quadra de tênis e de futebol. Eu a conheci na hidroginástica. Psicóloga, sempre de vestido, maquiada, salto alto e joias. Encontrei-a no banco e começamos a conversar sobre meus estudos; perguntei se gostaria de conversar sobre o tema, ela respondeu: Não sei muito bem aonde você quer chegar, mas se precisar de ajuda eu estou à disposição, tem uma moça que trabalha comigo há 15 anos, a gente se dá muito bem, ela é minha salvadora, eu não cozinho nada, nem gosto, nem quero, nem sei (risos). Ela é ótima, agora que estou só eu e meu marido, meus filhos estão fazendo faculdade fora, ela se dedica muito mais à comida, faz tudo que meu marido pede, eu me cuido porque senão engordo muito, ela faz de tudo lá em casa, limpa, cozinha, já me conhece, faz como eu gosto. Nem preciso mais fazer cardápio, ela já sabe o que a gente gosta, das nossas preferências, e se vira, não tenho muito tempo nem saco pra ficar em cima dela. Eu gosto da comida dela. O único problema dela é que chega muito atrasada, mas melhor com ela do que sem ela, então, às vezes, eu mesma tenho que preparar o café da manhã; eu não gosto de fazer suco, café, mas faço, fazer o quê. Vou viajar agora e volto no fim do ano, se você quiser me liga. O problema é que viajo muito. [sic] (FER, caderno de campo, maio, 2014).

Não consegui contato com Fer na época, pois ela viaja com frequência para a fazenda, para fora do Brasil e visita com regularidade familiares que vivem em outros estados. Consegui conversar bem pouco com sua empregada que me recebeu muito desconfiada, trocou algumas poucas palavras e nunca atendeu minhas ligações. Esses são alguns dos primeiros contatos das mulheres que participaram da pesquisa, mulheres em carne e osso com suas histórias, anseios, relações, pontos de vistas, sentimentos, consumos, receitas, espaços, saberes e fazeres.

1.2 Domésticas: por elas mesmas

Cada pessoa é um mundo. Cada pessoa tem sua própria chave e a dos outros nada resolve, só se olha para o mundo alheio por distração, por interesse, por qualquer outro sentimento que sobre nada e que nos é vital, o 'mal de muitos' é consolo, mas não é solução. (Clarice Lispector, A Bela e a Fera). E ela não passava de uma mulher... inconstante e borboleta. [...] A única verdade é que vivo. Sinceramente, eu vivo. Quem sou? Bem, isso já é demais.... (Clarice Lispector, Aprendendo a Viver).


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O contato com as mulheres participantes da pesquisa – patroas e empregadas – aconteceu de diversas maneiras, contudo, e não logo de início como imaginei, algumas delas conforme íamos nos conhecendo, em algum momento falavam de si, de sua vida, do que gostavam e de seus sentimentos frente a relação de trabalho, suas mudanças, sua família e como se sentiam no mundo. Seguindo a metodologia defendida, Sociologia do Cotidiano, as protagonistas são as mulheres e suas falas são o que importa, isto é, dar voz a elas e registrar, a partir de suas narrativas, por elas mesmas e como se apresentaram a mim, não poderia ficar fora dessa dissertação. Depois de apresentar algumas mulheres a partir dos primeiros contatos, gostaria de registrar alguns acontecimentos que se deram com as protagonistas, entre os quais os momentos em que essas mulheres confiaram em mim e relataram o que sentiam, como se viam no mundo, suas dificuldades e conquistas. Para tanto, é necessário, a meu ver, tentar ser o mais fiel possível na transcrição dessas falas. Apesar de minhas interpretações serem o filtro das falas dessas protagonistas, neste momento meu objetivo não é analisar essas mulheres e emitir ponto de vista de pesquisadora analisando quem são. Ao contrário, o que quero apresentar neste momento são as mulheres por elas mesmas, suas falas, com suas narrativas e observações. Vamos começar com um evento marcante que aconteceu comigo e Rosa; cheguei a sua casa em um sábado quando só estavam ela e a filha, para uma visita que estava marcada há dias. Entrei na casa e ela me conduziu para o quintal, “é aqui que eu sou feliz! Gosto de plantar, ter meus temperinhos, minhas ervas. Aqui é o lugar da casa que eu mais gosto, olha que lindas minhas plantas não é? Hoje se você quiser gravar pode ligar o celular, vamos falar de mim.” [sic] (ROSA, caderno de campo, outubro, 2014). Sentamos em umas cadeiras colocadas embaixo de uma mangueira e ela começou a contar sua vida assim como se já fôssemos amigas. Disse-me que o que queria mesmo era trabalhar na terra. Gostava de cozinhar, mas trabalhar para outras pessoas era ruim e se sentia explorada, nunca ganhava o merecido e que, para ganhar o suficiente, tinha que trabalhar muito e seu marido não aprovava que se esforçasse tanto. Levantou a cabeça, olhou-me e disse que estava muito doente e precisava desabafar: “posso me abrir com você?” Respondi que ficasse a vontade, Eu já sou magrinha e agora com isso aí, e eu achando que era só gastrite [...] tem uma médica cubana ai muito boa [...] Porque eu falei pra ela, toda vez que eu venho aqui, os médicos passam remédio pra aliviar a dor da gastrite, mas pra mim eu acho que não é gastrite, que isso já vem perdurando já há anos eu falei pra ela, ai ela falou o seguinte: vamos fazer um checkup mais certo, vamos fazer um ultrassom. Pelo ultrassom vamos saber o que está


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acontecendo com seu estomago, pode ser estômago ou sua vesícula, porque a gente come muito sal na comida, não é uma comida muito sem sal, assim, insossa e o sal ela falou que forma pedra, tanto faz, no rim como na vesícula. Aí ela falou pra mim: evita no máximo possível de comer gordura, não pode nem ver gordura. Ai ela falou assim: quer um conselho, tira o óleo e tenta fazer sua comida com azeite, você vai fazer um arroz faz com azeite, no começo é ruim, mas depois você acostuma, o bife você vai fazer põe o azeite, tira o óleo, tanto faz esse de porco ou esse de soja você tira, por que o seu caso é delicado, porque dependendo do tamanho da pedra é perigoso estourar e aí estoura dá uma hemorragia externa (é interna), no seu caso você está com muita perda de peso, e a sua imunidade também está baixa, a sua vantagem é que a sua glicose, mais baixa do que tava no normal 67 que ele falou [...] mas assim agora no momento você vai fazer o ultrassom, vamos tratar de sua anemia, que sua anemia está bem baixa. [sic] (ROSA, outubro, 2014).

Revelou-me em tom de segredo: “ninguém sabe ainda aqui em casa, mas vou ter que largar algum trabalho e o pior não tenho dinheiro nem plano de saúde.” Para operar tem que estar tudo ok, né! Ai ela falou assim: vamos fazer o tratamento, se você operar você vai ter que pegar um atestado porque você está estudando, trabalhando [...] você vai ter que ficar uns dias em casa... ela falou que pelo SUS o corte vai ser daqui mais ou menos aqui à aqui, vai ser grande e particular faz a lazer né, eu não quero corte grande porque eu banho de biquíni no rio e tudo, vai estragar, eu não tenho uma cicatriz, eu falei pra ela ... ela riu... mas não tem graça, porque eu sou pobre tem que ter cicatriz? [sic] (ROSA, outubro, 2014).

No encontro, Rosa estava emocionalmente abalada, preocupada e com medo do que pudesse acontecer com sua saúde. Cheguei à sua casa em um momento de reflexão, do que iria fazer com seu problema e, coincidentemente, em suas análises e reflexões. Fui a primeira pessoa que ela encontrou depois da consulta, em seus próprios devaneios de quem ela era, o que queria e como queria ser tratada, foi revelando: Agora a Senhora vê, eu doente, sem dinheiro, sem plano de saúde e tenho que estragar meu corpo com uma marca por causa disso. Coisa triste essa, eu vou atrás de um empréstimo com meu patrão sei lá, vou dar um jeito, mas não vou ficar com marca não. Eu sou vaidosa, me acho bonita, gosto de por biquíni, me pintar, colocar roupinha curta, sou nova, gosto de mini-blusa. Até parece que vou marcar meu corpo por causa de dinheiro, mas não vou mesmo. Estou pensando em como falar pro meu marido tudo isso, ele vai me encher o saco sabe? Ele não gosta que eu trabalhe fora, diz que não precisa, até parece. Vou ter que pensar bem como vou falar, inclusive já pensei até em pedir um pedaço de terra lá na horta comunitária, num tem? Se ele der eu deixo o trabalho e fico só lá. [sic] (ROSA, outubro, 2014).

A conversa nesse dia foi profunda, Rosa falou sobre suas dificuldades e sugeriu diversas vezes que eu gravasse dizendo “isso pode sim, estou falando de mim não dos outros né? Grava.” Ela se abriu e mostrou que não estava contente com seu trabalho; queria mudar, se cuidar. Também foi importante perceber que ela se posicionou como uma pessoa que não


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tinha dinheiro, contudo, não era por este motivo que tinha que se sujeitar ao corte grande da cirurgia no SUS. Nossa relação ficou bastante forte, até hoje conversamos bastante quando nos encontramos. Outro momento significativo foi com Dina, uma senhora de 50 anos com 3 filhos, casada e nascida na zona rural. Eu a conheci na feira de domingo; amiga de outra doméstica, Marga fazia faxina e cuidava de crianças, conversei muitas vezes com ela, porém em um finalzinho de tarde, chegando onde moro, encontrei-a na minha rua quase em frente a minha casa, disse que estava procurando trabalho, estava suada, ofereci um copo de água e ela aceitou. Entramos, servi a água e sentamos na varanda, por alguns minutos houve silêncio e, então, perguntei se ela tinha encontrado trabalho? Ela começou a chorar, sinceramente não sabia o que fazer, falei que se acalmasse. Dina limpou os olhos e contou que estava cansada, seu marido bebia muito e depois de 22 anos de casados, tinha arrumado uma amante bem mais nova que ela, e, por isso, tinha saído de casa. Conversamos sobre isso e, depois de uma hora, ela disse precisar desabafar com alguém e eu era a pessoa certa. De repente saltou e perguntou, em tom de que tinha se lembrado de algo importante, no qual eu tinha questionado uma vez quando nos conhecemos sobre gravar a conversa e disse em tom de afirmação, que esse era o momento se eu quisesse gravar: “grava ai como mulher sofre, você não vai levar lá na universidade? Eles têm que saber, mulher sofre muito.” Preciso agora me virar e cuidar das minhas duas filhas e dois netos, uma filha trabalha, mas a outra só estuda, vou ter que me virar, porque ele era traste, mas pagava as contas e trazia comida, não era o suficiente, mas ajudava muito. Ficar desempregada agora, sem eira nem beira. Ai meu deus! Sabe professora eu estou sentindo alívio e medo ao mesmo tempo, ele batia em mim, era bêbado, um infeliz, eu sempre quis me livrar dele, mas agora que ele foi embora, não tem, estou com medo demais, e se eu passar fome? E meus netos? Mas eu vou dar a volta por cima e vou conseguir; estava para explodir, mas tinha que manter a pose lá em casa, quando vi a senhora, eu desabei. Desculpa, mas tenho que por pra fora né? Sou pobre, sempre fui, sempre trabalhei em casa de família, não tinha estudo, fiz o EJA agora, já tenho o ensino médio, sei ler e escrever ninguém mais me passa para trás, eu vou tocar minha vida e quer saber? Num quero mais homem me enchendo o saco, estou fora. [sic] (DINA, setembro, 2014).

Muitas das mulheres que conheci enfrentam esse problema em casa, o marido bebe, torna-se violento e, por isso, acontecem muitas separações, consequentemente, elas acabam por manter a casa e os filhos sozinhas. Essa é uma realidade muito presente no cotidiano de Chapada dos Guimarães. Da mesma maneira, houve um dia, pela manhã, na praça, em que encontrei Gia, 51 anos, casada, 4 filhos, vive com o marido, a mãe e um neto, moradora do bairro São Sebastião.


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Começamos a conversar, estávamos esperando o banco abrir e diminuir um pouco a fila, falávamos sobre o trabalho dela e o meu. Então ela começou a contar que estava para aposentar: Estou muito feliz, estou me aposentando, está quase tudo certo, começo a receber mês que vem, minha patroa é advogada e me ajudou com isso, me levou lá em Cuiabá e me ajudou, se não fosse por ela nem sei o que ia ser de mim, porque meus filhos tudo está no mundo, tenho um neto pra criar que a mãe está trabalhando e ninguém me ajuda, meu velho já foi com Deus, então estou feliz, agora vou poder ganhar com a aposentadoria mais umas faxinas eu consigo terminar minha casa, quero fazer uma lavanderia lá fora e se Deus quiser pintar, é bom ter a casa arrumada né não? [sic] (GIA, caderno de campo, setembro, 2014).

Gia, em outras ocasiões, tinha falado muito mal de sua patroa, mas nesse momento era como se ela falasse de outra pessoa. É interessante perceber que a relação não é estática, muito pelo contrário, é constituída em meio a conflitos que evoluem, modificam, ora melhoram ora pioram, confirmando a teoria de Simmel (1983) sobre a socialização e o conflito como parte positiva das relações sociais, como forma de evolução das relações. Em outra ocasião, na casa de Marga, no final da entrevista, começamos a falar dela de como é ser mulher, trabalhadora, agora estudando. Então começou a contar que antigamente passava muitas dificuldades no seu trabalho e que chorava muito com as coisas que a patroa falava para ela. Um dia a filha dela chegou e a encontrou chorando e ficou muito brava: E me disse assim, olha mãe a senhora não tem que aguentar tudo calado não, tem que falar, não deixa essa mulher te tratar mal, tudo bem que vocês estão pagando minha faculdade, mas está cheio de trabalho por ai, a relação com essa mulher é profissional pode parar com essa casa e arrumar outra, ou a senhora fala com ela ou eu vou lá e meto um processo nessa dona, e aí ? (risos) Aí que eu fui lá e falei um monte de coisas pra ela, agora é diferente; eu é que falo o que quero: se quer bem, se não, manda embora e pronto. Sabe que tudo mudou, expliquei que a gente era profissional e a relação era de trabalho, tudinho que minha filha me explicou, e não é que deu certo, eles me tratam melhor, assinaram minha carteira, aumentou meu salário, uma maravilha, agora ela vem e conversa, é diferente quando a gente sabe das coisas né? [sic] (MARGA, setembro, 2014).

Marga aprendeu com sua filha que deve posicionar-se e que não pode se sentir mal e não falar nada a filha, de 20 anos, nova geração, se colocou entendendo essa relação como “profissional”, ou seja, que sua mãe não podia se sentir mal, ouvir tudo calada. O convívio deveria mudar e foi o que acabou acontecendo. Com essa mudança Marga se sente melhor, melhorou sua autoestima, comportamento e o salário. Ela já não chora mais no trabalho, quando acontece algum problema conversa com a patroa. Em outro momento, encontrei Clara um dia, e conversando sobre seu trabalho, no caminho para a escola, me contou:


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Eu gosto já me acostumei a trabalhar pra eles [... ] só que tem horas que dá vontade de sair, assim, por causa da chatice dela, mas tudo que ela faz ela pede desculpa [...] tem dia que ela ofende a gente, mas tem dias que está umas mil maravilhas [...] daqui a pouco começa a resmungar em não resmungava se a senhora viu que tem alguma coisa fora do lugar, já fala e não fica falando que está bom, já chega logo no assunto, fala. Aí você já vai arrumar já vai ver, mas nunca acha e ela fica procurando defeito ela é sempre assim tudo tem alguma coisa... aí a filha dela disse que ela tem um problema que tem tempo está tudo ok, daqui a pouco ela começa a ver defeito em tudo e é verdade. Eu comecei a observar isso[....] Dona Clara em paz! (risos) Ás vezes ela vai começar aí a filha dela fala mãeee e ela para, a filha dela é boa, depois me pede desculpa, me dá um agrado, dinheiro mesmo, roupa. [sic] (CLARA, caderno de campo, agosto, 2014).

Na relação entre patroa e empregada é a filha da patroa que impõe limites no modo de falar da mãe. A nova geração, em alguns casos, parece ter bem clara a visão de uma relação laboral sem abusos na forma de tratamento com os empregados. As domésticas vão se amoldando a essas relações laborais com direitos e tratamentos, sempre citando pessoas mais novas na intermediação dessa relação. Essa mudança de posicionamento entre gerações também aparece em “Que horas ela volta?” filme de Anna Muylaert, candidato ao Oscar 2016 de melhor produção estrangeira pelo Brasil. A filha da doméstica, Jéssica, discorda da forma como sua mãe é tratada pelos patrões. Quando chega a São Paulo para morar com a mãe no quartinho de empregada, o filme toma outro rumo, Jéssica, a filha de Val (doméstica no filme), parece ter uma aguda consciência do que significa ser empregada doméstica e se recusa a ter o mesmo destino da mãe. Lembrando que, como tudo, não existem generalizações, pois no blog das “corporivetes” no primeiro capítulo, a filha Maia é muito mais cruel que sua mãe patroa com a doméstica Jucinete. Uma declaração que me abalou foi a história de Nina, aquela que gosta de ler romances clássicos da literatura brasileira e quer ser enfermeira. Mais uma vez essa mulher me surpreendeu contando sobre sua história de vida. Nina é jovem, tem filhos e trabalha desde os 12 anos como doméstica, morava na zona rural e diz ter vindo para a cidade viver na casa de gente “apoderada, é gente com dinheiro”, conta que veio para a cidade a fim de trabalhar como doméstica: Vim com 12 anos, minha mãe falava que era para estudar, ter futuro, mas não foi bem assim não, vim e fiquei em um casarão lá em cima no centro, tinha um quartinho muito pequeno do lado de fora com banheiro também pequeno, era eu e mais 2 mulheres, eu de 14, uma de 19 e outra de uns 30 que mandava em nós, ela estava lá há muito tempo, eu cuidava da casa, lavava roupa, cuidava das crianças e ajudava na cozinha, como eu cozinhava bem a G, que mandava, sempre me chamava pra ajudar principalmente quando era festa. A gente limpava o dia todo e nunca acaba o serviço, começa umas 7 com o café da manhã e terminava sem parar umas 10:00 depois de arrumar a cozinha da janta, era muito trabalho. A casa era muito


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grande e morava o patrão, 4 filhos e 3 netos e dois genros, era muita gente, e no final eu nem fui para escola, fui né, mais não dava conta não, cansava muito, por isso que agora eu voltei a estudar, quero estudar não tem? Naquela época era assim para sair da zona rural tinha que sofrer, e eu sofri. [...] Aí sai dessa casa dos ricos com 17 anos, casada e grávida, era o jeito de sair daquele inferno, então tive outro filho depois e meu marido e eu separamos, mas a mãe dele virou minha mãe e cuida de mim e das crianças e me ajuda a arrumar trabalho, nunca fiquei desempregada, estou agora na casa da Dona E e ela é boa, mas não dou muita confiança não, vou dia de semana, eles vem no final de semana eu vou lá cozinhar, deixar tudo em ordem, mas a gente não conversa nada, acho que é melhor. [sic] (NINA, agosto, 2014).

Essa mulher passou por muitas situações difíceis. Trabalha como doméstica desde os 12 anos, veio para a cidade acreditando que iria estudar, mas acabou apenas trabalhando, e se afastando de sua família. Explica que em uma casa de 12 irmãos, se viesse menina para a cidade aliviaria mais uma boca para ser sustentada na zona rural, carente de trabalho e alimento. Olha passei por muita coisa, minha família me abandonou, mas eu não tenho ódio não, nem raiva, entendo minha mãe coitada eu era a maior dos filhos, para mãe eu já era grandinha, então cada um fez o que achava melhor. Aprendi muito na vida, agora sei que ninguém pode me tratar igual escrava, tem lei de trabalho, tenho carteira assinada, férias, não pode trabalhar mais que 8 horas, eu sou gente igual todo mundo, agora sei que tenho direito. [...] Também gosto de me cuidar, sou nova ainda, então faço questão de fazer minhas unha, usar batom, vou no forró, adoro dançar e tenho namorado, nada de casar não, namorar que é bom. (risos). [sic] (NINA, setembro, 2014).

Essas mulheres, quando falam de si, expõem experiências distintas, apresentam a importância de conflitos vividos dentro da relação com o trabalho doméstico em suas vidas, sentimentos e lugares no mundo. Através dessa sociação9 derivadas na dimensão da vida social ordinária, se identificam mudanças significativas por meio de tais conflitos. Relembrando Simmel, quero dizer que é através desses conflitos que se consegue negar a unidade, e, assim, obter consequência positiva, visto que “o próprio conflito resolve a tensão entre contrastes.” (SIMMEL, 1983, p. 123). O autor prevê em seus estudos o que acontece com nossas protagonistas; ele parte da premissa de que o conflito se reproduz no encontro às ações interativas e relacionais na sociedade, pois o conflito está em todas as ações produzidas no interior da sociedade. “Admite–se que o conflito produza ou modifique grupos de interesse, uniões, organizações. [...] é uma forma de sociação.” (SIMMEL, 1983, p 122). O conflito, quando considerado uma 9

Concebendo a sociedade como produto das interações individuais, Simmel (1983) formula o conceito de "sociação" para designar mais apropriadamente as formas ou modos pelos quais os atores sociais se relacionam.


