Ruy d carvalho memoria de tanta guerra

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MEMÓRIA DE TANTA GUERRA Ruy Duarte de Carvalho

Memória de Tanta Guerra

(Antologia Poética)

Vega

Palavra Africana

Memória de Tanta Guerra Autor: Ruy Duarte de Carvalho Colecção: Palavra Africana Direcção: Ana Mafalda Leite C Veja, 1992


Editor: Assírio Bacelar Capa: Estúdios Veja, com base numa pintura de António Ole Fotocomposição: aicm -Artes Gráficas isbn 972-699-301-4 Depósito Legal n.o 53.483/92 Impressão e acabamento: Pedro Matos -Impressores

--------------------------Ruy de Carvalho, poeta e ficcionista angolano, nasceu em 1941. No domínio profissional exerceu as suas funções como regente agrícola no Sul do país, o que o levou a utilizar essa experiência como material temático fundamental em quase toda a sua obra. Trabalhou na Televisão de Angola como realizador de cinema, tendo publicado um livro nesse domínio, O Camarada e a Câmera (1984), e realizado vários filmes. Mais tarde formou-se em Antropologia e desenvolveu importantes trabalhos de pesquisa nessa área. Autor de diversos volumes de poesia -- Chão de Oferta, 1972, A Decisão da Idade, 1976, Exercício de Crueldade, 1978, Sinais


Misteriosos... já se vê, 1978, Ondula, Savana Branca, 1982, Lavra Paralela, 1987, Hábito da Terra, 1988 -foi um dos escritores que contribuíu decisivamente para a modernidade da poesia angolana no início da década de setenta. Recebeu em 1989 o Prémio Nacional de Literatura de Angola: ---------------------------

Nota do Autor

Esta é uma antologia que reúne textos elaborados entre 1970 e 1987 e publicados, na sua quase totalidade, entre 1972 e 1988. A organização do livro situa as partes relativamente às ediçÖes originais. Quatro poemas inéditos em livro, e cuja produção remete a Janeiro de 1974 (Notas de Leitura e Falas de Exílio), foram incluídos e como tal assinalados. As VersÖes Kwanyama e as DerivaçÖes Nyaneka (extraídas de Ondula, Savana Branca) utilizam materiais provenientes da expressão oral. No primeiro caso trabalhei sobre versÖes fixadas em inglês por E. M. Loeb (Kwanyama Ambo Folklore, University of California Press, Berkeley


and Los Angeles, 1951, pp. 315-319) e no segundo a partir de 30 provérbios de uma colecção de 166 que me foram facultados pelo Padre António Joaquim da Silva em Agosto de 1978, na Missão da Huí1a. O poema Mundo Novo ao Sul Mundo + Velho, saído de Hábito da Terra, utiliza excertos destas DerivaçÖes.

In Chão de Oferta

A gravação do rosto

Na superfície branca do deserto na atmosfera ocre das distâncias no verde breve da chuva de Novembro deixei gravado meu rosto minha mão minha vontade e meu esperma; prendi aos montes os gestos da entrega cumpri as trajectórias do encontro gravei nas águas a fúria da conquista


da devolução

do

amor.

Os calcários e os granitos desta terra foram por mim pesados. Dei-lhes afagos leves olhares insónias longas impacientes esperas.

O Zinco dos telhados cobriu-me solidÖes e esperanças que tu sabes.

Esperei por ti bordei-te flores nos canteiros do céu abri-te valas, semeei-te milhos pari colheitas de searas vãs abri os dedos, semeei calhaus.

Espremi a terra e fiz-lhe água nascente povoei prados de criaturas doces ergui torres, girassóis gigantes dei vida e morte, vi nascer, morrer.

Aqui reinei, julguei, plantei videiras caminhos, grutas de vestígios; colhi olhares de animais bravios


deixei aos dedos aladas liberdades.

Empilhei madrugadas de atenção disparei molas, carabinas frias de traição ao vento. Combati silêncios, instalei trincheiras de perdão. Recebi recados de mongólias vastas acendi fogueiras para sufocar o medo.

Aqui sonhei europas, verdes ásias cidades de cristais, antártidas caiadas daqui refiz a lua de astronautas; contei estrelas

colhi algumas

para dormir com elas.

Aqui ejaculei delírios verdes que a madrugada insinua e vence. Aqui colhi primícias de virgens escandinavas e coroei outeiros e o meu sexo com as suas tranças de ouro.

Saltei de monte em monte e naveguei o ventre do deserto assinalei o umbigo do mundo e plantei setas apontando o sexo fundo da terra. Beijei a carne universal e húmida de uma fêmea em cio,


menstruada.

Aqui me dei, aqui me fiz desfiz, refiz amores. Aqui me embebedei e vomitei o espanto.

Daqui abalo hoje, parido para o nada apalpo a água afago um bicho ordeno qualquer coisa e vou.

Novembrina solene

Transmudação das águas

1

Não era ainda o tempo das manhãs lavadas como nocturnas cabeleiras negras


escorrentes e interiormente macias ou como o som de um galopar em chão de estrelas ou mesmo a cor de um vinho novo contra o sol.

2

Era o mato, a mata, a cor lisa das pedras e das ramas, o espinho raso, a sombra inacessível, o bruto e agreste piso.

Era a acácia, rara ampola de humidade verde concentrando derramar espinhoso da tremente sede nivelada na escura sucessão das copas baixas. A interminável dimensão do Sul e pó.

3

Era um mês de nuvens baixas,


volumosas e ocas, um mês de madrugadas curtas, já pesadas, e manhãs de céu palpável, cinzento e rente.

Era o mês do extremo esforço das ramagens, das derradeiras hastes quebradiças ao vento.

O mês das migraçÖes tardias e arrastadas. Mês de tributo às águas: o sacrifício imposto, a selecção do débil, do cedente, do mais pungente olhar brilhante encastado na latente anhara como brasa derradeira e longa, entre a cinza de um ritual de obrigação cumprida.

Era um mês de charcos negros, elaborados em profundo rasto de nocturna busca, silêncio e espera.


O mês das derradeiras humidades.

