As Divinas Nádegas de Joana Ludovina

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FERNANDO MASCARENHAS

As divinas

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Título As divinas nádegas de Joana Ludovina Autor Fernando Mascarenhas Editora O cão que lê E-mail editora@ocaoquele.com Ano de Edição 2013 Capa Desenho de Shiele Fotografia do Autor Antónia Mascarenhas Coordenação Editorial O cão que lê Revisão O Cão que lê • Helena Bernardo Design Gráfico e Paginação Maria Inês Faria ISBN 978-989-8645-04-3 Depósito Legal 360367/13


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Para o “núcleo duro” dos meus afectos.

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À Angelita (… Vidal Salgado, Dra.) Ao Luís (… Manuel Alvim Serra, Professor Catedrático Jubilado) agradeço o apoio amigo.



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evantou-se, pesado. A cabeça aturdida. Ficou ainda uns momentos sentado na borda da cama, a dar aos ossos e às ideias tempo de adaptação. Quanta sabedoria no banquinho que os alentejanos usam ao fundo da cama. Estão certos. É preciso descansar dos trabalhos da noite. O sono não é só repouso. Quantas vezes a noite é tormentosa e cansativa. Pôs-se em pé e experimentou o joelho. O esquerdo. Hum. Nada mau. Um torsão na caça e aquela dorzita fizeram-no temer pelo resto da época de perdizes. Foi ao Hospital, mas que só para dali a um mês ou mais. Aconselharam-lhe um especialista numa clínica. Foi lá. Uma clinicazinha com sala de espera e recepção para uns tantos consultórios, metida no rés-do-chão de um prédiozito pífio ao fundo de uma viela estreita. O homem ouviu a queixa e nem se mexeu da cadeira. Fez uns rabiscos num papel e despachou-o, “faça este exame”. Para seu espanto, à saída cobraram-lhe oitenta euros e disseram-lhe que o exame tinha que ser feito numa outra clínica, que lhe indicaram, numa cidade ali perto. Alguém lhe disse depois que estava a entrar num coito de ladrões, que não tardava estavam a operá-lo numa outra clínica, noutro lado. Que fosse à urgência. Foi. Perguntou ao médico se eram precisos exames. E ele respondeu-lhe que o primeiro exame tinha que ser ele a fazer-lho, só depois saberia se eram precisos mais. Apalpou-lhe a perna, dobrou-lha, voltou-lha a dobrar, voltou a apalpar, carregou com o dedo, virou de um lado, virou de outro, dói aqui? E assim? Nada. Uma pomadita e isso passa. Posso ir à caça? Vá, e a caça lhe dirá se pode ou não. Se se sentir bem, continua. Se lhe doer, pare e volte cá. Mais lhe doeram os oitenta euros que lhe roubou o outro larápio. Avançou para a casa de banho. A mijadela, quando a da noite é já sobre a madrugada, custa um bocado a decidir-se. Lavou as mãos e passou-as, molhadas, pelo cabelo. Vestiu o roupão. Ladrões de estrada, estes médicos organizados em gangs, com clínicas, laboratórios e companhia. Coiros. A gente já se sente apoucada nas mãos deles. Ainda por cima roubado? É bem que o Ministro lhes acabe com as negociatas. E que estrebuchem à vontade, que se fodam. Coitados dos que são sérios, que levam com a mesma fama e às vezes são uns Jós de generosidade e dedicação.

