Sociologia da educação - 1 Semestre (UBC)

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ALGACIR JOSÉ RIGON

SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO 1ª edição

Universidade Braz Cubas - UBC Mogi das Cruzes 2014


Av. Francisco Rodrigues Filho, 1233 - Mogilar CEP 08773-380 - Mogi das Cruzes - SP

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Prof. Maurício Chermann

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Michelle Carrete

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1ª edição 2014 Foi feito o depósito legal. O autor dos textos presentes neste material didático assume total responsabilidade sobre os conteúdos e originalidade. Proibida a reprodução total e/ou parcial. © Copyright UBC 2014

R428s Rigon, Algacir José. Sociologia da Educação / Algacir José Rigon. - 2014. - Mogi das Cruzes, SP. 141p. Bibliografia ISBN - 978-85-65148-53-5 1. Sociologia da educação. Pedagogia sociológica. CDU-37.013.78


Prof. Dr. Algacir José Rigon

1*

* Possui graduação em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo (UPF-2002); Mestrado em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF-2005) e Doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo (FE-USP 2011). Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Filosofia, Filosofia da Educação, Fundamentos da Educação, Metodologia, Genética e Linguagem, Psicologia da Educação e Prática Pedagógica. Atua principalmente nos seguintes temas: formação de professores, educação, funções psicológicas superiores, Escola de Vigotski, materialismo histórico-dialético, metodologia, genética, biologia da educação, psicologia da educação, linguagem e educação infantil. Trabalha como Professor EAD na Universidade Braz Cubas - UBC. Trabalha também em cursos presenciais na UMC - Universidade de Mogi das Cruzes. Participa do Grupo de Estudo e Pesquisa da Atividade Pedagógica (GEPAPe).



SUMÁRIO APRESENTAÇÃO

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INTRODUÇÃO

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UNIDADE I

INTRODUÇÃO À SOCIOLOGIA GERAL E DA EDUCAÇÃO

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1.1  SOCIOLOGIA NO OCIDENTE

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1.2  CONSIDERAÇÕES DA UNIDADE I

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UNIDADE II

LINHA EXPLICATIVA POSITIVA FUNCIONALIDADE E A SOCIOLOGIA COMPREENSIVA

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2.1  A VEZ DE AUGUSTO COMTE

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2.2  A VEZ DE ÉMILE DURKHEIM

43

2.3  A VEZ DE MAX WEBER

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2.4  A AÇÃO

52

2.5  TIPO IDEAL E BUROCRACIA

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2.6  CONSIDERAÇÕES DA UNIDADE II

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UNIDADE III

A SOCIOLOGIA DIALÉTICA DE KARL MARX E IMPLICAÇÕES EM ROUSSEAU

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3.1  UM HISTÓRICO DE VIDA A SER CONSIDERADO

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3.2  PRINCÍPIOS ANTROPOLÓGICOS

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3.3  A ALIENAÇÃO

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3.4  A ALIENAÇÃO DO PRODUTO DO SEU TRABALHO

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SUMÁRIO

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3.5  A ALIENAÇÃO NO ATO DE PRODUÇÃO

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3.6  O HOMEM ALIENADO DE SUA ESPÉCIE

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3.7  O HOMEM ALIENADO DO SEU SEMELHANTE

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3.8  A IDEOLOGIA ALEMÃ

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3.9  A HISTÓRIA

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3.10  OUTRAS IDEIAS GERAIS SOBRE O MARXISMO

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3.11  O MANIFESTO COMUNISTA

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3.12  VONTADE GERAL COMO BOM SENSO E LEGITIMADORA DO CONTRATO SOCIAL: IMPLICAÇÕES EM ROUSSEAU

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3.13  CONSIDERAÇÕES DA UNIDADE III

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UNIDADE IV

EDUCAÇÃO, GLOBALIZAÇÃO, NEOLIBERALISMO E PÓSMODERNIDADE

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4.1  EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO OU NEOLIBERALISMO

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4.2 GLOBALIZAÇÃO/NEOLIBERALISMO

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4.3  E A EDUCAÇÃO?

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4.4  DARWINISMO SOCIAL E NEOLIBERALISMO

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4.5  A INDÚSTRIA CULTURAL – PERSPECTIVA DA SOCIOLOGIA CRÍTICA 113 4.6  A MODERNIDADE E A PÓS-MODERNIDADE

120

4.7  CONSIDERAÇÕES DA UNIDADE IV

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REFERÊNCIAS

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SUMÁRIO

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APRESENTAÇÃO Seja bem-vindo(a) à disciplina de Sociologia da Educação. Convido você, caro(a) educando(a), a iniciar os estudos em uma temática que não somente fortalece a sólida formação do futuro profissional da educação, conjuntamente com outras disciplinas, mas também nos autoriza a dizer que ingressamos num estudo sobre as questões ligadas à participação consciente na vida política da sociedade na qual estamos inseridos. Aquilo que aponto aqui faz parte, sem dúvida, de uma discussão que precisa ser explorada detalhadamente consultando, de modo especial, as obras originais dos autores citados. Por isso, não será demais frisar que aqui você terá um pequeno fragmento dos estudos na área da sociologia do educando. É necessário, portanto, que você busque outras fontes, tanto diretamente ligadas ao conteúdo oferecido aqui, quanto em bibliotecas, sites de revistas ou, enfim, nas diversas fontes confiáveis de que dispomos. Lembre-se de que vídeos (incluindo as teleaulas), noticiários, artigos em revistas, jornais, entre outros, devem fazer parte da rotina de estudo. Minha preocupação vai com a chamada “geração MTV”, “geração facebook” e outras que não conseguem acompanhar ou formular argumentos de modo sistemático e reflexivo. Isso se torna preocupante, pois nos deixa cegos e a margem da ignorância. Saber, ter a informação é importante, mas digeri-la é imprescindível. Por fim, quero dizer que não se sinta só. Estarei junto a você nessa caminhada, partilhando conhecimentos, experiências e, ainda, indicando possíveis referências para que você possa ter uma formação exemplar. Que você se sinta encorajado a ir à busca de novas respostas (por mais que permaneçam as velhas perguntas) construídas por meio da pesquisa e dos novos conhecimentos. Portanto, você está convidado a me seguir nessas discussões para juntos discutirmos os ideais que possam guiar as relações sociais e, com isso, reavivar e acalentar o sonho de uma sociedade justa, em que se possa viver num completo estado de bem-estar social.

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APRESENTAÇÃO

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O homem que a educação deve realizar, em cada um de nós, não é o homem que a natureza fez, mas o homem que a sociedade quer que ele seja; e ela o quer conforme o reclame a sua economia interna, o seu equilíbrio. (Emile Durkheim)

Não é a consciência que determina o ser social. Ao contrário, é o ser social que determina a consciência. (Karl Marx)

Por trás de todas as discussões atuais sobre as bases do sistema educacional, se oculta em algum aspecto mais decisivo a luta dos “especialistas” contra o tipo mais antigo de “homem culto”. Essa luta é determinada pela expansão irresistível da burocratização de todas as relações públicas e privadas de autoridade e pela crescente importância dos peritos e do conhecimento especializado. (Max Weber)

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APRESENTAÇÃO


INTRODUÇÃO O nosso propósito, neste percurso de aprendizado, é subsidiar as reflexões em torno das grandes mudanças sociais e, ainda, relacionadas ao trabalho – especificamente o docente. Geralmente, o problema aparece nessas situações colocado como um problema de educação, ou seja, se fala em qualificação profissional, busca por compreender o que está acontecendo na sociedade, a possibilidade das pessoas acompanharem, num sentido pessoal, as mudanças sociais, enfim, uma porção de expectativas que mexem com os brios da educação. Nessas circunstâncias, também é comum encontrar pessoas que ao serem interpeladas sobre a perspectiva de que a sociedade se modifique, de que o Brasil melhore, de que o estado geral de bem-estar das pessoas seja elevado a algum nível superior, respondam a partir do “senso comum”, isto é, sem respostas plausíveis. Na maior parte dos casos, gerando uma sensação de pessimismo em relação ao futuro da sociedade. A sociologia da educação, nesse sentido, é um saber que se tenta construir racionalmente para compreender as relações estabelecidas socialmente, bem como para se pensar a educação de forma crítica. Isto é, buscam-se com esse estudo as contribuições de diversos teóricos para explicar os fatos sociais e os acontecimentos educacionais. Portanto, cabe destacar os questionamentos e as possíveis respostas para a justificação e legitimação das políticas educacionais adotadas, o direito universal a educação ou o pensar sobre uma educação enquanto direito universal, para que todos possam usufruir concretamente dos benefícios daquilo que a humanidade produziu em termos de cultura ao longo dos tempos. Outra questão ainda se faz necessária aqui: como devem ser os mecanismos de transmissão, apropriação da cultura, dos conhecimentos ou da ciência? Os temas que nos pautam nestas próximas unidades estão orientados, ainda, para formar uma base diversificada de análises, referenciais e/ou pressupostos para que os futuros educadores, com apoio nesses referendos, compreendam um pouco mais os processos e mecanismos sociais que conduzem a organização da escola, bem como daquilo que está institucionalizado enquanto processo educativo (pedagógico).

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INTRODUÇÃO

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Por fim, em alguns momentos o texto trata unicamente de apresentar a forma como os autores pensavam, a teoria num sentido “cru”. Em outros momentos, exploramos relações com a organização do processo educativo, com a organização da sociedade em geral e, também, implicações particulares para a vida como cidadão. De todo modo, destacam-se, sempre que possível, aqueles aspectos que contribuem para a educação direta ou indiretamente.

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INTRODUÇÃO


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UNIDADE I

INTRODUÇÃO À SOCIOLOGIA GERAL E DA EDUCAÇÃO OB JET IVOS D A UN ID A D E

Propiciar a reflexão sobre a relação entre o contexto educacional e as relações sociais de determinado contexto;

Introduzir o pensamento sociológico.

HAB IL IDADE S E C O MP E T Ê N C IA S •

Percepção da relação entre os estudos sociológicos e os aspectos educacionais;

Interpretação e compreensão das relações sociais como relações que implicam determinada visão de homem enquanto indivíduo, e de sociedade enquanto coletividade.

UNIDADE I - INTRODUÇÃO À SOCIOLOGIA GERAL E DA EDUCAÇÃO 11

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Mas, enfim, o que é a Sociologia e para que serve?

Alguns fundamentos da reflexão sociológica que são imprescindíveis para se entender o mundo social:

Não há, em Sociologia, uma uniformidade de opiniões a respeito daquilo que esta disciplina representa para o homem em geral. No mais das vezes, a Sociologia é tomada como uma arma poderosa para servir apenas a alguns interesses que, via de regra, são sempre os interesses das classes dominantes (a dita minoria privilegiada). Para outros tantos, a sociologia não tem sido nada mais, nada menos, do que uma ferramenta para as classes revolucionárias – é a tese de que (se você observar vai perceber) quem estuda sociologia com maior destaque são os participantes dos movimentos sociais: MST, MABs, MCP, e outros. Contudo, embora exista essa divergência de utilização da Sociologia, ainda é necessário responder a pergunta primeira: o que é a Sociologia?

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UNIDADE I - INTRODUÇÃO À SOCIOLOGIA GERAL E DA EDUCAÇÃO


Resumidamente, a Sociologia é a ciência que estuda o homem e o meio humano em suas múltiplas relações. Dito de outra forma, é o estudo das sociedades humanas e de todos aqueles processos que interligam os indivíduos, podendo ser, nesse caso, em pequenos grupos, comunidades, associações (as mais diversas), em instituições, nações, dentre outros agrupamentos. Outras áreas do saber ou do conhecimento (ciência) também estudam o indivíduo e suas relações, mas o foco é outro. Por exemplo, a psicologia estuda o homem, mas podemos falar de indivíduo, pois estuda o homem isolado, isto é, sem suas relações com as insitiuições. A Sociologia se diferencia, pois estuda especificamente os fenômenos que acontecem quando vários indivíduos formam um “todo” organizado (grupos de diferentes tamanho e/ou formas) e, ainda, possuem uma determinada forma de relação (interação). Em última instância pode-se dizer que o objeto da sociologia é o estudo do homem na sociedade. Alguns pesquisadores fazem uma diferenciação, ou seja, subdivisões da sociologia conforme suas especificidades. Outros nem tanto, apenas apontam que há uma sociologia geral, que é detentora de regras gerais, conceituações gerais a respeito das organizações sociais e algumas vertentes menores que se dedicam a alguma especificidade do objeto (que é o homem na sociedade). Assim, conforme algumas especificidades, teríamos sociologia da educação, da religião, do direito, da família, comparada, descritiva, entre outras. O que nos cabe é um objeto específico, ou seja, a sociologia da educação. Assim, pode-se perguntar novamente: mas a educação, para a sociologia, o que é? A educação, num sentido mais específico, é a ação de alguns membros da sociedade sobre outros de alguma forma, a ação das gerações mais velhas sobre as gerações mais novas, a ação dos adultos sobre as crianças e adolescentes (E. Durkheim). Apesar desse conceito geral, deve-se salientar que a educação nunca foi a mesma durante todos os tempos. Conforme foram se modificando as configurações sociais, também foi se configurando novas formas educativas. Assim, tem-se que a educação foi cristã (ou religiosa) na Idade Antiga e Medieval, na Renascença foi leiga e, no momento contemporâneo de nossa existência, educação no sentido mais científico, educação que exige o status de ciência – a pedagogia.

UNIDADE I - INTRODUÇÃO À SOCIOLOGIA GERAL E DA EDUCAÇÃO 13

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Os precursores, os primeiros pensadores a se debaterem com o estudo das relações humanas e a constituição das sociedades, foram, talvez, os helênicos (os gregos). Essas primeiras ideias carregavam o peso da religiosidade das diferentes populações, ou mais do que isso, estavam atreladas ao fato de se pensarem algumas leis, regras (direito, legislação...) de convivência com a única finalidade de que a sociedade pudesse ser uma organização harmônica. Nesse sentido é que temos algumas propostas de Platão, no seu livro “República” e, ainda, “Aristóteles”, de modo especial, no livro intitulado “A Política”. Esse cenário de interpretação, inclusive de fundamento religioso, ganhou força na Idade Medieval. Apenas foi modificada a partir da Renascença, primeiramente nos questionamentos de Campanella (A Cidade do Sol) e T. Morus (Utopia). A partir desse momento, os problemas sociais tiveram uma tonalidade econômica e eram pensadas por meio do uso da força, ou seja, relações de “mando” e, foi desse aspecto que alguns trabalhos precursores, como os de Maquiavel (Itália em Florença, 1469 - 1527) e Montesquieu (França em Bordéus, 1689 - 1755) trataram do problema do homem na sociedade. Muitos outros autores se tornaram conhecidos por trabalhos nessa área: T. Hobbes, Bacon, Descartes, Hume, Locke, Rousseau, etc. 14

UNIDADE I - INTRODUÇÃO À SOCIOLOGIA GERAL E DA EDUCAÇÃO


Contudo, aquilo que se considera estudo científico dos fatos humanos se constitui somente em meados do século XIX. Nessa época, quer ser queira, quer não se queira, assistia-se ao triunfo dos métodos das ciências naturais. Os pensadores de destaque nessa posteridade foram Augusto Comte (1798-1857), Karl Marx, Emile Durkheim, Max Weber, Talcott Parsons e outros. Isso, pode-se apontar, foi a comprovação da fecundidade do caminho metodológico da ciência apontado ainda por Galileu (Itália em Pisa, 1564 - 1642) e outros. Alguns desses pensadores que, inevitavelmente, procuravam conhecer cientificamente os fatos humanos passaram a abordá-los, por sua vez, segundo as coordenadas das ciências naturais. Outros, ao contrário, resistiram a essas tentativas e afirmavam que o fato humano detinha certa especificidade e, por conseguinte, havia a consequente necessidade de uma metodologia própria. Dentre outras coisas, essa metodologia das ciências humanas deveria levar em consideração, principalmente, o fato de que os fenômenos naturais, tanto no sentido de serem externos aos homens, bem como os internos, são conhecimentos que não exigem que o homem tenha consciência (eles existem por si só), tampouco o homem pode modificá-los, mas, nas ciências sociais, o que se procura conhecer é algo que diz respeito a própria experiência humana, nesse sentido, algo que diz respeito aos aspectos que o homem cria, modifica, significa, em suas relações com os demais e na sociedade (algo interno no sentido da subjetividade humana). As distinções sugeridas entre as ciências humanas e as ciências naturais são as mais variadas. Mas podemos nos ater, conforme alguns sociólogos, somente a uma em especial, isto é, a distinção entre experiência externa e experiência interna, que já é o bastante para fazer uma diferenciação entre uma série de contrastes metodológicos para esses agrupamentos científicos. Sendo assim, as ciências exatas partiriam da observação sensível e, concretamente, seriam experimentais. Nesse caso, é possível obter dados mensuráveis, regularidades estatísticas, enfim, tudo o que possa conduzir à formulação de leis de caráter matemático. As ciências humanas, por outro lado, diriam respeito à própria experiência humana, seriam introspectivas, esfera da subjetividade e, em termos de pesquisa, utilizariam a intuição direta dos fatos. Com isso, atingiriam não as generalidades de UNIDADE I - INTRODUÇÃO À SOCIOLOGIA GERAL E DA EDUCAÇÃO 15