4

Era Novembro um mês de cargas raras húmido ardor goma indecisa sobressalto de ar. De atenção às nuvens e à direcção do vento consulta às luas e à ligeira referência de um alado brilho de insecto precursor de um Novembro a derramar-se em suave chuva.

Porque Novembro o mês difícil, é também o da mais breve primavera. Escasso deslize da mão da tempestade.

5

É tímida porém a consentida chuva e apenas nos detém a desmedida sede que governa o percutir dos corpos colectivos


sobre as pedras e as pedras nas vertentes e a inquieta direcção de um gesto na mineral lisura.

6

Novembro não é mais do que uma lua solta sem raiz no Leste sem poder para embeber a terra e anular-lhe a face empedernida e velha.

Mal se desloca a sombra na paisagem e as hastes permanecem vegetal grafia num céu aquém de encostas confundidas.

E nem anula o pó do trote das manadas à volta das cacimbas e nem os animais ainda aspiram urgência de viagens.

A chuva de Novembro traz a marca


da podridão latente (o que escurece o grão da perspectiva acama a derradeira espiga preservada e marca de impotência o som redondo que se projecta curto).

7

O olhar enfrenta ondulaçÖes sem brilho. A claridade crua de um sol que se não vê. A próxima matéria de um céu sem altitude.

A contenção do gesto e das funçÖes. O navegar a mais serena ausência de contorno chão sem som a sombra sem azul o ar sem eco sem fibra sem chicote.


8

Depois a pouco e pouco decanta-se o alvoroço e muda, em nós a direcção do vento vespertino. O cacto agradecido espiga já e amadurece a flor mais reservada e rara rubro espinho cravado na teimosia opaca do dorso de Dezembro.

A nitidez das serras denuncia o altear das brumas.

E os dias de Janeiro renovados de vigor continental sucedem-se mais jovens, dando-se as mãos na noite e percutindo nela o brusco estralejar da lenha seca o gume-instante da labareda esguia.


9

E perdem-se animais ao pôr-do-sol e chegam cães de longe a farejar a espera e os rebanhos unidos são mais lentos e alongam as mil patas num caminhar dorido e delicado.

As vozes simplificam-se e as visitas são mais longas, mais serenas, mais alheias. A terra espera unida aos animais e à gente e à obra: as mãos as oraçÖes e a alegria.

Os corpos surgem nus e os pés descalços e as mãos são magras e dorme-se ao relento. E o cheiro das manadas


monta a brisa para polvilhar a noite de um pó em que faísque o sol da madrugada. E se arredonda, em gotas duradoiras o derradeiro orvalho da estação.

10

O ar rareia e o gesto não se mede; os passos são de leve e o pó mais fino; os charcos são de pedra e os trilhos rangem. Perdem-se as asas sem atingir o céu e a lua tomba, em cada noite cheia, no regaço das vigílias. E as estrelas são de brasa, são de vidro ou diamante.

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Porém se o tempo pára


as serras se avizinham e o vento é leste e a manhã sonora; se os homens se despedem das mulheres e abalam sem destino os cães trotam e latem receosos e os animais bravios não se ocultam; se o mar se ouve ao longe e os comboios nos vêm recordar o cansaço desmedido das viagens,

12

Talvez esteja prestes a pureza da lua fevereira e baste um vegetal estalido de mucosa para rebentar em águas toda a prenhez do céu num gesto muito simples de parto extemporâneo. Um brando golpe a declarar cumprido o tempo


saturado da combustão da espera intemporal e aceite uma madura ciência de olhar líquido vertido no horizonte para embeber-lhe a sede.

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Talvez até (porque se arrasta desmedida a calma e aguarda a lua negra e nova) um acto de mistério venha arder na puríssima e última alvorada;

um estupro; um crime; um ai de carne acesa, penetrada, que vá verter-se em bocas deslumbradas de crianças; a morte de um profeta; a entrega oferecida de uma fêmea menstruada que esconda em si um útero de espinhos e um destino de exílio.


14

Em verde estala então a estação crua desponta em branda nata e se povoa da colectiva sede transumante.

15

Caldeira ressequida a terra aceita a chuva que lhe dissolve incrustaçÖes remotas. E em alternada projecção de luz o céu descobre o sol e lhe arremessa o peso imenso de uma nuvem baixa a vomitar-se em espasmos de ensossa claridade.

Horizontal e calma a terra aceita a chuva que lhe dissolve o cio e lhe penetra a natureza funda fecundável. Transmuda-se a macheza do horizonte e desabrocham lábios


de avidez passiva. OvulaçÖes guardadas animadas pela surpresa de um reviver festivo breve se animam, jovens, resolutas para aninhar em si uma semente achada anónima aventura de ansiada entrega.

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Fazem-se os rios despontam os capins passam rebanhos e cruzam-se recados de água achada. Segue-se o rasto de mensageiros demandantes de outras pátrias para os seus gados.

Atingem-nos murmúrios de manadas sofreguidão liberta a derramar-se em dambas. Despertam-nos vagidos de recentes crias paridas como água pelos caminhos e o seu olhar serve de espelho ao verde de que se faz o leite a derramar-se farto na áspera ternura dos seus beiços.


Cortinas de excitante e odoroso cio tolhem a marcha cega de corpos luzidios para embeber pulmÖes e enrijecer a quadratura sólida dos machos donde escorre a nata excedente, espessa e nacarada, a que redime a espera ultrapassada.

17

E faz-se gorda a terra e lhe estremece a carne-madre farta contente e abundante saciada bem parida e já refeita acarinhada. Sobram quindas de mel pelos outeiros e o peito escorre, generoso e alto. Dorme a terra em verde e luz imensurável mesa de um anual banquete que festeja a imanência fêmea e mãe da natureza.


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Que corajosa acção explosão, renúncia, desmedido voto, haverá, ainda assim, para deter a cósmica e divina translação que oferece o dorso largo ao renovar da sede? Das luas em cadeia se liberta a cáustica aspersão que extingue o verde extemporâneo e baço já.

à estepe cabe a capa de uma austera cor, a míngua de água, a face dada à brisa, o caminhar de leve entre o quebrável. O recordar das pistas de outras águas, de outras noites.

à estepe cabe a esfera do ruído que antecede o tempo, um deslizar vital, um perigo que se instala nas montanhas e desce alturas cavalgando o vento,


a extrema segurança da vontade, a extrema insegurança da atenção, a sólida aridez essencial, a fácil madrugada navegável.