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forma social, pode possibilitar situações de construções e destruições de quem está envolvido nele. Neste caso, eu me refiro à relações e interações sociais entre as domésticas e seus patrões. Assim sendo, os conflitos apresentados por essas mulheres na hora de falarem de si e de seu trabalho são percebidos como socialmente importantes, são situações predominantes nas interações de convivência social. Para Simmel (1983) o conflito é a substância existente nas mais diversas relações entre os indivíduos na sociedade, pois uma condição necessária para que as partes, muitas vezes ásperas e díspares possam, de fato, efetuar o enredo que se encerra, acaba por ser um ato estipulador que, em diversos momentos acaba por permitir a própria superação dessas dissimilitudes dos envolvidos. O conflito possui a capacidade de constituir-se num espaço social, em que o próprio confronto é um ato de reconhecimento e, ao mesmo tempo, produtor de mudanças entre as relações envolvidas. Outra característica positiva consequente dos conflitos e verificada nessa pesquisa é a superação dos limites socialmente estabelecidos, as desigualdades sociais produzidas e estruturadas por resultados das misturas e laços que existem nas mais diversas relações entre os indivíduos na sociedade. Considerando o exposto, compreendo que as atrizes sociais em conflito podem ser vistas pelo ângulo da superação, todas elas de alguma maneira e a partir deles – conflitos - se superaram, ou seja, essas mulheres se reposicionam no mundo, no trabalho e na vida. As interações conflituosas que vivenciaram acabaram levando-as a repensar e, também a mudarem de estratégia, atitude, posicionamento e existência. O que entendo nessa análise é que as mulheres trabalhadoras domésticas passam por inúmeros conflitos, em suas ações e interações sociais no seu trabalho, que superam esses conflitos e, de alguma forma, conseguem mudar sua realidade.

DOMÉSTICAS: LUGARES, ESPAÇOS E CONSUMOS

3. ESPAÇOS E CONSUMOS Aqui o espaço é tudo, pois o tempo já não anima a memória. A memória – coisa estranha! Não podemos reviver as durações abolidas. [...] É pelo espaço, é no espaço que encontramos os belos fósseis de duração concretizados por longas permanências. O inconsciente permanece nos locais. [...] Localizar uma lembrança no tempo não passa de uma preocupação de biógrafo e corresponde praticamente apenas a uma espécie


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de história externa, uma história para uso externo, para ser contada aos outros. (BACHELARD, 1996, p.23-24)

Não haveria como desvendar este universo feminino sem observar e discutir as representações espaciais e de consumos dessas mulheres. A premissa é contextualizar o ambiente no qual se passa a relação entre as personagens desta pesquisa, patroas e empregadas domésticas na cozinha – lugar situado dentro da casa. Esses espaços, casa e cozinha, estão interligados aos consumos do universo aqui retratado. Este capítulo apresentará epistemologias e experiências que vivenciei para propor uma interpretação dessa relação nos espaços e consumos sendo narrados na dissertação. Como apontado por Bourdieu (1996), o espaço social apresenta uma reflexão que pode ser acionada em diferentes realidades sociais, já que as posições ocupadas pelos atores são definidas pelo contexto, distinguindo esses indivíduos na disputa por uma visão de mundo. Eu falo de um contexto relacional que acaba sendo capaz de distinguir posições ocupadas pelos diversos personagens que compõem a história. Tais disposições são a forma pela qual as posições são expressas material e simbolicamente: gostos, modo de falar, modo de fazer, as preferências, consumos que são percebidos, corporificados e materializados através do habitus. Bourdieu entende habitus como: Sistemas de posições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, quer dizer, enquanto princípio de geração e de estruturação de práticas e de representações que podem ser objetivamente 'reguladas' e 'regulares', sem que, por isso, sejam o produto da obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu objetivo sem supor a visada consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias para atingi-las e, por serem tudo isso, coletivamente orquestradas sem serem o produto da ação combinada de um maestro. (BOURDIEU apud MICELI, 1987, p. 50).

É a partir dessa ideia, que as posições e disposições acabam sendo desvendadas por tomadas de decisões que revelam o que os atores sociais fazem no domínio das diferentes práticas: política, compra, cozinha, limpeza, música, etc. Os agentes sociais que são constituídos como tais em e pela relação com um espaço social (ou melhor, com campos) e também as coisas na medida em que elas são apropriadas pelos agentes, portanto constituídas como propriedades, estão situadas num lugar do espaço social que se pode caracterizar por sua posição relativa aos outros lugares (acima, abaixo, entre, etc.) e pela distância que o separa deles. Como o espaço físico é definido pela exclusão mútua das partes, o espaço social é definido pela exclusão mútua (ou a distinção) das posições que o constituem, isto é, como estrutura de justaposição de posições sociais. (BOURDIEU, 1997, p.160).


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Como descreve Bourdieu, os espaços físico e social são categorias distintas, porém as estruturas do espaço social se manifestam das mais diversas maneiras na organização do espaço físico. Pois, o espaço habitado ou apropriado, no sentido de propriedade, geralmente simboliza, de forma espontânea, o espaço social. O físico exprime, sem esgotar a sua complexidade, as hierarquias da sociedade, dos espaços sociais. As formas espaciais em que essa hierarquização se manifesta são dissimuladas “pelo efeito de naturalização que a inscrição durável das realidades sociais no mundo natural acarreta: diferenças produzidas pela lógica histórica podem, assim, parecer surgidas da natureza das coisas.” (BOURDIEU, 1997, p.160). Para Pais (2002), quando o cotidiano é percebido como uma concepção que permite desvendar a sociedade na categoria dos sujeitos, é pertinente prestar atenção aos “contextos dos indivíduos.” Isso significa que é fundamental atentar para os: [...] elementos do meio social relevantes para os indivíduos: normas, regras, nortes de orientação, bússolas cognitivas, mapas de significação e representações sociais que regulam distintos estilos de acções, distintas condutas comportamentais. As condutas são os textos a que se reportam os contextos, [...] a sua textura, a sua substância feita de inscrições e traços. (PAIS, 2002, p. 131).

O elemento espacial do contexto aqui apresentado são os espaços que apareceram por meio das ações sociais pesquisadas no decorrer do trabalho. Segundo Pais (2003, p.136), o espaço “é-nos dado sob a forma de lugares e práticas e são estas que organizam esses lugares em trajetos, direções. Assim entendida, esta forma de espacialização, de contextualização, é sempre analítica, resulta sempre de um processo de construção.” Assim sendo, as maneiras de fazer dessas mulheres – domésticas - e suas ações, me levam aos contextos sociais que estão, necessariamente, associados às condutas, atos e interações cotidianas que se circunscrevem a um espaço. O conceito de espaço não deve, contudo, sobrepor-se ao de lugar. Um lugar (físico, geométrico é uma configuração instantânea de posições, implicando uma indicação de estabilidade. Em contrapartida, um espaço encontra-se impregnado de vectores de direção, de forças motrizes, de inconstâncias, de movimentos. O espaço, como componente de um contexto analítico, e o efeito produzido por forças que o orientam, o circunscrevem, o temporalizam, o levam a funcionar como unidade polivalente. Essa unidade polivalente encontra-se presente na definição de contexto. O espaço pode, por conseguinte, considerar-se como uma variável acessória de qualquer contexto social, variável explicativa mas não autônoma. (PAIS, 2002, p. 136).

Considerando o exposto, atentei para o fato de que nos estudos da Sociologia do Cotidiano a proposta é entender a ligação entre as atividades diárias, as diferentes estruturas sociais e


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culturais que aparecem dessas mediações no espaço variável contextualizado. Sendo assim, é a partir das ações/práticas do cotidiano que os espaços serão analisados. Trata-se, pois de desenvolver uma perspectiva em que o espaço surge como suporte mediador e cuja mediação se exerce através da sua significação simbólica. Assim, se um contexto nos permite descobrir um espaço de práticas sociais com significados simbólicos relativamente precisos. (PAIS, 2002, p. 136, grifo nosso).

Entendo, então, que o espaço nada mais é que uma variável que assessora na definição de um contexto, ou seja, “o espaço é um lugar praticado. [...] folhas em branco que só ganham sentido com a inserção, com as assinaturas que os indivíduos nelas fazem.” (IBIDEM, 2002, p. 138). Junto aos espaços aqui apresentados aparecem, de forma reveladora, os consumos das participantes da pesquisa, no que se refere à comensalidade e às relações entre patroas e domésticas, por meio do que se compra e do que se prepara. “Quando se diz que a função essencial da linguagem é sua capacidade para a poesia, devemos supor que a função essencial do consumo é sua capacidade para dar sentido.” (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2013, p.7). Pois então, busquei entender quais são os consumos que separam os dois grupos sociais, patroa e empregada. Em um primeiro momento me pareceu simples e fácil responder à pergunta: Quais consumos separam essas mulheres? A quantia de dinheiro que a mulher possui para comprar um bem é o que vai separá-la das demais, independentemente se é mais ou menos, se custa mais caro ou mais barato. Acontece que, buscar entender o consumo a partir das conversas informais realizadas com as protagonistas dessa pesquisa, patroas e empregadas da cidade de Chapada dos Guimarães, para serem, em seguida, analisadas a partir de estudos sobre o consumo, acabou por me levar a outro tipo de resposta, e, inclusive, de interesses, já que analisar certo consumo de um grupo de indivíduos pode significar muito mais do que quantidade de dinheiro ou poder de compra. Para conseguir responder à pergunta sobre quais são os consumos que separam os dois grupos sociais, a partir de minhas conversas com as mulheres, percebi que não se trata de questão econômica, mas cultural, visto que, em diversas falas as mulheres não estavam ou não falavam do poder de compra como uma bússola para o consumo, mas de gostos, vontades, necessidades e preferências. Tina, por exemplo, me disse, em uma conversa relacionada ao cozinhar, eletrodomésticos e alimentos, que a cozinha dela era muito mais bonita que a da patroa. Contou, ainda, sobre as compras da patroa, que tinha equipamentos caros, mas que não sabia organizar os objetos para que ficassem bonitos, pendurava as panelas na parede, e isso, para Tina, era a antítese da


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estética, pois acreditava que na cozinha tudo devia estar guardado nos armários: “é mais higiênico e bonito”, justificou ela. Falou, também, sobre a geladeira, o fogão e os equipamentos de sua patroa, todos espalhados pela cozinha e isso ela achava feio, inclusive, contou um episódio para exemplificar: logo ao chegar para trabalhar na casa, achou a cozinha um tanto bagunçada e foi arrumar as coisas do seu próprio jeito. Quando a patroa chegou, ficou brava porque queria tudo como estava. A atitude da patroa, para Tina, foi um comportamento de ingratidão, posto que ela havia arrumado tudo, que em sua concepção tinha ficado lindo e dado um trabalhão, mas mesmo assim, a patroa zangou-se. Confessou em uma de nossas conversas que nunca mais mudou nada na casa de ninguém: “se elas querem as coisas assim desarrumadas, a cozinha feia, o problema é delas, a minha não, a minha cozinha é linda não é?” (TINA, caderno de campo, junho, 2014). Outra situação que me levou a repensar o poder de compra diz respeito a uma visita realizada à casa de Marga (doméstica). Assustei-me com a cozinha dela, pois era de “novela”: uma geladeira duplex de inox, um fogão daqueles de chapa na bancada, o forno fixo na parede, enfim, era planejada e linda. Tudo que estava ali era muito caro, por exemplo, uma mesa linda de vidro, sinceramente, estive em poucas cozinhas tão “caras/chiques” na minha vida. Mais adiante ela revelou que ainda estava pagando, faltavam 7 prestações, mas isso não importava e nem era um problema, pois o importante era sua cozinha estar linda e ser composta por tudo que ela precisava. Para Marga, tanto quanto para Tina e para a maioria das domésticas entrevistadas, a cozinha é o espaço preferido da casa, local em que todos ficam muito tempo, investem em compras e gostam de estar. Desta maneira, foi surgindo a ideia de que era preciso entender o consumo do ponto de vista cultural, vinculado aos novos estudos sobre o consumo na Sociologia e Antropologia, que desvinculam o tema da aquisição de mercadorias através do dinheiro. Por essa linha de raciocínio, entendo que a aquisição de coisas produz sentido e acepções sociais. Portanto, é importante entender como e o que consumimos, para sabermos quem somos e o que este consumo comunica. Já que “estudar consumo significa, em certo sentido, privilegiar a cultura, o simbólico, experimentando a relatividade dos valores e a instabilidade nela implícita.” (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2013, p.13, grifo nosso). De um modo geral, para as ciências humanas, a cultura pode ser entendida como um sistema simbólico, um conjunto de mecanismos de regras, planos, modelos, controles que conduzem o comportamento humano. (GEERTZ, 1979, grifo nosso).


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Da mesma maneira, Douglas e Isherwood (2013) alertam que a cultura define a vida por sistemas simbólicos e que as regras que constituem tal sistema são, em sua formulação, arbitrárias e possuem uma nítida intenção de disciplinar o comportamento humano. A partir dessas delimitações posso analisar os hábitos alimentares como parte de um sistema simbólico cultural, no qual existem significados, classificações, associações, ou seja, o alimento, a comida não está fora dos sistemas simbólicos que a sociedade lhes atribui. Assim sendo, esses sistemas acabam por determinar aquilo que bebemos e comemos, o que é comestível e o que não é. (BRAGA, 2004). Percebidos a comida e o espaço como algo que comunica algo, partimos para a discussão sobre os ambientes aqui presenciados. A arquiteta Maria Cecília Naclério Homem (1996), que estuda a casa no decorrer da história brasileira, afirma que foram as transformações dos hábitos sociais que implicaram em um programa “civilizador” de cunho europeu, que se pautava nas práticas e comportamentos aristocratas e da burguesia europeia. Das práticas e comportamentos da aristocracia europeia que começaram a surgir no Brasil, a autora enumerou algumas: as variadas salas para diversos fins e a diferenciação de cômodos para cada gênero. Entretanto, o que vale a pena enfatizar é que, em um período anterior às mudanças espaciais nas casas brasileiras, ocorreu uma transformação no modo de vida das pessoas, que independe do espaço, ou seja, primeiro o modo de vida se transforma para depois o espaço se adaptar a ele. (HOMEM, 1996). Seguindo este raciocínio compreendo que os espaços estão ligados à forma como vivemos e não o contrário. E assim eles – espaços - foram interpretados nesta pesquisa. Akhil Gupta e James Ferguson no artigo “Mais além da cultura: espaço, identidade e política da diferença”, na obra de Antonio Arantes “O espaço da diferença” (2000), repensam o conceito de “cultura”, e “diferença cultural”. Os autores apontam para os efeitos que acabaram sendo produzidos nos deslocamentos efetuados pela teorização pós-modernista e feminista do espaço, que introduz noções como “vigilância”, “panopticismo”, “simulacro”, “desterritorialização”, “hiperespaço pós-moderno”, “fronteiras” e “marginalidade”, todos os conceitos que dissociam a cultura da Sociedade e do Estado. Desfazendo, por exemplo, a naturalidade com que temos expressões coincidentes ao dizer que um turista vai à Índia para conhecer a "cultura indiana", a "sociedade indiana", "a Índia". O espaço discutido por esses autores não é um recipiente neutro em que a diferença cultural, a memória histórica e a organização social são inscritas. O espaço tem em si sentidos que organizam e dão visibilidade de modo específico aos sujeitos, com suas memórias, culturas e ordens sociais.


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Os autores supracitados, para mostrarem como a questão do espaço não é simples nem transparente, colocam o leitor diante da pergunta de como é possível se dar conta, por exemplo, dos habitantes das fronteiras, dos trabalhadores "nômades" que passam metade do ano em um país e metade em outro, ou dos imigrantes, dos exilados, dos refugiados, dos colonizados? Carregamos nossa cultura conosco nessas transições todas? Forma-se uma nova cultura? Eis a discussão, ainda longe de terminar, quando se apresenta a questão das diferenças culturais. De um lado Grupta e Ferguson (2000) mostram a necessidade de tratar a diferença cultural abandonando o clichê de cultura localizada, o que permitiria ver formas de solidariedade e identidade que não repousam sobre uma apropriação do espaço em que a contiguidade e o contato pessoal sejam fundamentais. Levar em conta esta nova organização do espaço, passa a ser crucial para a reflexão sobre políticas de comunidade e, também, para pensar os efeitos desta dissociação na própria significação dos lugares: se lugar e povo podem dissociar-se, é preciso levar em conta a diferença cultural como parte de um processo histórico compartilhado que, ao mesmo tempo em que diferencia o mundo, também o conecta. [...] de modo mais geral, a representação de território – variam consideravelmente graças a fatores como classe, gênero, raça e sexualidade, e estão disponíveis de forma diferenciada aos que se encontram em locais diferentes do campo do poder. (GUPTA; FERGUSON, 2000, p. 42).

Espaço e consumo não são conceitos fáceis de definir, ao contrário, são conceitos que dependem de comportamentos e podem nos dizer muito mais do que se imagina em um primeiro momento. Não podem ser entendidos como algo estático, mas como ações sociais que transformam a todo o momento os espaços e consumos diários das mulheres aqui apresentadas. Localizadas e múltiplas, as ações ligadas aos lugares e as escolhas podem mostrar como estão sendo transformadas e apresentadas no cerne do dia a dia das pessoas, neste caso, as domésticas de Chapada dos Guimarães. Assim sendo, levanto a questão: quais são os espaços onde acontecem as disputas entre empregada doméstica e patroa? Quais são as regras que ordenam a casa de uma e de outra? Quais são as ideias que cada uma delas tem de lar, arrumação, comida, mesa, família, felicidade? São essas questões que apresento agora, pontuadas num espaço comum entre as patroas e domésticas, deixando claro, contudo, que nada de parecido acontece na concepção de viver, organizar, comer, portar-se, preparar, limpar, armazenar.


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3.1 A casa: limpar

Com efeito, a casa é, à primeira vista, um objeto rigidamente geométrico. Somos tentados a analisá-la racionalmente. Sua realidade inicial é visível e tangível é feita de sólidos bem talhados, de vigas bem encaixadas. A linha reta predomina. O fio de prumo deixou–lhe a marca de sua sabedoria, de seu equilíbrio. Tal objeto geométrico deveria resistir a metáforas que acolhem o corpo humano, a alma humana. Mas a transposição para o humano ocorre de imediato, assim que encaramos a casa como um espaço de conforto e intimidade, como um espaço que deve condensar e defender a intimidade. Abre-se então, fora de toda racionalidade, o campo do onirismo. (BACHELARD, 1996, p. 64).

Falar da casa das pessoas, onde elas habitam e se alimentam é discutir a intimidade de cada uma delas, abrir a porta de suas privacidades, hábitos e costumes. Não é muito tranquilo falar sobre e, principalmente, mostrar como vivemos em nossas particularidades: como escolhemos e distribuímos os objetos, o que comemos, como armazenamos e como dividimos este espaço com pessoas da mesma família e indivíduos de fora. Pensando nos espaços privados, Pais (2002, p. 186-187), contrapõe a casa e a televisão, justificando que, tanto uma como a outra estão marcadas pelo “paradoxo da ligação e da desconexão, do afeto e da repulsa, do trabalho e do lazer, da sujeição e do conflito, da pertença e da despertença.” [...] há um grande e crescente abismo entre a condição de indivíduos de jure e suas chances de se tornar indivíduos de facto – isto é, de ganhar controle sobre seus destinos e tomar as decisões que em verdade desejam. É desse abismo que emanam os eflúvios mais venenosos que contaminam as vidas dos indivíduos contemporâneos. Esse abismo não pode ser transposto apenas por esforços individuais: não pelos meios e recursos disponíveis dentro da política-vida auto-administrada. Transpor o abismo é a tarefa da Política com P maiúsculo. Pode-se supor que o abismo em questão emergiu e cresceu precisamente por causa do esvaziamento do espaço público, e particularmente da ágora, aquele lugar intermediário, público/privado, onde a política-vida encontra a Política com P maiúsculo, onde os problemas privados são traduzidos para a linguagem das questões públicas e soluções públicas para os problemas privados são buscadas, negociadas e acordadas. [...] Para o indivíduo, o espaço público não é muito mais que uma tela gigante em que as aflições privadas são projetadas sem cessar, sem deixarem de ser privadas ou adquirirem novas qualidades coletivas no processo da ampliação: o espaço público é onde se faz a confissão dos segredos e intimidades privadas. Os indivíduos retornam de suas excursões diárias ao espaço „público‟ reforçados em sua individualidade de jure e tranqüilizados de que o modo solitário como levam sua vida é o mesmo de todos os outros „indivíduos como eles‟, enquanto – também como eles – dão seus próprios tropeços e sofrem suas (talvez transitórias) derrotas no processo. (BAUMANN, 2000, p. 49).


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Continuando com Pais (2002), que dialoga com a perspectiva de Bauman (2000), a individualização da sociedade acaba por fazer com que as preocupações dos indivíduos seja reduzida ao espaço público a uma esfera de interesses privados. Ou seja: O público acaba por ser colonizado pelo privado, sendo o interesse público reduzido à curiosidade sobre as vidas privadas das figuras públicas. [...] a arte da vida pública está a ficar reduzida à exposição pública de questões privadas e a confissões de sentimentos, quanto mais íntimos melhor. (PAIS, 2002, p. 187).

Tanto Flor, como Marga, Catia, Rosa ou Nina, em nossas conversas sobre suas respectivas casas e as das patroas, sempre consideraram as delas menos suntuosas comparadas à da empregadora, afirmando ser esta melhor, mais bonita, aconchegante. “A casa dela é bonita claro, mas não é de meu gosto não, a minha é mais clara, arrumada, as coisas são mais bonitas e novas, fazem mais conjunto, ela tem umas coisas velhas lá, coisa da época da minha avó, minha casa não, é mais moderna.” [sic] (FLOR, caderno de campo, novembro, 2014). Como dito, todas as entrevistadas valorizaram suas moradias e defenderam, em suas falas, que suas casas são melhores que a casa da patroa; existe afeto ao lar, mesmo as que moram em casas pequenas, sem estrutura nenhuma, de alguma maneira a sua casa é considerada melhor que a da outra, inclusive, o estado de espírito das pessoas que vivem dentro dela, que é tido como um referencial para falar do espaço casa. Na minha casa é bem diferente de lá, a gente é feliz, gosta de cantar, sempre está unido, não briga por qualquer coisa, tudo está bom, minha casa é bem melhor, a gente dá risada e ajuda um ao outro. Na casa deles não, é um silêncio, eles ficam tudo no quarto com a televisão ligada, são sujos, se eu não limpar vixiii é um chiqueiro. [sic] (DINA, outubro, 2014).

