Tenda dos milagres jorge amado

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retomou as obrigações, a navalha, os búzios, o adjá, o barco das iaôs, a roda das feitas, o bori e os ebós. Utilizava-se, porém, da proibição de sair de casa para recusar quantidade de convites, fazia muito tempo que não punha os pés além dos limites do Terreiro. Quando anunciou a decisão de ir tirar cantiga e abrir a dança na festa de Tadeu, as filhas-de- santo tentaram impedi-la: e a opinião dos médicos, o coração inchado? Vou de qualquer maneira, canto e danço e nada vai acontecer. Ali estava, a outra avó, e sozinha, firmada em seu bastão, anda para o moço. Tadeu lhe oferece o braço livre e assim, entre as duas velhas, alcança a porta da oficina. Explodem os foguetes e os rojões. Portadores de convites, uns poucos privilegiados haviam comparecido à solenidade de formatura. Assistiram à colação de grau, escutaram os discursos, reagindo cada qual a sua maneira. Pedro Archanjo, de roupa nova, bem posto, bonitão, serena alegria. Lídio Corró gritara bravos quando os oradores, o professor e o engenheirando, condenaram os preconceitos e o atraso. Não tirava os olhos de Tadeu, comovidíssimo ao ver entre os jovens doutores o menino que crescera na Tenda dos Milagres e cujos estudos ele praticamente custeara. Damião de Souza, de terno branco, rábula estreante: se fosse ele a discursar levantaria o auditório! Manuel de Praxedes, metido em trai e de cerimônia, pequeno para o corpanzil de gigante, menor ainda para a exaltação a dominá-lo. De mulheres, só Zabela, numa elegância rococó, demodê, trapos de Paris, luvas, joias e perfumes, olhos de malícia. Os lentes, os ricaços, as autoridades vinham beijar-lhe a mão: — Forma-se alguém de sua família, condessa? — Aquele ali, espie. O mais bonito de todos, o rapagão. — Qual? Aquele... moreno...? — estranhavam: — É seu parente? — Parente próximo. É meu neto — e ria tão brejeira e divertida que a seu redor a festa começou antes da hora. Para espanto de muitos e escândalo de alguns, na ocasião de receber o canudo de doutor, Tadeu atravessou a sala pelo braço de Zabela (“essa coisa ruim, sem pejo, sem decoro”, rosnou dona Augusta dos Mendes Argolo de Araújo) e, na falta de mãe ou noiva, foi a velha Condessa quem lhe pôs no dedo o anel de grau, a safira de engenheiro. Pedro Archanjo, ainda sereno apesar da crescente emoção, acompanhara os passos de Tadeu e viu quando em furtivo gesto recolheu o cravo e o colocou na lapela. Observou como erguia a cabeça e sorria triunfante. Caíra casualmente a flor das mãos da moça ou de propósito a lançara na passagem do moço engenheirando? Uns cachos loiros, os olhos maiores da Bahia, a pele de opalina, de tão branca quase azul. Pedro Archanjo a examina, curioso. Levantando-se da cadeira, ela aplaude com as mãos de dedos longos e finos, nervosa, a face tensa, a boca firme. Finalmente doutor, Tadeu sorri de pé ao lado de Zabela quando o Diretor da Faculdade lhe entrega o diploma, o ambicionado canudo, e o Governador do Estado lhe aperta a mão. Seus olhos buscam a moça, ardente mirada, depois dirigem-se ao grupo da Tenda dos Milagres. Meu Deus!. o meu rapaz, tão menino ainda! Pedro Archanjo aplaude pensativo, já não é serena sua alegria, temperou-se agora de pressentimentos. De qualquer maneira, Tadeu, tens minha inteira aprovação. Haja o que houver, seja como for, custe o que custar, não recuses. Somos de boa cepa, nosso sangue misturado é bom de briga, não recuamos nunca, e não abrimos mão de nosso direito, vivemos para exercê-lo. Na tribuna, pouco depois, o paraninfo, professor Tarquínio, deseja aos recém-formados


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