19

Porque o deserto é macho e avaro do gesto e se projecta em Julho triunfante para tanger rebanhos transumantes.

Que vota ao céu de novo couro seco e à lua, que detém as águas e ao vento domador da anhara e à noite setembrina propícia de loucura e de uma irreversível

votação ao Sul.


A Decisão da Idade

Destaca-se Vibrátil

Fruto do sal vegetativa haste a emergir de um chão regado a lágrimas:

a figura do herói vindo do Leste.

Catalisa as direcçÖes oblíquas da coragem: os ventos circundantes da intenção segura as folhas de papel cruzando o mar e a revolta de um gesto que detém a culpa imposta e a pena original.

A clandestina glória legitima o orgulho da tensa ostentação colada ao peito nu: liberta a luz crestante das cançÖes com que perverte a paz e a dor herdadas.


ImpÖe-se erecto e livre de roupagens. Concentra a sóbria forma e a cor do adorno essencial com que revela a colectiva comunhão da sede.

Impele a voz compacta da torrente de encontro a um dique de humilhantes bênçãos:

a história que a ciência derrotou; a despojada cor contra a barreira espessa dos fuzis; a fé que feneceu num chão de argila embranquecido por estaçÖes de pranto.

Noivo da sombra está projectado inteiro contra a luz da esteira que navega -- precursor do Sol.

Um homem vem ardendo

(à memória do J.J.)


Um homem vem ardendo na sua segurança e depois semeia estrelas por aí.

Traz mãos pendentes onde o sangue aflui e punhos brancos de ostensiva fé. Mal suporta a claridade de um primeiro olhar. Ocorre-lhe de súbito o peso dos testículos, a densidade líquida das mãos uma urgência antiga de projectar-se erecto. Um homem traz consigo um rosto opaco que a surpresa urdiu, o véu esculpido da certeza oculta, preserva no sorriso a segurança nata e oferece, no olhar, uma estação de cereal maduro.

Um homem chega e assume a personagem. Ilustra-se de faces, decompÖe a fé, possui-se de um vigor insuspeitado, desvenda as claridades do seu peito, produz formosas coisas com seus dedos, pÖe-se a reordenar os horizontes, atinge mortalmente as formas com o olhar, progride nas tarefas da conquista e chama a si as referências do lugar. Da plataforma adopta a dimensão bastante ao seu critério de sentir-se livre, roda em si mesmo, elege as coordenadas e cumpre a sistemática invenção dos rumos.

Um homem vem fundir geografias, polarizar as forças da manhã deserta, vem fecundar as latitudes nuas e violar segredos de falésias. Um homem vem, destrói a derradeira protecção da lenda,


transita triunfante a bruma do silêncio, afaga, da idade, o corpo descuidado, revolve-se na febre, despoja-se de si e oferece o peito.

Um homem está, possui-se de silêncio. Assume a quietude e embebe-se da forma. O céu, o sol, as pedras. Acumula-se em luz, em vento, areias, água e sombra. Um homem não é mais que a sua idade rematada aqui na dimensão da estepe, na explosão das águas, na secura dos troncos, na poeira dos ventos, na dolorosa persistência das ramas, na rasgada frigidez da noite, no escoante sobressalto dos sons, na líquida maré das estaçÖes exíguas. Um homem não é mais que a sua austeridade de minério, a sua resistência euforbiácea, a sua ambiguidade de animal.

Um homem não é mais que este volume em que progride, esta fatal grandeza em que se inscreve, esta ausência de idade em que transita, esta força de deus a que se entrega. A chuva é o seu gesto, a sua voz a voz da tempestade, e é já sua também a sombra da montanha, a forma do granito, o peso deste sol, a força deste vento. E o crime desta ausência, a maldição gratuita deste pó,


a crueza incisiva desta luz, este temor passivo de extinção.

E se de novo aponta a face às faces e se projecta inteiro contra os seus, é escasso o vulto que transporta firme para conter o clima que lhe vive oculto. Semeará os gestos de um poder secreto, projectará as sombras que anunciam vento, afirmará cadências que reservam pasmo, deduzirá carícias que provocam medo, aspergirá sorrisos de indizível dor. Um homem ferve lumes de estaçÖes e espalha o medo à volta quando invade o espaço das fogueiras mansas.

Um homem vertical em seu desgosto, perdido no seu eco, um homem que alterou conjugaçÖes de estrelas, é uma noção de espaço conquistado

e em espaço se transmuda

renovado.

Afunda-se porém na projecção do tempo e o seu viver assume a maldição do crime. Quando se expande, no eco dos seus actos, é para exceder barreiras de memória; quando em marés o seu amor se verte é para romper as margens da entrega; quando o seu canto atinge o tom da glória é para vergar o viço de searas; quando o seu vulto ansioso se anuncia é para ofuscar o brilho da


alegria.

Um homem pára então para descobrir que até o pranto lhe confere o crime e a culpa que o investe sobrenada o tempo.

Decide então morrer que a sua força aqui não se contém.

Exercícios de Crueldade

As crianças carregadas de destino batráquios prisioneiros do pó e da vidraça alastram no papel o som e a cor dos seus débeis sorrisos.


Arde-lhes já

na face

o circunflexo acento do desgosto -a reprimida força da malícia atenta.

Miram-nos frias do fundo da película --

crescem-lhes dentes de apetite oculto mandibulam ameaças de domínio destroem

uma a uma

as flores da idade e cobrem-se

escarninhas

de pêlos urticantes.

Exibem unhas curvas afiadas para a disputa e denunciam intençÖes de assalto na lisa mansidão com que protegem a morosa espera.

As crianças tiranizam o espaço que atingiram. Possessas dilaceram crianças de outras raças -assumem, rancorosas, o desdém na face e inquirem inocentes se os Pretos têm nome.


Memória da Guerra em Julho

1.

É preciso que aconteça numa manhã sem sol e sem recurso para o cansaço que o corpo traz da noite. E preciso também valorizar o medo. Dizer assim, talvez: -- a guerra continua, dormi a noite toda e a guerra continua.