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caráter matemático, mas sim, e apenas, as descrições qualitativas de tipos e formas fundamentais da vida do espírito, aspectos ideais. Os chamados positivistas (são teóricos que tem inspiração nas ideias de Augusto Comte e defendem que tanto as ciências exatas quanto as ciências humanas possuem o mesmo princípio fundamental que as torna ciência e as identifica) possuem uma forma de pensar originada na tradição do empirismo inglês que, por sua vez, é um pensamento que tem origem em Francis Bacon ( Inglaterra em Londres, 1561 – 1626), depois, segue adiante, com David Hume ( Escócia em Edimburgo, 1711 – 1776 ), e, ainda, numa série de outros pensadores que os seguiram, de modo especial, no século XIX. Nessa perspectiva de pensamento estão as abordagens, conforme já mencionei, de figuras como Augusto Comte (França, 1798 – 1857 ) e Émile Durkheim ( França, 1858 – 1917 ). Este último é considerado, ainda hoje, como o fundador da sociologia moderna, ou seja, aquele que deu para a sociologia o status de disciplina científica. Mas a posição que via as ciências humanas como idênticas às ciências exatas, ou como ciências que poderiam ter como fundamento os mesmos princípios, não foi uma posição homogênea. Haviam muitos que eram antipositivistas, isto é, adeptos de uma distinção entre ciências humanas e ciências naturais. Alguns nomes importantes de estudiosos que pensavam dessa forma são, sobretudo, os idealistas, filósofos, como aqueles pertencentes a época do Romantismo, cito Hegel ( Alemanha em Esturgarda, 1770 – 1831 ) e Schleiermacher ( Polônia em Breslau, 1768 – 1834). Outros representantes dessas posições foram pensadores que tiveram inspiração no filósofo alemão, Imanuel Kant (Alemão de Konigsberg, 1724 – 1804). São, portanto, os chamados neokantianos: Wilhelm Dilthey (Alemanha em Briebrich, Renânia, 1833 – 1911), Wilhelm Windelband (Alemanha em Potsdam, 1848-1915) e Heinrich Rickert (Alemanha em Danzig, 1863 – 1936). Dilthey procedeu a uma distinção entre explicação (erklären) e compreensão (verstehen) que teve grande êxito na área sociológica. O modo explicativo seria característico das ciências naturais, que procuram o relacionamento causal entre os fenômenos. A compreensão seria o modo típico de proceder das ciências humanas, que não estudam fatos que possam ser explicados propriamente, mas visam aos processos permanentemente vivos da experiência humana e procuram extrair deles seu sentido. 16

UNIDADE I - INTRODUÇÃO À SOCIOLOGIA GERAL E DA EDUCAÇÃO


Os sentidos, por sua vez, na perspectiva de Dilthey, são dados na própria experiência do investigador, ou de outra forma, mas dependem sempre da relação com a experiência, nunca tem uma origem exata e precisa a partir do significado. Poderiam, ainda, ser empaticamente apreendidos por outros em interação com o investigador, conforme a vivência de cada um. Esses personagens como Dilthey, Windelband, Rickert e outros, contudo, foram filósofos e historiadores. Nesse caso, não são, propriamente, cientistas sociais, no sentido que a expressão ganharia no século XX. Outros levaram o método da compreensão ao estudo de fatos humanos particulares, constituindo diversas disciplinas compreensivas. Na sociologia, essa tarefa estaria muito mais a cargo de um sociólogo chamado Max Weber. Levando-se em conta os esforços realizados por tantos pensadores, desde a Antiguidade, para entender a sociedade e o seu desenvolvimento, o homem e suas relações, a Sociologia poderia ser considerada a mais velha de todas as ciências, a que primeiro teve origem. Tanto que hoje em dia praticamente todo mundo é “sociólogo” — “porque todos estamos sempre analisando os nossos comportamentos e as nossas experiências interpessoais”1 —, pois, até por razões emocionais, de alguma forma nos acostumamos a contemplar e a dar palpite sobre os movimentos da sociedade, as forças que conduzem os seres humanos, as razões dos conflitos sociais, as origens da família, as relações entre Estado e Direito, o funcionamento dos sistemas políticos, a função das ideologias e das religiões etc. Segundo esse raciocínio, podem ter sido sociólogos das religiões alguns santos, que dedicaram sua vida a pensar algumas relações entre as pessoas, por exemplo, Agostinho (354 – 430 ), Tomás de Aquino (1225 – 1274) e padre Antônio Vieira (1608 - 1697), que interpretavam a realidade social de acordo com os dogmas e interesses da Igreja Católica. Santo Agostinho2, por exemplo, fala das relações entre os homens quando pensa sobre o aspecto ontológico do mal. Ele diz que o mundo em que vivem os homens possui algo chamado de mal. Esse fenômeno conhecido tem por desconhecido sua 1 TURNER, 2000. 2 Para tratar de Santo Agostinho, tomou-se por base os apontamentos de REALE, G. História da Filosofia, Cap. XV: p.455 e 456.

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origem e ainda mais, está embutido de alguma forma nos homens que, por tal, são criaturas de Deus que afirmam ter criado tudo. Será, portanto, que esse Deus criou o mal também? Se criou, por que criou, se afirmam ser um “ser” bom, perfeito e tudo mais? Se não criou de onde provém este mal? Talvez Agostinho tenha encontrado uma possível solução através de Plotino em que o mal não é um ser, mas deficiência e privação de ser. No Livre-Arbítrio, Agostinho afirma que Deus criou todas as coisas por meio do verbo e de sua procedência todas as coisas são boas, sendo que o pecado não pode fazer parte da ordem providencial e por tal é preciso compreender aquilo em que cremos. Parece então que chega a conclusão de que a fonte do mal está no abuso da liberdade, mas a liberdade é, todavia, um bem. A discussão que se dá entre Agostinho e Evódio se refere à questão se Deus é o autor do mal. Decorrente disso, é feito uma distinção entre um mal que Deus poderia ser a causa, mas que na verdade é uma provação e de um mal que se comete e não se sabe a origem, ou unicamente se sabe que cada um que pratica uma má ação é autor de tal. Ele deixa claro também que o mal não pode ser ensinado. Escreve Agostinho, mais ou menos dessa forma, segundo Miguel Reale: E o mal, cuja origem eu buscava, não é uma substância, porque se fosse uma substância, seria um bem. E, na verdade, seria uma substância incorruptível e, por isso, sem dúvida um grande bem ou seria uma substância corruptível e, por isso, um bem que, de outra forma, não poderia estar sujeito à corrupção. Por isso, vi claramente como tu fizeste boas todas as coisas. Agostinho faz esta afirmação ao olhar do ponto de vista metafísico, ontológico e diz que o que existe são apenas graus inferiores de ser em relação a Deus e não mal no cosmos. No cosmos os desajustes que poderiam parecer “o mal” fazem parte do todo harmônico como um conjunto de “momentos articulados”. Pode ainda julgar que a existência de seres nocivos é um “mal”, mas isto, diz Agostinho, é porque estamos medindo com o metro da nossa utilidade e de nossa vantagem contingente, pois cada coisa tem o seu sentido e razão de ser e desse modo é algo positivo. Do ponto de vista moral, o mal é o pecado e depende da “má vontade”, que diz Agostinho ter uma causa deficiente, a qual é uma tendência por haver diversos bens, de a vontade preferir a criatura ao invés de Deus. A vontade se torna má porque 18

UNIDADE I - INTRODUÇÃO À SOCIOLOGIA GERAL E DA EDUCAÇÃO


se volta contra a natureza, dirigindo-se daquele que é seu ser supremo para um ser inferior, por que a liberdade é algo bom e o pecado está no homem, como Agostinho deixa claro quando diz: “O bem em mim é obra tua, é teu dom; o mal em mim é o meu pecado”. Em relação ao mal físico, afirma ser o mal do pecado que corrompe a alma e esta reflete no corpo, tornando assim a “carne corruptível”. O mal parece ser então uma privação de ser ou privação de bem e cuja solução proposta para esse problema é estética, para o mal físico e moral. Sendo privação de ser o mal é algo não metafísico e só pode ter vindo ao mundo humano através do pecado original e atual; para tal a humanidade foi punida, os homens foram punidos com sofrimentos. Diz ainda, com a vinda de Cristo torna-se possível apenas a restituição do mal moral, mas as consequências físicas do mal continuam. O mal tem então sua gênese no pecado original e depende-se da graça de Deus para a redenção, como que uma predestinação em que uns pela graça terão mais sorte que outros. Porém, a igreja (o pensamento cristão) interveio nisso afirmando que o homem é livre na decisão e que Deus apenas sabe de antemão o que acontecerá no final. O problema do mal foi muito difícil para Agostinho a ponto de em algumas passagens se referirem ao mal apenas como uma ausência de bem, do mesmo modo que as trevas são a ausência de luz. Sua posição nessa questão permaneceu vacilante. Sua teoria serviu de sustentação por muito tempo, e até hoje pode-se dizer que ainda é muito usada. No entanto, o problema do mal atual parece ter outras dimensões da qual a teoria de Agostinho, como um todo, está um pouco inválida e muito criticada. O mundo moderno está voltado para a ciência e fica difícil uma teoria consistente sobre qualquer coisa quando se afirma que a verdade não é absoluta, mas sim válida até que ninguém prove ao contrário ou válida apenas se for provada cientificamente. Seria de tamanha dificuldade estabelecer uma solução para esse problema. Vive-se num mundo em que os conceitos estão um tanto em crise, segundo a concepção pós-moderna, e, portanto, não há como fazer com que se afirme uma verdade, mas apenas possibilidade de verdade, o que faz com que o homem continue inseguro e o problema esteja aí para ser manipulado. O homem científico fica, se visto UNIDADE I - INTRODUÇÃO À SOCIOLOGIA GERAL E DA EDUCAÇÃO 19

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de maneira mais profunda, num padrão em que o mal passa a ser uma possibilidade de existir, na medida em que relativizamos a existência de Deus e também não sabe-se com certeza o que é o mal. Isto fica como uma problematização para se aprofundar mais a questão. Por ora, pode-se dizer que o mal é um problema constante que sempre afeta a mente das pessoas, ou de outra forma, se faz presente nas relações sociais entre os homens. Contudo, aquilo que Agostinho não o resolveu teve outras propostas de investigações, por outros pensadores e também em outras áreas do saber. Outros pensadores notáveis também trataram, de alguma forma, da sociologia, como lbn Khaldun, historiador islâmico (1332 – 1406 ). Falemos um pouco de Ibn Kaldun:

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UNIDADE I - INTRODUÇÃO À SOCIOLOGIA GERAL E DA EDUCAÇÃO


“O PRÍNCIPE” – N. MAQUIAVEL Por sua vez, Maquiavel criticava toda interpretação teológica da sociedade. Após uma época em que se vive praticamente em nome de Deus, dos homens, e do lucro e isso seria a Idade Média, surge a Modernidade. Porém, sabe-se que não existe um marco, ou corte abissal nessa mudança ou transformação, mas sim um período de transição que se estende dos fins da Idade Média, com o surgimento de novas ideias, provocadas por “n” fatores, até o começo da Modernidade em que de fato se distingue ou fica claro que ocorreu essa mudança, seja de valores, costumes ou outros ideais. Maquiavel é alguém que está imbuído dessa transição, talvez um dos precursores da Modernidade de onde lançará uma perspectiva ou solução que refletirá na promoção da modernidade e, cujas teorias fazem parte de um de seus livros (Príncipe) mais lido e usado por todo aquele que deseja obter um saber acerca de política, poder e marketing. Desse livro se extrai: “A um príncipe pouco deve importar às conspirações se é amado pelo povo, mas quando este é seu inimigo e o odeia deve temer tudo e a todos”. Pergunta-se então: Nicolau Maquiavel é maquiavélico por ser cínico ou por ser racional moderno? A resposta poderá ser dada a partir do livro “O Príncipe”3 e a sua contextualização. 3 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Porto Alegre: L&PM,1999.

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Maquiavélico é tido segundo o dicionário Aurélio4 como pertencente ou referente ao, ou próprio do maquiavelismo, maquiavelista. Que tem, ou em que há perfídia, dolo, má-fé, astuto, velhaco, ardiloso. Cínico, do mesmo, significa pertencente ou relativo ao cinismo. Que ostenta princípios e/ou pratica atos imorais; impudico; obsceno; personagem que representa o indivíduo sem escrúpulos, hipócrita, sarcástico e oportunista. Ser racional moderno é ter a “doutrina da intuição racional do absoluto como fonte única, ou pelo menos principal, do conhecimento humano”5. Racional, segundo o dicionário, diz-se de conhecimentos resultante de princípios a priori e complementaria com o caráter de necessidade lógica e valor universal. Moderno é tido como adaptação aos usos ou necessidades que surgem ou mesmo designação de uma cultura mais humanista e antropocêntrica. É um tanto difícil caracterizar racional moderno, mas espero ter ficado, ao menos, às margens do entendimento, por ora. O contexto de Maquiavel tem relação com Florença, na Itália, e a história até os dias atuais, em que a situação de transição parece ocorrer de modo semelhante, claro que com novas ideias e contexto. Nicolau Maquiavel nasceu em 3 de maio de 1469 e morreu em 21 de junho de 1527. Sua vida e moradia se dá em Florença, Itália. Seu pai era legislador e sobre a formação de Nicolau pouco se sabe, do que consta apenas que era historiógrafo. De família não muito rica, trabalhou como secretário da senhoria. A carreira política de Maquiavel passa a se desenvolver no período entre a queda de Savonarola e o retorno dos Médicis no governo de Florença. Maquiavel era alguém que se dedica a viajar muito para buscar melhores condições para Florença, e também lia e escrevia muito. É alguém que lutava por seus objetivos; tomava partido ou posição, mas sempre a partir de seus interesses como consta na carta aos partidários de Médicis. Reconhecia seus talentos e se vangloriava um pouco de possuí-los em que eram claras as características de lealdade, honestidade e dedicação ao seu trabalho de secretário. “Olhava” as reviravoltas dos principados “de fora,” o que seria necessário para alcançar um possível objetivo que era ser príncipe e do qual posteriormente escrevia um livro com características de um príncipe, publicado após sua morte. E “O Príncipe”, segundo

4 Cada vez que se mencionar dicionário será do Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa da Ed. Fronteira, 1986. 5 Esta anotação tem fonte bibliográfica duvidosa e por tal não será mencionada.

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UNIDADE I - INTRODUÇÃO À SOCIOLOGIA GERAL E DA EDUCAÇÃO


consta, foi inspirado na personalidade de César Bórgia e de Castruccio Castracani, embora não se reduza a isso. O que ocorreu é que César B. foi para Maquiavel um príncipe ideal, ou um dos príncipes modelos juntamente com o monarca Castruccio C. Esse livro foi elaborado quando Maquiavel, destituído do cargo de secretário, passou a morar fora de Florença em San Andréa in Percussina.

“Alguém disse que a igreja não tinha forças para unificar a Itália sob sua égide, mas era forte o suficiente pra impedir essa unificação. Essa unificação seria o grande sonho da vida de Maquiavel. É nesse sentido que ele direciona O Príncipe – começado no tempo de exílio. Maquiavel usou o livro tentando sensibilizar os Médicis para a situação”.6 Maquiavel não conseguiria viver longe do poder, mas sua condição social era um obstáculo quase intransponível para sua carreira política da qual era ambicioso (JUNIOR, 1999, p.47).

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JÚNIOR, José N.. Maquiavel o Poder. São Paulo: Martin Claret, 1999, p. 45.

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Faz-se necessário saber ainda dois conceitos que são parte imprescindível de “O Príncipe”: virtú e fortuna. É um tanto inviável de explicar na sua originalidade, pois os textos que nos remetem a esses termos são por vezes contraditórios, opostos, e trazem os conceitos de forma ambígua. Por ora temos a noção de fortuna em que “traduz ao mesmo tempo uma opção intelectual sobre o todo sempre a excluir a compreensão de determinismos parciais”.7 Será tratado sobre a fortuna no cap. XXV de “O Príncipe”. Virtú é também de difícil tradução e até melhor seria por vezes não afirmar, ao invés de dizer que virtú seja simplesmente a designação da coragem da qual o homem viril desfruta. Segundo o livro de história8 “virtú era para Maquiavel a capacidade de o governante escolher a melhor estratégia para a ação de seu governo, enquanto fortuna remetia às contingências às quais os homens estão submetidos”. Por tal, toma-se também a concepção de José N. Júnior em que virtú é a energia, a capacidade, o empenho, a eficácia, a vontade dirigida para o objetivo. Embora pareça com vários sentidos vincula-se sempre o elemento vital, positivo construtivo que impulsiona para a realização e a conquista. Já a fortuna é a sorte, que pode ser boa ou má, é o acaso, são as circunstancias; enfim a oportunidade. Nicolau M. foi alguém que não esqueceu o passado para poder viver em paz e muito menos viveu longe da realidade que o cercava. Na história é que buscava exemplos para acumular “na maior variedade possível, para poder imitar” (DUVERNOU, 1994, p.46); imitar se fossem bons e dignos de sê-los e evitá-los se forem errôneos ou desagradáveis de tal modo que a história “nos ensina a viver”. Maquiavel é de qualquer modo fruto de sua época e, portanto, nada melhor do que entendê-lo a partir da história, sendo que para ele também “o que todos os dias se acumula convém purgá-lo de tempos em tempos” (DUVERNOU, 1994, p.21). Nicolau, como um historiógrafo, certamente estará imbuído dos aspectos de mudança que ocorrem nesta transição, por isso veja-se que a situação vivida no início da mudança era como mostram as palavras do bispo Adalbertão que afirmava: “Tripla é a casa de Deus, que se crê una: embaixo uns rezam, outros combatem, outros ainda trabalham; os três grupos estão juntos e não suportam ser separados; de forma 7 8

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DUVERNOU, J.F.. Para Conhecer o Pensamento de Maquiavel. Porto Alegre: L&PM,1974, p. 66. MOTA & BRAICK. História das cavernas ao terceiro milênio. Belo Horizonte: Ed. Moderna,1998, p.101.

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que sobre a função dum repousam os trabalhos dos outros dois, todos por sua vez entreajudando-se” (MOTA, BRAICK, 1998, p.85). Assim, com a universidade que já havia surgido cabe aos humanistas começarem o processo de desvinculação entre a razão e a fé. A mulher começa a se liberar e ganhar espaço. Na igreja eram feitas doações em troca da recompensa espiritual, de tal modo que os burgueses conseguiram por vezes neutralizar a oposição da igreja e as suas atividades. Assim, a situação mais desagradável ocorrida nesse ambiente foi o espírito guerreiro que a igreja conduziu para as famosas Cruzadas contra os “infiéis” da Terra Santa. A partir de então começa o fim, especialmente com a dizimação de milhares de pessoas pela Peste Negra, que ocasionou uma crise generalizada a qual obrigou as várias classes sociais, ou talvez categorias sociais, a buscar uma solução para o problema. Esses fatos, na verdade, eram um presságio de um novo modelo que iria surgir na Europa. Ao abrir os olhos, hoje vê-se que no final de século ou milênio as estruturas políticas, econômicas ou organizacionais passaram por uma mudança semelhante a qual começou com a fragmentação da União Soviética e a desestabilização do socialismo, que exercia grandes poderes até então. São tentativas de uniões como os grupos União Europeia, MERCOSUL e Nafta. O caos da Idade Média instala-se novamente e a perda não é mais do estado-nação, cidade-estado, mas vê-se constantes choques religiosos, tribais, separatistas e nacionalistas, sendo este último mais intenso e causado pela dita globalização e o crescente dualismo entre as classes mais pobres e as mais ricas, tendo-se em vista uma nova ordem social. O grande sonho de Maquiavel era a unificação da Itália, e certamente o anseio de muitos outros povos imbuídos do contexto histórico provocado pelo desejo de diminuir os inúmeros dialetos que estavam em voga, em uma única língua9, mas só seria possível com o estado nacional, o que de certo modo foi provocado pelo Renascimento. De bom grado veio a Reforma Protestante em que geraram polêmicas e rompimento do clero e com o clero católico. “A ideia de Nação estava vinculada à 9 Entenda-se aqui que não eram somente as línguas, mas ter um governo fixo, uma única moeda, uma identidade de país como tal.