A casa pode ser considerada um espaço único, que corresponde aos mais íntimos sonhos, desejos e comportamentos de um indivíduo. É nesse espaço que não temos receio de nos expor completamente, sem medo de causar qualquer constrangimento, é onde colocamos nossa roupa mais velha e nos sentimos bem, é onde passamos cremes na cara e no cabelo e deixamos agir por minutos, horas - mesmo que estejamos parecendo fantasmas -, é em nossa casa que nos comportamos como somos sem medo do julgamento alheio. E é por isso que existe certa complexidade de expor à outras pessoas o que acontece neste território de intimidade. Mais complicado ainda é quando abrimos a porta para uma pessoa desconhecida entrar e fazer parte da intimidade sem incomodar e descobrir nossos segredos íntimos; parece uma missão quase impossível: conseguir ser invisível dentro de uma casa é complicado. Contudo, por


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mais improvável que possa parecer, é exatamente isso que as patroas querem de suas funcionárias: que façam seu trabalho, mas não conheçam seus segredos, suas intimidades, ou seja, não incomodem. Eu aprendi com minha mãe, quando for trabalhar na casa dos outros não falar muito, não perguntar muito, chega calada e sair muda, ela falava isso, não senta na mesa, mesmo que eles chamar, não senta nunca no sofá, nem na cama, não usa o banheiro de dentro, é assim que aprendi a me comportar na casa das patroas. [sic] (CLARA, caderno de campo, setembro, 2014).

Algumas patroas que entrevistei, em seus discursos, estavam bem preocupadas com a nova lei sobre a extensão dos direitos trabalhistas aos trabalhadores domésticos, conhecida como a PEC das domésticas, aprovada em 2015, garantindo-lhes férias, 13º salário, descanso no almoço e horas extras. Na época das conversas a Lei estava ainda no estágio de discussão. As patroas, no entanto, se mostravam mais apreensivas com a invasão de privacidade dessas trabalhadoras do que propriamente com o gasto que acarretaria a nova legislação. Percebi que o que preocupa de verdade é a intimidade que a empregada pode vir a ter nas horas de descanso. Sol, por exemplo, achou a nova lei boa, pois já assinava a carteira de sua empregada, mas conta, receosa, estar preocupada sobre o local onde as empregadas irão descansar na hora do almoço. Com um semblante irritado e de reprovação, me perguntou: “onde? No meu sofá? Na minha sala?” Ela mesma respondeu, em seguida: “Não acho legal isso, vou ter que pensar onde ela vai descansar, tem um banco lá na área de serviço, vai ter que ser lá. Eu não as quero no meio da minha casa, na minha intimidade, nas minhas coisas, tenho horror disso.” Sol, depois do desabafo, pediu-me que não gravasse e nem a mencionasse, e me disse, séria: “Posso confiar né? É só um desabafo desse governo corrupto e seus seguidores que querem ser politicamente corretos, não coloca meu nome não isso pode me prejudicar.” [sic] (SOL, caderno de campo, julho, 2014). Roberto DaMatta (1997), em sua obra “A casa e a Rua”, analisa a casa como espaço privado de intimidade, a identifica como um lugar de tranquilidade, lar e morada, constituído por pessoas iguais. Apresenta um espaço protegido com honra, com o cuidado dos bens e seus membros, que não é, para o autor, apenas um lugar físico, ao contrário, o reconhece como um espaço moral, com regras que regulam o modo de agir das pessoas, valores e convenções estabelecidos coletivamente por cada sociedade e família. A tese de Pais (2002) sobre a casa, é que o espaço é visto como um paradoxo, ou seja, ao mesmo tempo em que a casa pode ser vista como espaço de afeto ou desafeto, aconchego, onde seus membros revelam suas personalidades, onde tudo pertence aos seus agregados,


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onde somos reconhecidos e respeitados. A casa é como se fosse um mundo à parte daquele em que vivemos, lugar para repor as energias, sermos quem somos. O tempo que corre lá dentro não se mede pelo relógio, mas pelo envelhecimento das coisas. Porém, esse mesmo espaço pode ser, também, lugar de violência, estupro, maus tratos, agressões físicas contra mulheres, crianças, trabalhadores e animais. Dessa maneira, a casa pode ser considerada um espaço moral, em que cada “lar” funciona com regras e costumes distintos, o que significa que cada morada tem seu sistema simbólico de funcionamento: [...] se a casa está, conforme disse Gilberto Freyre, relacionada à senzala e ao mocambo, ela também só faz sentido quando em oposição ao mundo exterior: ao universo da rua. Ou seja: o que temos aqui é um espaço moral posto que não pode ser definido por meio de uma fita métrica, mas - isso sim - por intermédio de contrastes, complementaridades, oposições. Nesse sentido, o espaço definido pela casa pode aumentar ou diminuir, de acordo com a unidade que surge como foco de oposição ou de contraste. A casa define tanto um espaço íntimo e privativo de uma pessoa (por exemplo: seu quarto de dormir) quanto um espaço máximo e absolutamente público, como ocorre quando nos referimos ao Brasil como nossa casa. Tudo, obviamente, depende de outro termo que está sendo-implícita ou explicitamente contrastado. Deste modo, meu quarto (por oposição aos outros quartos) é a "minha casa". (DAMATTA, 1997, p. 16).

Além dessa dificuldade de partilhar o espaço da casa com o de fora, ainda percebi, nas patroas, imposição e medo de autoridade: certa preocupação em deixar claro quesitos como quem manda, quem obedece e quem consegue manter o poder. A maioria das patroas explica que mandam como querem que o serviço seja feito, como limpar, que produto usar, começar por onde, etc. Contudo, na prática nem sempre é assim, já que muitas das empregadas acabam praticando o seu ritmo e maneiras de fazer dentro da casa. Ainda não fui na casa deles em Cuiabá [..] eu acho assim, que ela tem um apartamento em Cuiabá eles moram lá. Mas dessa casa aqui eles tem por prazer, por ter, porque o gasto que eles fazem aqui é por prazer deles, nem tem necessidade dessa casa, porque eles gastam uma fortuna aqui, olha o tamanho daquele jardim, tem que cuidar, tem que pagar alguém para cuidar [...] meu esposo que trabalha lá também [...] Ai vem adubação, vem terra preta, vem tudo ai parte para cuidar da casa porque ninguém, ta aí, só final de semana que eles vêm, então ai acho que é um gasto que eles fazem por prazer. Lá ela pode até mandar, mas aqui eu é que sei como fica melhor, ela gosta de tapete branco, no começo trazia tapete branco enorme para por na casa, eu dei fim nisso, falei não senhora tapete branco em Chapada não dá certo não, agora os tapetes são de cor, porque se é branco não coloco, já falei pra ela. Onde já se viu tapete branco na Chapada? [sic] (MARGA, caderno de campo, janeiro, 2015).


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É na “casa” onde o conflito e as delimitações de classe entre essas mulheres acontecem, dentro de um espaço privado que não representa, para suas donas, segurança e tranquilidade, mas poder. Existe uma disputa, mesmo que subjetiva, pela manutenção do poder dentro daquele espaço que causa tensões. Todavia, ambas as mulheres, patroa e empregada, acabam cedendo, em certo momento, para que a relação sobreviva. Quando essa tensão é levada às últimas consequências, sem nenhum acordo, a relação acaba rompendo e o contrato de trabalho também. A última mulher que trabalhou comigo era muito folgada, ela não vinha na hora que marcávamos, toda semana mudava o dia também, uma semana era porque a filha estava doente, outra porque estava chovendo, aguentei isso um ano e meio, estava muito ocupada, estressada e fui aceitando, mas mês passado quando as coisas se acalmaram lá em casa, sentei com ela e disse: olha, preciso de alguém que seja responsável e venha no dia e na hora marcados, se não vou procurar outra, falei pra ela escolher o dia e a hora que viria, pois ela veio uma semana certa e na outra já me enrolou de novo, ai mandei ela embora, não aguentava mais tanta cara de pau. [sic] (LUIZA, caderno de campo, abril, 2014).

Apesar de a sociedade contemporânea trazer consigo novos arranjos familiares, não existindo mais um modelo ideal de família, mas arranjos diversificados que vão surgindo ao longo do tempo, o espaço das casas que desvendei com a investigação é particularmente feminino. As mulheres são responsáveis por tudo que está, de alguma maneira, ligado ao morar bem e com qualidade, pelas roupas, limpeza, manutenção, contratação de serviços, cuidados com os filhos, cardápio, compras, escola, etc. Mesmo continuando a ouvir que os homens têm, cada vez mais, participado desse universo, nas minhas entrevistas o que fica claro é o contrário, as mulheres são as responsáveis por tudo que está ligado à casa e seu universo. Quando há a participação dos homens não é uma divisão de tarefas, mas tão somente um auxílio na realização de algumas delas. Isso acontece quando as mulheres pedem ajuda. Para Heidegger (1951), o cuidado é o modo de ocupação do ser no mundo, um ato pelo qual o ser está sempre exercendo sobre sua própria existência e no mundo, buscando como resultado uma “autocompreensão” que produz ações transformadoras. O ocupar-se de si seria um modo como o ser ocupa um espaço e constrói ali sua habitação. O modo de estar e ser num determinado espaço preexistente só faz sentido com a espacialidade do corpo em função com o pertencimento no mundo. Assim, o lugar se faz na ação de habitar que, por sua vez, designa a apropriação desse espaço pela sua função a partir da atitude e das necessidades do sujeito em relação ao mundo. Heidegger (2011) chama


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atenção para a importante ação de habitar, pois é por meio dela que se faz a relação do homem com o espaço. E dentro desse habitar, o próprio espaço casa possui em seu interior outros espaços e referências do cotidiano de quem habita. O que posso afirmar é que a casa é um espaço privado e com bases afetivas e de poder. No entanto, dentro da contextualização dos atores sociais aqui pesquisados, um espaço foi escolhido para receber mais atenção no estudo, nele acontecem conflitos entre nossas personagens, as domésticas e patroas: a cozinha. Guerrand (2009) considera o interior das moradias burguesas do século XIX extremamente racional com espaços divididos em públicos, privados e de rejeição, que seriam aqueles pouco valorizados socialmente, como a cozinha, os banheiros e os quartos dos empregados: A sala de jantar era o local onde a família se exibia para os convidados. A refeição era um momento de grande importância nas relações sociais, momento em que se realizavam negócios, organizavam-se casamentos, sendo também uma forma de mostrar prestígio ao exibir uma gastronomia refinada. Além de servir como um espaço de representação, a sala de jantar era o local de encontro dos membros da família, um espaço de sociabilidade tanto íntima quanto pública. Todos os burgueses que almejavam algum status social desejavam ter um grande salão em sua casa. Os apartamentos da classe dominante não poderiam ser imaginados sem esse espaço teatral, onde se realizavam as recepções em dias fixos. O salão possuía uma importância simbólica, sendo uma marca de classe, ele significava mundanidade e sociabilidade, características da burguesia. Na casa dos pequenos burgueses, onde esses ritos sociais não aconteciam com frequência e as relações sociais quase que se restringiam à família, esses salões eram lugares poucos usados com móveis recobertos por capas protetoras. (GUERRAND, 2009, p. 116).

Como se pôde ver, deixar a casa limpa e em ordem é responsabilidade feminina, e quando se pertence a uma classe social privilegiada, contrata-se empregados para ajudar nos afazeres. Uma casa em ordem é importante para mostrar à sociedade que ali se vive bem e feliz. A casa deve estar preparada para receber as pessoas de fora e os que nela residem, como status de que tudo está correndo bem, e se algo não estiver nos conformes poderá colocar tudo a perder, ou seja, colocar em xeque se aquela família sabe portar-se, receber, e se é feliz. A limpeza representa mais que limpar o chão, lavar a louça ou preparar as camas. Os resultados dessas ações mostram que tipo de família vive naquela casa. Porém, nem sempre o que se entende por limpeza, como e quando, têm entendimentos que coincidem entre patroas e domésticas, posto que são mulheres de realidades distintas. Cheguei lá e ela me disse limpa isso ai até brilhar, era uma estante cheia de vidro, ai peguei as coisas pra limpar e era um vidro fininho demais, me deu um baita medo. Era muita coisa, elefante, jarra, copo, taça, vasilha, um armário gigante cheio dessas coisas, eu chamei ela e disse: olha eu não sei limpar isso não. Ela riu e disse que como eu queria ser empregada se não sabia limpar cristal [...] cristal? Nem sabia que isso existia. Ela me ensinou,


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mas é uma frescura exagerada naquilo, parece que eles trazem do estrangeiro, nem usa, nem sei pra que. Nunquinha eu ia ter isso na minha casa, coisa que não usa e quebra fácil, não compro nunca isso. [sic] (PATY, outubro, 2014).

Paty nunca tinha visto cristal e nem imaginava como limpar, precisou aprender e se adaptar ao novo objeto. Da mesma maneira, Catia se refere a um entendimento diferenciado de limpeza, Aqui em casa a gente limpa muito diferente de lá, as camas eu arrumo diferente, aqui é tudo prático, rápido, todo mundo trabalha, fica pouco em casa, lá na patroa não, é tudo cheio de frescura, a cama tem mais lençóis e almofadas, ela gosta que limpe com pouca água os quartos, em casa não, eu lavo tudo, mais rápido, lá não tem produto pra tudo, e então não lava muito os lugares não. [sic] (CATIA, caderno de campo, abril, 2014).

A casa da outra, da patroa, passa a ser uma incógnita, já que a organização e a maneira de fazer são diferentes e o entendimento do que limpar e como se limpar, também. Muito bem, então limpar, morar, ser feliz, são entendimentos completamente distintos entre si, e que distanciam simbolicamente essas mulheres. Sendo assim, depois de perceber que existem diferenciações nos entendimentos sobre a casa e o que se relaciona a esse espaço, veremos o que acontece na cozinha.

3.2 A cozinha: cozinhar

A arquitetura da época não se preocupava com a cozinha, elas ficavam afastadas, localizadas nos fundos. Era um lugar cheio de fumaça, cheiro forte e calor, que não deveria ser frequentado pelos donos da casa. Essa mesma postura indiferente cerca o banheiro. Em Paris, a água só atingiu os pisos superiores por volta de 1875, fazendo com que o uso do banheiro não fosse cotidiano e, consequentemente, sua localização ficasse distante dos quartos. Apenas após as descobertas pasteurianas é que a higienização do corpo passou a ser mais valorizada. A descoberta dos micróbios por Pasteur gerou medo entre a opinião pública, o que levou a uma maior preocupação com a destinação dos dejetos humanos. Ainda assim, por algum tempo os arquitetos continuaram a instalar os sanitários em qualquer lugar, até mesmo ao lado da cozinha, pois não podiam conceber que deveriam dar importância a “essas coisas.” (GUERRAND, 2009, p. 123).

A cozinha é o espaço dentro da casa onde se armazenam e se preparam alimentos para todos os moradores e visitantes. Um lugar de alquimia, de criação, prazer e satisfação. Há indivíduos que não gostam de cozinhar, alguns odeiam, mas às vezes até o fazem, apesar disso. Contudo, todas as domésticas entrevistadas gostam de cozinhar e essa característica contextualizada e focalizada bastou-me.


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Conversando sobre o cotidiano na cozinha dessas mulheres foi possível observar que apesar de existirem inúmeras exclusões, mágoas e demarcações, há, também, momentos de integração, respeito e afeto através do processo de troca de saberes, no uso de utensílios, produtos e alimentos. Tais relações refletem condições históricas, econômicas, sociais e culturais dos sujeitos sociais em questão. E junto a essas condições se percebe uma trégua no conflito de subalternidade entre as mulheres envolvidas, patroa e empregada. A hora que mais gosto no meu trabalho é quando vou para cozinha, lá eu faço minhas receitas e as que aprendi com a patroa e o marido dela que me pedem para fazer umas comidinhas. Eles vêm com a receita e eu faço com gosto e depois eu faço lá em casa, eles me elogiam, que sou boa cozinheira e ai eu me sinto valorizada, porque eu sou boa de comida, eu sei. [sic] (MARGA, março, 2014).

O afeto associado ao espaço de “cozinhar e comer” é uma maneira de viver o presente nas variadas ações do cotidiano em que diversos discursos permeiam as ações/interações sociais que se manifestam em torno das refeições. A partir daí pude perceber a importância dos rituais e seus significados simbólicos, que estão ligados a esta ação/espaço: o entorno do cozinhar, o consumo alimentar, as refeições, a maneira como se consome o alimento e a transformação que se faz com ele dentro da casa de uma família. O cozinhar e a trégua na disputa de poder entre as mulheres pode ser que revele, apenas um meio de responder à tensão diária entre elas. Contudo, esse aspecto não anula a percepção de uma pausa, mesmo que efêmera, visto que as trocas proporcionam essa suspensão de hostilidades tão presente nessa relação hierárquica e de subalternidade. Como já anunciado nesse estudo, a importância social não é o espaço isolado tal como o objeto em questão, mas as vivências sociais que ocorrem nele. Ou seja, o que importa são os espaços onde se come e, também, o que se come, uma vez que a feitura da comida, a seleção do que se come e o modo de comer traduzem uma série de saberes sociais, distintos entre si em relação às camadas sociais analisadas. Claude Lévi-Strauss (1968, p. 62), apontou que a cozinha é “uma linguagem na qual cada sociedade codifica as mensagens que lhe permitem significar ao menos uma parte do que essa sociedade é.” Além disso, pondera que: [...] a cozinha é um conjunto de ações técnicas, de operações simbólicas e de rituais que participam da construção da identidade alimentar de um produto natural e o transformam em consumível. O espaço do culinário é, ao mesmo tempo, um espaço no sentido geográfico do termo, de distribuição no interior dos lugares (este será, por exemplo, a posição da cozinha, o lugar onde se realizam as operações culinárias, dentro ou fora de casa), um espaço no senso social, o qual representa a repartição sexual e social das atividades de cozinha, mas também um espaço no sentido lógico do termo, englobando


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relações formais e estruturadas. (LÉVI-STRAUSS, 1968 apud POULAIN; PROENÇA, 2003, p. 252).

Segundo os discursos analisados, a cozinha poeticamente apresentada é o coração da casa, é lá onde pulsa a sobrevivência do cotidiano entre os almoços, jantares, conversas, preparações, trocas e saberes de um corpo que abriga, acolhe e reconforta quem está nele. É lá onde acontecem os grandes inventos e preparações. O homem civilizado come, não apenas porque sente fome, mas porque sente prazer. E este prazer abre caminhos para novos desejos, profissões, objetos de consumo, rituais de agregação, obras literárias e cinematográficas, novas formas de relacionamentos. (TIGER, 1993, p. 11 apud SISSA, 1999, p.4849).

A cozinha, como espaço social, pode reconfigurar as relações entre quem se faz presente no espaço, pois é um lugar frequentado por mulheres de classes sociais diferentes, tanto domésticas como patroas. Ambas habitam a mesma cozinha, porém em alguns momentos de criação e nos modos de fazer, esquecem-se das diferenças e abrem espaço para trocas de saberes e modos de fazer, proporcionando, então, uma trégua nesta relação. Eu estava fazendo comida aí ela disse que ia fazer farofa de ovo, eu vi ela quebrando o ovo eu achei que ela sabia fazer [...] Ela disse que ia fazer uma farofa de ovo. Eu vi ela pegando uma vasilha [...] e começou a bater o ovo. Aí eu cheguei e falei para ela [...] sabe aquelas farofas de ovo que têm aqueles pedaços assim [...] ela queria fazer assim [...] quando eu vou fazer farofa de ovo eu faço, assim, assim, assim [...] uai Ana não é assim, eu disse não! Eu faço do jeito que ele está e quebro o ovo ali, deixo ele dar uma fritadinha ai que eu vou cortar ele. Ai ela, não, pegou e jogou tudo que tava na bacia. [...] Eu quero aprender a fazer farofa de ovo, ela veio e falou para mim que não sabia, que não cozinhava nada, daí eu falei para ela e ela foi aprendendo.Sim! Muito legal, acho legal isso aí, ela não sabe, ela é uma mulher e ela é patroa, ela está pagando, pega tudo pronto, e agora na velhice dela ela quer aprender. [sic] (MARGA, setembro, 2014).

Relações de afeto começam na cozinha. Vejamos um exemplo com a fala de Nina: Eu gosto de cozinhar, a filha dela eu achava sebosa, chatinha e ela já gosta de cozinhar, [...] a filha dela é super legal na cozinha, gosto de cozinhar junto com ela... a filha só faz todo trem na receita ela também não faz nada, se não tiver ligado o computador ali e pega a receita ali, ela pega o computador pra ver a receita. Aham! Tudo que ela vai fazer tem que estar com a receita em frente ela, não tem [...] Agora a filha dela cozinha junto comigo quando ela vem. E eu gosto eu com a dona e com a minha patroa [...] não gosto muito assim [...] mais com a filha a gente se dá bem, já a patroa não, eles estragam muito as coisas, ela faz e quer consertar mais e mais, não tem [...] ela quer por na mesa e quer que tire isso, que tire aquilo, que tire isso... Quando o marido e os convidados falam: Está uma delícia, [...] ela quer isso pra ela. Ela precisa de elogios! Aí tem muitas vezes que eu falo: ó foi eu e dona X [...] para ele elogiar ela também [...] isso que ela quer para ela: elogios. Por isso quer aprender, na altura do campeonato, a cozinhar. [...] Mas tenho que confessar depois que ela começou a querer aprender a


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cozinhar, vir mais na minha cozinha, perguntar, querer fazer, a gente tem se dado melhor, parece que isso fez que a gente se respeitasse mais, acho que ela começou a dar valor no meu trabalho. [sic] (NINA, outubro, 2014).