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Agarrou na caixa das cigarrilhas, no isqueiro e dirigiu-se para o varandim. O ar frio e húmido provocou-lhe um estremeção. Instintivamente, agitou os ombros e fez meia dúzia de movimentos bruscos com os braços. Acendeu a cigarrilha e depois da primeira baforada, ficou a olhar a serra. Na base, sobre o rio e cobrindo os prados quase até às casas, uma névoa densa. As burras, como lhe chamam. As burras a carregar água do rio. Dia cinzento, com o céu encoberto por nuvens altas. E a serra negra, indistinta, parecendo mais próxima da vila. Avançando sobre ela, como uma ameaça. Aquela primeira cigarrilha, absorvida com o ar frio, era a melhor do dia. O quarto, que já foi do avô, e do pai, e antes deles dos que os antecederam, é no primeiro andar, ao centro da casa. O varandim, coberto por um telhado de três águas, forrado a madeira, no prolongamento do telhado da casa, cobre o pátio de entrada e é suportado por pilares de ferro fundido e grades alosangadas de ferro forjado, tudo pintado de preto, com vidros de várias cores que deixam ver no interior os vultos das begónias. Funciona, sobre o pequeno jardim da entrada, as escadas, o portão de ferro e a rua, como a ponte de comando de um navio que ali tivesse fundeado de proa para o vale, que se estende até ao rio. A rua, do outro lado, lembra uma boca que perdeu três dentes, com um espaço sem casas que corresponde ao muro e ao portão de uma grande propriedade que pertence à casa, onde são as hortas e os pomares. Vem ali fumar a cigarrilha da manhã para encher os olhos de luz, como num exercício necessário de fotossíntese para compensar as horas de escuridão, para ver como está o dia, e para se certificar de que a paisagem, salvas as cambiantes próprias de cada dia ou de cada época, se mantém inalterada. Sente os músculos doridos e o espírito inquieto. Nada, porém, que o tire da rotina. Atravessou a casa na direcção da sala. Ligou o portátil, aberto sobre a mesa, e o plasma, encostado à parede, sobre uma mesa baixa. Este foi o primeiro a responder e começou a debitar pormenores da visita da Chanceler alemã, Angela Merkel, a Portugal. Os pormenores idiotas do costume. Vai aqui, vai ali, almoça acolá. Que já andam a anunciar há dois dias e repetirão hoje, de meia em meia hora. Mas o que virá esta gaja fazer? Parece a visita de um Imperador a um recanto longínquo do Império. Já sabemos que passa aqui seis horas. Seis das suas preciosas horas, seis. Não mais. Espera-se que elogie o Governo. E o Governo baixará respeitosamente a cabeça para receber o afago. Sentem-se os cães no quintal. Andam à volta da Luciana, que já chegou, deixou o jornal diário, a mesa posta

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para o pequeno-almoço e anda agora a varrer as folhas das árvores. A Internet é prática e permite o acesso a muita informação. Só que, com facebook, twitter e mais não sei quê, e tudo o resto, se a gente se não põe a pau, é um sorvedouro de tempo. E ele não é pessoa de passatempos. Abomina a expressão “para matar o tempo”. Parece-lhe estúpida e absurda. Se pudesse, ressuscitava para seu uso esse tempo que os outros matam. “Adriano Moreira diz que perguntem ao Primeiro-ministro o que é que quer dizer a palavra refundação.” Hãn! Tem razão o velho senador. Fino como um coral. Andam montes de idiotas atrás do alto significado da expressão. Parecem o cão atrás do rabo. Entretanto as coisas importantes de ontem já não são assunto hoje. “A antiga Líder do PSD e ex-ministra das Finanças, Manuela Ferreira Leite, disse hoje em Coimbra que a resolução de problemas complexos ou a afronta a corporações, não é muito possível, na prática, de ser feita em democracia.” Pois. Em ditadura era muito mais fácil. Hãn, esta anda morta por que chegue o tal intervalo de seis meses à democracia. Depois logo se vê, se não chegarem seis meses, prolonga-se por seis anos. Ou sessenta. E tem razão. O que o país precisa é de ordem. E mão firme. Arrocho. Já não digo um Salazar, mas dois. Isso é que era. Que acabasse com esta bandalheira, corresse com essa tralha de carreiristas da política, incompetentes e desonestos. Mas qual quê? Está tudo minado e aperreado pelos grandes interesses. Clientelas partidárias, banqueiros, grandes escritórios de advogados, magistraturas, Maçonaria, Opus Dei, e tudo o resto… “Ferreira do Amaral disse hoje, que Portugal vai sair da crise mais pobre, mais velho e mais violento.” Esta Cassandra inquieta-me. Se o gajo tem razão, é uma gaita. Nem quero pensar na hipótese de sairmos do Euro. Uma desvalorização brutal e imediata da moeda, seguida de mais desvalorização deslizante e contínua. Lá se ia a reforma para o maneta. Rapidamente, o meu poder de compra ia de pantanas para valores ridículos. O pé-de-meia, torrado na voragem. O valor dos terrenos para construção, reduzido a pó. E não era só isso, era o empobrecimento geral. O país deixava de poder importar muitas coisas essenciais, para não falar das outras. É certo o que ele diz, que isso iria tornar muito mais competitivas as nossas exportações. E que o Governo reduzia duma penada os ordenados para metade, sem ter que o anunciar e sem ter que aturar reclamações, como aconteceu nas crises anteriores em que esteve cá o FMI. Punha a rotativa a todo o vapor e pagava aos funcionários com papel pintado. O pior seria a dívida, a não ser que fizessem como a