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necessidade de apoiar a soberania do príncipe, vital para a construção de um estado forte e competitivo, pronto para justificar as decisões mais graves da política exterior” (MOTA, BRAICK, 1998, p. 99). Vê-se aqui uma visão de gnosticismo humanista e mais ainda um caráter antropocêntrico que geraria uma cultura autônoma e independente das instituições da igreja. Assim, pode-se dizer que esse foi um movimento que deixou de pensar no cristianismo e seus aspectos, mas que não perdeu de todo a sua fé. E, para se falar de Florença, pode-se dizer que daí surgiu o humanismo ou mais propriamente da Academia Platônica de Florença, que por tal foi de certo modo o centro das ideias deste gnosticismo e neopaganismo. O humanista imbuído de todo esse conteúdo transicional de pensar outras coisas, que melhor representa a nova ideia de nação e, por ventura, o apresentador das conclusões do ideal de nação e poder, é o florentino Nicolau Maquiavel. Uma das perguntas sempre é feita: Maquiavel é racional moderno ou cínico? Se fosse W. Shakespeare ele iria dizer, mais ou menos, que: “é difícil descobrir o interior, ou a intenção de um homem, pois, às vezes, pouco combina com seu exterior”.

“Maquiavel atrai porque tem o fascínio das coisas práticas. O Príncipe é um guia para a ação e suas palavras visam orientar o acesso e a permanência no poder dentro de uma perspectiva de política e estado peculiares ao tempo em que Maquiavel viveu” (JUNIOR, 1999, p.2023).

Aqui se faz relevante ver que a política dessa época pertencia aos grandes, ou melhor especificando, o Papado detinha ainda grandes poderes e delegava os demais poderes civis. Nota-se ainda que a época era de descobertas, principalmente, do Novo Mundo e, em Florença, Itália, viam-se grandes disputas por posses e, principalmente, pelo poder em todos os níveis, de tal modo que os príncipes e monarcas ficavam, por vezes, um mês ou dois no poder. Então, a necessidade de uma melhor organização e autoridade para permanecer no poder e fazer jus a causa do povo.

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Nesse caso, há um Maquiavel racional, moderno, que parte da experiência e da realidade atual para fazer ou firmar sua teoria política e propor um novo absoluto, o que talvez tenha sido um erro seu. Afinal, aquela era uma época de transição. Percebe-se a sua modernidade quando, ao ler “O Príncipe”, não aparece mais a ideia de cristandade e também uma razão moral do poder. A igreja então nessa época é alvo de múltiplas críticas e talvez a ela deva-se as divisões da Itália, e a maldade que está embutida no povo. O Papa torna-se um príncipe a mais que teria sua utilidade em ser analisado como um exemplo de príncipe. A política passa a ter uma finalidade em si e também se perceberá uma moral diversa, ou para governantes e governados. Maquiavel é um rebelde que abrirá as portas para a era dos dos reformadores (Reforma Protestante e todos os renascentistas e humanistas) como: Martinho Lutero, Galileu, Newton, Leonardo da Vinci e tantos outros. Mas será mesmo que Maquiavel não foi cínico? Pois acreditem que foi. Vejam como Júnior fala ao chamá-lo de cínico: “Essa oposição violenta se origina do duro realismo que ele utiliza no livro, de não fazer nenhuma concessão às utopias e especialmente da decisiva ruptura que assume em relação ao discurso ético que durante toda a Idade Média encobertou e amenizou os rigores da disputa política” (JÚNIOR, 1999, p. 29). Maquiavel é alguém que instaura uma nova política e para tanto não se acanha em enfrentar todo um sistema. Faz isso cinicamente, caso contrário, não teríamos um pensador reconhecido a tanto. Veja também que “o homem é um ser inconstante”, segundo Shakespeare, e no tempo de Maquiavel não era diferente, o que fez com que de algum modo ele estivesse imbuído de tal, se bem que parece ser mais atitudes de um profeta de atitudes cínicas ou um analista da realidade política. Isso, mais tarde, levou Thomas Hobbes a afirmar que: “o homem é lobo do próprio homem”. Porém não se sabe se ele também agiu como tal, sendo que a teoria maquiavélica apresenta ser mais um reflexo e diagnóstico de uma realidade. Talvez Nicolau tenha sido a inspiração de Shakespeare ao dizer: “o louco pensa que é sensato, mas o sensato reconhece que é um néscio”. Ou então faz parte da ideia de que quando as coisas estão ruins ou insuportáveis buscam-se soluções e não importa como se faça ou aja, tem de ser solucionado. É talvez um pouco do conceito UNIDADE I - INTRODUÇÃO À SOCIOLOGIA GERAL E DA EDUCAÇÃO 27

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político dos meios e fins, em que Maquiavel usa o exemplo de Rômulo, que matou seu irmão por uma causa justa, ou melhor, o fim justificou o meio, ou seja, a sua ambição que fez matar o irmão foi para um bem comum final. “O Príncipe revela um Maquiavel obcecado pelo poder concreto, tal como este apresenta nas sociedades e não como deveria se apresentar. Em nenhum momento se preocupa com a moral limitadora das ações humanas, com a ética de cada ato, com a política voltada para o bem” (JÚNIOR, p. 30). Isso tudo nos induz a pensar uma única coisa, que é um Maquiavel sem pudor e em última instância cínico. É alguém que conhece o povo e seu comportamento, um atento observador deste, de tal modo que afirma em “O Príncipe” que o chefe (monarca ou príncipe) deve sempre imitar a raposa para reconhecer as armadilhas, e o leão, no modo como se defende dos lobos. Por isso, aqui não há uma ética e é uma ação sem escrúpulos que se induz e deduz. Afirma também Vicentinho, para a Revista Provão que “quem se preocupa com a questão ética deve esquecer este livro (“O Príncipe”) de modo que só sirva de estudo para você combater cada vez mais tudo o que está aí”. Pense num príncipe que usa de meios para ser temido se não está sendo amado, se ele não é autoritário ou não está implantando uma ditadura! Maquiavel afirma que ao príncipe tende transparecer algumas características fundamentais para que se mantenha como tal: piedade, fidelidade, integridade, humanidade e religião. Talvez, dizer que Maquiavel é cínico seja uma tolice, pois faço parte da versão de Shakespeare em que “tola é a opinião que nos faz julgar o homem interior pelos seus trajes exteriores”. Mas, e afinal, Maquiavel defende o poder pelo poder ou um poder democrático altruísta? Pode-se dizer que a sua intenção final é um estado de bem-estar social, é um certo altruísmo de modo que o príncipe deve estar de bem com o povo, porém se não amado, temido e, sendo temido ou usando de meios quaisquer para chegar ao poder, tem-se um poder, em última instância, pelo poder, ou uma ditadura, basta lembrar Getúlio Vargas onde se faz presente o poder com um fim em si mesmo. Vargas foi denominado acima de tudo: “o conciliador, o árbitro, o caudilho e o maquiavélico” (MOTA, BRAICK, 1998, p. 544), uma situação em que do lado, ou junto do “homem cordial”, convive o seu contrário, que é o homem ambicioso, calculista, frio e cínico, entre outras características. 28

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1.1

SOCIOLOGIA NO OCIDENTE

A trajetória da Sociologia no Ocidente só começa a ser delineada com o movimento político e intelectual conhecido como Iluminismo (Inglaterra, Holanda e França, 1590 - séc XVII e XVIII), que exerceu enorme influência no século XVIII, propondo reformas no interesse das classes privilegiadas (elite), conforme leis que regeriam ao mesmo tempo a sociedade, o universo, a natureza e a Revolução Industrial (Inglaterra, 1750 com introdução da máquina a vapor - séc. XVIII em diante). Em seguida, após a Revolução Francesa (França, 1789 – 1799) e a queda do Antigo Regime (regime político vigente na França até a Rev. Francesa), a Sociologia adquiriu os traços que ostenta hoje em dia. Aos poucos ela foi destituindo-se da roupagem de ciência ética, de filosofia política ou social, preocupada em determinar uma ordem justa das relações humanas, e assim concentrou-se na descrição e interpretação dos elementos (desempenhos, grupos, valores, normas e modelos sociais de conduta) que determinam a integração dos sistemas sociais. Nesse sentido, a Sociologia é um fenômeno estrito e uma ciência característica da sociedade moderna. O termo Sociologia foi cunhado por Auguste Comte, que esperava unificar todos os estudos relativos ao homem — inclusive a História, a Psicologia e a Economia. Seu esquema sociológico era tipicamente positivista, (corrente que teve grande força no século XIX), e ele acreditava que toda a vida humana tinha atravessado as mesmas fases históricas distintas e que, se a pessoa pudesse compreender este progresso, poderia prescrever os remédios para os problemas de ordem social. O surgimento da sociologia ocorreu num momento de grande expansão do capitalismo, desencadeado pela dupla revolução – a industrial e a francesa. O triunfo da indústria capitalista na Revolução Industrial desencadeou uma crescente industrialização e urbanização, o que provocou radicais modificações nas condições de existência e nas formas habituais de vida de milhões de seres humanos. Essas situações sociais radicalmente novas, impostas pela sociedade capitalista, fizeram com que a sociedade passasse a se constituir em “problema”. Diante disso, pensadores ingleses da época procuraram extrair dessas novas situações temas para a análise e a reflexão, no objetivo de agir, tanto para manter como para reformar ou modificar radicalmente a sociedade de seu tempo. Isso foi fundamental para a formação e a constituição de UNIDADE I - INTRODUÇÃO À SOCIOLOGIA GERAL E DA EDUCAÇÃO 29

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um saber sobre a sociedade. Outra circunstância que também influenciou e contribui para a formação da sociologia se deve às transformações ocorridas nas formas de pensamento, originadas pelo Iluminismo. As transformações econômicas que o ocidente europeu presenciou desde o século XVI, provocaram modificações na forma de conhecer a natureza e a cultura. A partir daí, o pensamento deixa de ter uma visão sobrenatural para a explicação dos fatos da natureza e passa a ser substituído pelo uso da razão. O emprego sistemático da razão representou um avanço para libertar o conhecimento do controle teológico, da tradição, da revelação e para a formulação de uma nova atitude intelectual diante dos fenômenos da natureza e da cultura. Essas novas maneiras de produzir e viver propiciaram um visível progresso das formas de pensar e contribuíram para afastar interpretações baseadas em superstições e crenças infundadas, o que abriu consequentemente um espaço para a constituição de um saber sobre os fenômenos histórico-sociais. Esta crescente racionalização da vida social não era um privilégio somente de filósofos e homens que se dedicavam ao conhecimento, mas também do homem comum dessa época, que renunciava cada vez mais os fatos submetidos às forças sobrenaturais, passando a percebê-los como produtos da atividade humana, passíveis de serem conhecidos e transformados. A revolução francesa contribuiu para o surgimento da sociologia na medida em que o objetivo dessa revolução era mudar a estrutura do estado monárquico e, ao mesmo tempo, abolir radicalmente a antiga forma de sociedade, promover profundas inovações na economia, na política, na vida cultural, etc; além de desferir seus golpes contra a Igreja. Tais atitudes ocasionaram profundos impactos, o que causou espanto aos pensadores da época e à própria burguesia já instalada no poder. Diante disso, esses pensadores se incumbem à tarefa de racionalizar a nova ordem e encontrar soluções para o estado de “desorganização” então existente. Mas, para estabelecer essa tarefa seria necessário, segundo eles, conhecer as leis que regem os fatos sociais e instituir uma ciência da sociedade.

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Assim, pensadores positivistas da época concluíram que, para restabelecer a organização e o aperfeiçoamento na sociedade seria necessário fundar uma nova ciência. Essa nova ciência assumia, como tarefa intelectual, repensar o problema da ordem social, ressaltando a importância de instituições como a autoridade, a família, a hierarquia social, destacando a sua importância teórica para o estudo da sociedade. A oficialização da sociologia foi, portanto, em larga medida, uma criação do positivismo que procurará realizar a legitimação intelectual do novo regime. Foram as ideias desenvolvidas por incontáveis homens e mulheres ao longo da história humana, que começa na Mesopotâmia e no Egito a mais de quatro mil anos antes do nascimento de Cristo, que reunidas, trabalhadas e revistas, formaram o que hoje temos como CONHECIMENTO em todas as áreas da vida. A Sociologia foi o resultado da união de inúmeros pensadores, nas diversas partes do mundo. Alguns se conheciam, muitos outros nunca se viram. Uns complementavam os outros até formar o que conhecemos como ciência sociológica ou ciência da sociedade ou ainda Sociologia. . Destes tantos, quatro pensadores foram responsáveis por estruturar os fundamentos da Sociologia, o que possibilitou criar três linhas mestras explicativas fundadas por eles e aos quais iremos estudar com mais profundidade: 1) a Positivista-Funcionalista, tendo como fundador Auguste Comte e seu principal expoente clássico Émile Durkheim ( França, 1858 – 1917 ), de fundamentação analítica; 2) a Sociologia Compreensiva iniciada por Max Weber ( Alemanha, 1864 – 1920 ), de matriz teórico-metodológica hermenêutico-compreensiva; e 3) a Sociologia Dialética, iniciada por Karl Marx ( Inglaterra, 1818 – 1883 ), que mesmo não sendo um sociológo e sequer com pretensão a tal, deu início a uma proveitosa linha de explicação sociológica. Na plataforma estará disponível uma atividade para análise e links para que você se aprofunde nesses aspectos. Não se esqueça de buscar essas novas informações, inclusive, antes de testar seu conhecimento.

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1.2

CONSIDERAÇÕES DA UNIDADE I

É parte desta unidade a primeira teleaula. Lembre-se de assisti-la no polo e no seu ambiente virtual de aprendizagem para complementar seus estudos. Com isso, você aprofunda a compreensão das relações sociais e o primeiro contato com as discussões gerais de Sociologia da Educação. Na plataforma você também terá disponível uma atividade para análise, fórum de dúvidas e links (youtube) para que você se aprofunde nesses aspectos. Não se esqueça de buscar essas novas informações, inclusive, antes de testar seu conhecimento. Na próxima unidade você contemplará a perspectiva sociológica chamada de positiva funcionalista e também a perspectiva da sociologia compreensiva. Bom trabalho!

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TESTE SEU CONHECIMENTO

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UNIDADE II

LINHA EXPLICATIVA POSITIVA FUNCIONALIDADE E A SOCIOLOGIA COMPREENSIVA OB JET IVOS D A UN ID A D E

Evidenciar as especificidades da explicação positivista-funcionalista e da chamada sociologia compreensiva;

Elucidar as grandes vertentes dessas formas de pensar.

HAB IL IDADE S E C O MP E T Ê N C IA S •

Percepção da concepção positivista e suas aplicações contemporâneas, definindo com clareza as características principais do positivismofuncionalista e sua afinidade com a interpretação das relações sociais.

UNIDADE II - LINHA EXPLICATIVA POSITIVA - FUNCIONALIDADE E39 A SOCIOLOGIA COMPREENSIVA

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2.1

A VEZ DE AUGUSTO COMTE

O núcleo da filosofia de Comte radica na ideia de que a sociedade só pode ser convenientemente reorganizada por meio de uma completa reforma intelectual do homem. Ele achava que antes da ação prática, seria necessário fornecer aos homens novos hábitos de pensar de acordo com o esta­do das ciências de seu tempo. Por essa razão, o sistema comteano estruturou-se em torno de três temas básicos : em primeiro lugar, uma filosofia da história com o objetivo de mostrar as razões pelas quais uma certa maneira de pensar (chamada por ele filosofia positiva ou pensamento positivo) deve imperar entre os homens. Em segundo lugar, uma fundamentação e classificação das ciências baseadas na filosofia positiva. Em terceiro lugar, uma sociologia que, deter­minando a estrutura e os processos de modificação da sociedade permitisse a reforma prática das instituições. A contribuição principal de Comte à filosofia do positivismo foi sua adoção do método científico como base para a organização política da sociedade industrial moderna. O estado positivo corresponde à maturidade do espírito humano. O termo positivo designa o real em oposição ao quimérico, a certeza em oposição à indecisão, o preciso em oposição ao vago. É o que se opõe às formas teológicas ou metafísicas de explicação do mundo. Ex: a explicação da queda de um objeto ou corpo: o primitivo explicaria a queda como uma ação dos deuses; o metafísico Aristóteles explicaria a queda pela essência dos corpos pesados, cuja natureza os faz tender para baixo, onde seria seu lugar natural; Galileu, espírito positivo, não indagaria o porquê, não procuraria as causas primeiras e últimas, mas se contentaria em descrever como o fenômeno da queda ocorre, lei da gravidade. Não era apenas quanto ao método de investigação que a filosofia positivista se aproximava das ciências da natureza. A própria sociedade foi concebida como um organismo constituído de partes integradas e coesas que funcionavam harmonicamente, segundo um modelo físico ou mecânico. Por isso, o positivismo foi chamado também de organicismo. 40

UNIDADE II - LINHA EXPLICATIVA POSITIVA - FUNCIONALIDADE E A SOCIOLOGIA COMPREENSIVA


Para o positivismo, a realidade é formada por partes isoladas, de fatos atômicos; a explicação dos fenômenos se dá através da relação entre eles; não se interessa pelas causas, mas pelas relações entre os fenômenos; rejeição ao conhecimento metafísico; há somente um método para a investigação dos dados naturais e sociais. Tanto um quanto outro são regidos por leis invariáveis. Em sua lei dos três estados ou estágios do desenvolvimento intelectual, Comte teoriza que o desenvolvimento intelectual humano havia passado historicamente primeiro por um estágio teológico, em que o mundo e a humanidade foram explicados nos termos dos deuses e dos espíritos; depois através de um estágio metafísico transitório, em que as explanações estavam nos termos das essências, de causas finais, e de outras abstrações; e finalmente para o estágio positivo moderno. Este último estágio se distinguia por uma consciência das limitações do conhecimento humano. Comte tentou também uma classificação das ciências; baseada na hipótese que as ciências tinham se desenvolvido a partir da compreensão de princípios simples e abstratos, para daí chegarem à compreensão de fenômenos complexos e concretos. Assim, as ciências haviam se desenvolvido a partir da matemática, da astronomia, da física e da química para atingir o campo mais complexo da biologia e finalmente da sociologia. De acordo com Comte, esta última disciplina, a Sociologia, não somente fechava a série, mas também reduziria os fatos sociais à leis científicas, e sintetizaria todo o conhecimento humano, como ápice de toda a ciência. Embora não fosse dele o conceito de sociologia ou da sua área de estudo, Comte ampliou seu campo e sistematizou seu conteúdo. Dividiu a Sociologia em dois campos principais: Estática Social, ou o estudo das forças que mantêm unida a sociedade; e Dinâmica Social, ou o estudo das causas das mudanças sociais. O estudo da estática social deve ser iniciado com o entendimento do Consenso Social, que é a interdependência social ou interpenetração dos fenômenos sociais. Segundo Comte, os fenômenos sociais só podem ser estudados em conjunto porque eles são fundamentalmente conexos. E é pelo consenso social que pode existir a harmonia social.