Uma luz como a de outubro surgirá em julho. Atingirá as formas como se as formas a desconhecessem, como se até aí fossem rocha apenas sobre as areias que há no mar profundo e não soubessem nada do seu próprio corpo e a luz as dissolvesse numa excessiva sobre-exposição. Vem declarar, num instante, a anulação completa das idades. A progressão da luz e a regressão da forma. A dissolvência, em suma.

Os contornos estão perdidos para sempre. Agora é a memória, a madrugada, a opacidade imaculada do


silêncio.

Esta era a profecia. O retrato fiel do fim do mundo.

2.

É já apenas só uma memória. Falo da luz que irradiava dos cadáveres e das águas fermentadas que os continham. Havia um frasco, enorme. Crescera desmedido para albergar compassos de uma guerra longe: os ecos todos dos obuses todos os glaciares do medo nas arenas do norte.

à volta uma manhã que era já quente, a luz rente de outubro, a iminência da dissolução. E havia o frasco, um frasco enorme, prismático e aberto, retendo o amarelo de uma água velha, matéria a mais propícia à gestação dos limos e das algas. à tona alguns cadáveres, o ventre exposto, inchado e branco, alguns também retidos na verdura e os olhos sobretudo, provocação soberba da miséria. Quando isto aconteceu eu era muito novo e sem recursos para iludir surpresas.


Mais tarde atravessei cidades mortas. Não as temi. Morte ou memória? Como entendê-lo agora?

3.

Os pequenos dragÖes puseram a gravata, ajustaram ao corpo a couraça do orgulho, consultaram num instante a cartilha da paz, e vieram para a rua comandar a guerra. A ordem de batalha está completa: o cancro explodirá pela madrugada. Nem as franjas da noite estarão bastante longe. A flor do eco, que abre nos peitos um lugar para a sede, oscilará suspensa no silêncio, assegurando o gangrenar da aurora.

Os pequenos dragÖes esbracejam na penumbra. Estendem braço para afagar o ferro e aferem, um a um, os potentes instrumentos da confiança. Os pequenos dragÖes estão sobretudo ansiosos. Exibem, varonis, a erecção da voz e arremetem-na de encontro à multidão para fecundar-lhe o embrião da raiva.

A aranha é instalada nos baldios da fé. Assenta o peso sobre a carne incauta e crava as garras, para se afirmar, na oferta abdominal das hostes seduzidas. O ferro


arranca vivas de prazer. Entre dois crânios grandes um pequeno, de forma a que não haja qualquer falha e se edifique um piso só de crânios. O aparelho vive de equilíbrios.

Os pequenos dragÖes não podem mais. É tempo já de acometer a noite. As condiçÖes propícias estão criadas: há já um cio para humedecer o medo. Sejamos fêmeas para a erecção da armada. Do som haverá luz e das brechas da carne escorrerão manhãs.

O sangue, hoje, é dos outros.

4.

Acordas ansioso por saber das grinaldas que o sangue abriu na noite. Enfrentas a manhã nua e devassa como a parede branca a que se rasga a forma de um cartaz antigo. Caíram os tapumes da confiança e eis presente, como nunca adversa, a geografia cada vez mais tensa. Vês a língua de areia servida de outra luz. A memória sumiu-se, cristalizou nos ecos. A gestação do medo arruinou as horas.


Ensaias o andar antes sabido. Apenas expÖes a pele sem que o contorno do teu velho corpo revele indícios do que lhe vai por dentro. Reinventas no mundo a implantação do vulto, lavado agora das razÖes seguras. Estar vivo e acometer a claridade implica a vocação de afeiçoar o corpo à praça imposta. Há uma maneira apenas de enfrentar o frio. É transportar, por dentro, o mesmo frio. Não fere, a decisão, muito para além das decisÖes alheias.

5.

Nada mudou para quem delega a glória. Nada é tão grave que nos impeça os corpos. Estamos aqui, sentados, sabendo que o conforto é só cá dentro e a casa é cheia de alegria e festa e a carne é fresca porque viva e alheia à carne longe, retalhada e fria. Somos de facto, em nosso apuro e com o nosso dote, uma versão apenas indecisa do nó que nos habita bem no centro. Rapazes, raparigas, que cada um empunhe a flor oculta para inseri-la entre pernadas jovens.


A morte será longe enquanto nos arder à flor da boca esta atenção pelas floraçÖes dos outros.

De como os Europeus, no Séc. XV, violaram o sudão ocidental

As colunas quebradas, que é tudo quanto resta das catedrais antigas, estão projectadas contra o fim da tarde. A cidade está morta. E nela a ausência deu lugar à luz de um chão vermelho, exausto de derrotas e de perpétua entrega. Há uma fadiga imensa na paisagem toda. As casas são de terra, todas baixas, e é muito extensa a sucessão dos tectos. As paredes reflectem uma cor madura que é dos frutos sãos quando se apuram num lento esmorecer, expostos ao sol. O mar é uma toalha posta a prumo aonde brilha a pincelada larga das correntes frias. E o céu escurece, desde aqui ao mar, premeditando tenebrosas gestas. As colunas estão nítidas e próximas. Há nelas a memória de uma figura esguia que repartiu pelo mundo a sua inquietação e foi deixando a marca do que lhe estava para além da carne. Só a ruína lhe desvenda a essência.


Os capacetes brilham na ladeira. São os conquistadores que tudo ignoram, a progredir num chão que os desconhece.

As armaduras tinem, percutindo o esforço. São cavaleiros sujos, descuidados, batidos pela ausência, temerosos do tempo, mudos de estranheza. Penetram nas casas e ressurgem tensos. Nas mãos trazem despojos de indeciso uso. Ensaiam movimentos que os definam, extraem-lhe sons que os tornem praticáveis.

Um mancebo sereno vem junto com a tropa. Desdenha o saque. Do cimo da ladeira dilata em volta um gesto de atenção. Virado ao mar, recua agora em direcção ao templo. Volta-se breve e pára para erguer a fronte e receber no rosto a saturada luz do fim do tarde. Tremem-lhe as pernas e descobre o peito que é branco e plano como um portal antigo. Um princípio de ventre denuncia a carne. Ajoelha-se humilde na escadaria limpa. Deixa que as vestes tombem para revelar-se nu. O rosto exprime a rapidez do encanto. Verga-se dócil para beijar a pedra.