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desmiolada que está na Argentina, que vai levar um lindo enterro. Esperemos que isso não aconteça, mas estamos sujeitos, essa é que é essa. “Seguro diz que em nenhuma circunstância…” ó pá, este tipo não vale um chavo. Ontem, no “Eixo do Mal”, a Clara Ferreira Alves é que o definiu bem: “essa alforreca.” O gajo parece uma coisa invertebrada que só debita vulgaridades. É ele e o Cavaco. Ou estão calados ou, quando abrem a boca, não acertam uma. O Cavaco devia ter vergonha das manigâncias em que dizem que andou metido, ele e mais os compinchas do BPN. É uma vergonha, uma golpada de milhares de milhões, que o burro de carga do povo aguenta e ninguém explica. Isto é mesmo o reino da impunidade. O povo, em vez de andar a fazer manifestações por lhe tirarem os subsídios, devia sair à rua a reclamar a reposição do produto destes roubos, que são a razão de lhe tirarem os subsídios. Deviam exigir que se vá buscar o dinheiro onde ele está, e não ao seu bolso. O Paulo Morais bem lhas canta, nas televisões e nos jornais, mas toda esta tropa fandanga assobia para o ar, como se não fosse nada com eles. Estes tipos deviam ir parar à cadeia, mas nada. Pois ainda lhe hão-de pagar indemnizações. “Merkel pede à Europa austeridade e esforços por mais cinco anos.” Hãn, esta gaja é perigosa. Quer dominar a Europa sem sair de casa. Não precisa de divisões de panzers. Em cinco anos, mata os gregos à fome. Depois é só tomar conta daquilo. Nem precisa de lhes comprar as ilhas. Vão-lhe parar à mão sem habitantes. E a nós, pelo caminho que isto leva, faz-nos o mesmo. E aos espanhóis e irlandeses. Se não chegarem cinco anos, prorroga o prazo e apanha também italianos e franceses. Nem precisa de passar as Ardenas. Este pompom avelhado e às cores, vai-nos enrabar a todos. “Estudar é estudar livros e autores, num ambiente de estudo, sob a orientação de professores. A Universidade Lusófona fez, como dizem os americanos, cocó no local onde come. É um incitamento a não estudar, a ir para a vida e vir buscar o canudo quando der jeito. O não-Dr. Relvas, entre outros, foi beneficiário — e vítima — disso. Coitado; não aprendeu.” É o Miguel Esteves Cardoso. Porque continua a ser incomodativo, o caso Relvas. Estes tipos são uns idiotas sem vergonha. Umas cavalgaduras. Então este, se tivesse um pingo de vergonha, depois de tudo o que está a acontecer, não tinha já desaparecido do mapa? Sujeitar-se a ser motivo da chacota geral! Já devia estar em Cabo Verde, junto com o amigo do Cavaco. Ou então, que aproveite os contactos no Brasil. Chega ao Brasil e é catedrático. A primeira a entrar é a Pinta. Entrou pela cozinha, ele sentiu-lhe o trote