UNIDADE II - LINHA EXPLICATIVA POSITIVA - FUNCIONALIDADE E41 A SOCIOLOGIA COMPREENSIVA

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A sociedade é composta de unidades chamadas de células sociais. Essas células são famílias e não indivíduos. A família, portanto, é a verdadeira unidade social por ser a associação mais espontânea que existe. Ela é a fonte espontânea da educação moral e constitui a base natural da organização política. A sociedade deve ser organizada com base no “organismo doméstico”, que tem como características principais a subordinação, de modo especial, a subordinação espontânea da mulher ao homem e dos filhos aos pais. A união da família que é possível graças a união de seus membros. A cooperação, de onde resulta a sociabilidade no meio familiar. E, por fim, o altruísmo, isto é, o sentimento familiar que, por sua vez, desenvolve o prazer de fazer pelo outro e para o outro. De uma outra forma, toda sociedade deve possuir uma ordem, proveniente dos instintos sociais do indivíduo e que se manifesta através da família. Essa ordem exige para a sua sobrevivência uma autoridade. Na família essa autoridade é o marido e na sociedade é o governo. Não há sociedade sem governo, nem governo sem sociedade. Por tal, o governo deve manter uma intervenção “universal e contínua” na sociedade, de forma material, intelectual e moral, para evitar que o progresso a inviabilize. Segundo Comte, o progresso enfraquece a união e a cooperação, fragilizando a ordem. Essa é a intervenção do “conjunto sobre as partes”. As forças sociais que determinam as estruturas sociais são: a material, a intelectual e a moral. Disso, tem-se que a organização social baseia-se na divisão do trabalho social e na combinação de esforços. E, uma vez percebidos esses aspectos, tem-se que todo estado social é uma consequência do passado e uma preparação para o futuro. Não há espaço para quaisquer vontades superiores. As leis que regem o estado social são leis análogas às leis biológicas. E exatamente por essa analogia conclui-se que a humanidade caminha para a completa autonomia, o que ocorrerá quando for ultrapassada a sua etapa metafísica. Mas nada é eterno! A evolução da sociedade, da mesma forma que no indivíduo, leva-a para o inevitável caminho da decadência final. No início, a humanidade assumiu a fase teológica ou fictícia, que foi uma fase provisória, mas o ponto de partida necessário para todo o processo cultural. A segunda fase é a metafísica ou abstrata, que é transitória, na qual os agentes sobrenaturais são substituídos por 42

UNIDADE II - LINHA EXPLICATIVA POSITIVA - FUNCIONALIDADE E A SOCIOLOGIA COMPREENSIVA


forças abstratas, entendidas como seres do mundo. E, por fim, a terceira fase que é a positiva, científica ou real, que é a fase definitiva da humanidade, quando o homem descobre a impossibilidade de obter conhecimentos absolutos e desiste de indagar sobre a origem e a finalidade do universo, assim como sobre as causas íntimas dos fenômenos. O homem passa a se preocupar apenas em descobrir as leis efetivas que estabelecem as relações invariáveis de sucessão e semelhança. Estudam-se as leis e abandonam-se a pesquisa das causas. O problema fundamental do estado positivo é a conciliação da ordem com o progresso, que é a condição necessária ao aparecimento do verdadeiro sistema político. Toda ordem estabelecida deverá ser compatível com o progresso, assim como todo progresso, para ser realizado, deverá permitir as consolidação da ordem. De outra forma, o Estado Positivo significa o fracasso da Teologia e da Metafísica. Em seguida vem o domínio do Positivismo e da Sociologia, fazendo surgir a “Religião da Humanidade”, com o predomínio do altruísmo e da harmonia social.

2.2

A VEZ DE ÉMILE DURKHEIM

Durkheim viveu numa época de grandes conflitos sociais entre a classe dos empresários e a classe dos trabalhadores. É também uma época em que surgem novos problemas sociais, como: favelas, suicídios, poluição, desemprego etc. No entanto, o crescente desenvolvimento da indústria e tecnologia fez com que Durkheim tivesse uma visão otimista sobre o futuro ciclo do capitalismo. Ele pensava que todo o progresso desencadeado pelo capitalismo traria um aumento generalizado da divisão do trabalho social e, por consequência, da solidariedade orgânica, a ponto de fazer com que a sociedade chegasse a um estágio sem conflitos e problemas sociais. Com isso, Durkheim admitia que o capitalismo é a sociedade perfeita; trata-se apenas de conhecer os seus problemas e de buscar uma solução científica para eles. Em outras palavras, a sociedade é boa, sendo necessário, apenas, “curar as suas doenças”.

UNIDADE II - LINHA EXPLICATIVA POSITIVA - FUNCIONALIDADE E43 A SOCIOLOGIA COMPREENSIVA

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Tal forma de pensar o progresso de um jeito positivo fez com que Durkheim concluísse que os problemas sociais entre empresários e trabalhadores não se resolveriam dentro de uma luta política, e, sim, através da ciência, ou melhor, da sociologia. Esta seria, então, a tarefa da sociologia: compreender o funcionamento da sociedade capitalista de modo objetivo para observar, compreender e classificar as leis sociais. Descobrir as que são falhas e corrigi-las, substituí-las por outras mais eficientes. A estrutura da sociedade, por seu turno, é formada pelas esferas política, econômica e ideológica. Essas esferas formam a estrutura social responsável pela consolidação do Capitalismo. Ao refletir sobre a sociedade, Durkheim começou a elaborar algumas questões que orientaram seu trabalho, por exemplo: a) O que faz uma sociedade ser sociedade? b) Qual é a relação entre o indivíduo e a sociedade? c) Como os indivíduos transformam o social? d) O social é a superação do individual? Em que momento os indivíduos constituem uma sociedade? Outra preocupação de Durkheim, assim como outros pensadores, era a formação de uma ciência social desvinculada das ciências naturais. Além disso, na emergência do proletariado era preciso encontrar formas de controle, de tal forma que o indivíduo se integrasse à ordem. Esse princípio será aplicado na educação. A contribuição de Durkheim foi de importância fundamental para que a Sociologia adquirisse o status de ciência, pois ele estuda a sociedade e separa os fenômenos sociais da Psicologia, construindo um objeto e um método. Na obra “As regras do Método Sociológico”, publicada em 1895, definiu o método a ser usado pela Sociologia e as definições e parâmetros para a Sociologia tornar-se uma ciência, separada da Psicologia e Filosofia. Ele formulou o tipo de acontecimentos sobre os quais o sociólogo deveria se debruçar: os fatos sociais. Esses constituiriam o objeto da Sociologia. Nesse aspecto, a primeira regra do método é, sem dúvida, tratar o FATO SOCIAL como COISA. Para Émile Durkheim, fatos sociais são maneiras de agir, pensar e sentir, exteriores ao indivíduo, dotadas de um poder coercitivo e compartilhadas coletivamente. Variam de cultura para cultura e tem como base a moral social, estabelecendo um conjunto de regras e determinando o que é certo ou errado, permitido ou proibido. Não podem ser confundidos com os fenômenos orgânicos nem com os psíquicos, constituem uma espécie nova de fatos. 44

UNIDADE II - LINHA EXPLICATIVA POSITIVA - FUNCIONALIDADE E A SOCIOLOGIA COMPREENSIVA


As principais características, segundo Durkheim, dos Fatos Sociais são: a) é geral, se repete em todos os indivíduos e tem natureza coletiva; b) é exterior e independe da vontade ou adesão consciente do indivíduo. ex: leis; c) é coercitivo,10 ou seja, se impõe sobre o indivíduo. Os fatos sociais deveriam ser encarados como coisas, isto é, objetos que lhe sendo exteriores poderiam ser medidos, observados e comparados independentemente do que os indivíduos pensassem ou declarassem a seu respeito. Para se apoderar dos fatos sociais, o cientista deve identificar dentre os acontecimentos gerais e repetitivos aqueles que apresentam características exteriores comuns. O fato social é considerado como uma coisa, em última instância, para afastar os pré-conceitos, as pré-noções e o individualismo, ou seja, seus valores e sentimentos pessoais em relação ao acontecimento a ser estudado. O fato social é, ainda, reconhecido, pelo poder de coerção que exerce ou que pode exercer sobre os indivíduos, identificado pelas sanções ou resistências a alguma atitude individual contrária, e quando é exterior a ele. Ex: se um aluno chega ao colégio de roupa de praia, ele estará em desacordo com a regra e sofrerá sanção por isso, seja voltar para casa ou uma advertência por escrito. O social é o “entre nós”. Onde se dá a interação, a troca. As transformações que se produzem no meio social, sejam quais forem as causas, repercutem em todas as direções do organismo social e não podem deixar de afetar mais ou menos todas as suas funções. Durkheim não aceita a ideia que diz ser o social formado de processos psíquicos. Durkheim afirma que o social não pertence a nenhum indivíduo, mas ao grupo que sofre pressões e sansões sendo obrigado a aceitá-lo. Partindo do princípio de que o objetivo máximo da vida social é promover a harmonia da sociedade consigo mesma e com as demais sociedades, e que essa harmonia é conseguida através do consenso social, a “saúde” do organismo social se confunde com a generalidade dos acontecimentos e com a função desses na preservação da harmonia, desse acordo coletivo que se expressa sob a forma de sanções sociais. 10 Coerção: repressão, restrição de direitos, que limita a liberdade de agir individual. Ex: a regra da escola é usar uniforme composto de blusa com logotipo do colégio, calça jeans azul e tênis.

UNIDADE II - LINHA EXPLICATIVA POSITIVA - FUNCIONALIDADE E45 A SOCIOLOGIA COMPREENSIVA

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Quando um fato põe em risco a harmonia, o acordo, o consenso e, portanto, a adaptação e evolução da sociedade, estamos diante de um acontecimento de caráter mórbido e de uma sociedade doente. Portanto, normal é aquele fato que não extrapola os limites dos acontecimentos mais gerais de uma determinada sociedade e, que reflete os valores e as condutas aceitas pela maior parte da população. Patológico é aquele que se encontra fora dos limites permitidos pela ordem social e pela moral vigente. Em As regras do método sociológico, escrito em 1894, outra coisa que Durkheim coloca é que: “1º) Devemos afastar sistematicamente todas as ideias pré-concebidas ou prénoções ao se estudar um fato social: Ideia é a representação mental de alguém ou coisa concreta ou abstrata. Pré-conceber significa antecipar uma ideia, sem saber ao certo o que é.

Ex:

naquela escola, dizem que o ensino é fraco; escola pública é sinônimo de má qualidade no ensino; todo político é corrupto, acho que Roberto gosta de vinho suave. 2º) Os fatos sociais devem ser explorados de acordo com os seus aspectos gerais e comuns, evitando suas manifestações individuais. Ex: Aspectos gerais da dengue: A dengue é uma doença febril aguda, causada por vírus, de evolução benigna, na forma clássica, e, grave, quando se apresenta na forma hemorrágica. A manifestação individual da dengue varia de pessoa para pessoa. Uma pessoa pode ter dengue hemorrágica enquanto outra pode ter dengue simples. 3º) Para explicar um fenômeno social devemos separar dois estudos: o da sua causa e o da sua função. Ex: qual a função do professor na escola? Qual é a causa do desinteresse do aluno pelo conteúdo oferecido na escola? 4º) A pesquisa da causa que determina o fato social deve ser feita entre os fatos sociais anteriores e nunca entre os estados de consciência individual. Ex: em dada comunidade, há histórico de violência doméstica. Os relatos, anteriores e atuais, determinaram ser a violência doméstica um fato social naquela comunidade e não somente um caso isolado ou individual.

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UNIDADE II - LINHA EXPLICATIVA POSITIVA - FUNCIONALIDADE E A SOCIOLOGIA COMPREENSIVA


5º) Devemos buscar a origem primeira de todo processo social de alguma importância na constituição do meio social interno.” Meio social interno é a família, grupo da escola, o ambiente em que a pessoa se desenvolve. A interação entre a pessoa e o meio ambiente representa a dinâmica da vida. É um processo de ação e reação a estímulos positivos ou não e que serão responsáveis pelo despertar ou bloqueio das potencialidades da pessoa. Processo social é qualquer mudança ou interação social em que é possível destacar uma qualidade ou direção contínua ou constante. Produz aproximação (cooperação, acomodação, assimilação) ou afastamento (competição, conflito). Em seu livro “Da divisão do trabalho social” de 1893, Durkheim reconhecia a existência de duas consciências. Segundo ele:

(...) em cada uma de nossas consciências há duas consciências: uma, que é conhecida por todo o nosso grupo e que, por isso, não se confunde com a nossa, mas sim com a sociedade que vive e atua em nós; a outra, que reflete somente o que temos de pessoal e de distinto, e que faz de nós um indivíduo. Há aqui duas forças contrárias, uma centrípeta e outra centrífuga, que não podem crescer ao mesmo tempo.

Para Durkheim, o social é modelado pela Consciência Coletiva211, que é uma realidade social resultante do contato social. Essa consciência difere da consciência individual312, pertencendo a todos enquanto integrados e a nenhum em particular. Os fenômenos sociais refletem a estrutura do grupo social que os produz (ideia da Sociologia Moderna). Se a sociedade é o corpo, o Estado é o seu cérebro e por isso tem a função de organizar essa sociedade, reelaborando aspectos da consciência coletiva. Vemos que 11Consciência coletiva: conjunto das maneiras de agir, pensar e agir, característica de determinado grupo ou sociedade. Impõese à consciência individual. É a forma moral vigente na sociedade. Ela aparece como regras estabelecidas que delimitam o valor atribuído aos atos individuais. Ela define o que, numa sociedade, é considerado ‘imoral’, ‘reprovável’ ou ‘criminoso’. A punição é o meio de voltar a consciência coletiva. 12 Consciência individual: traços de caráter ou temperamento e acúmulo de experiências pessoais que permite relativa autonomia no uso e adaptação das maneiras de agir, pensar e sentir.