Em silêncio vem vindo um cavaleiro adulto. Liberta


o corpo da armadura fria e acomete erecto aquela carne branca.

Escorre um caudal de choro pela vertente.

Dedicatória

Era Janeiro e a chuva não caía. Mas era um mês batido por torrentes e se eu fizesse um esforço para fechar os olhos reconhecia logo os horizontes que o corpo uma vez mais queria rever para consultar-se, humilde. Depois partir, talvez, se perdurasse a vocação da ausência. A chuva não caía e eu aspirava aos cheiros de uma terra negra que a idade enriquecera e que só eu sabia. Era uma terra exacta para entender agora, cavada fundo na aridez dos livros, isto é, das viagens, isto é, das leituras, isto é, das decisÖes da idade.

Muita gente morrera, no entretanto, rodeado pela maior das descriçÖes. Era uma coisa que eu previra algures e pela qual chorara muito novo ainda, a despedir-me já e no entanto


belo, extuante de vigor e de intençÖes de entrega. Era um choro prematuro e fecundante.

Havia um texto para encerrar um livro e havia um livro para encerrar um tempo. E eu precisava de um lugar de

noite, de um tempo simultâneo sobreposto ao meu, de uma matriz de areia aonde o verbo se ajustasse ao vento para esculpir no flanco das falésias um texto de silêncios que excedesse os livros. Um texto assim, se o conseguisse agora, seria para entregá-lo a quem me escuta ainda a quem repito, para ocultar o medo:

É um lugar nas dobras do deserto um rumor de aluviÖes inesperados um abrigo sonegado à ventania:

é um lugar no Giraul de Cima.

Sinais Misteriosos...

...Já se Vê...


um gesto apenas bastou para suspender os discursos. A supresa foi geral. Ninguém vivo ainda vira um gesto assim desenhado. Mas a memória sabia que um gesto assim decidia da sorte dos homens vivos, e alguém diria, mais tarde:

eu vi o rei, de um só gesto, ditar o tempo de luto.

Os mais velhos entenderam e as trinta mulheres presentes afastaram-se caladas para ocultar com carvão os sinais da juventude. e o mensageiro real, paramentado a rigor com as próprias vestes do rei, abalou, na mesma tarde, para dilatar a mensagem. em cada casa que entrava não passava do portão, e se as crianças falavam alheias áqueles sinais, os adultos estremeciam e corriam a erguê-las de encontro ao sol para sanar o crime de tais palavras. a partir daquele momento no país só se ouviriam as cordas dos instrumentos e o canto dos trovadores. estava o luto decretado não pela morte mas pela vida de um rei sábio mas cansado. o coito foi interdito. e algumas mulheres morreram porque no seu ventre havia a fome de uma serpente que à falta de outro alimento lhes devorou as entranhas. e só era cultivado o que bastasse ao sustento das bocas dadas ao luto e ao esforço do crescimento.


e enquanto o rei não morreu da decisão de morrer os trovadores procuraram repor a ordem no mundo. acorriam à ombala de toda a parte, a tocar. e cada um traduzia as causas da infelicidade que lia em si para dizer da infelicidade real. o tempo foi penetrado pela expressão dos que sabiam e a memória modelada no génio dos mais dotados. os pastores vinham de longe ouvi-los de madrugada para repetir no trabalho as trovas mais conseguidas. e muitos homens comuns fizeram da erecção uma força para cantar. e as mulheres para dominar o desejo acumulado puseram todo o vigor na dança até recriar os movimentos da origem.

o dia sedimentava o que a noite efervescia. e o país foi fecundado pelo cantar do povo todo. então quando a poesia conquistou todos os sons e a linguagem estava grada de poder e juventude, e de invenção e de origem, o rei pediu para beber o veneno mais real. e perante o cantar alto dos guardiães da palavra despediu-se desta vida em silêncio para entregar o verbo recuperado ao seu povo e ao sucessor.


Sinal

Naquele ano a chuva foi excessiva e cresceram tortulhos nos olhos dos cães. Os vitelos, ao espreitar a luz pelos sexos das mães, afogavam-se em lama, no meio dos sambos. As paredes das casas diluíam-se em nata e os oleiros desistiram de encomendar a sua obra a Deus. Enormes cuidados foram inventados para proteger o fogo nos altares e as crianças adoptaram a nudez. As termiteiras deixaram de existir e as formigas aladas perderam as asas. Os pés dos mais velhos fenderam-se em chagas e as mamas das virgens, mal eram tocadas, colavam-se ao dedos como cinza húmida. Os lábios dos sexos das mulheres paridas inchavam carnudos de uma carne branca e os ventres pendiam como fruta mole. Naquele ano a chuva foi excessiva e os horizontes deixaram de existir.

Choveu por muito tempo até os cães perderem todo o pêlo e as cabeleiras se destacarem como algas podres. O rei do Jau ficou colado ao trono e ao boi sagrado cresceram-lhe os olhos, que depois cegaram. As sementes grelaram nos celeiros


e essa semente assim era servida aos homens e daí lhes ocorreu um tal vigor que os seus pénis cresceram desmedidos e os homens vacilaram, tendo-os nas mãos e mudos de fascínio.

A chuva choveu tanto que as serpentes saíram dos buracos e vieram alongar-se ao pé dos paus, mantendo com esforço as cabeças erguidas. Nas terrinas do leite vicejavam musgos e o leite das vacas alterou-se em soro, a coalhar na urina. Naquele ano a chuva choveu tanto que até nos areais cresceram talos e as enxurradas produziram peixe e até o ferro se lavou sozinho e os diamantes vieram rebolar nas pedras concavadas de moer farinha. As próprias aves morreram quase todas e apenas se salvaram as de penas brancas, que a distância atraiu, depois comeu.

E aquela chuva aproveitou aos fósseis e houve minerais que se animaram e até pedras comuns a transmudar-se em carne.

Naquele ano a chuva choveu tanto que a memória perdeu todo o sentido. As gargantas entupiram-se de limos e as testas que os velhos pousavam nas mãos fundiam-se


aos dedos e os braços às pernas e os gestos de graça fundiam os corpos e as jovens crianças ficavam coladas ao peito das mães.