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ligeiro no encerado da sala e agora tem-na encostada às pernas, a pedir uma carícia. Esfrega-lhe uma mão na cabeça, enquanto com a outra pega no jornal, de que olha apenas a primeira página. Raramente passa disso. É apenas por rotina que a Luciana passa pelo quiosque a buscar o jornal. Até que ele se decida a dizer, não tragas mais. Os jornais diários são cada vez mais fracos e menos úteis. Sente a Luciana a entrar na cozinha e o Jau a entrar na sala, sorrateiro, e a encostar-se-lhe também às pernas.

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Luciana era filha da Cândida, que foi criada da casa toda a vida. A Cândida já vinha de garota, do tempo do avô, veio para pegar ao colo na mãe dele, e depois pegou ao colo nele e ainda no filho, o Carlos Alberto. Já teve a Luciana muito tarde, do casamento com um tosquiador que era meio aldeagante, só trabalhava no tempo das tosquias e depois encostava-se ali em casa, a fumar cigarros fortes e a beber copinhos de aguardente. Um ano, no fim das tosquias, não apareceu. A Cândida ainda soube que ele estava a viver com outra mulher, para os lados de Celorico. Foi, pelo menos, o que lhe vieram dizer. Mas ela nunca confirmou. Nunca mais apareceu. Nesse tempo a Cândida era a cozinheira e a chefe das criadas, porque havia sempre mais duas ou três. A Luciana criou-se por ali, fez a quarta classe e entrou ao serviço. Até que se casou com um serralheiro que trabalhava numa serralharia ali perto. O rapaz era desempenado, e ela sentia o coração bater quando se ouvia o tim tim tim cadenciado do malhar no ferro. Casaram, já com o destino da emigração traçado. Já não eram anos de pioneirismo na emigração. Os caminhos já eram conhecidos, estavam aplainados e limpos de escolhos. O rapaz tinha lá os irmãos, e lá foram para a Alemanha, de avião. Tiveram uma filha, mas os anos de felicidade foram curtos. Ele tinha-se especializado como soldador e trabalhava numa empresa que montava grandes estruturas. Um dia caiu de uma abaixo, foi em coma para o hospital e morreu. Luciana ficou, amparada pelos cunhados. Trabalhou duramente para criar e educar a filha. Recebeu do seguro uma indemnização avultada, com que fez uma casa ali em Vilancete. Tinha muitas saudades do vale e das cores da serra. Conseguiu uma reforminha que, junta com a pensão do homem,