UNIDADE II - LINHA EXPLICATIVA POSITIVA - FUNCIONALIDADE E47 A SOCIOLOGIA COMPREENSIVA

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a sociedade capitalista está cheia de problemas. Nesse sentido, Durkheim admitia que o Estado é uma instituição que tem o dever de elaborar leis que corrijam os casos patológicos dessa sociedade. Em resumo: Se cabe a Sociologia observar, entender e classificar os casos patológicos, procurando criar uma nova moral social, cabe ao Estado colocar em prática os princípios dessa nova moral. Neste contexto, a Sociologia e o Estado complementam-se na organização da sociedade para, na prática, evitarem os problemas sociais. Isso levou Durkheim a acreditar que os sociólogos devessem ter uma participação direta dentro do Estado. Por outro lado, basta uma rápida observação do contexto histórico do século XIX para se perceber que as instituições sociais se encontravam enfraquecidas, havia muito questionamento, valores tradicionais eram rompidos e novos surgiam, muita gente vivendo em condições miseráveis, desempregadas, doentes e marginalizadas. Ora, numa sociedade integrada essa gente não podia ser ignorada, de uma forma ou de outra toda a sociedade estava ou iria sofrer as consequências. Durkheim acreditava que a sociedade, funcionando através de leis e regras já determinadas, faria com que os problemas sociais não tivessem sua origem na economia (forma pela qual as pessoas trabalham), mas sim numa crise moral, isto é, num estado social em que várias regras de conduta não estão funcionando. Por exemplo: se a criminalidade aumenta a cada dia é porque as leis que regulamentam o combate ao crime são falhas e mal formuladas. A esse estado de crise social em que as leis não funcionam, Durkheim denomina de patologia social. Por outro lado, os problemas sociais podem ter sua origem também na ausência de regras, o que por sua vez se caracterizaria como anomia. Frente a patologia social (regras sociais falhas), cabe à Sociologia captar suas causas, procurando evitar a anomia (crise total), através da criação de uma nova moral social que supere a velha moral deficiente. Na tentativa de “curar” a sociedade da anomia, Durkheim escreve em seu livro “Da divisão do trabalho social”, sobre a necessidade de se estabelecer uma solidariedade orgânica entre os membros da sociedade. A solução estaria em cada membro da sociedade exercer uma função 48

UNIDADE II - LINHA EXPLICATIVA POSITIVA - FUNCIONALIDADE E A SOCIOLOGIA COMPREENSIVA


na divisão do trabalho, como o que acontece no organismo biológico, em que cada órgão tem uma função e depende dos outros para sobreviver. Cada indivíduo ou cidadão será obrigado a seguir um sistema de direitos e deveres e também sentirá a necessidade de se manter coeso e solidário aos outros. O importante para ele é que o indivíduo realmente se sinta parte de um todo, que realmente precise da sociedade de forma orgânica, interiorizada e não meramente mecânica. Durkheim através do estudo da solidariedade – apoiando-se em Heráclito (Grécia em Éfeso na Jônia, 540 a.C. - 470 a.C. ) e Aristóteles ( Grécia em Estagira, 384–322 a.C.) – vai dizer que há sempre um processo em direção ao consenso- em que não há conflito. Durkheim se preocupa com a função do direito e como é trabalhado o consenso e a solidariedade. Quando a consciência coletiva é abalada, a punição deve ser aplicada. O indivíduo deve seguir a consciência coletiva, as regras. Nas sociedades simples, os indivíduos são a extensão do coletivo, da coletividade. A consciência individual se dilui, se perde na coletividade. E isso se dá naturalmente. Nas sociedades complexas, o consenso se dá através do contrato, e tem a ver com a especialização. A solidariedade, nesse caso, neutraliza uma possível barbárie na civilização. O meio natural e necessário a essa sociedade é o meio natal, onde o lugar de cada um é estabelecido pela consanguinidade e a estrutura dessa sociedade é simples. O indivíduo, nessa sociedade, é socializado porque, não tendo individualidade própria, se confunde com seus semelhantes no seio de um mesmo tipo coletivo. Na solidariedade mecânica, o direito é repressivo (Penal). Crime é tudo aquilo que diz respeito a consciência coletiva, ao consenso. O crime é o rompimento de uma solidariedade social. Todo ato criminoso é criminoso porque fere a consciência comum, que determina as formas de solidariedade necessárias ao grupo social. Não reprovamos uma coisa porque é crime, mas sim é crime porque a reprovamos. A solidariedade social representada pelo Direito Penal é a mais elementar, espontânea e forte. Solidariedade Orgânica, por sua vez, é a solidariedade por dessemelhança. É típica das sociedades capitalistas, pois prevê grande interdependência entre os

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indivíduos, como resultado da acelerada divisão do trabalho. Essa interdependência é o principal elo de união social, ao invés das tradições, dos costumes e dos laços sociais mais estreitos ® tendência a uma maior autonomia individual, pela especialização de atividades. Ainda, há, ao fim de tudo, uma influência menor da consciência coletiva. É fruto das diferenças sociais, já que são essas diferenças que unem os indivíduos pela necessidade de troca de serviços e pela sua interdependência. Os membros da sociedade onde predomina a Solidariedade Orgânica estão unidos em virtude da divisão do trabalho social. O meio natural necessário a essa sociedade é o meio profissional, onde o lugar de cada um é estabelecido pela função que desempenha. A estrutura dessa sociedade é complexa. O indivíduo nessa sociedade é socializado porque, embora tenha sua individualidade profissional, depende dos demais e, por conseguinte, da sociedade resultante dessa união. Na solidariedade orgânica o direito é restitutivo, cooperativo.

O Direito

Restitutivo cooperativo é preventivo. Evita, previne a repressão, a dor. O contrato é uma forma de prevenir que a transgressão seja muito grande. Quanto mais civilizada for uma sociedade, maior o número de contratos dele, que servirá para prevenir desobediências. Os costumes são a fonte do direito, mas tudo aquilo que é mais importante para a consciência coletiva torna-se direito, regra. Podemos tornar estes conceitos mais fáceis de serem entendidos a partir de um exemplo: imaginemos um professor que necessite formar grupos para desenvolver o tema da aula. O professor pode querer a formação dos grupos a partir de dois critérios: ele pode pedir nos alunos que formem grupos livremente, a partir da amizade existente entre eles. Uma segunda opção é pedir aos alunos para formarem grupos de forma que em cada um dos grupos fique uma pessoa que saiba datilografia, uma outra que saiba desenhar, outra que tenha experiência de redação, e, por fim, uma que domine bem o conteúdo das aulas, que seja o coordenador do grupo. No primeiro caso, o que uniu os alunos no grupo foi um sentimento, a amizade, de onde teríamos a solidariedade mecânica. No segundo caso, o que uniu os alunos em grupo foi a dependência que cada um tinha da atividade do outro: a união foi dada pela especialização das funções, de onde teríamos a solidariedade orgânica.

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UNIDADE II - LINHA EXPLICATIVA POSITIVA - FUNCIONALIDADE E A SOCIOLOGIA COMPREENSIVA


Durkheim admite que a solidariedade orgânica é superior à mecânica, pois ao se especializarem as funções, a individualidade de certo modo é ressaltada, permitindo maior liberdade de ação. No grupo formado por amigos pode acontecer que um elemento discorde muito das opiniões de outro; esse fato pode trazer um conflito que põe em risco a existência do grupo. Nesse caso, os elementos devem agir de acordo com as ideias comuns do grupo, e não a partir das suas próprias ideias. Já no grupo onde a união dá-se pela atividade especializada, a individualidade é ressaltada, pois dentro da sua atividade cada um age como bem entende, e aí a divergência de opiniões não põe em causa a existência do grupo.

2.3

A VEZ DE MAX WEBER

Max Weber nasceu e teve sua formação intelectual no período em que as primeiras disputas sobre a metodologia das ciências sociais começavam a surgir na Europa, sobretudo em seu país, a Alemanha. Filho de uma família da alta classe média, Weber encontrou em sua casa uma atmosfera intelectualmente estimulante. Seu pai era um conhecido advogado e desde cedo orientou-o no sentido das humanidades. Weber recebeu excelente educação secundária em línguas, história e literatura clássica. Em 1882, começou os estudos superiores em Heidelberg; continuando-os em Göttingen e Berlim, em cujas universidades dedicou-se simultaneamente à economia, à história, à filosofia e ao direito. Concluído o curso, trabalhou na Universidade de Berlim, na qual idade de livre-docente, ao mesmo tempo em que servia como assessor do governo. Em 1893, casou-se e; no ano seguinte, tornou-se professor de economia na Universidade de Freiburg, da qual se transferiu para a de Heidelberg, em 1896. Dois anos depois, sofreu sérias perturbações nervosas que o levaram a deixar os trabalhos docentes, só voltando à atividade em 1903, na qualidade de co-editor do Arquivo de Ciências Sociais (Archiv tür Sozialwissenschatt), publicação extremamente importante no desenvolvimento dos estudos sociológicos na Alemanha. A partir dessa época, Weber somente deu aulas particulares, salvo em algumas ocasiões, em que proferiu conferências nas Universidades de Viena e Munique nos anos que precederam sua morte, em 1920.

UNIDADE II - LINHA EXPLICATIVA POSITIVA - FUNCIONALIDADE E51 A SOCIOLOGIA COMPREENSIVA

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A Sociologia weberiana caracteriza-se por um dualismo racionalismo – irracionalismo de onde, racionalismo é a rotina social; estabilidade; tradição; legalidade; continuidade; espírito científico e pragmático do ocidente, sacrifica a espontaneidade da vida aos cálculos e à seleção dos meios para serem atingidos fins previamente escolhidos. Irracionalismo, por seu turno, são crenças; mitos; sentimentos; ação carismática.

2.4

A AÇÃO

Para Weber a sociedade não seria algo exterior e superior aos indivíduos, como em Durkheim. Para ele, a sociedade pode ser compreendida a partir do conjunto das ações individuais reciprocamente referidas. Por isso, Weber define como objeto da sociologia a ação social. Para Weber ação social é qualquer ação que o indivíduo faz orientando-se pela ação de outros (por exemplo: um eleitor). Ele define seu voto orientando-se pela ação dos demais eleitores. Ou seja, temos a ação de um indivíduo, mas essa ação só é compreensível se percebemos que a escolha feita por ele tem como referência o conjunto dos demais eleitores. Assim, Weber dirá que toda vez que se estabelecer uma relação significativa, isto é, algum tipo de sentido entre várias ações sociais, teremos então relações sociais. A ação social é a conduta humana dotada de sentido. O sentido motiva a ação individual. Para Weber, cada sujeito age levado por um motivo que se orienta pela tradição, por interesses racionais ou pela emotividade. O objetivo que transparece na ação social permite desvendar o seu sentido, que é social na medida em que cada indivíduo age levando em conta a resposta ou reação de outros indivíduos. A ação social gera efeitos sobre a realidade em que ocorre. É o indivíduo que através dos valores sociais413 e de sua motivação, produz o sentido da ação social. 13 Valores : níveis de preferência estabelecidos pelo ser humano para objetos, conhecimentos, comportamentos ou sentimentos, tenham eles origem individual ou coletiva. Mas todos eles geram algum tipo de conduta, isto é, servem de referência para a ação. É o valor moral, ético. Os valores sociais são aqueles gerados por um grupo e que contribuem para sua manutenção. Durkheim

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A transmissão desses valores comuns de uma geração para outra é chamada socialização, que é uma forma inconsciente de coerção social. São exemplos de valores sociais o respeito, a virgindade, honestidade, solidariedade etc. Só existe ação social quando o indivíduo tenta estabelecer algum tipo de comunicação, a partir de suas ações, com os demais. A partir dessa definição, Weber afirmará que podemos pensar em diferentes tipos de ação social, agrupando-as de acordo com o modo pelo qual os indivíduos orientam suas ações. Assim, ele estabelece tipos de ação social: 1. Ação tradicional: aquela determinada por um costume ou um hábito arraigado. 2. Ação carismática: inova e observa tradições. Funda-se na crença de ser seu autor dotado de poderes sobre-humanos e sobrenaturais, que agem livremente sem fazer caso de normas estabelecidas ou de tradições. 3. Ação afetiva: orientada pelas emoções e sentimentos. 4. Ação social racional: determinada pelo cálculo racional que coloca fins e organiza os meios necessários. 5. Ação política: a finalidade ideal da ação política é a instituição e a perpetuação do poder. Para a instituição e a perpetuação do poder, a ação política exerce três tipos de dominação que precisam ser legitimados: carismática, tradicional e legal. Weber afirma que a Ciência Social que ele pretende exercitar é uma “Ciência da Realidade”, voltada para a compreensão da significação cultural atual dos fenômenos e para o entendimento de sua origem histórica. O método compreensivo, defendido por Weber, consiste em entender o sentido que as ações de um indivíduo contêm e não apenas o aspecto exterior dessas mesmas ações. Se, por exemplo, uma pessoa dá à outra um pedaço de papel, esse fato, em si mesmo, é irrelevante para o cientista social. Somente quando se sabe que a primeira atribuiu aos valores a característica de coerção social, ou seja, o poder de induzir pessoas a um determinado comportamento.

UNIDADE II - LINHA EXPLICATIVA POSITIVA - FUNCIONALIDADE E53 A SOCIOLOGIA COMPREENSIVA

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pessoa deu o papel para a outra como forma de saldar uma dívida (o pedaço de papel é um cheque) é que se está diante de um fato propriamente humano, ou seja, de uma ação carregada de sentido. O fato em questão não se esgota em si mesmo e aponta para todo um complexo de significações sociais, na medida em que as duas pessoas envolvidas atribuem ao pedaço de papel a função do servir como meio de troca ou pagamento; além disso, essa função é reconhecida por uma comunidade maior de pessoas.

2.5

TIPO IDEAL E BUROCRACIA

Alguns conceitos importantes em Weber são, por exemplo, o de tipo ideal e burocracia. O tipo ideal é uma construção do pensamento e sua característica principal é não existir na realidade, mas servir de modelo para a análise de casos concretos, realmente existentes. As construções de tipo ideal fazem parte do método tipológico criado por Max Weber. Ao comparar fenômenos sociais complexos, o pesquisador cria tipos ou modelos ideais construídos a partir de aspectos essenciais dos fenômenos. Em outra instância, pode-se dizer que o estado moderno, com suas inúmeras atribuições, reclama a existência de uma ampla estrutura organizacional, constituída por funcionários sujeitos à hierarquia e à regulamentos. Nesse sentido, reclama, requer a burocracia. Popularmente, o termo burocracia apresenta em geral uma conotação pejorativa, associada à lentidão com que se cumprem os trâmites administrativos e à existência de estruturas um tanto abstratas, que regem as atividades humanas sem levar em conta as circunstâncias concretas e as necessidades individuais. Nas ciências sociais, entretanto, a noção de burocracia define, por um lado, a estrutura organizativa e administrativa das atividades coletivas, no campo público e privado, e, por outro, o grupo social constituído pelos indivíduos dedicados ao trabalho administrativo, organizado hierarquicamente, de forma que seu funcionamento seja 54

UNIDADE II - LINHA EXPLICATIVA POSITIVA - FUNCIONALIDADE E A SOCIOLOGIA COMPREENSIVA


estritamente regido por rigorosas regras de caráter interno, emanadas da legislação administrativa geral. Foi no século XVIII, com a crescente importância assumida pelos organismos administrativos, que Jean-Claude Marie Vincent, senhor de Gournay, criou a palavra burocracia, a partir do francês bureau, “escritório”, e do grego kratia, “poder”. Somente em fins do século XIX o tema passou a ser estudado dentro de uma perspectiva geral. “O domínio legal é caracterizado, do ponto de vista da legitimidade, pela existência de normas formais. Do ponto de vista do aparelho, pela existência de um staff administrativo burocrático (grupo qualificado de funcionários pela aptidão e competência, que assiste a um dirigente em entidades públicas e privadas)”. Weber, portanto, define a burocracia como a estrutura administrativa de que se serve o tipo mais puro do domínio legal. A divisão do trabalho em áreas especializadas é obtida pela definição precisa dos deveres e responsabilidades de cada pessoa, considerada não individualmente, mas como um “cargo”. Essa definição de cargo delimita determinadas áreas de competência, que não podem ser desrespeitadas em nenhuma hipótese, de acordo com os regulamentos pertinentes. Em situações extremas ou anômalas recorre-se à consulta “por via hierárquica”, ao órgão imediatamente superior. Essa via, segundo Weber, resulta da absoluta compartimentação do trabalho e da estruturação hierárquica dos diferentes departamentos, de forma racional e impessoal. A legitimação da autoridade não é pessoal, nem se baseia no respeito primário à tradição, como nas relações tradicionais entre superiores e inferiores, mas resulta do reconhecimento da racionalidade e da excelência dos processos estabelecidos. O respeito e a obediência são devidos não à pessoa, nem sequer à instituição, mas sim ao ordenamento estabelecido. Para Weber, a característica básica de todo o sistema burocrático é a existência de determinadas normas gerais e racionais de controle, que regulam o funcionamento do conjunto de acordo com técnicas determinadas de gestão, visando o maior rendimento possível.

UNIDADE II - LINHA EXPLICATIVA POSITIVA - FUNCIONALIDADE E55 A SOCIOLOGIA COMPREENSIVA

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Na realidade, como reconhece Weber, nem todas as organizações administrativas apresentam-se com todas essas características, presentes, no entanto, na grande maioria delas. Na plataforma estará disponível uma atividade para análise e links para que você se aprofunde nesses aspectos. Não se esqueça de buscar essas novas informações, inclusive, antes de testar seu conhecimento.

2.6

CONSIDERAÇÕES DA UNIDADE II

É parte desta unidade a segunda teleaula. Lembre-se de assisti-la no polo e no seu ambiente virtual de aprendizagem para complementar seus estudos. Com isso, você aprofunda a compreensão teórica dos autores A. Comte, E. Durkheim e M. Weber. Ainda, terá contato com as discussões desses autores que podem ser proveitosas no campo da educação. Na plataforma você também terá disponível uma atividade para análise, fórum de dúvidas e links (youtube) para que você se aprofunde nesses aspectos. Não se esqueça de buscar essas novas informações, inclusive, antes de testar seu conhecimento. Na próxima unidade você contemplará a perspectiva sociológica chamada de dialética, especialmente calcada na compreensão do pensamento marxista. Bom trabalho!

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UNIDADE II - LINHA EXPLICATIVA POSITIVA - FUNCIONALIDADE E A SOCIOLOGIA COMPREENSIVA


TESTE SEU CONHECIMENTO

UNIDADE II - LINHA EXPLICATIVA POSITIVA - FUNCIONALIDADE E57 A SOCIOLOGIA COMPREENSIVA

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UNIDADE II - LINHA EXPLICATIVA POSITIVA - FUNCIONALIDADE E A SOCIOLOGIA COMPREENSIVA


UNIDADE II - LINHA EXPLICATIVA POSITIVA - FUNCIONALIDADE E59 A SOCIOLOGIA COMPREENSIVA

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UNIDADE III

A SOCIOLOGIA DIALÉTICA DE KARL MARX E IMPLICAÇÕES EM ROUSSEAU OB J ETIVOS D A UN ID A D E •

Mostrar as mudanças da concepção de estruturação e funcionamento das relações sociais a partir de uma nova visão sociológica, isto é, a visão dialética.

HAB IL IDADE S E C O MP E T Ê N C IA S •

Percepção das mudanças nas relações sociais ao longo da história e o claro entendimento das características principais da concepção dialética.

UNIDADE III - A SOCIOLOGIA DIALÉTICA DE KARL MARX61 E IMPLICAÇÕES EM ROUSSEAU

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3.1

UM HISTÓRICO DE VIDA A SER CONSIDERADO

Karl Marx nasceu em Trier (1818-83), na região do Reno, na Alemanha, de família de origem judaica. Estudou Direito na Universidade de Bonn e doutorou-se (1841) em filosofia na Universidade de Berlim, com uma tese sobre a diferença entre as filosofias da natureza de Demócrito e de Epicuro, filósofos da Antiguidade. Quando se encontrava em Berlim, entrou em contato com os discípulos de Hegel, que eram conhecidos como “jovens hegelianos”, ou “hegelianos de esquerda”. Depois de ter entrado em contato com os discípulos de Hegel, tomou conhecimento dos socialistas utópicos franceses como Proudhon e Fourier e, em 1844 foi para Paris, onde conheceu Friedrich Engels. Ele se tornou amigo de Marx e colaborador de toda a vida, e leu a obra do socialista Saint-Simon. Após ter se envolvido em problemas políticos teve de se transferir de Paris para Bruxelas. Em 1847 fundou com Engels o Partido, ou Liga Comunista, cujo programa publicaram em 1848 o “Manifesto do Partido Comunista”. Perseguido, exilou-se em Londres, onde viveu o resto de sua vida escrevendo na Biblioteca do Museu Britânico, tendo em 1864 participado da organização Internacional dos Trabalhadores. Marx não foi estritamente um filósofo, embora tenha uma obra filosófica importante. Sua filosofia, bem como suas ideias revolucionárias, foram forças teóricas e políticas fundamentais do séc. XX. Ele foi historiador, cientista político, sociólogo, economista, jornalista, ativista político e revolucionário, além de filósofo. Via suas obras superando os limites estritos e os rumos tradicionais da filosofia teórica moderna. Suas obras cobrem todos esses campos ditos acima. Em história, destaca-se o “18 Brumário de Luís Bonaparte” (1852). Em economia, seus trabalhos mais influentes foram os “Manuscritos econômico-filosóficos” de 1844, a “Crítica da economia política” (1859) e “O Capital” (1876), uma das obras mais célebres e influentes do período moderno. Como jornalista, escreveu em diversos periódicos e revistas socialistas e revolucionários durante toda a sua vida. Em filosofia suas obras principais foram “A sagrada família” (1845), em que critica os hegelianos e sua filosofia especulativa; “A ideologia alemã” (1845-46), e “A miséria da filosofia” (1847), em que ataca o socialismo utópico de Proudhon.