Só as bocas teimavam em manter-se abertas e quando mais tarde a chuva parou, das bocas saíram grossas aves negras que abalaram logo daquelas paragens. E a seca voltou e o mundo secou. A carne antiga a dar-se agora em terra, os fósseis em pedra e as ramas em húmus. E os passos poliram pouco a pouco as formas.

Naquele ano a chuva choveu tanto que a memória nunca mais teve sentido.

Ondula, Savana Branca


VersÖes

Kwanyama

Profecia de Sisahama

Um elefante vem, pelo país morrer nas lavras de Haymbili nas lavras. Um elefante assim que os seus perderam não pode senão vir trazer desgraça. Porquê assim, porquê aqui? Homens grandes passaram em em Ondonga e até aqui virão, a estas lavras. E os agentes de Deus que se afastaram aqui voltarão de novo. Vieram instalaram-se em Ondonga cruzaram Onkwambi, Ongandyera e passam através do Kwanyama.

Grita o rei, pede socorro? É grito de pobre só Deus ouvirá. Talvez, oh talvez


tenha os dias contados e nem o morcego possa dar-lhe a mão. Serão os estranhos a apontar caminhos. O pêlo da doninha perderá o brilho e ouvir-se-á um grito de socorro. Quem assim faz?

Não são os nossos chefes? O povo Kwanyama gritará. E todos, todos salvo os da Kwamundya virão buscar refúgio. Mas a ombala será incendiada e o povo só na mata encontrará abrigo. Haymbili morrerá e o filho de Hamutendya, irmã do rei, Nangolo morrerá também. E os estrangeiros espalhar-se-ão pela terra.

profecia de Muselenga

Uedyulu! Eu já não vejo o gado do rei eu já não vejo o gado dos grandes! Apenas de Namindya, e de si só eu vejo o gado


em Osihedi. Nas terras de Hayndongo não vejo senão as casas dos brancos de um branco tão branco como o da farinha. Acaba-se o mundo, acaba de todo! O rei partirá para a ombala da rã debaixo do chão e eu próprio me vou abrigar no túmulo: ultrajei ao rei.

profecia de Nakulenga

Algo de estranho se agita nas águas algo de estranho se arrasta na terra. Era longe, ficou perto, agora é cá. E o povo já foge. Talvez até caia um pau de omuhama na estrada a indicar que para o rei a morte vai chegar a vida é breve. Eles vêm de um país muito distante


e trazem para dizer coisas diferentes que é preciso avaliar com atenção. Cruzava o país e dos nobres eu via os ricos currais. Renovo a viagem e que vejo agora? Dos nobres agora não vejo os currais mas vejo dos brancos suas construçÖes.

Canção de guerra

O covarde ficou voltou para trás agiu de acordo com a mãe. De nós porém bravos homens muitos morreram porque lutaram.

(chora a hiena chora a hiena chora)

O nosso camarada jaz no chão


não dormirá connosco. Ali o deixámos pernas e pés na berma da estrada a cabeça tombada no meio da rama.

Soldados de Nekanda conquistadores de gado para Hayvinga filho de Nasitai: somos rivais em casa pelas mulheres. Na guerra, na floresta somos da mesma mãe.

DerivaçÖes

Nayaneka

1.

Não espanta o gado, a palavra quando é boa nem apodrece quando exposta ao tempo...

Herdei-a sozinho não a como assim:


o dar não molesta o braço nem dorme com espinho a mão que afagou durante o dia.

2.

Zebras sem guia, perdidas na corrida...

Raia o sol, continuamente e o povo pensa que há contentamento. Mas não nos surge a lua destroçada a renovar-se sempre mutilada?

Há os limites, bem sei do céu e da terra... Quem os conhece?

3

É duro de encarar o sol que brilha e nada pode, a cólera do touro contra a manada dos areais do rio. Quem recebeu a cauda a cauda arrastará. Não basta juntar a lenha


para recolher os molhos: é preciso que a maldade os não desfaça.

Sujeito-me a vestir as velhas peles e olho à volta atento ao que se passa. Eu sei que há luz e sombra nuvens e chuva... Mas chegará a minha voz aos vossos pés como aos da onça o grito da capota?

Guarda a cigarra o seu canto perante a voz dos tambores.

4.

O meu caminho existe, desde sempre e a queda que prevejo pode ser a minha. A mão capaz de me suster aqui não pedirá licença, se quiser que eu caia. De que adianta iluminar-lhe o chão?

5.

De caça só conhece quem andou com os caçadores. Ninguém procura


a água em pedra que a não tem. Não saberei da causa quando estou doente nem saberei donde a doença vem. Mas quando falo cuido da palavra que habita o coração e se desloca do repouso à sombra. A figueira só dá flor no seu tempo de florir e em terra de termiteira não germina o grão de orquídea. Viaja a sombra, o coração varia. A sede leva-me ao rio a fome aos meus inimigos. Disse a hiena: gente é com gente!

Embora a pedra só revele a face existe sempre um coração na pedra. E acenam-se os coraçÖes se é dura a face ou contraria a fala.

Hábitos da Terra


Casos

Chamei-vos para assistir à minha indecisão durante as muitas horas que aqui passo a procurar expandir-me em quatro direcçÖes ao mesmo tempo e à espera, desde sempre, que um dia se revele o que vivi e num instante, que esfarele os ossos, eu possa ultrapassar os planos todos para ver tudo, enfim, ao mesmo tempo e novo: meu Pai a conversar com o Kambwandya e a judia com quem dormi em Londres a temperar as coisas que eu diria um dia, muito mais tarde, para depois esquecer. Escolhi-vos pelo que sou, para traduzir as coisas que eu sei já. E só agora, que poderia decidir perder-vos, me ocorre inaugurar esta conversa, para inquirir quem sois e quem vos trouxe a mim.

ÖÖÖ

A forma, antes do mais. Eu ando a procurar para a palavra a


forma afeiçoada à força da palavra, digamos sem receio que da palavra só conheço a forma, a construção, a face aparelhada palavra após palavra. Diria então que uma palavra exacta há-de surgir entre os demais sinais para rematar volumes ou para impor uma palavra em falta.