A cozinha é, também, um espaço que revela situações e relações favoráveis de afeto e respeito, território de confraternização. Estive na casa de algumas mulheres e fotografei a cozinha; como foi uma visita agendada, as cozinhas estavam arrumadas, todas elas, tanto das patroas quanto das domésticas. As participantes da pesquisa mostraram tudo; os armários, abriam para mostrar como estavam organizados, mas quando pedi para abrir a geladeira houve resistência generalizada, ninguém quis mostrar. Era como se nelas houvessem segredos que não podiam ser revelados. Certeau (2008) denuncia a falta de análises nos estudos sociais em examinar como as pessoas se reapropriam das coisas em situações cotidianas. Além disso, enfatiza a cultura comum e corrente enquanto apropriação ou reapropriação, o consumo ou recepção é considerado como uma maneira de praticar. É no cotidiano das pessoas que essas maneiras de fazer se revelam como poéticas na desobediência de romper o estabelecido. Eu acho engraçado, elas falam para a gente sentar na mesa com eles, mas sei que só falam por educação, não querem a gente lá. É igual com a comida, pode comer, mas na verdade se comer é abusada, sei de gente que já foi mandada embora por isso, comer as coisas, sentar na mesa, usar mesmo banheiro é coisa de abusada, não tem? [...] Isso é verdade, eles tem educação, falam para você ficar à vontade, sentar na mesa com eles, pode comer o que quiser, mas se você fizer isso, eles te mandam embora, quando eu comecei a trabalhar de doméstica, isso aconteceu comigo, e falar muito também não pode, elas acham que você está se metendo onde não é chamada. [...] Então, eu fui trabalhar com uns 11 anos, ajudar minha irmã mais velha em casa de família, eu tinha que lavar um monte de louça, era muita mesmo, ficava com a mão toda descascando, todo dia ia de manhã e à tarde ia para escola, tinha muitas coisas gostosas na geladeira e na despensa da patroa, era das crianças. Ela tinha 4 filhos, então um dia, me deu uma vontade louca de comer os doces e comecei a comer um monte de coisas escondida da minha irmã, e era tão besta que joguei os papeis no lixo, no dia seguinte a patroa mandou minha irmã embora. Ela me deu vários cascudos, ai eu aprendi, nunca mais peguei nada na casa dos patrões. [sic] (FLOR, caderno de campo, abril, 2014).

O que aparece nas análises é que a cozinha favorece afetos, trocas de saberes, mas também permite diversas exclusões, fascínios e demarcações nesta relação. Como declarado, a relação patroa e doméstica sempre desponta nas pesquisas pelo viés de um convívio hierárquico, em uma relação laboral e submissa, e nesse universo desigual e de hostilidade, a doméstica é sempre quem sai perdendo. Minha proposta veio na contramão desses estudos, visto que foca na doméstica, pelo viés da cultura alimentar: dos consumos, dos “fazeres” dos alimentos, instrumentos, espaços, trocas e saberes de uma relação hostil. Vale dizer que não estou


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tratando de uma relação estática, que além de evoluir, possui momentos de tréguas e, ao contrário dos estudos revistos, não é a doméstica que sempre sai perdendo, visto que através de transgressões, subversões e saberes subalternos essas mulheres se reposicionam no mundo e, consequentemente, na relação. Mesmo sendo um universo distante socialmente, ele é predominante feminino: [...] empregada doméstica, enquanto mulher compartilha estes mesmos papéis e funções na sua unidade doméstica, mas também desloca-se para uma outra, onde exercerá, num trabalho assalariado, as mesmas funções, mas não os mesmos papéis. [Então, nesta relação existe uma] combinação entre uma identidade (um campo de reconhecimento estruturadamente comum) e uma desigualdade social que torna possível o trabalho assalariado da empregada doméstica e sua relação com a patroa. (KOFES, 1991, p.11).

É verdade que são relações conflitivas, porém o que foi constatado é que quando essa relação aparece junto à alimentação, existem tréguas, dado que, no ato de alimentar há uma ligação muito mais poderosa ligada ao afeto. Existe a evidência de expor padrões alimentares que continuam inarredáveis como acidentes geográficos na espécie geológica. Espero mostrar a antigüidade de certas predileções alimentares que os séculos fizeram hábitos, explicáveis como uma norma de uso e respeito de herança dos mantimentos de tradição. A modificação desses usos dependerá do mesmo processo de formação: o tempo. Impõem-se a compreensão da cultura popular como realidade psicológica, entidade subjetiva atuante, difícil de render-se a uma imposição legislativa ou a uma pregação teórica. (CASCUDO, 1983, p. 1819).

Esses estudos levam à compreensão de que as relações de poder evidentemente desiguais entre as duas mulheres, existem, e o que caracteriza este relacionamento entre empregada e patroa é a ambiguidade afetiva da relação que exige mais análise. Posso afirmar, portanto, que é na troca afetiva entre aquelas que podem pagar pela ajuda doméstica e as mulheres pobres que oferecem seus serviços, que as relações de classe são praticadas e reproduzidas. (GOLDSTEIN, 2000). Eu que organizo tudo na casa, sei mais sobre as coisas do que eles. Aprendi muitas coisas com eles e eles comigo, a fazer polenta, escondidinho, macarrão no molho branco e ensinei também, a eles comerem galinha com arroz, macarrão com molho vermelho, torta salgada. A minha patroa é muito caprichosa, chata mesmo, mas a gente acabou se dando bem, porque eu também sou muito caprichosa e chata, gosto das coisas bem feitas, e me assinam a carteira, e já pedi umas 3 vezes aumento de salário e eles me deram. Eles gostam que eu faça Arroz Braga (arroz com frango, calabresa, costelinha, lombinho, repolho e cheiro verde), eu inventei o acompanhamento que é farofa de banana, eles amam. Porco assado, meu tempero eles adoram, é um segredo meu da minha avó. Quem faz o cardápio é a patroa, ela chega e já vai me falando o que fazer para o almoço. Mas eu também meto meu dedo e quando não gosto, eu falo, isso não, isso sim, é melhor assim, ela me ouve. Acho que eles gostam de mim, ligam toda


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semana, e falam pelo telefone: Como está nossa casa? É muita responsabilidade, mas eu gosto. [sic] (MARGA, julho, 2014).

A rotina da cozinha é agregada à dinâmica das atividades diárias da casa e da comunidade em que vivem. É um espaço que compreende um “conjunto de movimentos produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade.” (CERTEAU, 2008, p. 221). Ela trabalhava de segunda a sexta, sábado e domingo não, ela fazia todos os serviços, lavava, passava e cozinhava, a casa era mais dela do que minha, e durante o almoço ela mesmo que estabelecia o que ia fazer [...] comprávamos as coisas e deixávamos lá [...] às vezes só quando eu queria alguma coisa diferente, alguma coisa diferente que eu queria comer eu falava: M faz isso hoje no almoço, mas dificilmente. Sempre teve o freezer cheio de carne, eu não falava: faz essa carne ou faz aquela outra, ela que fazia a escolha, ai ela: vou fazer costela, vou fazer almôndega, eu vou fazer frango [...] Então assim o cardápio era por conta dela, e ai tem algumas coisas que ela introduziu nos nossos hábitos alimentares, por exemplo: maxixe, nunca tinha comido maxixe na minha vida, ai ela disse: tem maxixe lá na roça, vocês gostam? M nunca comi! Então eu vou trazer e vou fazer para você. Ai ela fazia, então, por exemplo: salada de maxixe [...] e eu gostei [...] pequi não era uma coisa normal, por exemplo, assim, eu não era muito de comer pequi, mas já comia, meu filho que gostava bastante, ai então o que ela fazia na época de pequi [...] ela fazia conserva de pequi para ele. Está tendo pequi, vou fazer conserva de pequi para você. Ai fazia. Ai ela levava pra casa dela e fazia [...] é, tirava ele em fatiinhas e fritava e punha no vidro pra ele. Que ela sempre gostava dos meninos e gostava de fazer o que eles também gostavam. Então isso, pequi, esse maxixe eu nunca tinha comido, ela que trouxe, e ai com o passar do tempo, como ela ficava durante muito tempo na minha cozinha, ela era mais dona da cozinha do que eu e, às vezes, ia chegar alguém, por exemplo, igual a minha mãe vinha, minha mãe falava assim: Secretária minha mãe vai vir pra cá, e minha casa é dela e ela faz o que ela quiser, e ela não é de parar, ela não gosta, então ela vinha para cozinha, mas ai a Secretária achava que ela estava se intrometendo [...] não gostava muito não! A minha mãe falava: eu fico sem graça de ir para cozinha, e eu falava: não Secretária, a cozinha é da mamãe, pode deixar. Ai ela ficava: o patrão não pode comer fritura [...] ai mamãe dizia e eu não eu vou fazer bolinho de arroz, que tem esse arroz aqui, eu vou aproveitar. O patrão, não pode isso, então ela ficava regulando sabe, ela cuidava de nós, mas era muito ciumenta e possessiva. [sic] (VAL, abril, 2014).

Apesar das domésticas denunciarem que não gostam e não querem mais cozinhar na casa dos outros, quando pergunto sobre a troca de receitas, saberes e maneiras de fazer, o tom da conversa muda e sempre existe uma história para contar, com afeto, referente às trocas de saberes: Não quero mais cozinhar para os outros não. Mas claro que aprendi muita coisa e ensinei muita coisa, aprendi a colocar uma mesa com “chiqueza”, fazer macarrão no molho branco, salada com fruta que eu adoro, fazer sobremesa, isso era bom, tinha muitas vezes na cozinha que era bom, a gente conversava e se entendia, mas a única coisa ruim era quando queria


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que eu fizesse do jeito dela, ai era ruim, mas fora isso era bom né? [sic] (GIA, caderno de campo, julho, 2014).

Da mesma maneira: Não é bom porque no começo enche muito o saco, depois não, acostuma ai relaxa e deixa a gente em paz, eu aprendi a fazer muita coisa nova com a dona b ela sabia fazer cada comida e ela aprendeu comigo também, eu ensinei ela a fazer farofa com banana, arroz carreteiro, feijão empamonado, ela gosta disso, e ela me ensinou a fazer arroz de forno, torta de forno, mousse, pudim, um monte de coisa, a gente na cozinha se dava bem, faço algumas coisa até hoje lá em casa, o que meu dinheiro dá né? [sic] (PATY, agosto, 2014).

No espaço em questão, a cozinha, as tréguas de poder e de classe acontecem em diversos momentos, posto que lá se aprende e se ensina, é onde se constrói uma relação mais afetiva. Se desconsiderarmos a hierarquia existente nessa relação social, as tréguas são visíveis, mesmo que por momentos ou circunstâncias, mas existem. Compreender as relações sociais através dos espaços e maneiras de entender o mundo, temáticas discutidas por diversos pensadores, me leva a entender melhor como as escolhas são feitas. Bourdieu (1996, 1987), por exemplo, compreendia que os atores sociais estão inseridos espacialmente em determinados campos sociais, de posse de certos capitais, dentre eles: o cultural, social, econômico, político, artístico, gastronômico, etc. E que, junto a este capital, o habitus de cada ator acaba condicionando o posicionamento espacial e, na luta social, acaba se identificando com sua classe social. Para o autor, quando o ator social tenta ocupar um espaço é necessário que conheça as regras do jogo dentro do campo social e que esteja disposto a jogar. Nas sociedades capitalistas, talvez, a maneira mais eficiente de distinção entre os indivíduos são as posses de capital econômico e cultural. Logo, os sujeitos ocuparão espaços mais próximos quanto mais similares forem a quantidade e a espécie de capitais que detiverem. Em contrapartida, os agentes estarão mais distantes no campo social quanto mais díspar for o volume e o tipo de capitais. Assim, posso dizer que a riqueza econômica (capital econômico) e a cultura acumulada (capital cultural) geram internalizações de disposições -habitus- que diferenciam os espaços a serem ocupados pelas mulheres. [...] Sem dúvida, os agentes constroem a realidade social; sem dúvida, entram em lutas e relações visando impor sua visão, mas eles fazem sempre com pontos de vista, interesses e referenciais determinados pela posição que ocupam no mesmo mundo que pretendem transformar ou conservar. (BOURDIEU, 1989, p. 89).

O habitus é uma forma de disposição à determinada prática de grupo ou classe, isto é, a interiorização de estruturas objetivas das suas condições de classe ou de grupos sociais que


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geram estratégias, respostas ou proposições objetivas ou subjetivas para a resolução de problemas postos de reprodução social. Falar de estratégias de reprodução não é atribuir ao cálculo racional, ou mesmo à intenção estratégica, as práticas através das quais se afirma a tendência dos dominantes, dentro de si mesmos, de perseverar. É lembrar somente que o número de práticas fenomenalmente muito diferentes organizam-se objetivamente, sem ter sido explicitamente concebidas e postas com relação a este fim, de tal modo que essas práticas contribuem para a reprodução do capital possuído. Isto porque essas ações têm por princípio o habitus, que tende a reproduzir as condições de sua própria produção, gerando, nos domínios mais diferentes da prática, as estratégias objetivamente coerentes e as características sistemáticas de um modo de reprodução. (BOURDIEU, 1989, p. 386-387).

Verifica-se, no entanto, que Norbert Elias (1970) entende o conceito de habitus como algo a ser discutido a partir da participação dos indivíduos como seres atomizados e completamente livres e autônomos em relação ao social. Na sua concepção, a sociedade é vista como uma estrutura de pessoas mutuamente orientadas e dependentes. O autor se refere ao habitus individual e social, este último considerado como uma “segunda natureza”. Assim, o habitus muda com o tempo porque a experiência de uma nação ou de seus membros está em processo contínuo de mutação relacionada com as mudanças internas e externas que acontecem nos grupos sociais. Grupos em posições superiores ou inferiores se diferenciam de outros grupos, criam novos padrões de comportamento que, com o passar do tempo, também são adotados por outros grupos. “[...] com o passar do tempo, os novos padrões de comportamento deixam de ser conscientes para tornarem-se uma segunda natureza, é a essa segunda natureza que se refere quando fala em mudanças na estrutura da personalidade.” (LANDINO, 2007, p. 5). O conceito de habitus ocupa posições distintas nas concepções de Bourdieu (1989) e Elias (1970), e um dos diferenciais dessa concepção é a contingência histórica. Ambos reconhecem a importância da noção de habitus, porém não lhe atribuem o mesmo lugar na análise. Bourdieu desconsidera a contingência histórica, enquanto Elias julga que o objeto é claramente histórico e genético. Ao passo que o habitus, para Bourdieu (1994, p. 60) é “estrutura estruturante e estruturada”, e entende tal conceito à margem da historicidade; Norbert Elias (1970) prefere desenvolver uma teoria da civilização, na qual, uma vez estabelecido e descrito o processo, posto que os habitus evoluem e se transformam, a orientação da sua Sociologia é claramente genética, ou seja, entende e explica a gênese do habitus humano. Bourdieu, ao contrário, não busca explicar o habitus; seu objetivo, uma vez identificado, explica a imutabilidade das estruturas


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sociais, e mais além, a lógica e o “senso prático” das ações que concernem à imutabilidade; assim, os dois autores se referem a quadros de análises próximos, mas para fins opostos. Bourdieu (1989) privilegia as estruturas sociais, dando ênfase ao campo e marginalizando as contingências históricas. Elias (1970), por sua vez, e ao contrário, se interessa pela gênese do habitus e as razões de sua evolução. Sendo assim, posso inferir que Elias (1970) tem uma visão de longo prazo nas sociedades, explicando a constituição e o surgimento dos habitus em longas durações e perspectivas. Já Bourdieu (1989), ao identificar o habitus, concentra sua análise na imutabilidade das estruturas sociais e como se dá tal imutabilidade. Contudo, apesar das perspectivas diferentes, não as vejo como excludentes, já que, em Elias (1970), posso pensar nas diferenças de poder em pequenos grupos e como um habitus pode ser gerado em curto espaço de algumas décadas, justificando o poder de um grupo sobre o outro. Em Bourdieu (1989), mesmo com delimitações menos esparsas de tempo, há uma preocupação de caracterizar habitus como “capital cultural incorporado”. Considerar as características distintas entre Norbert Elias e Pierre Bourdieu referente ao conceito de habitus ajuda a enriquecer essa análise, posto que a utilização dessas ferramentas teóricas, proposta pelos dois autores, pode auxiliar na compreensão, com maior ênfase, da conjuntura de um dado objeto, juntamente com uma explicação histórica de longa duração. O que busco trazer para reflexão não é a inexistência da reprodução de classe ou espaço social como pertencente à vida cotidiana das pessoas, pelo contrário, o que apresento é exatamente esta discussão: espaço social e reprodução de classe na vida cotidiana das pessoas. Contudo, também existem dentro de um espaço de troca de saberes, mulheres que apresentam uma a outra seus modos de fazer, seus mundos e realidades através de receitas e truques de comidinhas. Quando cheguei lá ela gastava muito em comida, mas muito mesmo, estragava muita coisa, eu não aguentava, é que ela não sabia fazer nada, ai ensinei um monte de coisa para economizar, disse para ela que tinha gente que passava fome e ela me ouviu e hoje a gente gasta bem menos, desperdiça bem pouco. Ensinei ela fazer sopa com o que sobrava do almoço, quando falei a primeira vez, ela disse que ia ficar ruim, ai fiz e não falou nada. O filho dela adora sopa, eles adoraram. Então falei para ela que era da sobra do almoço, agora a gente faz sempre, sopa fria, quente e economiza o que sobra e não preciso sair tarde de lá, porque sopa é fácil e rapidinho, agora quando não faço ela logo pergunta se não fiz. E a sopa Dina não vai esquecer?! [sic] (DINA, agosto, 2014).

Por mais que as patroas ditem regras neste espaço, as domésticas são quem cozinham e, por consequência, as que passam mais tempo dentro deste ambiente, interagem com os objetos, os


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alimentos, as maneiras de fazer, e que, portanto, acabam por ser “donas da cozinha”, onde exercem a liderança sobre como organizar e aproveitar melhor o que existe dentro desse espaço. O espaço "entre" a microfísica do poder e as instituições de dominação (espaço que não é dado, mas que deve ser inventado, construído, mantido) é propício a uma política do devir, da criação, favorece a criação, a invenção de novas formas de subjetivação. Foucault, Deleuze e Guattari nos dizem no final das contas que, se quisermos pensar e praticar a política da multiplicidade devemos partir desses espaços, dessas linhas – traçadas a cada vez de maneira singular - entre o molar e o molecular, entre as relações de dominação e as relações estratégicas. É exatamente o que fazem os movimentos, e a que se recusam as instituições molares (de direita ou de esquerda). Trata-se do único meio de construir relações sociais que tenham um outro horizonte que não o da guerra. (LAZZARATO, 2006, p. 128).

Nessa perspectiva, a mesa apareceu, por inúmeras vezes, dentro das conversas sobre os espaços. A mesa e o sentar-se nela, no decorrer da pesquisa, foram tomando importância nas falas de nossas atrizes sociais, que não poderiam ficar fora dessa análise.

3.3 A mesa: sentar Para todo grupo, casta ou camada social de elite de certo modo estabilizado e demarcado em relação a outros, mesmo sujeito a uma pressão de baixo e, às vezes, também de cima, podemos dizer que sua mera existência como membros de uma unidade social de elite é para eles um valor absolutamente autônomo, seja parcial ou absoluto; em suma, um fim em si. A conservação da distância torna-se, com isso, o motor ou a marca decisiva de seu comportamento. (ELIAS, 1983, p. 119).