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lhe asseguravam o sustento, e veio-se embora. A filha por lá ficou, casada com um alemão. Vive bem. No Verão aparece-lhe aí oito dias, para lhe mostrar os netos, e no resto das férias vai para a casa que comprou no Algarve. Luciana tinha uma paixão por aquela casa. Quando chegou viu-a fechada, abandonada, não descansou enquanto o senhor Engenheiro não apareceu em Vilancete. Ainda vinha com a senhora, apesar de ela já estar doente. Foi ela que a atendeu, quando foi lá bater à porta. Descansa, Luciana, que o senhor Engenheiro entrega-te a casa. E ele depois: E então, quanto queres ganhar para tomar conta da casa? E ela: Nada. Está tudo ao abandono e já andam por aí alguns a abusar, a colher e a cortar o que não devem. O senhor Engenheiro deixe-me tomar conta de tudo, e eu é que lhe hei-de entregar dinheiro. A Luciana não era mulher para estar parada no limite das paredes da casa dela, nem na soalheira com as vizinhas. Nasceu e cresceu ali, conhecia a casa e as propriedades como ninguém. Logo que eles se foram, deu-lhe volta completa. Limpou-a e lavou-a de alto a baixo. Encerou as salas e os quartos. Pintou a cozinha, que estava escurecida. Fez um desbaste nas árvores do quintal, arranjou os canteiros, e só depois passou às propriedades. Andava sempre com uma fouce de cabo comprido. Ao primeiro que apanhou a roubar fruta em cima de uma árvore, enganchou-lhe a lâmina da fouce no cinto, acima do rabo, e botou-o da árvore abaixo. Se te volto cá a apanhar, fodo-te aqui o lombo com o cabo da fouce. Ficas avisado. Ficou ele e os outros. Quando o senhor Engenheiro e a senhora voltaram a Vilancete, nem queriam acreditar. Ficaram encantados. Era tempo de cerejas. A senhora quis ir com ela às cerejas. Foi, feliz, comeu cerejas, apanhou flores, encheu, como ela dizia, os olhos de beleza e de luz. Regressou a casa com outra energia. Parecia que lhe tinha passado todo o mal. Mas foi sol de pouca dura. No dia seguinte foram embora, porque ela piorou. Foi a última vez. Morreu passado pouco tempo. A Luciana fartou-se de chorar. Teve muita pena dela, porque ela era muito boa. E muito bonita. Foi uma pena. O senhor Engenheiro esteve anos sem aparecer. Talvez uns três ou mais. Até que um dia, apareceu uma carrinha carregada de livros, malas e caixas, com as coisas mais variadas e com garrafas de vinho. Dali a dois dias apareceu ele. Luciana, é para ficar. Reformei-me e estou cheio de Lisboa. Trazia com ele uma cadela e um cão perdigueiro. Vou assentar arraiais aqui na sala. Tira-me daqui os cacos todos. E que lhes faço? O que quiseres. Mas sempre ouvi dizer que isto é muito valioso, senhor Engenheiro. Que é Companhia

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das Índias ou coisa assim… A mim não mos ponhas. São bons para dar de comer aos cães. Bonito! Ia agora dar de comer aos cães em louça fina que já vem do tempo do seu avozinho? A casa é muito grande, não falta onde meteres essa tralha toda. Temos lenha para o Inverno? Temos o cabanal cheio, até ao Verão não é preciso pensar em lenha. E o aquecimento, funciona? Ai, isso não sei. Há que tempos não é ligado. É melhor chamar cá alguém para ver como está. Está bem, eu trato disso. E então, o senhor Engenheiro quer comer em casa ou vai comer fora? Combinaram. Ela fazia-lhe as compras, vinha de manhã, arrumava a casa, fazia-lhe o pequeno-almoço e o almoço, e deixava-lhe alguma coisa para o jantar. E assim ficou. Depois do pequeno-almoço, saía até ao café para tomar um café, para se encontrar e dar um pouco à língua com um grande amigo de infância, de adolescência, e companheiro na guerra em África. Já quase não conhecia mais ninguém em Vilancete. A não ser alguns velhos comerciantes, o barbeiro que lhe cortava o cabelo e pouco mais. Apesar de por vezes o cumprimentarem na rua, num “bom dia senhor Engenheiro”, a que ele procurava corresponder com simpatia, mesmo não sabendo de quem se tratava. Por vezes ainda acontecia alguma velhota cumprimentá-lo com um “bom dia menino”, a que correspondia com muita afabilidade, quase de lágrimas nos olhos. Chegava ao café, ou melhor, à pastelaria, e perguntava ao amigo, mal se sentava: Alex, novidades? A que ele respondia invariavelmente: Quartel em Abrantes, tudo como dantes, meu caro. Para logo de seguida, quando havia novidades, as adiantar: Ah! Hoje tenho uma novidade. Lembras-te de um gajo, que andou connosco no colégio, o Tibério? Era um gajo de cabelo meio avermelhado? Isso, esse mesmo. Morreu. Porra para a novidade, Alex. Meu santo, o que queres que te faça? É o que há. Nesta puta desta terra não se passa nada, a não ser irmos morrendo uns atrás dos outros. Tu não vês que só há velhos? Não digas isso. E seguia com o olhar atento, o movimento da dona da pastelaria por entre as mesas. O amigo sorria por baixo de capa. Lá estás tu, embeiçado pelo cu da D. Joana. Da D. Joana Ludovina, Alex. Joana Ludovina. É outra coisa. Pois será, mas o cu é o mesmo. As nádegas da senhora encantavam-no. Quer andasse de jeans, quer andasse de vestido ou com umas meias calças precariamente cobertas por um saiote muito curto, eram uma tentação. Hoje traz um vestido fino, tipo seda, curto, que se lhe cola ao corpo e dá, do conjunto das ancas, quando se debruça de perna esticada para trás sobre alguma mesa, uma sugestão de puro