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UNIDADE III - A SOCIOLOGIA DIALÉTICA DE KARL MARX E IMPLICAÇÕES EM ROUSSEAU


Embora Marx considere a filosofia teórica da tradição como uma simples forma de idealismo, desvinculada da realidade social concreta e, nesse sentido, inútil, como diz a famosa “XI tese sobre Feuerbach”: “Os filósofos se limitam a interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo”, podemos situar seu próprio pensamento como parte da tradição moderna da filosofia crítica. Mais do que uma doutrina econômica, o Marxismo é uma concepção do homem e do mundo de caráter materialista que coloca o fator econômico, a produção ou o trabalho como condicionante do comportamento humano. Sua filosofia pode ser vista como uma crítica a Kant, mas em bases materialistas, através da teoria das alienações religiosas, econômicas, social e política. A alienação religiosa é uma das mais importantes premissas das demais críticas. Consistiria no homem colocar em Deus o que lhe pertence, conformando-se com a exploração de que é objeto. A alienação econômica consistiria no fato do trabalhador não receber tudo o que produziu com o seu trabalho, que ficaria com o capitalista (teoria da mais valia, desenvolvida em “O Capital”). Parte do princípio de que o valor dos bens é determinado pela “quantidade de trabalho socialmente necessário para produzi-lo”. Assim, todo valor derivaria do trabalho e não do valor de mercado, cujo valor determinante seria a escassez. Já a alienação social e política consistiriam na submissão da classe operária pelo Estado burguês. Para combatê-la, Marx desenvolve o seguinte: Materialismo histórico é a teoria segundo a qual o homem teria surgido dos mamíferos superiores e se distinguiria dos animais pelo trabalho. O homem se criaria a si mesmo criando coisas. O homem seria apenas o conjunto das relações socioeconômicas. Com o trabalho teria começado a história. Assim seria a infraestrutura econômica que determinaria a superestrutura ideológica (religião, moral, direito, arte ,etc.): “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, o seu ser social que determina a sua consciência” (LUKACS). Materialismo dialético é a teoria segundo a qual o motor da história seria a luta de classes. Todo momento histórico geraria contradições em seu seio, que provocariam a mudança social.

UNIDADE III - A SOCIOLOGIA DIALÉTICA DE KARL MARX63 E IMPLICAÇÕES EM ROUSSEAU

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A filosofia marxista caracteriza-se pelo materialismo e coloca no trabalho o fundamento ontológico e também motivo de alienação. O trabalho passa a ser entendido como mediação material interposta entre os indivíduos, entre suas relações, de modo que passa a ter um ponto positivo que é a objetivação do próprio homem, mas também um ponto negativo em que poderia gerar a alienação. Por não distinguir objetivação de alienação, Hegel não pode apontar a como o trabalho prejudicaria a sociedade. Ao constatar a alienação pelo trabalho, Marx coloca a emancipação humana na esfera ou a partir dos meios de produção. Marx desenvolve a sua filosofia partindo dos princípios filosóficos de Hegel e também de Feuerbach, por isso a grande influência de Hegel nos seus primeiros escritos. A base da ontologia marxiana é a economia ou o trabalho e, portanto, não se pode dizer com isso que a ideia de mundo que Marx formulou seja fundada sobre o economicismo. A parte da filosofia que levou Marx a se apegar ao material é a economia ou o trabalho para também poder fazer frente ao que criticava em Hegel, pois segundo Marx Hegel possuía uma concepção de história muito abstrata, colocava uma materialidade inexistente vendo nas obras do homem apenas a objetivação (entendida como reconhecimento nas obras) e esquecendo-se da alienação, que é quando o homem não se reconhece nas obras. A concepção que Marx elaborou sobre Feuerbach tem um duplo sentido, que é o seguinte: o reconhecimento de sua virada ontológica como o único ato filosófico do período de Marx; e ao mesmo tempo, a constatação de seus limites, ou seja, do fato de que o materialismo alemão Feuerbachiano ignora completamente o problema da ontologia do ser social. Critica Feuerbach porque este era materialista e esqueciase da história e, quando considerava a história deixava de lado o materialismo. Os escritos remetiam muito à natureza e pouco à política. Segundo Marx, há uma só ciência, “a ciência da história”, que inclui a natureza e o mundo dos homens. Por isso, não se pode considerar o ser social independente do ser da natureza. Ambos possuem uma ligação. No aspecto da religião, Marx não se contentou com a relação abstrata entre o homem e Deus. Aqui está um dos motivos pelo qual o marxismo é tido como ateísta, ou seja, porque tudo o que existe está na natureza e se Deus não está na natureza, não existe. Ao menos se levarmos sua teoria às ultimas consequências.

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“A ciência se desenvolve a partir da vida; e, na vida, quer saibamos e queiramos ou não, somos obrigados a nos comportar espontaneamente de modo ontológico” (LUKÁCS, 1979, p.24). Com base nessa colocação, esta tendência pode ser acentuada, como pode também ser destruída. Através do espírito científico, Marx procura sempre desenvolver a nível crítico as questões ontológicas que estão na base de qualquer ciência. Quando se trata do ser social, ele assume um papel decisivo no problema ontológico da diferença, da oposição entre fenômeno e essência. A ação interesseira faz parte do ser social. O específico na relação entre fenômeno e essência no ser social atinge o agir interessado, e esse por sua vez, se apega em interesses de grupos sociais, fazendo com que a ciência perca o seu papel de controle e faça desaparecer a essência. A totalidade do ser não é uma forma de pensamento, mas é a constituição mental de que realmente existe. O ser tomado em sua totalidade não é abstrato, mas é real e verdadeiro. O homem é primeiro um ser real, corpóreo, assentado sobre terra firme e compacta, que respira e expande todas as forças da natureza (esta é uma concepção feuerbachiana tirada de Frederico) Marx, do ponto de vista metodológico, separa dois problemas muito complexos: o primeiro é o ser social, que existe independente do fato de que seja ou não conhecido corretamente; o segundo, é o método para captá-lo no pensamento, da melhor maneira possível. Quando afirmamos que a objetividade é uma propriedade primário-ontológica de todo ente, afirma-se em consequência que o ente originário é sempre uma totalidade dinâmica (força primitiva). O ente é a unidade de complexos. A totalidade de um ente é dada sempre de modo imediato. Ex.: quando uma pessoa olha um objeto, ela o vê em sua totalidade, não vê as particularidades do objeto em si. Quando se atribui uma prioridade ontológica a determinada categoria com relação a outra, entende-se o seguinte: a primeira pode existir sem a segunda, enquanto o inverso é ontologicamente impossível. Eis aqui um problema enunciado por Marx entre ser e consciência. O ser pode existir sem a consciência, mas a consciência não pode existir sem o ser. Portanto, a consciência para existir precisa ter como fundamento algo que é. ”Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário é o seu ser social que determina sua consciência” (LUKÁCS, 1979, p.41). Nesse trecho, o mundo das formas de consciência e seus conteúdos, não são vistos como produto da estrutura econômica, mas da totalidade do ser social.

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O sentido e o tipo das abstrações, dos experimentos ideais, são determinados a partir da própria coisa, ou seja, da essência ontológica da matéria tratada. As conclusões tiradas de um determinado objeto deve partir do que ele é em si. A concepção ontológica de Marx sobre o ser social funda-se na unidade dialética (que é contraditória) de lei e fato. A lei se concretiza no fato. O homem na medida em que é homem e não apenas um ser vivo biológico, não pode ser separado de sua totalidade social concreta. Com a crescente sociabilidade da vida humana moderna, ainda há homens que alimentam a vã ilusão de poderem viver independentes da sociedade, de viverem isolados, sem compromisso com nada. Aquilo que no trabalho e através do trabalho surge de humano baseiam-se todos os valores. Os valores são fundados sobre os atos humanos. O mundo moderno está deixando o homem cada vez mais insatisfeito, e quando nas poucas vezes que o homem se satisfaz o mundo se torna inútil. Apesar de toda a estrutura que o ser social possui, é possível conhecê-lo. A possibilidade do conhecimento não sofre com a estrutura. Marx sempre parte da concepção de trabalho para explicar alguma coisa. O indivíduo é o próprio ente social. A sua manifestação de vida é uma afirmação da vida social. A relação do homem com a espécie humana é desde o início formada e mediatizada por categorias sociais (como trabalho, linguagem, intercâmbio etc...). Essa relação somente se dá em nível de operação da consciência. Pelo trabalho ocorre a objetivação social, por ele o homem muda o mundo e precisa adaptar-se ao que fez e faz. Homem e natureza não são separados. O homem é assim um ser passivo enquanto ser de carências, necessidades, limitado, que precisa de um objeto exterior para se objetivar, para se tornar algo real, material e criado pela razão. E também um ser ativo, de movimento, que tem impulsos, de dentro para fora, que persegue objetos naturais e sociais, relações com a natureza. Ser de paixões, afeccionado e energizado pelo objeto exterior.

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3.2

PRINCÍPIOS ANTROPOLÓGICOS

A questão antropológica trata da relação dos homens. A transformação da relação do homem com a natureza acontece através do trabalho humano, e pelo trabalho o homem se autoproduz como consciência. Para ocorrer a objetivação do homem (como consciência) a condição de possibilidade é a natureza. O homem só é homem (como ser de consciência) devido a possibilidade de ser um ser de relação (com a natureza). O homem como ser natural, ou como Marx o caracteriza: ser de capacidade, atua objetivamente e não atua de outro modo, porque a objetividade faz parte de sua determinação. Ou seja, ele cria os objetos porque é pelos objetos que irá adquirir a legitimidade do trabalho. É por meio do trabalho, que o homem adquiri consciência de si, e automaticamente se diferencia dos animais. O homem age sobre a natureza como um ser que possui capacidade de transformá-la, pelo viez do trabalho. Ao passo que os animais, relacionam-se com a natureza apenas para garantir a sobrevivência ou a continuidade da espécie. O homem, entendido por Marx como ser ativo, atua sobre a natureza de forma consciente, pois o mesmo se conhece como ser natural (ou ser de capacidade) somente diante da natureza. Portanto, o seu produto (objeto) é um produto objetivo, porque apenas confirma uma atividade também objetiva (o trabalho) e que ambas interferem na determinação do homem como ser consciente de si e diferente dos animais. O objeto é estabelecido (criado) por uma atividade natural (trabalho), que contém em si a virtude de transformação. Assim, o homem é diretamente um ser da natureza. Marx o caracteriza como ser natural enquanto ser natural vivo, dotado de poderes e faculdades naturais. Dessa forma, o homem enquanto natural (com capacidade de transformar a natureza) é também um ser de necessidades ou um ser que não é completo, que necessita de algo para suprir esta carência. Essa necessidade (ou carência) é suprida pelos objetos ou pulsões que existem fora do homem, como objetos independentes. Esses objetos que lhe são exteriores, são os objetos das suas necessidades, objetos que Marx define como essenciais e indispensáveis para o exercício e a confirmação das suas faculdades. Justamente UNIDADE III - A SOCIOLOGIA DIALÉTICA DE KARL MARX67 E IMPLICAÇÕES EM ROUSSEAU

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porque enquanto o homem é um ser corpóreo (dotado de forças naturais) ele será um ser de capacidade e também de necessidade, somente mediante essas duas considerações é que adquirirá a legitimação de um ser natural.

3.3

A ALIENAÇÃO

Alienação provém do latim “alienare”, que significa pertencer a outro. O conceito de alienação não é de criação de Marx. Ele recebeu o conceito de Hegel e Feuerbach. Mas Marx mostrou que a gênese da alienação está instalada no modo de produção. A alienação é, antes de tudo, uma forma de relacionamento entre os seres humanos e, ao mesmo tempo também, entre os homens e determinados objetos em coisas que são exteriores. Toda essa forma de relação não é considerada como natural, porque ela surge em um determinado momento, no processo de desenvolvimento histórico das sociedades humanas. Portanto, a alienação, do ponto de vista econômico social, é que o homem não perde apenas a identidade de si mesmo, a consciência de si, mas passa a pertencer ao objeto, à coisa, ao outro. Ou seja, o homem perde sua consciência pessoal, sua identidade e personalidade, o que vale dizer, sua vontade é esmagada pela consciência de outro, ou pela consciência social. Além do mais, diz Marx que a alienação é entre a consciência de si, entre o objeto e o sujeito. O trabalho é a forma de o homem sobreviver. O trabalho é o ato de autoprodução do homem, ou seja, atividade por meio da qual o homem se torna aquilo que é como homem, segundo sua essência. O trabalhador sofre muito para sobreviver, porque o salário que ele recebe para sua manutenção é determinado pela luta amarga entre o capitalista e o trabalhador. Além disso, o trabalhador é alienado à sua produção, ao seu trabalho, ao outro ser humano e dessa forma à toda a sociedade. Há muitos tipos de alienação, mas a principal em Marx relaciona-se à economia.

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3.4

A ALIENAÇÃO DO PRODUTO DO SEU TRABALHO

A alienação do produto do seu trabalho acontece quando o trabalho transformase em objeto e a apropriação do objeto manifesta-se como alienação, que quanto mais objetos o trabalhador produzir, tanto menos ele pode possuir e também mais se submete ao domínio do seu produto. O homem se objetiva no produto do seu trabalho. O trabalhador se objetiva no que faz. A objetivação do trabalho é quando o produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, que se transformou em algo físico. A própria objetivação está contra o homem, pois quando o operário produz, os resultados não lhe pertencem, fogem-lhes das mãos, é como perda, separam-se do seu criador. O trabalhador é desapropriado do seu produto, enquanto o capitalista se apropria do mesmo produto. O trabalhador se relaciona ao produto do seu trabalho como a um objeto estranho, pois quanto mais o trabalhador se esgotar, maior e mais poderoso se torna o mundo dos objetos. O trabalhador põe sua vida no objeto; porém, agora ela não lhe pertence, mas pertence ao objeto, ou seja, o trabalhador vê o seu trabalho realizado passar para o capitalismo que o asfixia. Todo o trabalho deveria enriquecer e não empobrecer o trabalhador. A relação que existe entre o trabalhador e o produto é uma relação de perda do objeto produzido. O produto do trabalho lhe foge de maneira sutil, deixando ao trabalhador apenas uma quantia ‘X’ chamada salário.

3.5

A ALIENAÇÃO NO ATO DE PRODUÇÃO

O homem é um ser de necessidades, na qual o trabalho é a sua sobrevivência. Marx diz que a alienação no seu objeto se expressa na forma de que:

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quanto mais o trabalhador produz, tanto menos há de consumir; quanto mais valores cria, tanto mais sem valor e mais indigno se torna; quanto mais refinado seu produto, tanto mais deformado o trabalhador; quanto mais civilizado no produto tanto mais bárbaro o trabalhador; quanto mais poderoso o trabalho, tanto mais impotente se torna o trabalhador; quanto mais brilhante e pleno de inteligência o trabalho, tanto mais o trabalhador diminui em inteligência e se torna material e servo da natureza (Marx, Manuscritos, p.161).

A alienação se manifesta essencialmente no trabalho e nas relações de produção. O trabalho em que o homem se aliena, é um trabalho de sacrifício de si mesmo, no qual o seu trabalho não é voluntário, é algo imposto, é trabalho forçado e também não pertence a sua natureza, ou seja, a atividade do seu trabalho não é a sua atividade espontânea. A produção do trabalhador e a alienação implica a perda do objeto de seu produto, ou seja, o homem produz e não se dá conta que o objeto é produto seu. Nesse caso, o homem só se sente livre em suas funções animais (comer, beber, procriar, ou morar em casa ou se vestir), sentindo-se como nada além de animal em suas funções humanas, isto é, no trabalho. A alienação no objeto faz com que o ser humano fique mais pobre quanto mais trabalhar e produzir riqueza. Portanto, a alienação do homem em seu produto significa não apenas que seu trabalho se torna objeto, mas também que ela exista fora dele, independente dele como um poder em si mesmo, o que significa que a vida que ele deu ao objeto agora se contrapõe como hostil e estranha.

3.6

O HOMEM ALIENADO DE SUA ESPÉCIE

O homem é considerado um ser genérico no sentido de que ele comporta perante si e perante a própria espécie presente, viva, um ser universal e, portanto, totalmente livre. A pessoa possui uma vida genérica com base na física porque vive na natureza inorgânica, na medida em que é o próprio corpo humano. Constitui a universalidade porque mantém com a natureza permanente intercâmbio para não morrer. 70

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O homem é um ser genérico, devido a sua atividade vital que se dá de forma consciente. O trabalho, a atividade vital e a vida produtiva é o único meio de o homem satisfazer a sua necessidade e também manter sua existência física. Além disso, o homem se manifesta como verdadeiro ser genérico na ação sobre o mundo objetivo.

3.7

O HOMEM ALIENADO DO SEU SEMELHANTE

O que se verifica com relação do homem e ao seu trabalho, ao produto de seu trabalho e a si mesmo, verifica-se também com relação do homem aos outros homens, bem como ao trabalho e ao objeto de trabalho dos outros homens. De modo geral, a afirmação de que o homem se encontra alienado da sua vida genérica significa que um homem está alienado dos outros, e que cada um dos outros se encontra igualmente alienado a vida humana (Marx, Manuscritos, p.166).