Desvendando o cotidiano e suas interações sociais dentro de espaços que contextualizam essa trajetória constatei o estar na mesa como um espaço importante no cotidiano dessas mulheres. A mesa, nessa pesquisa, foi percebida a priori como um “lugar” presente em torno das representações do dia a dia das pessoas de todas as classes sociais em espaços geográficos distintos envoltos à comensalidade e relações sociais. Numa concepção histórica social, a mesa, é considerada um espaço importante para a humanidade; pode-se encontrar este espaço - mesa de refeições - representado em obras de arte, em vários momentos históricos das sociedades. Leonardo da Vinci, Caravaggio, Picasso, Velazquez, entre inúmeros outros pintores, representaram esse lugar como pertencente ao espaço do cotidiano. Da mesma forma, Jean Baptiste Debret, quando retrata a refeição de uma família carioca do século XIX, no Brasil, apresenta a mesa como o lugar central em sua obra de arte, ao retratar o cotidiano da época. A partir das considerações realizadas, posso


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compreender que a mesa, definitivamente, está presente na representação cotidiana de diversas sociedades e em diferentes momentos históricos no mundo. Maffesoli (2002) apresenta a mesa como o lugar onde se estabelecem as mais sólidas amizades e os mais fortes laços afetivos. Contudo, também pode ser o lugar que desencadeia e manifesta as mais ferozes discórdias. O autor destaca que a refeição conduz à comunicação, porém se consolida frequentemente no conflito. Dessa maneira, a mesa pode ser vista como espaço de confronto. Ao encontro às afirmações dadas no início do subcapítulo, no qual a mesa aparece como naturalizada nas refeições das famílias de modo geral, em alguns discursos analisados a mesa não é frequentada na hora das refeições. O ato de sentar-se à mesa nem sempre é um hábito. Em um almoço que fui à casa de Val, patroa, ela me contou que não tinha o hábito de sentarse à mesa. Isso apenas aconteceu quando ascendeu socialmente: [...] Há, então é a história de sobre o comer a mesa que eu estou falando [...] antigamente, por exemplo [...] desde quando eu era pequena, nunca minha família sentou-se à mesa [...] Sempre meu pai foi varredor de rua [...] sempre a gente foi uma classe muito [...] não tinha dinheiro pra nada, então assim, quando é que eu comia pão e bebia leite? Comia pão todos os dias, mas meu pai comprava uma bengala, partia em três pedaços, um pedaço era meu, um da minha mãe e o outro era da minha irmã mais nova, e a gente ia para escola com aquela bengala, com o pão e o pedaço de papel no meio. Todo domingo tinha leite, porque leite não era uma coisa que fazia parte [...] domingo meu pai tirava um dinheiro da carteira e dava para comprar pão e leite no café da manhã, então leite no café da manhã era uma coisa que não tinha não! [...] Então não tinha essa história de colocar mesa não, tinha na nossa casa uma copa, que era uma mesa de fórmica, um armário de fórmica que era tudo azul, as cadeiras azulzinhas, mas ficava ali forradinho, limpinho porque ninguém nunca comia lá, não sei para que existia essa mesa de fórmica. Aí como que é, a cozinha ficava ao fundo, a gente pegava o prato sentava onde queria, às vezes, um sentava na frente da televisão que ficava lá na sala. Nem com as visitas, porque não, não tinha mesa, a mesa era para colocar o alimento para a gente se servir, não para a gente se sentar à mesa e comer à mesa, não era um hábito. [...] As panelas iam para mesa, entendeu? [...] quando, por exemplo, ia muita gente colocava várias cadeiras em círculo lá fora na área, vamos dizer assim, no terreiro que a gente falava, debaixo do pé de amora, cada um pegava seu prato, a mesa tava lá, com o arroz, o feijão, com a carne, tudo em cima, e ai você pegava seu prato sentava e comia do jeito que você quisesse. [...] Então quer dizer que: talher, faca não era um hábito, entendeu, ai quando é que eu comecei a senta à mesa? Quando a gente veio passear no Mato Grosso, que a gente sentava no restaurante [...] eu tinha 15 anos, eu não sabia comer com talher, então a gente morria de vergonha. Comia com garfo, mas não tinha faca, então você pegava o garfo e mordia entendeu? Não tinha o hábito de usar faca [...] era super estranho, a gente ficava morrendo de medo, ficava com vergonha de comer. Quer dizer assim [...] mas era nessa situação, quando você ia fazer a viagem, que alguém levava você pra comer no restaurante, que era uma coisa rara até os meus 15 anos, quantas vezes eu comi no restaurante? Umas duas ou três vezes no máximo que eu me lembro. Logo eu vim para o Mato Grosso, logo


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em seguida eu me casei, no ano seguinte, eu me casei com 16 anos, ai quando eu casei o que aconteceu, era eu e meu esposo, ai então, às vezes, a gente sentava, tinha uma mesinha quadradinha, nós dois sentávamos e ficávamos conversando, mas não era uma coisa de colocar a mesa, forrar, tal, às vezes, sentávamos nós dois, porque só tinha nós dois não é. E tinha uma mesa na cozinha [...] Meus filhos nasceram, foram crescendo, mas ai cada um, às vezes, sentavam na mesa, às vezes, não sentava, não tinha essa história, não tinha aquele hábito, não tinha aquele conhecimento. Ai quando eu fui pra faculdade [...] meu filho tinha 8 anos de idade e minha filha 9,10 anos, não! Meu filho tinha 7 anos e ela tinha 9 anos. Ai é, quando eu fui pra faculdade, o que acontecia, todos os trabalhos [...] eu passei na universidade em 1999 não é! Todos os trabalhos desde o primeiro ano eram na minha casa e sempre meus colegas vinham e ai que eu comecei a perceber, que eles pegavam e: vamos arrumar a mesa, ai eu falei: ai meu Deus, vamos arrumar a mesa! Aí que eu comecei a ter o hábito de arrumar a mesa. Aí o que aconteceu, a partir do momento que eles iam lá ao final de semana, a gente tinha que arrumar a mesa, a gente passou a arrumar a mesa. Então, a partir disso que ficou o hábito, aí o que aconteceu? Esse hábito foi para minha casa e foi para casa dos demais da minha família, foi pra casa da minha mãe, porque toda vez que eu chegava lá, a gente se senta à mesa para comer, digo: espera ai que eu vou arrumar a mesa, entendeu? Então sempre que vinha na minha casa, lá na minha irmã também: Espera ai, vamos arrumar a mesa. Então foi ai que a gente passou a sentar ao redor de uma mesa pra comer, a gente não tinha esse hábito. [sic] (VAL, abril, 2014).

Tal relato demonstra que o hábito de sentar-se à mesa não era algo comum, visto que não existia esse costume quando Val morava na zona rural e era pobre. Isso mudou quando ela começou a fazer faculdade, pois aprendeu com os colegas de classes sociais mais altas o sentar-se a mesa como comportamento civilizado, hábito de pessoas educadas. Foi por meio da entrevista que Val se deu conta dessa mudança de hábito, disse que não tinha parado para pensar nisso, e afirmou que, hoje, ela adora sentar-se à mesa com seus filhos e marido. [...] e, assim, eu não me dei conta disso, não tinha me dado conta. Foi acontecendo, foi acontecendo, agora esses dias [...] aquele dia conversando com você que veio assim na minha mente, espera ai! Que coisa engraçada, nunca tinha parado pra pensar nisso. Então, a partir disso pensei e falei: há então é uma coisa que ficou [...] no natal, a gente faz a mesa, a ceia, a gente arruma a mesa, por exemplo, teve um ano que minha sogra, eu a minha sogra fizemos uma mesa em L enorme aqui dentro dessa cozinha, sabe! Todo mundo sentou, alugamos pratos, talheres, por que não dava, ai ela falou: não, vamos alugar taças. Porque taça não é uma coisa que eu tenho, taça eu tenho uma meia dúzia de taça ali [...] Prato eu tenho bastante que eles me deram. Mas, assim, isso começou a ficar frequente, na casa da minha filha eles sentam à mesa, na casa do meu filho eles sentam à mesa. E foi assim, a partir disso que toda minha família sentou-se à mesa nas refeições, engraçado que hoje não me vejo comendo sem mesa. [sic] (VAL, abril, 2014).

Apenas essa patroa contou sobre o hábito de sentar-se à mesa como algo novo, as outras disseram sempre ter-se sentado à mesa para realizar as refeições junto à família. Elas trataram


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o assunto como algo comum em suas vidas diárias. As domésticas Flor, Clara, Beta e Paty contaram que nem sempre têm o hábito de sentar-se à mesa para comer. Eu prefiro comer sentada no degrau da porta assim me sinto melhor, sempre sou a última a comer mesmo, primeiro são as crianças, depois os homens e depois que todo mundo come ai vou eu, ninguém senta na mesa não, eu faço o prato ou eles fazem e sentam no sofá, lá fora, cada um em um lugar diferente e come, e eu gosto de sentar nos degraus da porta de trás da casa, como e vou limpar a cozinha, lavar a louça, como rápido, sem muita frescura. [sic] (PATY, maio, 2014).

Como mencionado no capítulo anterior, Clara come de pé ao lado do fogão, vai comendo, arrumando, fazendo o prato para um, para outro, só usa a mesa em dia de festa, ou quando recebe alguma pessoa de fora de seu convívio em sua casa. Flor repete essa fala e diz que mesa é coisa de quem tem tempo e dinheiro, que nunca se sentou à mesa e sempre comeu sentada no sofá, ou em cadeira. Para ela, cada um se serve e come onde quiser. Por outro lado, quando é discutido sobre sentar-se à mesa com a maioria das patroas, parece ser um ambiente de sociabilidade em torno da comida; nos discursos pude captar momentos de prazer e desprazer, de afeto e de confronto, do amar e do ultrajar. Esse espaço é como um local que constitui a sociabilidade e que apresenta, muitas vezes, lugar das diferenças. “Gosto de sentar com minha família na mesa, mas meu marido, às vezes, quer discutir assuntos que acabam em discussões, isso é ruim, a mesa tem que ser lugar de harmonia, mas infelizmente, às vezes, isso não acontece.” [sic] (LIZA, caderno de campo, agosto, 2014). Sentar-se à mesa surge, portanto, como parte de um ritual familiar, de privacidade e também como separação das relações sociais entre as mulheres analisadas. Em todas as conversas, apenas duas domésticas sentavam-se à mesa junto com os patrões, e com restrições, segundo constatei pessoalmente no caso de uma delas. Estive na hora do almoço numa das casas para entrevistar a patroa, acabei almoçando com elas. Percebi que a doméstica Judith que não quis conversar sobre o assunto e sentou-se à mesa apenas para ajudar a servir um dos filhos da patroa. Ela só se alimentou depois. O outro caso foi Rosa, que sentava-se à mesa com seu patrão, um senhor mais velho. Porém, isso acontecia, apenas, quando a filha não estava em casa, para ajudá-lo a se servir. No café da manhã eu falo que a X (filha mais velha), parece que ela gosta mais da empregada do que de mim. Ai é assim como eu tenho uma mesa pequena na cozinha para três lugares, a gente se reveza, eu tomo com as crianças menores, enquanto eu chamo a X ela fala que vai tomar café com a nega, então aí a gente toma café, aí ela toma café com a X na mesa, ou então o dia em que eu vou malhar, por exemplo, quando chego ela já tomou café com as crianças e aí eu chego e tomo meu café sozinha na mesa. No almoço quando estamos só nós, sem o meu marido, ela fica à vontade para sentar à mesa com a gente, eu até chamo: venha nega sentar com a gente.


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Quando o Y (marido) está, aí ela parece ficar mais acanhada, ela não prefere, ontem mesmo estava meio atrasada para o almoço eu disse: venha nega senta aqui, por que daí o almoço a gente come na mesa de fora, ela é maior aí cabe todo mundo. Aí eu faço as crianças sentarem-se à mesa, apesar de ser uma luta porque eles querem comer na frente da televisão, é uma luta diária. [...] e aí eu chamo ela. Venha nega sentar com a gente, aí ela fica bem à vontade e senta com a gente, que daí ela me ajuda, serve uma criança, serve outra, enquanto eu sirvo uma, ela serve outra, às vezes, é um dia que você está sem paciência, ela tem paciência a mais ou vice e versa. Ela é uma companheirona. [sic] (VERA, maio, 2014, grifo nosso).

A maioria das patroas disse, nas conversas, que as empregadas não sentam à mesa junto com a família porque não querem, sentem vergonha, Não, assim como que era, eu acho até engraçado na questão do almoçar, eu sempre tive gente aqui, para almoçar na minha casa, dificilmente a semana que não tinha alguém; como a família mora toda no sítio, então onde que era o ponto de referência das pessoas que vinham do sítio? Era na minha casa [...] e é um monte de gente [...] quando a minha mãe está aqui também, dificilmente minhas irmãs cozinham e não é por escolha delas [...], mas, assim, minha casa sempre foi o centro da família assim, na questão de reunião mesmo, às vezes, vêm e me chamam para a casa delas, mas eu estou sempre trazendo todo mundo para cá [...] e aí a M sempre fazia comida para todo mundo [...] se chegava mais um ela fazia, ela percebia que tinha alguém, não precisava nem falar, precisava fazer mais um pouquinho de comida, que ela, às vezes, até fazia [...] Ela providenciava para aumentar a comida, mas assim ela nunca gostou de se sentar na mesa com a gente não, ela se sentava ali no banquinho, ou então quando ela lavava roupa, a gente chegava, o almoço já estava na mesa, a salada já estava na mesa e as panelas no fogão [...] a gente chegava ela vinha aqui destampava as panelas e voltava. Eu falava M vem comer! Ela fala não eu vou terminar aqui depois eu como, ou então quando a gente estava aqui falava: M vem aqui, vamos almoçar todo mundo junto. Não agora não, e quando, às vezes, a casa estava bem cheia de gente, às vezes, ela queria meio que, participar. A gente falava: vem almoçar! Ela esperava todo mundo se servir, servia, mas se sentava sempre no banquinho do lado e ficava ali almoçando. Apesar de tudo de não se sentar-se à mesa conosco ela participava e quando ela ficava para almoçar depois [...] a gente almoçava, ai depois que ela vinha almoçar, se não tivesse bife, ela passava outro bife para ela, não tinha problema, ela ia lá passava o bife dela, ai ela sentava-se à mesa, sem problema nenhum [...] sentava almoçava, se tinha suco ela tomava, se tinha refrigerante na geladeira ela pegava sem problema, entendeu? E a alimentação sempre foi assim, o que tinha aqui [...] eu nunca falei que isso podia comer ou não, ela tinha livre acesso a tudo, a geladeira, ao freezer, ao quarto, guarda-roupa, a tudo. A casa era dela [...] para você ver, ela não tinha horário de chegada, porque eu sempre trabalhei de manhã, ai ela não tinha, ela chegava 8, 9 horas, não tinha um horário para chegar, mas ela só saia quando deixava tudo ok! [sic] (VAL, abril, 2014).

Essas falas vêm ao encontro à maioria das respostas dadas pelas patroas, relatando que as domésticas não gostam de se sentar à mesa. Apenas uma patroa, Sol, me disse, em uma conversa sem gravador, que não tinha nada a ver a empregada sentar-se à mesa com a família,


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porque ela não era da família, não era amiga e, por isso, se sentia incomodada com a presença dela. Afirmou nunca ter convidado a empregada para sentar-se à mesa. Fica claro, portanto, a separação das mulheres nesse espaço. Posso afirmar, a partir dos discursos analisados, que a mesa de refeições, nesse contexto, separa patroa e a doméstica. Nas conversas sobre o sentar-se à mesa com as domésticas as falas foram muito parecidas. Contudo, com o passar do tempo, aparecem algumas denúncias. As domésticas afirmam que não sentam não porque não querem, mas em virtude de perceberem que as patroas as convidam apenas por “educação”, uma vez que, no fundo, todas sabem disso, as patroas não querem que elas se sentem. Clara explica que na fazenda onde trabalha cozinhando, nos fins de semana, há um salão grande, ao lado da cozinha, onde ficam diversas mesas, porque sempre tem muita gente. Entre as mesas tem uma de vidro grande onde toda a família se senta, enquanto nas outras sentam-se os convidados, às vezes, empregados como o gerente da fazenda, peões, entre outros. Ela e seu marido, o caseiro e jardineiro, sentam-se em uma mesinha pequena de madeira que fica próxima a cozinha. Assim, eles podem estar atentos a algo que faltou e ficar servindo aos patrões. Ela conta, ainda, que prefere comer depois de todo mundo, pois é um levanta e senta toda hora para buscar coisas que os patrões pedem. Quando é churrasco o marido dela fica na churrasqueira e ela servindo a mesa da família e as demais. Disse-me que nunca foi convidada a sentar-se à mesa dos patrões e que, em todas as casas onde trabalhou, nunca sentou nem sentaria, porque eles não gostam, apesar de, às vezes, convidar. Da mesma maneira, Dina conta que sempre foi assim: Sou de família de domésticas, minha tataravó era escrava e era doméstica, e sempre foi assim. Olha, com 14 anos comecei a limpar casa junto com minha mãe e ela já me disse de cara: presta atenção Dina tem coisa que nós não faz na casa de patrão, nunca usa o banheiro deles, nunca se senta à mesa com eles e nunca come as coisas da geladeira nem de armário deles, eles não gostam. Mesmo que chamar ou oferecer não pega e não se sente à mesa. Assim que foi que aprendi e é verdade, eles não gostam mesmo, e a gente também não. [sic] (DINA, novembro, 2014).

A mesa é, portanto, como se pôde notar, um espaço de confronto que separa a empregada da família. Como foi visto, a mesa dos patrões não é frequentada pelas trabalhadoras. A hierarquia fica evidente, uma vez que só a família e convidados devem sentar-se juntos e que, naquele ambiente, não há espaço para os trabalhadores. A questão de sentar-se ou não à mesa para compartilhar uma refeição revela valores distintos entre essas mulheres, patroas, empregadas e pesquisadora. Para mim, a mesa sempre foi


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presente na vida em família na hora das refeições. Confesso que me surpreendi quando vi que muitas famílias não consideram a mesa um local central na hora de alimentar-se. O posicionamento dessas mulheres continua desigual, pois enquanto as domésticas dizem não se sentir à vontade para sentarem-se com as patroas, porque estas só convidam por educação, às patroas não agrada tal ideia, pois entendem a mesa como espaço familiar íntimo e, quase nunca a doméstica faz parte desse espaço de intimidade e aconchego da família dos empregadores.

3.4 Fronteiras simbólicas

As fronteiras, antes de serem marcos físicos ou naturais, são sobretudo simbólicas. São marcos, sim, mas sobretudo de referência mental que guiam a percepção da realidade. [...], são produtos desta capacidade mágica de representar o mundo por um mundo paralelo de sinais por meio do qual os homens percebem e qualificam a si próprios, ao corpo social, ao espaço e ao próprio tempo. [...] há, sem dúvida, uma tendência para pensar as fronteiras a partir de uma concepção que se ancora na territorialidade e se desdobra no político. Nesse sentido, a fronteira é, sobretudo, encerramento de um espaço, delimitação de um território, fixação de uma superfície. Em suma, a fronteira é um marco que limita e separa e que aponta sentidos socializados de reconhecimento. (PESAVENTO, 2002a, p. 26-28).

Como enunciado, nossa sociedade complexa 10 está organizada por inúmeros critérios de diferenciação social e de gênero, que acabam implicando em experiências sociais muito diversificadas para homens e mulheres. Além do gênero, existem outras de igual relevância como classe, raça, origem regional, religião, etc. Seguindo, portanto, a ideia de desigualdades sociais presentes na sociedade, é importante frisar que essas diferenças na hierarquia social não se traduzem, apenas, na desigualdade de renda. Existem desigualdades atribuídas à contextualização de capital simbólico. Além do capital econômico, existem expressões nas desigualdades sociais, por meio de uma distinção sócio-cultural que acaba convertendo as condições materiais de existência em experiências simbólicas. É justamente a inserção do indivíduo em diferentes esferas sociais que determina sua maneira de perceber o mundo. Isso significa afirmar que as escolhas e preferências dos sujeitos são socialmente construídas. Elas são baseadas na ordem de valores dos grupos sociais nos quais

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Sociedade complexa é um termo usado na antropologia para designar sociedades caracterizadas pela coexistência de diferentes estilos de vida. (VELHO, 1999).


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o sujeito foi criado, cresceu, conviveu. Tais grupos marcam fronteiras entre os indivíduos e os diferentes agrupamentos dos quais ele se aproxima ou faz parte durante a vida. Bourdieu (1983) dá um bom exemplo sobre essa discussão quando apresenta o gosto, ou seja, as preferências e escolhas de cada um. As escolhas acabam sendo entendidas, segundo a análise do autor, não como uma característica inata, naturalmente existente no sujeito, senão que são um efeito dos processos de socialização de cada um. Sendo assim, as preferências por determinadas comidas, objetos, por certas maneiras de exprimir emoções resultam desses convívios, como um conjunto de significados que orientam os sujeitos em suas ações. [...] fronteiras culturais remetem à vivência, às sociedades, às formas de pensar intercambiáveis, aos ethos, valores, significados contidos nas coisas, palavras, gestos, ritos, comportamentos e ideias. [...] a fronteira cultural aponta para a forma pela qual os homens investem no mundo, conferindo sentidos de reconhecimento”. (PESAVANTO, 2002b, p.31).

Foram essas fronteiras simbólicas que apareceram no convívio dessas mulheres, nas ideias e uso dos espaços da casa, da cozinha, da mesa, do lugar e do corpo. Existem fronteiras entre as domésticas e patroas, porém também existe entre as próprias patroas, e as próprias domésticas, são grupos dentro de outros grupos. Contudo, não posso negar as similitudes entre os grupos patroas e domésticas e as diferentes maneiras de fazer e entender o próprio mundo entre elas. Inúmeras falas representam essas fronteiras quando, por exemplo, algumas das domésticas percebem que suas casas são, em diversos aspectos, melhores que as das patroas: mais bonitas, arrumadas e mais alegres. Já suas patroas percebem uma casa “boa” quando limpa, cheirosa, tranquila e sem barulho. Diante dessas fronteiras de concepção de felicidade, arrumação, ingredientes, maneiras de preparar e de comprar, recorro a Pesavento: [...] a fronteira cultural é trânsito e passagem, que ultrapassa os próprios limites que fixa, ela proporciona o surgimento de algo novo e diferente, possibilitado pela situação exemplar do contato, da mistura, da troca, do hibridismo, da mestiçagem cultural e étnica. (PESAVENTO, 2002b, p.31).

Dessa maneira, falar de fronteira é perceber limites e demarcações, o que pressupõe o público e o privado, o íntimo e o estranho, o interior e o exterior. Tratar de fronteira é discutir a diferença e refletir sobre as formas de lidar com ela. A ideia dos limites aqui observados é de ordem simbólica, que se delimitam no plano social, desvendando os espaços que cada sujeito pode ocupar em relação ao plano social e cultural.


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Sandra Pesavento (2002a), em seu artigo “Além das fronteiras”, apresenta as dimensões simbólicas dos limites que atuam na realidade, no dia a dia, na forma como cada indivíduo vivencia a sociedade: A fronteira como fator de representação da realidade produz sentidos culturais que estabelecem limites de ordem hierárquica, classificações sociais que direcionam ou guiam as identidades e suas construções. As fronteiras simbólicas atuam como mediadoras das relações e interconexões entre o Eu e Outro, a partir desse jogo de representações e dos sentidos que produz. [...] Essas fronteiras invisíveis e simbólicas são, em última análise, sentidos culturais, ou seja, formas de representação da realidade. [...] O valor essencial a partir do qual a dimensão simbólica da fronteira é moldada é a alteridade, pois a existência das fronteiras pressupõe uma linha de mão dupla: a fronteira demarca as diferenças ao estabelecer o dentro e o fora e, ao mesmo tempo, precisa dessa diferença para existir, de modo que, se não há diferença, não há fronteira e vice-versa. Assim, a fronteira instala-se num terreno minado de ambivalências e em razão disso é o lugar próprio para o diálogo das diferenças. [...] Sendo assim, o limiar das fronteiras simbólicas permite o acolhimento e a rejeição simultâneos, que ocorrem a todo o momento. Enquanto via de mão dupla que permite diversas possibilidades de trânsitos, a fronteira viabiliza movimentos simultâneos que podem até ser contraditórios: ora os sujeitos são acolhidos, ora são rejeitados pelas mesmas motivações. (PESAVENTO, 2002a, p. 46).