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deleite. Alexandre, é um monumento, ora diz lá que não. Oh! Digo agora que não? Estás maluco. Concordo, mas o que me parece é que tu não vens cá para estar um bocado comigo e dar duas de treta, só vens cá para ver o cu da D. Joana Ludovina. Tu não digas uma coisa dessas, pá. O cu, não! As nádegas da D. Joana Ludovina. As nádegas da D. Joana Ludovina são um acessório circunstancial. Pois serão, mas tens razão que são um acessório de primeira. Mas Alex, tem paciência, eu não vinha cá se tu cá não estivesses. Eu venho tomar um café contigo, quer ela esteja, quer não. Mas quando acontece estar, compreendes… Compreendo. O Alexandre Manuel é militar reformado. Fez a Academia e seguiu a carreira até Coronel, com campanhas nas três frentes da Guerra do Ultramar. Numa delas encontraram-se, por acaso, o José Bernardo a fazer a “comissão” como Miliciano. Apesar de terem guerras diferentes, José Bernardo era da Arma de Engenharia, viveram muitas histórias em comum mas não falam delas. Ambos porque têm más recordações da guerra. Além de que, Zé Bernardo foi contrariado. E esteve lá contrariado, do primeiro ao último dia. O Alexandre Manuel, porque, apesar de profissional, tem na consciência muita coisa que o incomoda. É ferida em que preferem não mexer, afora um ou outro dichote esporádico, sobre curtos períodos loucos de deboche, durante estadias de descanso nos centros de “recuperação” mais próximos. Alexandre Manuel, que tem mesa sempre certa, passa ali a manhã a ler o jornal e a fazer palavras cruzadas e sudokus, que apenas suspende enquanto está a dar novidades ao amigo. Quando a D. Joana Ludovina não aparece, José Bernardo pergunta ao amigo: Alex, as nádegas? E ele responde-lhe: Hoje não estão cá. E é uma garotita que lhe serve o café. No princípio, perguntou-lhe: Quem come este monumento? Aquele chapéu de pasteleiro que está lá dentro. Por um buraco de passar pratos, atrás do balcão, via-se um chapéu de pasteleiro deambular na cozinha. Legítimo? Legítimo. Pronto, não se fala mais nisso. Até ver. Alex, nós temos uma linguagem própria desde a Escola. Hum. E do Colégio. Hum. E apurámo-la na guerra. Era a linguagem comum a todos. Senão, como nos havíamos de entender? Pois. Sabes que nunca usei essa linguagem fora de contexto. Sim. Nunca disse um palavrão em casa, nem solteiro nem casado, nunca tive um deslize diante de uma senhora ou de uma criança. E de um padre? Nem de um padre. Eu sei. Eu sei que tu foste sempre um cavalheiro. Eu já não posso dizer o mesmo. Descuidei-me algumas vezes. E algumas vezes fiquei embaraçado. Não acredito. Acredita, que é ver-