Coisas, talvez, que se sabiam já mas ainda assim persisto em descobrir. Não poderia traduzir palavras. Optei assim por traduzir a forma e descobrir palavras que acrescentadas de outras são palavras novas. Perdidas no discurso, se uma palavra à frente não bebesse delas e as não dissesse exactas onde importa sê-lo, ninguém diria do valor que têm. Não traduzi sentenças modelei linguagens, e comovido constatei, perplexo, que tudo o que dizia eram sentenças fundas, iguais às que aspirara ouvir um dia.

ÖÖÖ

Palavras de um guerreiro ou as de um rei? Que coisas haverá


que só o ouro as diga? Coisas quebrábeis, todavia firmes, placas delgadas de um discurso aceso que se preserva para além do molde, bem cedo condenado à vocação do corpo. São coisas ditas prolongadas baixo. O ouro não suporta os acidentes e para dizer as coisas mais urgentes há ligas novas mais apropriadas. Os olhos do saber são olhos de água, vidrados pelo repouso. Há coisas para dizer que o tempo não perturba. A voz de um rei diz coisas especiosas que só agora entendo porque as li no ouro. De mim para elas. Coisas macias ditas longamente por artesãos calados: moldes que a corte encomendou enfim para os legar a quem, como eu me achei, não poderia procurar palavras para traduzir o lume das linguagens.

ÖôÖ

Conheço alguém que se deteve a olhar a face amada um tempo mais que eterno se perdeu. Leu-lhe um desgosto que não estava lá e interpretou o entalhe dos sinais sem todavia decifrar mensagens.


Padeceu muito e fez longas viagens. Transportava consigo aquela imagem para garantir a devoção escolhida. Era um devente puro do mistério. Fiz do delírio dele o meu critério. Mas só agora decidi jogar-me em coisas confundidas, se o segredo as diz. Como dizê-las graves, rigorosas, se o mundo as sabe e não carece delas? São coisas como esta que aprendi dos outros. Mas sei também as muitas outras coisas de que só fala quem as não viveu e hei-de dizê-las tão obscuramente que a sua face não moleste alguém nem lhe perturbe o lento acrescentar-se. Empregarei para isso uma palavra humilde que a possa modelar como se fosse argila mas seja rija como essências raras. Há coisas que eu diria para entender mais tarde.

ÖÖÖ

Hão-de voltar a mim estes discursos. Ainda mal saí da minha infância e só há um pouco decifrei meu nome. São coisas que eu trazia de outra idade para me achar agora a repeti-las e a constatar que um dia só não basta para aprender a combinar as vestes de forma a que as mais novas, as mais ricas, não deixem


ver por baixo as roupas velhas que ainda assim alguém invejaria. Só há bem pouco me isolei na mata e que sei eu da morte que me aguarda para devolver-me à vida? Ainda ontem, sentado aqui e sob o vosso olhar, previ coisas confusas que é cedo ainda para disseminar. Pudesse eu inventar outras palavras que ao proferi-las me vestisse delas até saber quem modelou a imagem, com que intenção e para dizer o quê.

Provérbios

Omili yange iwa ili m.ongubu Omupika wange muwa k.oilongo.

A minha bengala, metida em espinheiras, dentro do cercado

Está longe de casa o meu melhor escravo. Kwanyama

Está escravo da casa o meu melhor longe, sou escravo da casa dentro do cercado, cerquei-me de casas. Longe de espinheiras eu


sou a bengala cercada de escravos. Sou escravo do longe que cerquei de casas dentro de espinheiras. Estou dentro de casa, longe do cercado, cercado de longe em casa de escravo. Estou longe do longe que há no meu cercado.

Mundo Novo ao Sul Mundo + Velho

ronda épica n.o 3

As Portas do Kalahari

Abertura

Silêncio mas porquê e não apenas vento até que a pedra se arredonde enfim e a água se expanda raiada no verde?

Um sono que se estenda obliquamente entre a murada construção da idade e as veredas ordenadas pelo passado.

Uma memória a ter-se


mas não aquela que o futuro impeça.

1. -- Noção Geográfica

CanhÖes de areia cerzidos pelo vento língua de leve permanente e branda.

São espasmos de água de que a memória cedo se apodera.

Memória nocturna e vaga.

São os caudais do silêncio a densidade grata do vazio. É o silêncio tangente às curvas do tempo.

A cama horizontal de uma distância.

O verão poisa nas coisas e adormece tudo.


Rangente e nu leito de areia quente os pés e o sopro e o vento que o descuida.

Exígua sombra de uma breve margem onde repousa o gado e quem o guarda.

O mar desponta quando for além: um morro em branco adverte da distância.

Dizer o verde, de novo.

O sal, por toda a parte. Então pequenos lagos se acrescentam a partir de alguma fenda original. E são taças de mar que dão contorno ao continente agreste.


E tem também um povo que nunca ninguém viu e as crónicas referem por ouvir falar.

Era um povo, dizia-se, tão amante do leite que não sabia recordar o mel.

2. -- KATOKI

A memória do sangue só pode estar onde circula o sangue.

Não pesa o nome para quem herda um corpo e um corpo vale o sangue que o gerou.

Quem levantou os olhos da presa ainda quente e viu primeiro a nuvem da poeira?

Quem foi que anunciou o fumo das manadas


quem receoso e nu buscou abrigo por detrás da pedra e estremeceu o espasmo da surpresa adivinhou a guerra?

Quem foi que o viu postado só no topo da ladeira a sós com a memória do sangue e a vigiar a esteira da nação?

A que distância aponta a gravidade arcaica desse teu perfil?

A que perfïl aponta a gravidade arcaica da distância?

A que distância aponta a gravidade arcaica que um corpo a sós apruma de perfil?


Um herói quando é perfeito foi feito para durar.

Era um guerreiro devoluto ao tempo. Cumpria as decisÖes na borda do impulso e da certeza.

Alguém o viu postado no topo da ladeira só como sempre a vigiar o gado e a esteira da nação.

Adivinhava o mar.

Apontou com o queixo para o Sul e deu a conhecer a direcção do sal.

E vinha gente alumiando o dia.


3. -- As Secretíssimas Casas dos Reis

Dá-se a mulher ao fogo e um escravo curte os couros do seu dono.