É uma relação de múltiplas dimensões. A produção de desigualdades se revela de diferentes formas, porém posso dizer que em diversos momentos as domésticas são submissas, e reconhecem isso. Em outras situações o que se viu foi uma resistência em não aceitar essa relação de subalternidade. Ou seja, não são relações estáticas – se é que existem -, ao contrário, são relações múltiplas, diversas e contraditórias. “Ficar no limiar é manifestar um desejo de aderir às regras que regem a casa, mas um desejo que ainda não é completo, definido ou ratificado; rejeitar alguém no limiar de sua casa é renegá-lo, é rejeitar a sua adesão”. (CHEVALIER, 2009, p. 549). Sendo assim, é na fronteira que acontecem as trocas, as interações e as mobilidades culturais. Está ligada à ideia de limite, e ao mesmo tempo une as diferenças que separa, ou tenta separar. Existe, originalmente, para impedir o trânsito entre os lados que divide, definindo o que está dentro e o que está fora, mas essa nitidez divisória não existe no local fronteiriço. A fronteira contraditoriamente divide e por diversas vezes leva à união. Não se trata, apenas, de conflitos de saberes, mas, principalmente, de concepções de mundo. As empregadas domésticas constroem uma trajetória de saberes onde o conhecimento é, predominantemente, adquirido oralmente, muitas vezes passado de mãe para filha. Essa trajetória acaba por transformar o trabalhar na casa dos outros em uma das poucas opções para ganhar a vida e, com isso, leva a trabalhadora a assumir todas as implicações dessa


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“escolha”. Sendo assim, compreendo que acaba não existindo reconhecimento nem legitimidade desses saberes, produzindo relações desiguais que tentam ser superadas como, por exemplo, quando acontecem as trocas de receitas.

3.5 Consumos na comensalidade Comensalidade deriva do latim “mensa” que significa conviver à mesa e isto envolve não somente o padrão alimentar ou o quê se come, mas principalmente como se come, extrapolando o âmbito da necessidade da nutrição. (MARINHO, SANTOS, S/D, p.1).

Volto às perguntas enunciadas no segundo capítulo, quando apresentei as domésticas e levantei algumas dúvidas: será que a empregada come no trabalho, em qual mesa? Qual comida? As receitas que a doméstica prepara no trabalho também faz em sua casa? Os alimentos com os quais ela tem contato na casa da patroa, está habituada em sua casa? Acredito que essas respostas foram sendo apontadas no decorrer do texto. Contudo, para abrir o capítulo sobre consumo alimentar e tudo que está relacionado a ele, volto a pontuar com mais exatidão cada uma delas. A maioria das trabalhadoras entrevistadas come em seu trabalho, porém nem sempre a mesma comida e tampouco junto à mesa com seus patrões. Existe, conforme pude observar, uma troca de receitas entre patroas e domésticas. Segundo as domésticas entrevistadas, é em suas casas que elas se sentem mais à vontade para cozinhar e preparar seus pratos prediletos. Aliás, ao elencar as receitas, foi notória a diferença entre os grupos, deixando perceber no repertório das domésticas ingredientes bem menos industrializados tais como: Maria Izabel, galinhada, bolo de fubá, pão de queijo, arroz com pequi. Já as patroas apresentam o pudim de leite condensado, maionese, comidas prontas, etc. Outra diferença marcante são produtos como frutos do mar, pouco acessíveis às populações rurais desprovidas de recursos financeiros. Todas as domésticas disseram sentir nojo, enquanto todas as patroas, menos Val, que ascendeu socialmente, afirmaram adorar esses pratos. Val, na entrevista, disse nunca ter experimentado nada do mar, porém quando a encontrei após alguns meses no mercado, me disse ter comido no natal e que tinha adorado: “Amei o tal do bacalhau, experimentei o camarão e lula também, lá na casa da minha amiga, que troço gostoso esses bichos do mar.” (VAL, caderno de campo, janeiro, 2016). Outro ponto observado é que existe a exigência de a doméstica ter que fazer o que a patroa quer, porém a real motivação para a preparação no trabalho não é, apenas, agradar a patroa e seus familiares, mas reproduzir o que aprendeu em sua casa, com sua mãe, avó, onde é


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querida e elogiada. Por esse motivo, quando os patrões não aprovam a receita preparada, as empregadas se sentem tristes e percebem-nos como ingratos, questionando: como não gostam dessa comida, se lá em casa sou elogiada? Não só o gosto como também as escolhas aparecem na formação de uma cultura alimentar, já que as experiências culturais podem afetar a maneira como os indivíduos classificam as preferências pelos sabores e pelo gosto. Mintz (2001) revela que as propriedades visuais, de textura, aparência podem afetar as preferências alimentares, uma vez que configuram aspectos de um simbolismo alimentar das escolhas. Sobre essa dimensão simbólica, cito Bourdieu (2000), que afirma que as pessoas e os estratos sociais diferem pela maneira como usam os bens materiais e simbólicos de uma sociedade, de acordo com o acesso a esses bens, dando sentido ao mundo social. Os bens são investidos de “valores socialmente utilizados para expressar categorias e princípios, cultivar ideias, fixar e sustentar estilos de vida, enfrentar mudanças ou criar permanências.” (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2013, p.8). Os bens podem ser entendidos como práticas e rituais, com a finalidade de comunicar algo, na medida em que conseguem tornar visíveis algumas ações sociais. Douglas e Isherwood (2013) percebem o consumo como parte integrante do sistema social e da necessidade social de mediar o relacionamento entre pessoas por meio dos bens, constituindo, assim, um ritual cuja função é dar sentido ao fluxo dos acontecimentos. Os bens fazem parte deste ritual. Desse modo: O ato de comprar e a distribuição das compras pela casa são recursos que podem ser usados para pensar o corpo, a instável ordem social e as interações incertas com os participantes da cena social. Nesse âmbito, uma análise dos bens como conjuntos de significados coerentes e intencionais possibilita afirmar a hierarquia de valores de quem os escolheu. A análise estrutural procura um padrão total do consumo como comunicação, o que faz com o que o significado de cada bem só apareça em relação ao “todo”. Assim, os bens são neutros, mas seus usos são sociais e, portanto, podem ser usados como pontes ou cercas. (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2013, p.106).

É por esse motivo que considero importante entender como mulheres de classes sociais distintas, no seu dia a dia em interações sociais, se comportam. Pesquisadas por um viés nos estudos sobre cultura alimentar, posso perceber a mesa de refeições e o que chega até ela, considerando tudo que está ligado à alimentação: as comidas, a cozinha, os objetos e as pessoas como um “lugar” presente em torno das representações diárias de todas as classes sociais em espaços geográficos distintos.


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Compreendo, portanto, os espaços do cotidiano através do que Balandier (1983, p. 9) diferencia entre um centro e uma periferia do cotidiano. “O centro da periferia é definido como um lugar das relações de forte intensidade cotidianamente vividas e de caráter predominante privado e eletivo.” Diz respeito àquelas relações duradouras estabelecidas, tendo por base diferentes tipos de proximidade: familiar, amizade, vizinhança e domésticas. São relações pessoais, diretas e de interações regulares e, relativamente, fechadas. Sem dúvida alguma as relações de classe e as relações da maioria com as minorias coexistem, mas são as minorias que se tornam cada vez mais englobantes e que comandam, remodelam e subordinam as maiorias, o que nos obriga a repensar a resistência fora dos caminhos abertos pelo movimento operário. (LAZZARATTO, 2006, p. 248-249).

Nesse percurso da busca em responder se os consumos separam essas mulheres, quais são eles e como essas ações acontecem, não teve como não perceber o caráter simbólico nas práticas alimentares, já que: Como pode-se perceber, "alimentação" varia tanto na prática como na teoria, já que assumi formas de significados diferentes conforme o contexto em que está sendo discutida. Um sentido não se contrapõe necessariamente a outro e às vezes um está contido em outro. E também percebe-se que a língua é, a um só tempo, ampla e restrita demais e que é difícil ter uma palavra única para um sentido único, completamente definido. (MAGALHÃES, 1995, p. 32).

Em consulta a alguns estudos relacionados ao consumo de alimentos e temas correlacionados a ele, pude perceber, na maioria das pesquisas, que “os hábitos alimentares têm, assim, a sua existência constatada pela produção ou pelo consumo agregado, mas não pela ótica das pessoas que, teoricamente, os possuem”. (BARBOSA, 2007, p.89). É este o motivo pelo qual a pesquisa de campo foi além das entrevistas e das visitas a um único lugar, estive em casas das domésticas e das patroas, fotografei cozinhas, conversei pessoalmente com elas na rua, nas feiras, na escola. Busquei criar um relacionamento, mesmo que passageiro, porém, substancial, visto que aconteceu uma continuidade nos encontros, nas conversas e nas entrevistas sobre a relação empregada e patroa, focadas no consumo alimentar e suas relações. Simmel (2004, p. 3) aponta essa diferença de classe na percepção da recepção na vida cotidiana, em que as classes mais baixas entendem que a “refeição está essencialmente centrada na materialidade da comida (...) e, nas mais altas, ao contrário, está sustentada a códigos de regras.” Será que Simmel tinha razão, existe mesmo essa diferença? Existem códigos de regras? Elas estão representadas simbolicamente nos consumos alimentares? O que é feito com toda essa


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simbologia de alimentar-se? Sim, é claro que existe uma diferença grande, em todos os aspectos aqui analisados e isso ficou claro desde o começo da pesquisa, porém o que não se esperava era um posicionamento de autonomia, na cozinha, por parte das domésticas, diferenciando e, às vezes, rejeitando as escolhas das patroas entrevistadas. Percebi que quem prepara e/ou serve a comida é detentor de grande informação que abrange diversos saberes e modos de fazer. Os locais de compra dos alimentos não ficam fora da análise. Uma vez que todos os produtos relacionados às refeições que são adquiridos em Chapada dos Guimarães, por exemplo, nos mercados, nas padarias, feiras, açougues, quitandas, mercearias e horta, enfim espaços nos quais se decide a escolha dos produtos, conforme sua aparência, textura, aroma, disponibilidade, preço e necessidade real de uso, são necessários saberes e conhecimentos, no que se refere às escolhas do que será consumido. Lá é assim, eu compro tudo, mas ela escolhe. Igual a carne eu gosto de carne diferente, ela gosta de contra filé, alcatra, eu não. Gosto de carne com osso, na panela fica uma delícia, e ela já não come isso, fala que faz mal, ela não tem bom gosto, gosta de coisa sem gosto de sabor, se fosse eu com o dinheiro dela comprava outras coisas. [sic] (TINA, setembro, 2014).

Para Appadurai (2008, p. 15) as mercadorias assim como as pessoas têm uma vida social e, portanto, o valor “jamais é uma propriedade inerente aos objetos, mas um julgamento que sujeitos fazem sobre eles.” O consumo para o autor é eminentemente social, relacional e ativo, em vez de privado, atômico e passivo. Os indivíduos escolhem o que vão consumir motivados por interesses e crenças diversas, podem até ser impulsionados pela publicidade, contudo, esta não é garantia da escolha. Percebo essa tese nas escolhas de Tina, que são distintas das de sua patroa. Ela acha as escolhas da outra inocentes, justificando que são mais caras do que as que ela está habituada a comprar. A garantia de ser um produto melhor porque é mais caro não está presente, necessariamente, em sua fala. Exemplo disso é quando Tina cita a carne com osso como mais saborosa do que as carnes de “primeira”, que a patroa gosta de comprar. Os espaços comerciais frequentados preferencialmente por essas mulheres também devem ser analisados, já que muitas vezes não são os mesmos onde sua patroa compra ou pede que a empregada compre. Deve-se levar em conta que eu falo de uma cidade pequena - Chapada dos Guimarães -

onde na maioria das vezes, o cliente é costumeiro, parceiro de uma

convivência com os fornecedores em troca de pequenos benefícios na forma de descontos, indicações seguras sobre a qualidade ou o peso incorruptível de suas compras. (CERTEAU, 1997).


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Assim é que as domésticas acabam sendo protagonistas nesses espaços e não só nas cozinhas, já que sustentam, diariamente, o compromisso de alimentar os outros, com o poder de decidir, repetidas vezes, o que será servido em cada refeição, com base em um planejamento, adaptando os pratos às ofertas do mercado e aos gostos da família, pensando na reutilização das sobras, transformando-as em outros pratos. Essas mulheres, quando preparam o alimento, são capazes de calcular o tempo exato de cozimento e manipular corretamente os instrumentais mais adequados, de modo a não comprometer as exigências para o preparo de cada receita. Nesse repertório estão incluídas panelas de diferentes texturas, tamanhos e profundidades, grelhas, facas, colheres, garfos, peneiras, raladores, fogões, fornos, eletrodomésticos, enfim, uma infinidade de objetos que auxiliam no modo de fazer de cada doméstica. Ao longo da história as relações de gênero destinaram comumente as cozinhas à mãos femininas. Em tal ambiente, por séculos houve uma produção anônima, silenciosa, “[...] secundária das decisões masculinas, foi capaz de sustentar gerações de homens e mulheres, edificar valores, reinventar técnicas e saberes, despertar sentimentos e só recentemente valorizados como significativos.” (SILVA, 2010, p. 64). Levando em consideração todo esse conhecimento e relações entre as protagonistas, o comércio, a casa, a cozinha, a mesa e a comensalidade, observei a relação entre as mulheres de diferentes classes – patroa e doméstica - e suas escolhas de compras. Como explica Clara: Tem diferença sim, eu compro na feirinha de domingo que é de pobre, aqui do bairro, tem mais coisa que eu gosto, é mais barato, eu posso pagar, prefiro os mercadinhos daqui também e quando dá vou ao Atacadão. Ela não, ela vai à feirinha do centro, aquela de sábado, vai muito para Cuiabá, traz coisas do Big Lar, gosta de ir aos mercados do centro, lá perto da casa dela. Então tem diferença sim, a gente come muito diferente deles e compra em lugares diferentes também. Eles comem muita coisa esquisita, caras, mato, coisa que eu nem sei o nome. Eu faço para eles, mas não gosto não, é igual bacalhau, “eita” coisa fedida. [sic] (CLARA, outubro, 2014).

Em algumas falas pude constatar, novamente, uma explicação através não só do dinheiro, mas também de suas necessidades e desejos. Sem dúvida, uma compra deve estar dentro do orçamento, mesmo que isso signifique dividir em 10 vezes no boleto ou cartão. A tentativa de explicar o consumo pode implicar o estudo da satisfação de necessidades ou desejos (desde a necessidade de comer e vestir à compensação de sentimentos de inferioridade, insegurança ou perda), da comunicação de distinções sociais, do reforço de padrões de superioridade e inferioridade entre indivíduos e grupos, da simbolização de sucesso ou poder, assim como da expressão de estados de espírito ou de formas de comunicação interpessoal. (FEATHERSTONE, 1991apud RIBEIRO, 2008, p. 3).


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As patroas não são todas de classe alta; temos algumas da chamada nova classe média. Considero aqui que, o mais importante, é a relação patroa e empregada no alimentar-se. Sob o pressuposto de que “a Sociologia não é uma ação, e sim uma tentativa de compreensão [...]” (BERGER, 1978, p. 13), começo a compreender que essa diferença aparece, como disse Campbell (2001), nas escolhas, satisfações e, principalmente, no gosto do que vai comer, comprar, onde, como e por que. No que se refere a um “domínio da realidade social, é justamente a indisciplina do quotidiano que mais facilmente se esquiva à captação sociológica. Paisagem de constâncias e rotinas aparentes donde irrompem as inconstâncias e rupturas da vida quotidiana”. (PAIS, 2002, p. 56). Eu gosto do meu trabalho. É muito sofrido, mas onde eu ia te,r sem estudo, carteira assinada por 1.600,00, mais Unimed, o melhor plano, em quarto particular. Compra tudo que eu peço, como e durmo lá, posso levar gente lá a hora que eu quiser, fico bastante sozinha com o menino, ela me deixa bem à vontade. Eu sei que ela tem medo de eu ir embora, quem que vai cuidar do menino? Ele é violento, sujo [...] Nem ela cuida. Então eu faço minhas exigências e vou me aposentar bem, ela também me paga cabeleireiro, massagem, a hidroginástica ela que me pagava à mulher do aparelho também, o pilates. Aproveito e junto dinheiro para acabar de pagar nossa casa em Cáceres, falta pouco. Tenho minhas economias. [sic] (BETA, caderno de campo, agosto, 2014).

É curioso observar a fala de Beta no trabalho e em sua casa, como é o fazer no ambiente do outro, o da patroa, e como isso se traduz no seu ambiente, e quais negociações e trocas estão relacionadas ao emprego, com os esforços e o posicionamento de quanto vale tudo que ela faz. Portanto, não vejo aqui nada de submissão, ao contrário, ela negocia consumos, como no caso o cabeleireiro e a Unimed, em troca de um trabalho pesado. Segundo ela, muitas vezes, humilhante. Ou seja, ela faz, porém dita seu preço. Considerando o exposto, percebo que a incorporação do alimento para cada uma delas significa fronteiras simbólicas entre os dois universos quando se esbarra no mesmo espaço, mas também observo convergências entre suas “culturas” e modo de fazer os alimentos. Em um artigo de Janice Collaço (2004, p.7), “Novidade, variedade e quantidade: os encontros e desencontros nas representações do comer em praças de alimentação em shopping-centers”, a autora apresenta as práticas alimentares através da “constituição do gosto e atribuição de capacitações adequadas para a apreciação de uma refeição, definindo posições sociais e estilos de vida.” Collaço recorre a Mennel (1996), que inspirado na obra de Elias (1993, 1994) discute sobre o que Mennel denominou “processo civilizador do apetite”, avaliando tal processo e como vão sendo revistos e modificados. Construindo, assim, práticas de alimentar-


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se que se tornam ações mecânicas, sem muita percepção ou questionamentos sobre as escolhas, parecido, segundo aponta a autora, com a concepção de gosto que já foi anunciada em Bourdieu (1979), mesmo que para Mennel (1996) existam mudanças desconsideradas em Bourdieu e defendidas por Elias (1994). Em suma, o processo de alimentar-se é visto como uma ação social não estática e está em constante modificação, podendo distinguir e confundir grupos e subgrupos dentro de grupos e pessoas. À medida que a sociedade muda, o ato de alimentar-se toma um novo estilo que corresponde às novas necessidades. Costumes até então considerados naturais são banidos, enquanto outros são criados e estabelecidos. Novas funções e papéis vão sendo, gradualmente, definidos e modificados. Para melhor desempenhá-las as normas e regras são codificadas. Padrões que estariam diretamente relacionados ao que Elias (1990, p.112) propõe como “processo civilizador” são apresentados como um “panorama da curva evolutiva da „civilização‟ dos hábitos da mesa”. Ele analisa como se formou o ritual diário, no que diz respeito às ações tomadas pelo sujeito na mesa: [...] se esta série fosse continuada até o presente, outras mudanças de detalhe seriam notadas: novos imperativos são acrescentados, relaxam-se outros antigos, emerge uma riqueza de variações nacionais e sociais. [...] Mas a base essencial do que é obrigatório e do que é proibido na sociedade civilizada – o padrão da técnica de comer, a maneira de usar faca, garfo, colher, prato individual, guardanapo e outros utensílios – estes permanecem imutáveis em seus aspectos essenciais. (ELIAS, 1990, p. 113).

Sendo assim, agrega-se o conjunto de padrões comportamentais dos indivíduos entre si e consigo mesmos, sobre o que é permitido e o que é proibido. Segundo Elias (1990, p. 113116) permaneceu constante, ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, modelos de comportamento cada vez mais refinados à mesa, pressionando, dessa forma, um novo arquétipo de boas maneiras. Talvez seja por esse motivo que percebo uma fronteira simbólica tão forte quando observo o portar-se a mesa, montar a mesa, comer à mesa entre os dois grupos de mulheres. Na minha casa é muito diferente por a mesa, na patroa eu coloco toalha, guardanapos, talheres ao lado dos pratos, assim, olha: pratos todos iguais, ao lado, garfo e faca. Quando tem sopa ou creme coloco a colher, copo de água e taça de vinho, geralmente, eles tomam vinho. Os guardanapos são de pano, e ela gosta bem limpo e passado, dá uma trabalheira lavar isso, mas deixo de molho e fica limpinho. A toalha é uma por refeição, não gosta que repita. Panela não vai para a mesa nunquinha. Ela tem uma vasilha mais linda que a outra, são jogos não têm? Aí você pega os jogos e coloca a comida feita neles, as colheres de servir também combinam com o jogo. Para falar a verdade é muita frescura, mas fica igual novela, tudo combinando e bonito. Lá em casa não, lá a gente tem toalha de plástico que é muito mais fácil de limpar, uso ela várias vezes, guardanapo só quando vai visita e é de papel,


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não colocamos na mesa, cada um pega seu prato e se serve no fogão, é muito diferente. Às vezes, as meninas sentam no sofá para comer e ver televisão, eu nem ligo. Cada um come rapidinho e sai para trabalhar, cada um come como quer, não tem tanta regra, tanta frescura. Depois cada um limpa o seu prato e copo, não tem uma pessoa que limpe a sujeira dos outros. É mais simples, né? [sic] (DINA, setembro, 2014).

Apesar das diferenças nas escolhas, maneiras de fazer e espaços em torno da comensalidade, observo que existem trocas, encontros, afetos e tréguas de conflitos quando nos focamos na alimentação. Ela me ensinou muita coisa, arrumar uma cama igual de hotel chique, fazer comidas de rico, usar produtos e aparelhos que facilitam nosso trabalho, mesmo ela sendo, muitas vezes, muito chata e exigente, no fundo a gente se dá bem. Ela me ajuda como pode e eu ajudo como posso, vejo que a vida dela não é muito fácil como parece, ela é muito sozinha, não tem? Marido fazendeiro, filhos fora, sempre sozinha, então, às vezes, na cozinha na hora de preparar o almoço, ela vai lá e fica conversando comigo, conta a vida dela e eu gosto, ai falo da minha também, tem vezes que ela come junto comigo na mesinha da cozinha dos empregados, mas só, às vezes, e se só estou eu, se tiver outro empregado, ela não senta lá não. Quando está o marido dela, a família, os filhos, ou visita também não, mas se estamos só eu e ela, ela senta e come lá comigo, ai nem coloco a mesa cheia de frescuras, a gente até se serve no fogão, igual lá em casa. (DINA, caderno de campo, maio, 2014).