De outra forma, ainda, “a alienação do homem e, acima de tudo, a relação em que o homem se encontra consigo mesmo, realiza-se e exprime-se primeiramente na relação do homem aos outros homens. Assim, na relação do trabalho alienado, cada homem olha os outros homens segundo o padrão e a relação em que ele próprio, enquanto trabalhador, se encontra”. (Marx, Manuscritos, p.166) O ser humano é alienado do seu semelhante, porque o homem se encontra alienado da sua vida genérica. Isto significa que um está alienado dos outros, e que cada um dos outros se encontra igualmente alienado da vida humana. O homem alienado entre si - excluem-se mutuamente entre si; o trabalhador reconhece o capitalista com o seu próprio não – a existência, e vice-versa; cada um procura arrebatar ao outro a sua existência.

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3.8

A IDEOLOGIA ALEMÃ

A ideologia alemã assinalou o nascimento do materialismo histórico. Marx tem sua formação cultural em vetores como: a dimensão ética recebida de Kant e a dialética de Hegel. Ainda é fortemente influenciado por Feuerbach e seu parceiro de carreira Engels; o surgimento do marxismo se dá dentro do movimento operário do qual fazia parte. Pelo fato de ter uma formação baseada em Hegel, Marx parece ter isolado alguns aspectos e a partir de então travado uma crítica contra todo o seu sistema. Parte-se do pressuposto de fazer uma ligação com crítica e o meio material, uma ligação entre a filosofia alemã e a realidade alemã. Parte-se de bases reais de onde se pode abstrair na imaginação, sendo uma primeira condição de toda a história humana a existência de seres vivos em que se distingue humanos de animais, logo que começam a produzir. A partir de então surgem relações entre os homens, nações e passa a ocorrer uma divisão de trabalho. A divisão de trabalho no interior de uma nação gera separação entre cidade e campo. Por conseguinte tem-se as formas de propriedade, sendo a primeira a propriedade tribal, depois a comunal, propriedade do Estado, e a terceira a propriedade feudal ou a dos diversos estamentos, e dentro dessa tinha-se como principal a propriedade fundiária. Das relações de produção entra-se em relações sociais e políticas, portanto, a produção de ideias está intimamente ligada à atividade material ou ao comércio material dos homens. AAparece claro aqui um pressuposto ligado à Aristóteles, em que as repercussões ideológicas partem da vida real e não das ideias.

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3.9

A HISTÓRIA

A concepção de história marxista parece esquecer, ou então, esquece da dimensão espiritual e transcendente do homem, sendo inteirado apenas em relações sociais. Marx tem também um pouco do conceito de historicismo idealista baseado em Hegel e Nietszche e reconhece a ciência da história como a única ciência e que engloba tanto a natureza quanto o mundo dos homens. O primeiro fato histórico é a produção que permite comer, morar...; e depois a criação de novas necessidades o primeiro ato histórico e cujos alemães nunca tiveram esta base materialista. Uma outra relação que se dá é a família e da qual decorre uma “força produtiva”. Das forças produtivas que o homem tem acesso resulta o estado social e que, por conseguinte, tem-se a elaboração da “história dos homens”. Dessa ordem física descobre-se a “consciência”, ou seja, o resultado da relação que eu tenho com o que me cerca. A consciência é assim de início um produto social. E é aqui que se toma efetivamente a divisão do trabalho (entre trabalho material e intelectual); a partir de então a consciência tem condições de se emancipar do mundo e passar para a formação da teoria “pura”, teologia, filosofia, moral, etc... Porém, é preciso abolir a divisão do trabalho para que a força produtiva, o estado social e a consciência não entrem em conflito, pois se destinam a indivíduos diferentes. Para efeito agradável, só é possível se ocorrer simultaneamente em todos os povos, pois não é possível vivenciar um comunismo em povos locais. “A forma das trocas, condicionada pelas forças de produção existentes em todas as fases históricas que precedem a nossa e por sua vez as condiciona, é a sociedade civil, que tem por base a família” (Ideologia Alemã,p.33).

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A história (fato), uma vez acontecida, é um processo sem volta. Pode-se perceber isso em Heráclito quando afirma que não é possível banhar-se duas vezes no mesmo rio. Nesse caso, a história, segundo Marx, tem a defesa de um determinismo histórico, porém não rígido, se mostrando um tanto imparcial quanto a defender ou não esse determinismo. É algo complexo, leva muito em conta. Marx diz: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem de modo arbitrário, em circunstâncias por eles escolhidos, mas nas circunstâncias que encontram imediatamente diante de si, determinados por fatos e pela tradição” (Lukacs, p.83). O homem está incluso numa totalidade e tem uma relação da sua parte com o todo e o social, não sendo, portanto, apenas um ser vivo puramente biológico. Está incluso num complexo histórico-social. Da produção da consciência Coloca-se que os indivíduos estão submetidos a uma força que lhes é estranha e que em última instância se revela como mercado mundial. Essa força que é imposta como estranha só pode ser superada com o comunismo e por isso “os indivíduos criam-se uns aos outros no sentido físico e moral” (Ideologia Alemã. p. 35). 74

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Essa concepção histórica “explica a formação das ideias segundo a prática material” (Ideologia Alemã.p.36) e a “soma das forças produtivas, de capitais , de formas de relações sociais, que cada indivíduo e cada geração encontram como dados existentes, constitui a base concreta da representação que os filósofos fazem do que seja ‘substância’ e ‘essência do homem’ (Ideologia Alemã.p.37). Os alemães, porém, não usam essa concepção fazendo com que a ilusão religiosa seja a força que move as histórias, supondo que é do homem religioso que parte toda a história. Feuerbach “desenvolve a ideia de que o ser de um objeto ou de um homem é igualmente sua essência, que as condições de existência, o modo de vida e a atividade determinada de uma criatura animal ou humana são aqueles em que a sua ‘essência’ se sente satisfeita” (Ideologia Alemã, p.42). Para Feuerbach a história não é vista do ponto materialista, ou seja, a realidade e a história são para os alemães coisas separáveis, embora Feuerbach perceba o homem como “objeto sensível”, porém diferente da natureza. Pode-se notar também que os dominantes tem o poder material e por tal possuem também o poder espiritual; portanto entende-se aqui uma ideologia que é dos dominadores. Possuem entre outras coisas “uma consciência e consequentemente pensam” (Ideologia Alemã, p.48), e dominam as outras coisas. Porém há uma divisão entre o trabalho na classe dominante entre o trabalho intelectual e o trabalho material. Há também uma classe que diverge e esta é a revolucionária, que no começo surge como representante da sociedade em geral. Para fazer valer as suas ideias, a classe dominante proclama como verdades eternas e diferentes das anteriores. Entretanto, há uma desvinculação das ideias e os dominadores passando assim a ser um interesse geral ou universal como dominante. Para se explicar isso tudo “devemos, portanto, partir dos devaneios dogmáticos e das ideias extravagantes dessa gente, ilusão essa que explica simplesmente por sua posição prática na vida, sua profissão e pela divisão do trabalho” (Ideologia Alemã, p.54).

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3.10

OUTRAS IDEIAS GERAIS SOBRE O MARXISMO

Em 1848, Marx e Engels (1820 – 1895) escrevem o Manifesto Comunista, formulando suas ideias a partir da realidade social por eles observada: de um lado o avanço técnico, o aumento do poder do homem sobre a natureza, o enriquecimento e o progresso; de outro e contraditoriamente, a escravização crescente da classe operária, cada vez mais empobrecida. O objetivo de Marx não era apenas contribuir para o desenvolvimento da ciência, mas propor uma ampla transformação política, econômica e social. Para Hegel, o mundo é a manifestação da ideia. Marx e Engels ao contrário, diz que a matéria é a fonte da consciência e esta é um reflexo da matéria. Marx diz que: “A contradição é a fonte de toda a vida. Só na medida em que encerra em si uma contradição é que uma coisa se move, tem vida e atividade. Só o choque entre o positivo e o negativo permite o processo de desenvolvimento e o eleva a uma fase mais elevada.” Naturalmente, Marx substituiu do pensamento de Hegel o espírito ou a ideia, que são os elementos básicos de sua dialética, pelas relações de produção, pelos sistemas econômicos, pelas classes sociais, ou seja, pelas condições materiais de existência. Marx contraria também a “Declaração Universal dos Direitos Humanos” elaborada no período Iluminista, que diz que todos os homens são iguais política e juridicamente, e que a liberdade e justiça eram direitos inalienáveis de todo cidadão. Ele proclama que não existe tal igualdade natural e observa que o Liberalismo vê os homens como átomos, como se estivessem livres das evidentes desigualdades estabelecidas pela sociedade. Ele discordará de Durkheim, também, sobre o consenso, dizendo que não existe consenso, mas sim uma eterna luta de classes.

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3.11

O MANIFESTO COMUNISTA

O Manifesto sugere um curso de ação para uma revolução socialista através da tomada do poder pelos proletários. O Manifesto Comunista faz uma dura crítica ao modo de produção capitalista e na forma como a sociedade se estruturou através desse modo. Busca organizar o proletário como classe social capaz de reverter sua precária situação, e descreve os vários tipos de pensamento comunista, assim como define o objetivo e os princípios do socialismo científico. Marx e Engels partem de uma análise histórica, distinguindo as várias formas de opressão social durante os séculos e situa a burguesia moderna como nova classe opressora. Não deixa, porém, de citar seu grande papel revolucionário, tendo destruído o poder monárquico e religioso, além de valorizado a liberdade econômica extremamente competitiva e um aspecto monetário frio em detrimento das relações pessoais e sociais, assim tratando o operário como uma simples peça de trabalho. Esse aspecto juntamente com os recursos de aceleração de produção (tecnologia e divisão do trabalho) destrói todo atrativo para o trabalhador, deixando-o completamente desmotivado e contribuindo para a sua miserabilidade e coisificação. Além disso, analisa o desenvolvimento de novas necessidades tecnológicas na indústria e de novas necessidades de consumo impostas ao mercado consumidor. Afirmam sobre o proletariado: “Sua luta contra a burguesia começa com sua própria existência”. O operariado tomando consciência de sua situação tende a se organizar e lutar contra a opressão e ao tomar conhecimento do contexto social e histórico onde está inserido, especifica seu objetivo de luta. Sua organização é ainda maior, pois toma um caráter transnacional, já que a subjugação ao capital despojou-o de qualquer nacionalismo. Outro ponto que legitima a justiça na vitória do proletariado seria de que este, após vencida a luta de classes, não poderia legitimar seu poder sob forma de opressão, pois defende exatamente o interesse da grande maioria: a abolição da propriedade (“Os proletários nada têm de seu para salvaguardar”). A exclusividade entre os proletários conscientes, portanto comunistas, segundo Marx e Engels, é de que visam a abolição da propriedade privada e lutam embasados num conhecimento UNIDADE III - A SOCIOLOGIA DIALÉTICA DE KARL MARX77 E IMPLICAÇÕES EM ROUSSEAU

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histórico da organização social, são portanto revolucionários. Além disso, destaca que o comunismo não priva o poder de apropriação dos produtos sociais, apenas elimina o poder de subjugar o trabalho alheio por meio dessa apropriação. Com o desenvolvimento do socialismo a divisão em classes sociais desapareceria e o poder público perderia seu caráter opressor, enfim seria instaurada uma sociedade comunista. Eles analisam e criticam três tipos de socialismo. O socialismo reacionário, que seria uma forma da elite conquistar a simpatia do povo, e mesmo tendo analisado as grandes contradições da sociedade, olhava-as do ponto de vista burguês e procurava manter as relações de produção e de troca; o socialismo conservador, com seu caráter reformador e antirrevolucionário; e o socialismo utópico, que apesar de fazer uma análise crítica da situação operária não se apoia em luta política, tornando a sociedade comunista inatingível. E fecham com as principais ideias do Manifesto, com destaque na questão da propriedade privada e motivando a união entre os operários. Acentua a união transnacional, em detrimento do nacionalismo esbanjado pelas nações, como manifestado na célebre frase: “Proletários de todo o mundo, uni-vos!” Os conceitos mais conhecidos e desenvolvidos por Marx em sua teoria são: mercadoria, capital, lei da mais-valia, classes sociais, Estado e ideologia. Em seu livro mais importante, “O Capital”, Marx afirmava que a nossa sociedade aparece inicialmente como um grande depósito de mercadorias. Por exemplo: relaciono-me com o padeiro, porque compro seu pão; relaciono-me com o cobrador do ônibus, pois pago a passagem. Tudo acaba sendo mercadoria. O trabalhador vende sua capacidade de trabalhar em troca de um salário e assim por diante. Marx diz que a estrutura da sociedade está fundamentada na mercadoria, ou seja, a sociedade está estruturada na economia. Segundo o materialismo histórico, a estrutura econômica de uma sociedade depende da forma como os homens organizam a produção social de bens. Essa estrutura é a verdadeira base da sociedade. É o alicerce sobre a qual se ergue a superestrutura jurídica e política e ao qual correspondem formas definidas de consciência social. A produção social de bens, segundo Marx, engloba dois fatores básicos: as forças produtivas e as relações de produção. As forças produtivas e relações de 78

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produção constituem o modo de produção e são as condições naturais e históricas de toda atividade produtiva que ocorre na sociedade. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e espiritual em geral. Para Marx, o estudo do modo de produção é fundamental para se compreender como se organiza e funciona uma sociedade. As relações de produção, nesse sentido, são consideradas as mais importantes relações sociais. As formas de família, as leis, a religião, as ideias políticas, os valores sociais, são aspectos cuja explicação depende, em princípio, do estudo do modo de produção. A história do homem é portanto, a história do desenvolvimento e do colapso de diferentes modos de produção. Ao analisar a história, Marx identificou alguns modos de produção específicos: sistema comunal primitivo, asiático, antigo, germânico, feudal e modo de produção capitalista. Cada qual representa passos sucessivos no desenvolvimento da propriedade privada e do advento da exploração do homem pelo homem. Em cada modo de produção, a desigualdade de propriedade, como fundamento das relações de produção, cria contradições básicas com o desenvolvimento das forças produtivas. Ao se desenvolverem, as forças produtivas da sociedade entram em conflito com as relações de produção existentes. Essas relações tornam-se, então, obstáculos para as forças produtivas, nascendo nesse momento uma época de revolução social. A mudança da base econômica, gerada pela transformação material das condições econômicas de produção, provocam revoluções jurídicas, políticas, religiosas, artísticas e filosóficas, que são as formas ideológicas que servem aos homens não só para tomar consciência deste conflito, como também para explicá-lo. Por outro lado, jamais aparecem novas relações de produção superiores às antigas antes que as condições materiais de sua existência se tenham desenvolvido completamente no seio da velha sociedade. Marx diz que as desigualdades sociais são provocadas pelas relações de produção do sistema capitalista, as quais dividem os homens em proprietários e não-proprietários dos meios de produção. As desigualdades são a base da formação das classes sociais.

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Ele não acreditava no consenso de Durkheim, mas sim que a história do homem é a história da luta de classes, uma luta constante entre interesses opostos. Por outro lado, as relações entre as classes são complementares, pois uma só existe em relação à outra. Só existem proprietários porque há uma massa de despossuídos cuja única propriedade é sua força de trabalho, que precisam vender para assegurar a sobrevivência. As classes sociais são, pois, complementares e interdependentes. Força Produtiva é igual aos meios de produção, de onde se soma ou acrescenta ainda, o trabalho humano. Todo processo produtivo combina os meios de produção e a força de trabalho. Esses é que constituem as condições materiais de toda a produção. Sem o trabalho humano nada pode ser produzido e sem os meios de produção, o homem não pode trabalhar. Todo processo de trabalho implica em determinados objetos (matérias-primas) e determinados instrumentos (ferramentas ou máquinas). Os objetos e instrumentos constituem os meios de produção. O proletariado constitui a força de trabalho. Os meios de produção ou meios de trabalho incluem os “instrumentos de produção” (máquinas, ferramentas), as instalações (edifícios, armazéns, silos etc), as fontes de energia utilizadas na produção (elétrica, hidráulica, nuclear, eólica etc.) e os meios de transporte. Os “objetos de trabalho” são os elementos sobre os quais ocorre o trabalho humano (matérias-primas minerais, vegetais e animais, o solo etc.). Modo de Produção é igual às forças produtivas, somada às relações de produção. É, ainda, um conceito abstrato para definir os estágios de desenvolvimento do sistema capitalista. É a forma de organização socioeconômica associada a uma determinada etapa de desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção. Reúne as características do trabalho preconizado, seja ele artesanal, manufaturado ou industrial. São constituídos pelo objeto sobre o qual se trabalha e por todos os meios de trabalho necessários à produção (instrumentos ou ferramentas, máquinas, oficinas, fábricas, etc.) Existem 6 modos de produção: Primitivo, Asiático, Escravista, Feudal, Capitalista e Comunista. Nas relações de Produção se discute que o trabalho é necessariamente um ato social. As pessoas dependem umas das outras para obter os resultados pretendidos.

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As relações de produção são as formas pelas quais os homens se organizam para executar a atividade produtiva e podem ser cooperativistas (ex: mutirão), escravistas (como na antiguidade europeia ou período colonial brasileiro), servis (como na Europa feudal) ou capitalistas (como na indústria moderna). São constituídas pela propriedade econômica das forças produtivas. Na condição de escravos, servos ou assalariados, os trabalhadores participam da produção somente com sua força de trabalho. Na condição de senhores, nobres ou empresários, os proprietários participam do processo produtivo como donos dos meios de produção. Classe social é um conceito científico que exige a análise dos seguintes níveis: modo de produção, estrutura social, situação social e a conjuntura. Em uma explicação mais simples, classe social é um grupo de pessoas que tem status social similar segundo critérios diversos, especialmente o econômico. Segundo a ótica marxista, em praticamente toda sociedade, seja ela pré-capitalista ou caracterizada por um capitalismo desenvolvido, existe a classe dominante, que controla direta ou indiretamente o Estado, e as classes dominadas por ela, reproduzida inexoravelmente por uma estrutura social implantada pela classe dominante. Segundo a mesma visão de mundo, a história da humanidade é a sucessão das lutas de classes, de forma que sempre que uma classe dominada passa a assumir o papel de classe dominante, surge em seu lugar uma nova classe dominada, e aquela impõe a sua estrutura social mais adequada para a perpetuação da exploração.