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dade. Paciência. Já passou. Mas porque me falas nisto? Porque o gajo que me está a querer meter num livro acha que eu sou excessivamente grosseiro, malcriado, para a personagem que represento, e queria que eu me moderasse. Alexandre Manuel olhou-o de lado, sem levantar a cabeça dos sudokus, e sorriu. Voltou ao sudoku. Queria que eu deixasse de dizer palavrões. Vá lá, merda, em circunstâncias excepcionais. E queria que eu reprimisse esta fixação pelas nádegas da D. Joana Ludovina. Que não é adequado. Alexandre Manuel voltou a rodar a cabeça, enquanto escrevia um cinco. Manda-o foder. Achas? Acho. O gajo afinal, ou não te conhece ou quer outro. Tu eras lá o mesmo, se renegasses agora essa parte de ti próprio? Como reages, mentalmente, quando alguma coisa te corre mal? Com um palavrão. E quando te corre bem? O mesmo, embora com uma outra entoação. Vês? Na entoação é que está o segredo. O palavrão é acessório. É a linguagem mais eloquente que há, Zé Bernardo. Manda foder o gajo. Tens razão. Eu até acho que se devia fazer um movimento de reabilitação do palavrão. Não é preciso, não te preocupes. O movimento já está em marcha. A geração dos nossos filhos, já não precisou da escola da guerra para apurar o palavrão. E a dos nossos netos, nem se fala. Às vezes estão por aqui a falar ao telemóvel, saem-se com cada um, que é de arrasar. Julgas que alguém se incomoda? Já não há senhoras incomodadas a virar a cabeça. Alexandre Manuel pôs a mão no braço do amigo e baixou um tom: Mas olha que há dias, fiquei varado. Vinha aí pela rua fora, devagar, a ver as primeiras páginas do jornal, e vinha atrás de mim uma garota dos seus dezasseis ou dezassete anos a falar ao telemóvel: “Ó pá, sabes o que é que o gajo há dias me disse? Que só o queria para foder. Gargalhadas. O que lhe respondi? Claro que só, que esperavas? Mais gargalhadas.” Olhei para trás, julgas que se incomodou? Nada. Continuou a conversa no mesmo tom. Foda-se, Alex! É para que vejas. Está tudo de patas ao ar.

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Zé Bernardo, a personagem principal deste novo romance de Fernando Mascarenhas, é um bem sucedido engenheiro, agora viúvo e reformado. Desgostoso com o frágil e incerto rumo do Portugal actual, resolve encarar com desprendimento e sem projecto o ocaso da vida numa vila onde tem raízes ancestrais. Para lá vai, e remete-se à caça e ao prosaico quotidiano da ida matinal ao café para a conversa com Alex, o único amigo dos tempos de juventude que ali lhe resta, e com quem partilhou uma campanha em África. No cenário colorido da paisagem transmontana, decorre uma novela temporalmente breve mas muito forte, impressiva como um conto, cujo realismo e concisão são matizados pela dose certa de poesia. No final, o leitor recordará todas as passagens da narrativa, de tão bem engrenadas. Não é, porém, um conto intemporal, pois o autor situa-o intencionalmente nos dias de hoje, quer no contexto político, quer no linguajar “moderno” em que o palavrão se tornou “libertário”. Mas onde melhor brilha o estilo inconfundível do autor é na descrição em “galope” da angústia ou do remorso, como na admirável evocação de uma chacina em África! Curiosamente, embora mais de uma vez sejamos surpreendidos pela acção violenta, a sensação final que a novela deixa é suave: o drama dilui-se ou é filtrado pela serena eficiência da personagem principal. E onde se situa Joana Ludovina? Ela é a personagem luminosa que talvez possa resgatar Zé Bernardo do seu ocaso. Ambos são de tal modo positivos que tornam inevitável um sentimento igual no leitor. Tornam-no melhor, ao celebrarem o altruísmo e a justiça inteligente. Luís M. Alvim Serra

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