As falas das mulheres em torno da comensalidade revelam suas concepções de mundo, de grupo social, de trabalho, de economia, de gostos e escolhas. Sempre tive muito medo de errar, essa gente é enjoada, gosta de comer coisas esquisitas, coisas que eu nem sabia que existia. Sei lá, várias coisas, panqueca, já comeu? E ainda tinha o recheio, é uma massa que você recheia, tem também os frutos do mar, que eu tenho nojo. Odeio frutos do mar. Eu nunca tive coragem de comer não. [...] Mas, ela não fala nada, eles são muito educados, nunca falam alto, não chamam atenção, não dão bronca, é só com a olhada sabe? Agora eu faço panqueca porque meu marido gosta de carne moída, a doce não. [sic] (CLARA, agosto, 2014).

Cada uma entende de uma maneira, o que se deve servir, como, e assim por diante, Então eu estou nessa tentativa, até a gente andou conversando porque ela é uma boa cozinheira, só que como qualquer pessoa ela deve ficar entediada daquilo, e não sabe fazer variedade, aí tem semana que está uma droga e como a gente tem criança pequena a comida tem que estar saborosa, tem que ter variedade se não eles não comem. Semana passada a gente conversou sobre isso e ela sugeriu que a gente montasse um cardápio, mas aí eu não consegui montar, porque meu marido faz as compras, ele que vai ao mercado[...] eu detesto fazer compras, é ele que compra, peço que ele me ajude com isso, pelo menos isso. Aí ele compra assim: frango [...], por exemplo, a mistura que a gente fala ele compra. Frango compra carne congelada e põe lá no freezer, aí vai da criatividade dela. Tem dia que antes de sair de casa ela pergunta: Vamos fazer um peixe, eu falo ótimo vamos fazer um peixe, que mais que eu faço? Ah vamos ver o que tem na


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geladeira, sempre tem muita variedade de legumes, verduras que meu marido tem problema de saúde aí ele tem que comer muito legumes, muita verdura, pouquíssimo sal, pouquíssimo óleo, pouquíssima gordura, então, a gente procura sempre variedade. (VERA, março, 2014).

Outro conflito que aparece diversas vezes nas falas, nas comparações entre o processo de preparação no trabalho e na casa da doméstica é a quantidade de comida e o uso de gordura, sal e o ato de colocar a mesa. Tais diferenças parecem não estar ligada apenas aos saberes dessas mulheres, vão além, estabelecem uma ligação direta com os valores de cada uma, ultrapassando a ideia de luxo e necessidade. Essa discussão é há muito tempo explorada pela antropologia do consumo, na qual a visão do que é luxo para uns pode ser, absolutamente, comum para outros. (APPADURAI, 2008). Um conjunto de produtos e serviços pode ser rotulado como luxo, dado o seu caráter diferenciador em relação a bens e serviços considerados convencionais. Porém, o luxo não deve ser pensado como um contraponto à necessidade, até mesmo porque seria temerário afirmar que o luxo se diferencia de uma necessidade em uma sociedade capitalista, posto que o avanço tecnológico de mercado costuma transformar o luxo de uma época em necessidade de outra. Sendo assim, compreendo que o consumo de bens de luxo depende muito mais do contexto sócio cultural do que da compra de produtos comuns. A saber, deve-se compreender melhor o consumo de luxo como um fenômeno social, representativo de manifestações culturais, e não como uma categoria de mercadorias que responde às necessidades objetivas. (APPADURAI, 2008). Para Barbosa e Campbell (2006, p. 21) o consumo possui duas características: ser elusivo e ambíguo. [...] O consumo é um processo social profundamente elusivo e ambíguo. Elusivo porque, embora seja um pré-requisito para a reprodução física e social de qualquer sociedade humana, só se toma conhecimento de sua existência quando é classificado pelos padrões ocidentais, como supérfluo, ostentatório ou conspícuo. [...] Ambíguo porque, por vezes, é entendido como uso e manipulação e/ou como experiência; em outras, como compra, em outras ainda como exaustão, esgotamento e realização. Significados positivos e negativos entrelaçam-se em nossa forma cotidiana de falar sobre como nos apropriamos, utilizamos e usufruímos do universo a nossa volta.

Douglas e Isherwood (2013, p. 110) definem o consumo como “um processo ritual cuja função primária é dar sentido ao fluxo incompleto de acontecimentos.” Sendo assim, fica difícil definir valores nas escolhas dessas mulheres, pois o que é luxo para uma pode não ser


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para outra, o que é supérfluo para Dina pode não ser para Fer e assim por diante. Barbosa e Campbell (2006), em relação a tais concepções e classificação, dizem que: Não se pode esquecer, que por trás dessa oposição entre necessidades básicas e supérfluas, existe a possibilidade de controlar o consumo alheio em especial das classes trabalhadoras, a possibilidade de certos grupos sociais e políticos definirem, autoritariamente, o que pode e deve ser consumido. Dessa forma, o consumo de classes menos favorecidas para suprir faltas e carências definidas culturalmente como básicas é considerado digno, enquanto aquele orientado para reprodução de certos estilos de vida que vão além dessas necessidades é percebido como inadequado ou irresponsável. [...] Deparamo-nos assim, com as raízes puritanas da sociedade contemporânea, que legitima o consumo da necessidade, mas se aterroriza com o do supérfluo, vendo com temor a verticalização do consumo para outras classes sociais. (BARBOSA; CAMPBELL 2006, p. 39).

Bauman (2008) ao tratar sobre o tema explica que a cultura do consumo associou-se à satisfação e a estagnação econômica. Nossas necessidades não podem ter fim. E completa, explicando como é impossível separar cultura de consumo: [...] essa descoberta da estreita relação entre cultura e consumo abre possibilidades para outros públicos, é a percepção da impossibilidade de se separar um do outro, da mesma forma que acontece com a tentativa de se discernir necessidades básicas, fixas e universais das supérfluas. (BAUMAN, 2008, p. 67).

As considerações acima fazem crer que os seres humanos sentem necessidades diversas, não só no nível de sua sobrevivência ou subsistência, mas também necessidades mais sofisticadas que lhes possam trazer prazer, dentre elas uma imagem social diferenciada, poder de posse e prestígio. A imagem social está intrinsecamente ligada a produtos que compra e consome. Assim é que, nesse contexto, ter um bem de luxo é uma resposta a tantas expectativas humanas, pessoais, estéticas, de prazer, de saúde, bem estar, entre outras. Norbert Elias (1987, p. 38), dialoga com a perspectiva apresentada porque compreende o papel do indivíduo como ator social “[...] numa sociedade em que todas as atitudes de um indivíduo têm o valor de representação social, as despesas de prestígio e representação das camadas superiores são uma necessidade a que não é possível fugir”. De acordo com Bourdieu (1979, P. 57) é por meio de posses de capitais e despesas que se define a classe social e constitui o princípio das práticas de distinção e classificação, “[...] é um sistema de propriedades que faz da classe um princípio de explicação e de classificação universal.” Quando o pensador se refere a capitais trata do capital objetivado (propriedades) e o incorporado (habitus). O capital objetivado estaria no âmbito econômico e o incorporado


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estaria relacionado à bagagem cultural adquirida pelo indivíduo. Se acontecer uma mudança em sua esfera social, seu habitus, consequentemente, sofrerá mudanças culturais. Posso dizer então que definir o que é luxo depende muito mais do contexto sócio cultural do que do consumo de produtos comuns. Se atualmente, na sociedade ocidental, a aparência ainda é muito valorizada, o efeito da ostentação era deveras expressivo (seja na casa, seja na vestimenta) em uma época em que o senso de pertencimento a determinada camada social era fundamental, e mudanças estatutárias, raras. Numa sociedade deste tipo, a opinião social tem uma função e uma importância muito diferentes da que tem numa vasta sociedade burguesa profissional. (ELIAS, 1987, p. 69).

Dessa maneira, considero que as falas entre domésticas e patroas se confundem no que diz respeito ao que é ter luxo, pois se de um lado ter taças de cristal na hora do almoço é um luxo, segundo uma empregada, de outro, para a mesma, ter aparelhos eletroeletrônicos “caros” e de marcas boas na hora de fazer a comida é essencial para o preparo de bons pratos. Se a diferenciação social é um instrumento produzido pela sociedade, que assim se estrutura a si própria, não será fundamental investigar qual é a percepção (comum, corrente e quotidiana) do que distingue um estrato social alto de um médio, e este de um baixo, para quem constrói e utiliza estes critérios de distinção – ou seja, o indivíduo, agente do social (e não o sociólogo, leitor e por vezes indevidamente doutrinador, do social)? Não se trata aqui de reeditar os estudos feitos desta perspectiva geral, no início do século XX, mas de centrar a análise no consumo: assim, se o consumo serve também, como a sociologia admite, para criar, exibir e comunicar uma identidade num meio potencialmente anônimo, então porque não procurar aferir a percepção de classe ou estrato a partir do que é exibido e comunicado pelo “consumidor comum”? É importante que a Sociologia não confunda a sua postura crítica com o alheamento do actor social: há que apreender o real a partir do real e este é um ponto de partida que parece prometedor, do ponto de vista dos nossos interesses presentes. (RIBEIRO, 2008, p.5).

Como se pode ver, o consumo não termina na compra. Aliás, é o uso da compra que importa. Visto que, os bens de consumo não são compreendidos como mensagens, mas como sistemas que comunicam algo. (DOUGLAS; ISHERWOOD 2013). É, no café, eu coloco o café na mesa o chá, leite, suco. Os pães que ela manda comprar, arrumo tudo do jeito que ela quer [...] Tem dia que é ela que arruma, mas é eu ajudando ali sabe. Por que aí fica do jeito que ela quer. A mesa tem de ficar linda, ela gosta assim. Eles comem bastante de manhã, eles gostam de fruta bastante. [...] Olha! Aqui em casa não dá para comprar assim, por que deles lá é melhor né. Lá deles é maçã, banana, pera, uva, ameixa, pêssego, melão lá gosta assim, esse negócios de sobremesa que ela gosta também que é mousse, pudim, sorvete com calda, sempre ela trás sobremesa e quando me pede é esses de caixinha, coisa quase pronta, não tem? [sic] (NINA, maio, 2014).


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Cascudo (2004), citando Diodoro de Sicília, século I a.C., afirma que a alimentação caracterizava os grupos humanos antes da linguagem. Hoje, é possível interpretar que a alimentação comunica. Para o autor, “a escolha dos nossos alimentos diários está intimamente ligada a um complexo cultural inflexível. É preciso um processo de ajustamento em condições especiais de excitação para modificá-lo com o recebimento de outros elementos e abandono dos antigos.” (CASCUDO, 2004, p. 22). Lá é colocado na mesa, mas aqui mesmo venho 11h para o almoço, aí se você ficar fazendo tantas “chiquezas”, você não descansa nada né! Por que você tem que estar no serviço de novo. Aí das 11 até meio dia eu fico aqui dando uma organizada nas coisas e descanso um pouquinho quando dá, por que uma hora todo mundo tem que estar no serviço de novo. [sic] (MARGA, agosto, 2014).

É apresentada também a diferença na fala da patroa, no que se refere à preparação da mesa quando se paga alguém para fazer: Quando a empregada vem, quero que arrume a mesa direitinho, toalha limpa, os pratos, copos, talheres, as comidas nas vasilhas de cerâmica, tenho uma mais linda que a outra. Ah! Quando ela não vem, não coloco nada em vasilha não, dá muito trabalho de lavar. [sic] (VERA, setembro, 2014).

Percebi nas falas, tanto das patroas como das domésticas, que quando é realizada uma tarefa para si, em sua casa, ela é executada com rapidez e praticidade, porém quando se manda fazer e se paga pelo serviço, fica implícita a exigência de um preparo mais elaborado, com maior requinte, tanto no fazer dos pratos como na preparação da mesa. Eu moro na casa dela e recebo as pessoas, quando chega meu filho eu faço as coisas que ele gosta [...] eu só aviso, que eu não faço nada sem me comunicar com ela. Isso aí ela sabe disso. Patroa, amanhã vou assar uma carne porque vai vir uns amigos meus. Ela fala, tudo bem, vocês querem assar aqui ou lá em baixo na piscina? Você precisa de alguma coisa? Assim, aí ela sai compra carvão, compra alguma coisa diferente, cara, porque ela sabe que nós somos tudo duros (risos). [...] olha essa, quando eu me formei aí eu disse para ela que ia vir meus amigos da formatura para cá para gente fazer um churrasco, aí ela falou: tudo bem! Aí ela comprou refrigerante, comprou negócio para fazer maionese, comprou queijo pra assar, comprou abacaxi para assar [...] que a gente gosta muito de abacaxi assado. Até parece que nós pobre vamos fazer isso. Aqui ela só compra contra file, para a gente assar [...] e lá nos compramos costela. Você entendeu como que é o caso? Ela não gosta de carne com osso [...] eu já gosto da carne com, porque dá mais sustança, e eu acho que dá mais sabor. Então eu me sinto à vontade e quando enche de meus amigos ela vai para o quarto dela, ou para a sala e eu fico tomando conta da casa. [sic] (BETA, outubro, 2014).

Considerando o exposto, é possível observar o posicionamento de cada mulher e suas diferenças sociais no que tange à comensalidade em suas casas, como no caso das domésticas no trabalho. É importante salientar que apenas Beta – doméstica - se sente como em sua casa


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quando está no trabalho; na maioria dos casos as trabalhadoras se sentem desconfortáveis. Em parte das entrevistas é possível verificar a visão que a doméstica tem sobre os alimentos, a cozinha e os utensílios de sua patroa: As taças, eu tenho medo de lavar as taças, de quebrar, ah! Eu não gosto, ela é enjoada com as taças. Ela fala: eu trouxe essas taças lá da Argentina, eu não posso quebrar porque eu tenho medo, elas são muito finas igual a papel. Os pratos, até que não. Eles bebem vinho para comer junto, é tudo chique, aí tem que lavar tudo. Graças a Deus nunca quebrei nada, só os pratos que, às vezes, quebrou, tem que ser devagar, e com as vasilhas quebram mesmo, só que ele é enjoado, mas não vê também, escondo para ele não ver né. É melhor né, as taças são finas, parece casca de ovo, ela disse que chama é de cristal, lá tem todo tipo de taça, mas ele mesmo sabe que quebra né. Só que tem que cuidar para não quebrar, ele fala: ei dona A, não vai quebrar minhas taças, que eu fui lá na Argentina buscar. Mas eu tenho medo, não gosto não [...] ficar quebrando. Já aqui em casa, nós já relaxamos, tanto faz, é seu né, e também tem mais liberdade para cozinhar né. Eu que não comprava essas coisas que mais quebram do que têm uso, não tem? [sic] (NINA, setembro, 2014).

Haja vista essa explanação, entendo o consumo, aqui verificado pelas falas das protagonistas, como um fenômeno no qual o consumidor exerce uma escolha diferente da predominante, e, neste caso, não foi imposto pelo que as patroas com mais poder aquisitivo tinham. Portanto, o consumo não é um modo de comportamento que segue a fixação dos padrões sociais, é parte de um modo de vida e de identificação, pois as domésticas, em todos os casos, se sentiam melhor e gostavam de cozinhar em sua casa, ainda que seus eletrodomésticos e alimentos não fossem tão chiques quanto os das patroas. Pode até ser que as domésticas queiram ter eletrodomésticos semelhantes aos das patroas. Porém, no que diz respeito aos alimentos, não agradavam tanto, por exemplo, os frutos do mar, que nenhuma gostaria de tê-los ou servi-los em suas mesas. Talvez o ato de comer escondido esteja muito mais ligado à curiosidade do novo, do que propriamente à vontade de querer possuir o que havia dentro da geladeira da patroa. “Não compro o que como escondido lá na casa dela porque quero outras coisas, nem sempre gosto do que provo, sei lá, não quero ter as mesmas coisas só quero experimentar.” [sic] (FLOR, caderno de campo, julho, 2014). Voltando a tratar sobre os eletrodomésticos, observo que, em alguns casos, as empregadas podem até desejar possuir o que as empregadoras têm. Todavia, ficou claro que os mesmos objetos deveriam ser de marcas distintas, estar em suas casas, mas distribuídos de forma distinta, segundo o gosto delas. Pode ser uma relação que não consegue mais se sustentar apenas pelo desejo ou pela inveja de ter o que o outro tem, ou de promover o reconhecimento dos que o cercam ou por alguma


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necessidade de admiração e cobiça, mas que se sustenta por uma emergência em satisfazer a si própria, ou seja, “deleitar-se consigo mesmo.” (LIPOVETSKY, 2008, p.52). Coitada, ela é muito pobre, é mãe solteira e vem do mato, é rústica, não sabe falar, não sabe nada, tudo eu que tenho que ensinar, agora mesmo ela está sem geladeira, quebrou a velhinha que ela tinha, está lá sem geladeira. Geladeira é coisa fundamental, necessidade básica, onde já se viu ficar sem, então, me corta o coração, mas aí fui falar para ela que minha tia avó tinha uma encostada na casa dela e que eu ia pedir para ela. Ela não quis não, falou não isso é trambolho eu já vi, eu quero uma que não gasta luz, e tem um projeto do governo que me dá uma, assim eu economizo, não precisa não. Você acredita? É o fim da picada, está lá sem geladeira. [sic] (LIZA, caderno de campo, abril, 2014).

As análises de Rezende e Coelho (2010) demonstram os embates emocionais, e o modelo ideal de troca entre patroas e domésticas e que são concebidos pelas patroas como um objeto material. Podemos usar como exemplo o caso da geladeira que pode ser compreendida como um objeto de troca por um sentimento, a gratidão. No entendimento da patroa, “a „boa empregada‟ é aquela que demonstra estar agradecida sem fazer qualquer esforço para retribuir no plano material.” (REZENDE; COELHO, 2010, p, 92). A ênfase no embate em questão se dá no campo sentimental, visto que as empregadas devem ser gratas pelos presentes. É por meio dessas trocas que emerge uma temática, segundo analisa a autora. Ela pondera ainda com muita clareza, que é “a importância atribuída pelas patroas à demonstração, pelas empregadas, de gratidão pelo objeto recebido, e que entrava em flagrante contraste com a recusa destas em sentir-se gratas.” (IBIDEM, 2010, p. 93). A empregada estava sem geladeira e mesmo assim não aceitou a oferecida pela patroa, que entendia o presente como uma “consolação”. Jandira, a empregada, queria uma nova que não gastasse muita luz. Segundo Campbell (2001), houve expansão do mercado e mais procura do consumidor por bens antes inimagináveis. Porém, não foi o crescimento da população ou o aumento do poder de compra que fez as pessoas irem às compras. Na realidade, o que ocorreu foi “uma nova aptidão para comprar supérfluos e uma nova disposição para fazê-lo.” (CAMPBELL, 2001, p.32). Pode ser notada uma mudança na atitude mental baseada no gosto e na moda. A moda proporciona motivos para gastar, em virtude do comportamento competitivo, visando afetar os desejos e a inveja dos consumidores. Porém, a análise não compreende que haja inveja das mulheres de baixa renda para com as coisas das mulheres de maior poder aquisitivo. Há o que posso definir como uma ressignificação do que o outro tem. Isso porque não percebi, por parte das empregadas, vontade de ter o que as patroas têm, mas de possuir coisas “boas”, porém, escolhidas por elas, consoantes aos seus “gostos”.


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Acho a casa dela bonita não tem? [...] é tudo chique, caro, mas eu acho que ela não sabe escolher as coisas, olha só, ela tem uma geladeira enorme e linda é de inox prateada pega água na porta sabe, mas ela coloca em uma parede que é feia, não fica boa. Ela tinha que colocar do outro lado, que além de mais prático, ia ficar mais vistosa e a cor da parede sem graça, ela não tem bom gosto não, tudo dela é bege e branco, sem graça, sem vida. [sic] (CATIA, agosto, 2014).

O consumo é algo bem mais ligado ao valor simbólico do que ao bem material e suas características físicas. “A função essencial do consumo é sua capacidade para dar sentido.” (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2013, p.7). Corroborando com a perspectiva em questão, Campbell pondera que [...] em outras palavras, imagens e significados simbólicos são tanto uma parte „real‟ do produto quanto os ingredientes que os constituem. [...] Essa manipulação funciona por meio da emoção e imaginação envolvidas na compra, pois o afetivo é mais fundamental para o consumo do que uma decisão racional e de cálculo. (CAMPBELL, 2001, p. 74).

Dessa maneira, os valores simbólicos vão aparecendo nas escolhas das entrevistadas: É claro, minha cozinha é bem mais espaçosa que lá! A cozinha de lá é pequenininha [...] pequenininha mesmo. Tem um fogão, a geladeira, é marca de rico, grande, mas só não tem uma não tem nada na cozinha dela melhor que na minha. Só que tem a bancada da pia que é grande né. Mas fica muito imprensada [...] tem hora que se está cozinhando fica duas três pessoas sentadas ali de curiosidade assim [...] A minha é espaçosa né! Falta terminar de organizar tudo, aos pouquinhos né, tudo que eu cozinho aqui eu cozinho lá. Minhas coisas são melhores que as dela, ela não sabe comprar não, gasta um dinheirão, mas não sabe. [sic] (MARGA, caderno de campo, julho, 2014).