Das águas que o rino escolhe da pedra a que o vento encosta do unto a que o tempo obriga dos sais que a estação abriga do pasto a que o gado aspira da lua em que o vento vira

não há pastor que não saiba.

Não há pastor que não saia de alguma curva da infância.

E veio um largo tempo em que os corpos se davam ao balanço do canto e o canto se dava ao balanço da chama


do fogo da casa e em mãos curtidas de indiferente afecto.

4. -- Ciclo do Fogo

Há coisas que se choram muito anteriormente. Sabe-se então que a história vai mudar.

Os celeiros do soba estão dados ao vento.

São caixas de ar que atravessa o choro da luz agreste surrando a pele da secura.

O tropel da caça em fuga precede as hordas que montam.

Pelo riso farto da hiena se afina a trompa do ataque.

A sombra surda do açor raia o portão do cercado.


Quem prova para nós ainda a came e o leite do gado sagrado?

Uma rainha cega ordenará surpresas:

Dizer do valor das armas que restam?

Só de um valor que como o meu se extinguirá em breve. Defendem-se os rebanhos não se defende a idade. São armas nossas para lutar de pé honrar o gado raziar irmãos.

Para Paula Tavares

E as raparigas, verdes, incriadas,

vinham furtivas hesitantes escusas exibir os frutos:

a frágil e expansiva floração do peito antes que o tempo a destinasse ao leite


e as ancas magras a veloz bacia antes que o coito sagrasse a matriz. Era onde o vento escorria desfraldava panos recentes e limpos alisava adornos poupados ao uso e a aragem fria das manhãs de junho vinha em espiral assinalar umbigos nos ventres lisos propícios ao tacto manso de dedos nubentes.

A guerra, ao longe, putrescia os noivos.

A guerra, ao lado, ultrajava os pastos aviltava o gado humilhava a rama sã do mantimento.

Misturava humores de vida e ruína confundia o sangue lunar das barrigas ao sangue das feridas cuspidas pelo fogo do aço importado.


A guerra, perto, confirmava as rotas a que apontavam decisÖes alheias.

5. -- No Mais Alto das Ramas não se Consente Ausência

Aonde houver fogueiras, mais fogueiras Ekumbi zelará pelos seus rebanhos.

Não é o que recorda nem o que pensa um rei do que recorda mas o que pensa enfim quando recorda.

à face de um rei convém o que é noite.

A bem dizer sabíamos que tu não poderias perdurar sentado.


O teu decreto, assim, era a resposta: justeza do ten desvelo.

Guarda a cigarra seu canto perante a voz dos tambores.

Sujeito-me a vestir as velhas peles e olho à volta atento ao que se passa. Eu sei que há luz sombra nuvens e chuva...

Mas chegará a minha voz aos vossos pés como aos da onça o canto da capota?

Zebras sem guia perdidas na corrida...

Raia o sol, continuamente e o mensageiro afirma que há contentamento. Mas não nos surge a lua destroçada a renovar-se ferida mutilada?


Não basta juntar a lenha para recolher os molhos. É preciso que o cordão se não desfaça.

Disse a hiena: gente é com gente!

Viaja a sembra o coração varia.

A figueira só dá flor no seu tempo de florir e em terra de salalé não germina massambala.

A sede leva-me longe, a fome, ao meu inimigo.

Notas de Leitura e Falas de Exílio

(inéditos)


Deponho as mãos na memória dos meses.

Fecho

Os bens raros da excelência poderiam estar guardados na frescura dos quartos, na penumbra privada dos celeiros no clima dos remédios e das curas.

Há câmaras de ausência para garantir o apuro do indizível. Os resguardos são placentas de mistério.

Sacralizar o dia. Fazer das mãos uma matriz de imagens e expor a face ao cheiro que respiram. Olhá-las com a supresa dos milagres.

A força mais guardada que há na luz só se consente em superfícies raras.


Fala da Rainha de regresso ao Quimbo

O capitão chegou viu e venceu. É sua a força de matar-me os homens. Minha porém maior é a confiança de entender as cinzas. à mão que e fere e mata oponho uma colheita de segredos. A terra é minha e dela me entronizo. æs geraçÖes delego a reconquista. O tempo que me serve é de outra cor e o Sol decidirá a cor do mando. Irmãos ouvi-me bem eu sou rainha.

Quem vos governa agora saberá de outras heranças para que vos guardo.


De que futuro pode haver temor para quem tanto acumula de passado?

Fala da Rainha para Bento Banha Cardoso

Antes do mais sou fêmea e vós sabeis que uma mulher dispÖe de outros recursos. Para vosso desfavor eu sou mulher e rei cabo de guerra e negra. Respondo pela voz da fêmea: -- aspiro a ver-vos rendido. Respondo pela voz do povo: -- o povo quer-vos vencido. Pela voz das tropas respondo: -- apraz-me ver-vos em fuga. Respondo pela voz da raça: -- a raça quer-vos humilde.


A guerra é sem quartel capitão-mor e se eu morrer sem ver-vos de abalada hei-de parir quem cumpra essa alegria.

Fala da Rainha exilada na Matamba

Deste reino vigio a vossa andança. Distantes de seu fogo soi-lo vós eu estou em casa. Sou livre ainda e se ora aqui me instalo é para vos trazer sempre em cuidado -que entre os meus moro e piso a terra minha enquanto em vós... divide-se a lembrança entre outras terras


e o medo de não mais poder pisá-las --. Eu se morrer ao menos morro em casa. E vós? Não deixareis aqui junto com as armas vossas ossadas que afinal não são mais brancas do que as minhas que sou negra?

Fala de Musurukutu

nomeado rei pelos Mucabuis para fazer a guerra e de quem, evadido que foi do hospital do Lubango, nunca mais se ouviu falar.

Rei me fizeram para governar a guerra e do sangue da raça me investi.

Perdi o reino e a graça de uma paz em que reinava sem ter sido eleito.


A guerra está perdida: para me encontrar agora é procurar pastor.

Pastor que sou ser rei não faz sentido e estar na vida é depender da chuva e não do mando.

Que não vos dê cuidado a minha fuga. Não fujo para reinar porém para ter o Sol de novo às mãos e o leite azedo.


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