Quando Mary Douglas e Baron Isherwood (2013) criticam a teoria das necessidades por inveja, talvez queiram se referir ao que esta mulher apontou. Ela não quer o que a outra tem, ela não tem inveja nenhuma do que sua patroa tem. O que deseja, são outras coisas que considera melhor. E as patroas observam e se surpreendem com essa relação de autonomia das empregadas - nada “racionais” - do ponto de vista das empregadoras, sobre o que as domésticas querem ter em suas cozinhas. Nossa! Um dia eu fui à casa da x que trabalha aqui e fiquei surpresa, entrei na cozinha dela e ela tem uma cozinha enorme, bem equipada, a geladeira dela é duplex, o fogão é novinho, tudo arrumadinho, ela tem de tudo a danada, aí perguntei: nossa x como é que você conseguiu montar essa cozinha? Aí ela disse: ô dona x se fosse pelo seu salário não dava mesmo não, mas com minhas faxinas, e as roupas que eu lavo e passo junto com meu marido e as prestações a gente foi comprando tudo, está bonita não está? Vem ver minha televisão de plasma nova. (risos). [sic] (IZA, caderno de campo, abril, 2014).


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A patroa ficou surpreendida ao ver a cozinha da empregada toda equipada, pois nunca imaginou sua funcionária ter uma cozinha maior, mais bonita e melhor equipada que a dela, que possui maior poder aquisitivo. Essa fala vem ao encontro dos estudos atuais sobre consumo, entendendo que: Teorias do consumo que supõem um consumidor marionete, presa das artimanhas do publicitário, ou consumidores que competem invejosamente sem motivo sensato, ou ainda consumidores lemingues que correm para o desastre, são frívolas, e até mesmo perigosas. (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2013, p. 116).

Os estudos realizados a fim de compreender quais consumos separam as domésticas da patroa consideram as pessoas enquanto indivíduos que sabem o que querem, o que gostam e onde gostariam de estar e pertencer. Esqueçamos a ideia da irracionalidade do consumidor. Esqueçamos que as mercadorias são boas para comer, vestir e abrigar; esqueçamos sua utilidade e tentemos em seu lugar a ideia de que as mercadorias são boas para pensar: tratemo-las como um meio não verbal para a faculdade humana de criar. (DOUGLAS; ISHERWOOD 2013, p. 110).

Ao contrário de repetir o que se acreditava desde os estudos de Frankfurt, o consumidor como um ser irracional, prefiro entendê-lo como um sujeito pensante, criativo e subversivo. O termo subversivo deve ser entendido no sentido de poder fazer o que quiser daquilo que lhe é apresentado. O consumo é visto como prática social. Isso não significa que se negue a existência do marketing, mas que o consumo é imposto por uma padronização social, cultural ditada por valores, aqui entendida como representações simbólicas e nada tem a ver com a alienação daquele que consome. (DOUGLAS; ISHERWOOD 2013; CERTEAU, 1998; BARBOSA; CAMPBELL, 2006; APPADURAI, 2008; CANCLINI, 2010). É interessante perceber que a comida, além de comunicar o pertencimento de classe social, também possibilita fazer uma releitura de autonomia e consciência no consumo dessas mulheres. As mulheres da pesquisa, com maior ou menor poder aquisitivo, sabem o que querem em suas cozinhas, quais alimentos preferem para colocar na mesa de refeições de suas famílias. Os consumos que separam as domésticas das patroas estão muito mais ligados culturalmente aos seus habitus, do que qualquer classificação de posses econômicas. Ela tem um monte de coisa na cozinha, mas não usa nadinha, tem máquina de pão, panela de pressão elétrica, batedeira, panela de arroz, fritadeira, um monte de coisa, mas não usa nada (risos), ela fala para eu não usar que pode quebrar e aí ela não usa também, nunca tem tempo, diz que dá trabalho para limpar. Na minha casa a gente também tem dessas coisas, minha filha adora,


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eu não muito, mas eu sei usar é claro, mas finjo que não sei por que assim ela nem pede, menos trabalho para mim, inclusive eu sei e uso mais que ela. (risos), E o pior disso é que os produtos dela são de marca ruim, os meus não, são de marca boa, os dela é tudo caro e não são bons não, vi no programa da Ana Maria Braga que tem uns que não servem. [sic] (TINA, outubro, 2014).

Entendo que pertencer a uma “classe” implica muito mais que o valor da renda familiar, existe toda uma problemática social que não se pode nem se deve esquecer sobre o habitus, e da mesma maneira sobre o poder simbólico (BOURDIEU, 2000, 2007), das classes dominantes. Bourdieu define habitus como o “princípio gerador duravelmente armado de improvisações regradas.” (IBIDEM, 2000, p. 65), que guia o comportamento em dada situação. Por sua incorporação profunda e permanente no modo de ser dos sujeitos, o habitus funciona como um sentido aparentemente inato que, na verdade, é aprendido com a família, a escola e o grupo social em que o indivíduo está inserido, muitas vezes de forma indireta. (IBIDEM, 2007). Seguindo esse raciocínio, o conhecimento culinário apesar de parecer inato não o é. É necessário conquistar essa habilidade, por meio de formação do habitus culinário, ou seja, um prévio conhecimento que garante que o cozinheiro iniciante seja capaz, não apenas de ler uma receita, mas de decodificá-la. O problema da padronização das escolhas e do consumo não só de bens e serviços diretos no âmbito cultural está relacionado à falta de percepção e conscientização das influências externas para com uma determinada sociedade. O consumo está relacionado com as práticas e apropriações culturais dos diversos sujeitos envolvidos nesse sistema. Por meio dele os sujeitos transmitem mensagens aos grupos sócioculturais dos quais fazem parte. As diferentes classes estão envolvidas em uma luta propriamente simbólica para impor a definição do mundo social conforme seus interesses. (BOURDIEU, 2000, p.14). O risco da exclusão inibiria uma interpretação puramente racional desse universo do consumo, uma vez que os consumidores teriam uma necessidade mais direta de se relacionar com outros consumidores e, por conseguinte, de consumirem bens. Diante disso, algumas pesquisas propõem que os bens sejam tomados como “fios de um véu que disfarça as relações sociais que cobre.” (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2013, p. 275). Nessa abordagem, os bens marcam apenas os padrões. Mas o que interessa, fundamentalmente, é o “fluxo de trocas” para o qual nos dirigem.


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Do mesmo modo como Bourdieu pensou como as coisas estavam na base da socialização, quero enfatizar que no plano teórico não interessa tanto como as pessoas usam as coisas, mas como as coisas constituem as pessoas. (MILLER, 2009, p. 26).

Os estudos de Miller (2009) são significativos nesta linha de pensamento, porque dentro da cultura material que propõe, a abordagem é diferenciada quando se fala de consumo, na qual a produção de bens não é apenas uma expressão do capitalismo e a compra não é o fim da reflexão sobre os bens de consumo, alguns bens têm significado próprio para cada grupo e/ou pessoa. Isso foi possível observar nas falas das entrevistadas sobre as compras, parece que para cada uma delas os significados de ter, possuir e comprar, são diferentes. Miller (2007) aborda outros bens como a casa e demonstra que, além de moradia, ela possui valor agregado através da arquitetura e do design, e, por isso, é tratada como bem de consumo, e não só como local de moradia. Quando abordamos o espaço cozinha e tudo o que ele envolve, penso como Miller, que existem valores agregados nesse lugar. “O que esse estudo demonstra é como uma abordagem genuína da cultura material ao consumo começa e termina com uma compreensão intensificada e não reduzida da humanidade, ao reconhecer também a sua materialidade intrínseca.” (MILLER, 2007, p.53). O consumo como cultura material demonstra que os bens possuem bagagem simbólica e devem ser trabalhados como forma de compreensão social. Significativo é desvendar, através das falas analisadas, as ações sociais dos grupos ligadas ao alimento, ao comer, e seus espaços. As escolhas das participantes da pesquisa não estão ligadas a inveja de possuir bens iguais às que têm maior poder aquisitivo. Observei, inclusive, que algumas domésticas acreditam que suas patroas são ineptas ao escolherem seus bens. É pertinente, então, “continuar pesquisando comportamentos relacionados ao consumo na busca de respostas sem um princípio moralista na explicação do consumo, no qual percebam o indivíduo como pensante e apto para escolher com objetivos claros do que se está consumindo.” (ABONIZIO; JIMENEZ-JIMENEZ, 2014, p. 12). O que percebi foram separações no consumo entendidas como aquisição de alguns alimentos pelas famílias mais ricas, no caso de frutos do mar, ou de utensílios considerados mais chiques e caros. A separação está no poder de consumo, ou seja, naquilo que se referenciam pelo valor, os mais caros e os mais baratos, mas nem sempre isso é assim, como no caso, por exemplo, em que a cozinha da doméstica é analisada pela patroa como melhor e mais completa ou os eletrodomésticos também. Nesse caso, os "pobres" determinam padrões sociais, diferenciando-se dos outros grupos sociais, assumindo uma identidade própria que os caracteriza como grupo.


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Talvez isso aconteça porque, como frisou Zaluar (1985) em suas pesquisas, existe o fato de ser exigido socialmente entre os mais pobres a posição de assumir uma identidade como sua e não ser bem visto seguindo os padrões relativos aos outros grupos sociais. "A igualdade social que se manifesta, não na ideia abstrata de que somos todos iguais perante a lei, mas no jeito de falar, de vestir, no respeito que se mostra pelos outros, é, portanto, um valor social." (ZALUAR, 1985, p.124). Toda essa discussão expressa que o "universo alimentar" de cada grupo e subgrupos sociais é carregado de simbolismos, traz consigo ideias, conceitos, compreensões, formulações, classificações que enriquecem a noção básica de alimentação, para muito além de uma simples forma que parecem naturais e inatas, no ato de comer. (MAGALHÃES, 1995). Mediante o exposto, entendo o consumo do ponto de vista cultural e desvinculado da aquisição de mercadorias, apenas através do dinheiro. Como consequência dos estudos aqui apresentados, o que percebo é a autonomia e busca de representações distintas entre os grupos estudados por meio de suas escolhas. Pois, como já foi dito, o mais importante é que, mais do que uma separação de classe através do consumo, aconteça uma separação simbólica de pertencimento e de autonomia quanto à escolha e gostos que são feitas nos consumos. Se existe uma separação nos consumos dessas mulheres de classes sociais diferentes e representações diferentes entre si, a meu ver seria a construção do gosto entre os dois grupos que são completamente distintos. Contudo, em várias situações ocorre uma confusão entre os gostos e, portanto, parece que ser mais peculiar que entender os grupos sociais e seus gostos é perceber que dentro desses dois grupos existem subgrupos ligados não só a classe social e gostos, mas a hobbies, trabalho, prazeres, afetos, facilidades. O que percebi nesta pesquisa é uma constante mudança, já citada por Norbert Elias (1979) quando discute a concepção do gosto, de habitus e as escolhas feitas por indivíduos e seus grupos sociais, que mudam, evoluem e se transformam. Desse modo, não existem dois grupos: patroas e empregadas. O que se tem são subgrupos dentro dos grupos e principalmente migrações de indivíduos, entre os coletivos, quando se refere a escolhas, elas mudam, migram. Fui viajar com minha patroa e lá na casa dela da praia é a coisa mais linda, eu copiei umas coisas e coloquei na minha, não gostava muito de azul, mas lá na praia é tudo amarelo e azul e eu apaixonei, então pintei as janelas da minha cozinha de azul e amarelo, ficaram a coisa mais linda do mundo, também pintei meu banco de madeira. Peguei e tirei foto de uns enfeites de lá e comprei numa loja de lá mesmo e trouxe, coloquei na minha casa, ficou linda. [sic] (DINA, 2014).


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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Eliminar o gênio é a preocupação manifesta. Poderíamos nem levar em consideração, se fosse apenas o gênio que estivesse em questão; mas não se trata apenas do gênio, é a nossa originalidade individual, a genialidade singular que todos possuímos, cuja eficácia, cuja existência são colocadas em questão; porque todos nós, de qualquer lugar, dos mais obscuros aos mais famosos, inventamos, aperfeiçoamos, variamos, ao mesmo tempo que imitamos, e não há sequer um de nós que não deixe uma marca profunda ou imperceptível, em sua língua, em sua religião, em sua ciência ou sua arte. (TARDE, 1898, p. 35 apud LAZZARATO, 2006, p.150).

Reflexões, discussões, análises e considerações estão presentes em todo o texto. A cada ponderação, procurei levantar alguns questionamentos sobre o que estava sendo observado. Por esse motivo, gostaria de aproveitar o encerramento do trabalho para apresentar meu aprendizado durante essa pesquisa, envolvendo o processo de estudos, leituras, dúvidas, construções de saberes e não saberes, práticas de vida que ele proporcionou. Estudar as domésticas foi um momento especial em minha vida, aprendi muito como pesquisadora, como mulher e sujeito crítico-criativo-participativo. Entendi que desvendar relações entre pessoas vai além do que aparenta ser, transcende o que se vê. É preciso estar muito atenta e disposta a ser surpreendida por um mundo que, na maioria das vezes nada tem a ver com o meu, mas quando se está atenta a observar o que acontece em sua volta, esse universo, a princípio estranho, pode estar muito mais próximo do que se imagina. As relações entre empregadas e patroas analisadas através do olhar da doméstica apresentaram diferenças entre si. Embora tenham se aproximado em algumas situações, em outras trocaram hostilidades, por conta da relação de subalternidade existente entre as protagonistas do estudo.

Tanto estas como aquelas, por diversas vezes, demonstraram

adversidade na preparação da alimentação, nas construções de realidades, valores e saberes. Porém, eu os entendo como conflitos que se identificaram muito mais com fronteiras simbólicas de concepção de mundo do que qualquer outra coisa. Tréguas e afetos que apareceram em momentos de trocas de saberes na cozinha junto ao ato de alimentar podem ser respostas às tensões cotidianas entre essas mulheres de mundos tão diferentes, mas, também, podem não ser. O importante foi ter desvendado que, mesmo numa relação hierárquica, existem momentos de conciliações, trocas e afeto. Sendo assim, aprendi que não se pode perceber um convívio sem evoluções, mudanças, contradições. São vínculos sociais que vivenciam essas mutações todos os dias e a todo momento.


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Por esse motivo, posso dizer que meu trabalho de campo transformou minha vida como pesquisadora do contemporâneo, mostrando que os objetos de estudo não estão prontos, redondos e lineares. Ao contrário, se constroem, são sinuosos, labirínticos e é preciso estar atenta para poder desvendá-los em meio a tanta dissipação. Ouvir pessoas, observar e respeitar suas histórias de vida, saberes e posicionamentos, também é um aprendizado para a vida toda. Compreendi que muita gente quer contar sua história, dizer o que pensa, porém poucos querem ouvir o que o outro tem a dizer. E, saber desenrolar contatos que querem ser ouvidos, mas que também querem ouvir, em uma relação de respeito, que está para ser construída, como se constrói uma relação afetiva, depende de pequenos atos que formam um todo. Foi assim que se deu meu relacionamento com as mulheres que participaram da pesquisa, pouco a pouco, por meio de encontros, conversas, encontrando, conversando, ouvindo, criando vínculos e falando. Descobri que essas mulheres são seres humanos que lutam diariamente para serem respeitadas, criarem seus filhos e, muitas vezes, os filhos de seus patrões. Além disso, vi como também se esforçam para colocar comida na mesa e serem felizes ao lado de suas famílias. Estou orgulhosa de ter falado pela primeira vez sobre a cidade de Chapada dos Guimarães, elegendo para isso trabalhadoras negras, filhas de quilombolas, que construíram esse lugar e nunca tiveram oportunidade de dizer o que pensam sobre elas mesmas, o que fazem, o que gostam, o que sentem, os seus anseios, enfim. As domésticas são as protagonistas de meus estudos, e por este motivo quero dizer que, depois desse trabalho de campo, certifico que elas são as atrizes principais da relação patroa e empregada analisada nesse contexto. Ao contrário do que se ouve da maioria, e do que eu imaginava: a doméstica é submissa à patroa, obedece e não tem representatividade nenhuma na relação, o que vi foi algo diferente, vi mulheres resistindo a uma relação de subalternidade, se colocando em posição de cidadãs e exigindo seus direitos. Sendo impossível manter uma distância importante do pesquisado na hora de analisar as falas e comportamentos, não só optei por escrever na primeira pessoa e assumir meu envolvimento com o objeto pesquisado, mas também fui apoiada por minha orientadora, pelo programa de pós-graduação, justamente por assumir essa influência. Escrever na primeira pessoa sobre outras pessoas, assumindo nossa relação, foi um exercício auto-reflexivo do fazer pesquisa do contemporâneo, de forma que pensar o outro como espelho para a compreensão da sociedade esteve sempre presente na construção das análises aqui apresentadas.


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Com a narrativa no EU, participo dos acontecimentos, sou uma personagem-narradora, em alguns momentos narradora e, muitas vezes, a personagem principal, que penetra e desvenda com maior riqueza o mundo do pesquisado, das protagonistas da pesquisa. Participando dos acontecimentos e assumindo essa participação, acredito ser de muita importância essa visão subjetiva, visto que contei o que vi, ouvi, fiz parte, presenciei, observei e senti. Os fatos e as falas passam pelo filtro de minhas emoções e percepções vividas junto aos pesquisados. Para mim, tudo isso foi uma revolução na minha formação e enquanto pesquisadora do cotidiano das pessoas. Outro aprendizado frutífero nessa caminhada de pesquisa foi poder desenvolver uma proposta interdisciplinar em estudos de cultura contemporânea que tanto tem me libertado do “monoteísmo” de um ponto de vista unilateral, posto que pude “passear” entre diversas áreas: história, antropologia, sociologia, literatura, filosofia, arquitetura e psicologia. Conhecer pesquisas que apresentaram discussões sobre o mesmo tema, porém com enfoques distintos e enriquecedores, reafirmar algumas teses ou apenas dialogar com os autores, me proporcionou a chance de entender esses estudos por um viés integrador, dialético e holístico na construção dessa dissertação. É interessante poder beber na fonte de autores e disciplinas pesquisados, que apresentam teorias distintas sobre o mesmo conceito, sem que uma anule a outra, dando vazão à percepção da não necessidade de escolher apenas uma área ou, tão somente uma ideia sobre um conceito que devo utilizar. Muito mais honesto, a meu ver, é poder usar teorias com enfoques distintos, como em uma conversa, na qual posso acrescentar, ao invés de excluir. Foi isso o que aconteceu na prática das análises entre teorias, nesse caso, entre sociólogos, quando busquei entender as escolhas realizadas pelas domésticas e patroas, por meio da construção social do gosto. Em um primeiro momento estudei Bourdieu (1987), que apresenta, por meio do conceito habitus, uma maneira de entender que o gostar de algo, ou não, está intrinsecamente ligado aos grupos sociais que o analisado pertence. Pude entender, então, que as domésticas tinham gostos diferentes de suas patroas porque pertenciam a classes sociais distintas, e, portanto, suas escolhas tinham que ser distintas. Contudo, quando fui a campo, esse pressuposto não se confirmou. Mesmo dentro do próprio grupo das domésticas, existiam escolhas muito diversificadas que, muitas vezes, se pareciam com as de algumas patroas. Ao ler Norbert Elias (1994), em suas discussões sobre o “Processo Civilizador” foram-me apresentadas evoluções e mudanças nessas escolhas, o que me permitiu perceber que, dentro dos próprios grupos, existem outros grupos e que os próprios grupos se modificam.


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Seguindo essas discussões, pude entender que os gostos dessas mulheres estão relacionados aos grupos sociais aos quais pertencem, entendendo, porém, que eles se modificam. Constatei, inclusive, que as patroas – que a priori achava tão distantes - acabam fazendo parte de um dos grupos que as domésticas participam; mesmo sendo no trabalho, ambas estão ligadas, posto que mantêm contatos, trocas e resistências. Portanto, de alguma maneira, fazer parte do dia a dia de suas patroas acaba estimulando trocas de escolhas entre as empregadas domésticas. Não menos importante, quero anunciar que existe uma construção de espaço/saber de contrapoder, como forma de resistência das domésticas na relação hierarquizada com suas patroas. A todo momento, notei estratégias de resistências dessas trabalhadoras, por exemplo, quando a patroa exige muitos afazeres e responsabilidades das empregadas, dizendo como e quando tal tarefa deve ser realizada. Mas, apesar disso, é visível que a doméstica organiza essas incumbências à sua maneira, com autonomia para torná-las mais fáceis e simples, melhorando suas condições de trabalho, ainda que essas estratégias sejam, eventualmente, criticadas pelas patroas, que associam esse autogoverno com indisciplina e ignorância. Essas críticas são recebidas com desdém pelas funcionárias. Afinal, elas assumem um trabalho, responsabilidade que é de outra mulher, da patroa, que deveria, a princípio, se dedicar à sua casa, mesmo com a ajuda de empregados, pois, na concepção das domésticas, mulher que não faz nada em casa é madame. (DINA, caderno de campo, abril, 2014). Sendo assim, essa relação está em constante reconstrução. A empregada busca estratégias de sobreviver ao peso e ao não reconhecimento do trabalho doméstico, que ninguém quer fazer. A patroa, por sua vez, busca métodos para lidar com essas trabalhadoras, como vimos nas falas, por meio de manuais e/ou blogs, uma relação mais tranquila possível e, assim, sobreviver às cobranças e exigências sociais de ser uma boa dona de casa. A responsabilidade da casa, porém, e tudo que está ligado a ela continua com as mulheres, sejam elas patroas ou domésticas, visto que a sociedade cobra, como sinal de uma família próspera e feliz, uma casa organizada. Alguns comentários que encontrei em diversas falas, cooperam para tal percepção: “Prendadas; Sabe lavar uma louça como ninguém; É uma ótima faxineira; Deixa a roupa como nova; Muito limpinha; A casa dela é um brinco; Pronta para casar; Cuida bem do marido; Mão de fadas; Cozinha muito bem; Ótima mãe; Cuida bem de seus filhos; Ótima esposa, o marido sempre esta impecável”. Expressões que nos acompanham até os dias atuais, responsabilizando a mulher pelo cuidado com o lar e pela família bem sucedida e feliz.


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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