VONTADE GERAL COMO BOM SENSO E LEGITIMADORA DO CONTRATO SOCIAL: IMPLICAÇÕES EM ROUSSEAU 3.12

A legitimidade da lei e do direito na sociedade civil foi evidenciada por diversas formas ao longo da história. Com Aristóteles, a legitimidade está dada pelo cosmos, no caso o Universo está estruturado hierarquicamente e o Estado/sociedade visa reproduzir a hierarquia do cosmos. A ideia de liberdade está dada na estrutura do Estado, não é individual. Para o homem ser livre ele tem que participar do Estado.

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No pensamento medieval (Idade Média) o poder destinado a legitimar o direito também vem de fora: no caso Deus. A ideia de Deus legitima diretamente o poder do Rei14. Em outros casos, os situados no pensamento clássico-moderno, tem-se, também, que a estrutura social é legitimada pela natureza (“Natureza Humana”), pelo elemento natural, porém, por detrás dessa ideia existe uma força soberana que impõe a ordem e a lei, que é a ordem legitimadora, ou seja, Deus está como fundamento ou legitimidade última que sujeita o homem à lei moral, pois esta é a lei de Deus. O Jusnaturalismo, no entanto, dá uma guinada muito importante que é, justamente, propor limites ao poder estatal. Em Habermas, situado no contexto do pensamento contemporâneo, a legitimidade parece estar em restabelecer a ordem, ordenar juridicamente o Estado (este é tido como pressuposto) para garantir a vida e a paz, a sociabilidade. O que garante a legitimidade, em Habermas, é a Lei Positiva, por sua vez atrelada ao discurso jurídico, moral. O problema que prevalece como pano de fundo dessa legitimidade é o que poderíamos chamar de perfeita concordância entre a obediência e a liberdade. Em Rousseau encontramos esse problema formulado nos seguintes termos:

encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual, cada um, unindo-se a todos, só obedeça, contudo, a si mesmo e permaneça tão livre quanto antes (p. 20).

Esse problema deverá ser resolvido e tratado em detalhes no todo do Contrato Social. A pergunta que cabe agora, para efeito do tema, é, no entanto, o que pode legitimar essa forma de associação, bem como suas leis para que cada indivíduo possa permanecer livre e obedecer somente a si mesmo. A solução da questão está na definição da Vontade Geral, quando “cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direção da vontade geral; e recebemos, coletivamente,

14 O Rei é o representante de Deus na terra. Deus opera na mente do Rei. A razão é o meio e a medida, regra comum, que Deus dá ao homem para preservar-se.

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cada membro como parte indivisível do todo” (p. 22). Essa é a essência do pacto social. Resta saber, então, o que é a Vontade Geral. A definição da Vontade Geral encontra-se elaborada de forma mais explícita no Livro II, do Capítulo I ao VI, da obra em estudo. Não obstante, alguns pressupostos, ao menos o principal deles, estão dados em outra obra, qual seja, o “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”215. O pressuposto é de que Rousseau pensa a sociedade civil como uma sociedade de iguais. A igualdade é pensada enquanto igualdade social, ou seja, a sociedade civil é fruto de convenções e a igualdade ou desigualdade está expressa na riqueza, no poder e no status. As diferenças dadas pela natureza não têm maior relevância, ou seja, não importa se o indivíduo é preto ou branco, se tem mais ou menos força, se tem mais ou menos idade. Nesse sentido, a igualdade pressupõe a superação das desigualdades entre rico e pobre (dada pela introdução da lei e do direito à propriedade), entre poderoso e fraco (dada pela instituição da magistratura), e entre senhor e escravo (dada pela transformação do poder legítimo em poder arbitrário). O pressuposto da igualdade e algumas prédefinições situam-se, ainda, no Livro I (Contrato Social). O contrato social somente será efetivo quando houver uma condição de igualdade para todos. A cláusula principal, ou então, a primeira condição do contrato, é a igualdade: “alienação total de cada associado, com todos os seus direitos, a toda a comunidade” (p.21), porque somente assim, a partir do momento que cada indivíduo doa-se por inteiro, é que “a condição é igual para todos, e, sendo a condição igual para todos, ninguém tem interesse em torná-la onerosa para os demais” (p. 21). Dessa forma torna-se possível constituir o sistema social, ou seja, o estado social é possível quando há uma igualdade de fato, não apenas aparente e ilusória, quando “todos têm alguma coisa e nenhum tem demais” (p.30), porque “podendo ser desiguais em força ou talento, todos se tornam iguais por convenção e de direito” (p.30). Quanto às pré-definições, consideremos as seguintes indicações: “Vontade Geral como suprema direção” (p. 22); “como diversa ou oposta da vontade particular” (p. 24); “aquilo pelo qual cada indivíduo tende a obedecer” (p. 25); “e por fim, 15

ROUSSEAU, J. J. Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

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aquela que limita a liberdade civil” (p. 26). Aqui, no entanto, ainda carece-se de um fundamento maior, pois não sabemos como ela se institui. Essa é a questão fundamental e nem sempre expressa. Esclarecendo sua instituição (fundamentação), Rousseau combate seus interlocutores (Hobbes, Locke, Montesquieu e outros), uma vez que, a Vontade Geral não pode ser ditada pelo soberano como sendo geral, nem pode ser a soma das vontades particulares ou da maioria (dada pela aproximação de interesses comuns). Com isso, Rousseau ainda promove as convenções como sociais e não mais como naturais. Rousseau vê então, a possibilidade de resgatar o “natural”, que é percebido pela razão, rompendo com a dicotomia entre indivíduo e sociedade, na proporção em que trabalha a ideia de indivíduo situado na coletividade, pertencente a uma sociedade de iguais. A sociedade passa a ser entendida como um organismo, ou seja, é um conjunto de indivíduos que formam um corpo e não um aglomerado. No Estado Natural o indivíduo permanece indivíduo, ou melhor, é o Estado em que o indivíduo age em conformidade com seus instintos e por isso basta-se a si mesmo. O homem é guiado por suas necessidades básicas reveladas pela sua condição natural, ou seja, necessita de alimentação, de uma fêmea e de repouso. Na sociedade o indivíduo passa para uma condição de iguais, ou seja, a condição social é dada por um espaçotempo no qual o indivíduo não é mais indivíduo. O indivíduo é parte do corpo social, da coletividade. Assim o indivíduo não é um particular, mas tem de ser um social. Na sociedade civil não se justifica mais o indivíduo pelo indivíduo, nem sua submissão a uma força externa, mas (a sociedade civil) sendo instituída contratualmente, enquanto convenção ou contrato social, ele é submisso à Vontade Geral. Para a sociedade existir é necessário ter um ponto em comum, e esse ponto, ao que parece, é a razão. O objetivo da Vontade Geral é o bem comum, objetivo pelo qual foi instituída (p. 33). A Vontade Geral está acima do Estado, é ela que dirige as forças do Estado, e também acima da soberania, do Soberano, de tal forma que “pode transmitir-se o poder – não, porém, a vontade” (p. 33). A Vontade Geral enquanto objetiva o bem comum não pode estar a mercê do Estado e nem do Soberano, pois o bem comum surgiu justamente da oposição de interesses particulares316 e, então, não pode representar somente o interesse do Estado ou do Soberano enquanto for particular. Isso acontece porque há uma constante oposição de vontades (interesses) particulares que tendem mais a predileções do que à igualdade. 16 Mesmo que houvessem associações/sindicatos, seriam os interesses de algumas partes maiores e menores.

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O Soberano, enquanto submisso à Vontade Geral, não perde o poder e está livre, assim como o Estado, o Governo e o Povo (indivíduo), pois “a vontade ou é geral ou não o é” (p. 34). Por esse mesmo motivo estabelece-se que a soberania é indivisível, pois se a vontade geral não pode conter partes, donde resultaria vontades das partes (particulares) maiores ou menores. Outro indicativo da Vontade Geral enquanto consideração de todas as partes é dada em nota de rodapé: “para que uma vontade seja geral, nem sempre é necessário que seja unânime, mas sim que todos os votos sejam contados. Qualquer exclusão formal rompe a generalidade” (p. 34). A Vontade Geral é a vontade do corpo do povo e não unicamente de uma parte, por isso, todos os votos tendem a ser contados. Outra indicação de Vontade Geral que parece fundamental é derivada da expressão posta anteriormente, de que a vontade para ser geral “nem sempre é necessário que seja unânime”. Isso nos remete para além da perspectiva de considerar todas as partes ou o corpo do povo em si, que por sua vez nos remete a ideia de que o povo pode ser enganado, falseado e por isso optar por algo que não seja o bem comum.

Via de regra, há muita diferença entre vontade de todos e a vontade geral; esta se refere somente ao interesse comum, enquanto a outra diz respeito ao interesse privado, nada mais sendo que uma soma das vontades particulares. Quando, porém, se retiram dessas mesmas vontades os mais e os menos que se destroem mutuamente, resta, como soma das diferenças, a vontade geral (p. 37).

A Vontade Geral, a partir desses pressupostos, não é a expressão da vontade da maioria, nem de todos ou de alguém individual, ao mesmo tempo em que pode ser a expressão da vontade de todos, da maioria, ou de alguém. Daí o seu pressuposto é a igualdade, expressão do bom senso. O indivíduo, grosso modo, é composto de instinto (biológico), de sentimento (alma) e de razão. Na parte concernente ao sentimento e razão temos o indivíduo altruísta, e da parte concernente ao instinto e razão tem-se o indivíduo egoísta. Da “boa administração” dessas partes é que temos o Bom Senso, ou seja, a igualdade entre o egoísmo e o altruísmo. Se tomarmos por analogia o indivíduo como a sociedade, e os membros do indivíduo como os membros da sociedade ou suas associações, vamos perceber o

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Bom Senso, enquanto expressão da Vontade Geral, na medida em que o indivíduo não calça um pé com um bom sapato e o outro deixa-o descoberto (descalço) por ser prejudicial não somente à parte, mas ao todo do corpo que integra. Quer dizer, segundo o bom senso é melhor calçar os dois pés. Isso porque “a vontade geral é invariavelmente reta e tende sempre à utilidade pública” (p. 37). A mesma retidão da vontade geral, porém, não pode ser aplicada ao povo, justamente porque o povo pode ser enganado ou incorrer em interesses privados, objetivos individuais, ou mesmo julgar algo que lhes é estranho. Mais do que isso; é determinante que os indivíduos emitam sua opinião, não conforme o ponto de vista de outrem, que pode ocorrer em situações embaraçosas durante as discussões. O povo deveria deliberar quando estivesse bem informado e sem a comunicação dos seus membros entre si, para que a Vontade Geral resultasse das pequenas diferenças. A generalização da vontade não é dada pela contagem do número de votos, mas pelo interesse comum. Esse é o objeto da Vontade Geral, ou seja, “a vontade geral, para ser verdadeiramente geral, deve sê-la tanto em seu objeto quanto em sua essência” (p. 40). O seu objeto é o interesse geral e a sua essência, a igualdade. Outro elemento a ser discutido é o caráter de retitude da Vontade Geral. Tal caráter, como o insinuado anteriormente, não vem do povo em si, pois este não é portador de retitude; pelo contrário, conforme Rousseau (p. 37, 48 e 49) o povo pode ser enganado e não reconhecer o bem por si só, e embora queira sempre o bem, não vê o bem que quer. Assim sendo, “a vontade geral é sempre reta, mas o julgamento que a guia nem sempre é esclarecido” (p. 48). Nesse caso, é preciso contrabalançar o imediato com o mediato, as seduções do presente com os perigos do futuro e, somente após, apontar o bom caminho. “É preciso obrigar um a conformar suas vontades à razão e ensinar o outro a conhecer o que deseja” (p.49). Diríamos que o que deve prevalecer é uma espécie de Bom Senso, que não é também, por sua vez, a razão, mas é parte dela. Caso esta retitude fosse expressão da razão, poder-se-ia correr o risco de fazer prevalecer o melhor argumento, o argumento mais convincente, consensual e/ou coerente. De qualquer forma, pode-se deduzir de Rousseau que não é a razão, pelo fato de que, conforme sua expressão supracitada,

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apenas alguns precisam conformar suas vontades à razão, outros precisam apenas de esclarecer o seu desejo. Assim, a Vontade Geral instituída, e que por sua vez age como lei417, ganha a própria legitimidade dos indivíduos (entidade máxima) que a constituem e se submetem para manterem a sociedade civil enquanto convenção necessária, sob pena de não terem a liberdade da sociedade civil. Assim fica evidenciada, também, como Bom Senso. Suas aplicações no campo educativo podem ser percebidas em várias situações, dentre elas, destacamos a possibilidade de se traçar um contrato pedagógico que tenha como ponto central a legitimidade da Vontade Geral, ou seja, o contrato pedagógico enquanto um contrato social. Também, a possibilidade de que os “contratos”, verbais ou através dos planos de estudos, entre professores e alunos sejam permeados por esse Bom Senso, ou então, pela Vontade Geral. Com isso estaríamos visando um processo educativo sensato, que conta com o envolvimento de todos os concernidos, portanto igualitário e emancipatório. Na plataforma estará disponível uma atividade para análise e links para que você se aprofunde nesses aspectos. Não se esqueça de buscar essas novas informações, inclusive, antes de testar seu conhecimento.

3.13

CONSIDERAÇÕES DA UNIDADE III

É parte desta unidade a terceira teleaula. Lembre-se de assisti-la no polo e no seu ambiente virtual de aprendizagem para complementar seus estudos. Com isso você aprofunda a compreensão das relações sociais a partir da ótica dialética. É sempre importante que você se pergunte: qual a relação com o cotidiano escolar? Na plataforma você também terá disponível uma atividade para análise focada no conceito de classe social, além de um fórum de dúvidas e alguns links. Assim você terá a chance de compreender melhor os assuntos abordados até aqui.

17 Os atos da Vontade Geral são a lei cf. p. 47.

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Não se esqueça também de buscar novas informações, inclusive, antes de testar seu conhecimento. Na próxima unidade você poderá estudar algumas outras perspectivas gerais da área de sociologia, como a compreensão do neoliberalismo, o fenômeno da globalização, do consumismo via Indústria Cultural, dentre outros aspectos nessa mesma direção. Bom trabalho!

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TESTE SEU CONHECIMENTO

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UNIDADE IV

EDUCAÇÃO, GLOBALIZAÇÃO, NEOLIBERALISMO E PÓSMODERNIDADE OB J ETIVOS D A UN ID A D E

Fazer um percurso pela educação e mostrar assim algumas possibilidades de interpretação a partir da sociologia;

Possibilitar a compreensão das diferentes relações pedagógicas a partir da visão sociológica.

HAB ILIDADE S E C O MP E T Ê N C IA S •

Compreensão da educação enquanto um processo sociológico;

Aplicação dos princípios apontados pela sociologia nos diferentes momentos de relações educacionais e/ou pedagógicas.

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EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO OU NEOLIBERALISMO 4.1

O título educação e globalização ou educação e neoliberalismo já de vista nos sugere algo que transposto para o universal é algo muito complexo. Veja-se, primeiro, que há uma incerteza quanto a definição se é globalização ou neoliberalismo. É isso mesmo o que o mundo parece viver. Uma crise de incertezas ou do fim das certezas. Se na história Marx e suas ideias fracassaram, por exemplo, não significa que a teoria liberal de Adam Smith, criticado por Marx, esteja certa. Após guerras mundiais (bélicas) surge a Guerra Fria, que passou a dividir o mundo sob a influência do socialismo através da URSS (atualmente Rússia) e do capitalismo através dos EUA. Caiu o “socialismo real” e o que está em voga é em última instância um modelo liberal que ganha ou tem a alcunha de neoliberalismo e globalização. A diferença que se pode estabelecer entre neoliberalismo e globalização é que o primeiro é uma fusão do modelo liberal com o capitalismo de maneira que os princípios adotados preconizam o livre mercado e um estado mínimo, ou seja, uma liberdade econômica. A globalização é uma transposição dessas ideias para o universal, ou seja, para o mundo, de forma que todos adotem esta política: o mercado é o controlador, ou então, tudo deve funcionar como uma empresa em que é preciso acima de tudo competitividade para sobreviver; tudo está sujeito a lei de mercado. Pergunta-se, assim, pela educação. Como se dá a educação através da lei do mercado? Qual o discurso que perpassa pela educação? Quem dita as normas e regras para a educação? Como são os processos de avaliação da educação? Qual a ideologia predominante? Paulo Freire dizia que: “conscientização é o olhar mais crítico possível da realidade, que a desvela para conhecê-la e para conhecer os mitos que enganam e que ajudam a manter a realidade da estrutura dominante”. Para a conscientização nada melhor do que educação e mais ainda conhecer os mecanismos (ideologias) que perpassam a educação num meio dito globalizado. É com essa perspectiva que se estruturou o texto a seguir. Numa primeira parte visa-se localizar a educação no processo neoliberal e global e, em uma segunda parte, discutir a temática com maior profundidade das consequências ou interferência dessa proposta na educação.

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4.2

GLOBALIZAÇÃO/NEOLIBERALISMO

Sabe-se da vivência de uma era em que as mudanças se dão de forma repentina. Tudo muda rapidamente, principalmente quando se fala em TICs (Tecnologias da Informação e Comunicação). Enquanto escrevo este livro didático imagino que já foram milhares as descobertas. Também milhares são as pessoas que nascem e estão sedentas de uma formação, de um processo educativo que lhes garanta a sobrevivência na sociedade ou no meio social. Marx e Engels já expressavam essas visões de um novo tempo no Manifesto Comunista (1848):

Suprimiram-se todas as relações físicas, cristalizadas, com seu cortejo de pré-conceitos e ideias antigas e veneradas; todas as novas relações se tornam antigas, mesmo antes de se consolidar. Tudo o que é solido se evapora no ar, tudo o que era sagrado é profano, e por fim o homem é obrigado a encarar com serenidade suas verdadeiras condições de vida e suas relações como espécie.

Nesse processo de mudanças muitas são as contradições que ocorrem. Segundo os dados das novas tecnologias, da FAO (Fundo das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) e outras organizações, hoje é possível produzir alimentos para 12 bilhões de pessoas, porém quase 6 bilhões de pessoas passam por necessidades alimentares e um bom grupo morre de fome a cada dia.

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Em meio a essas mudanças um fenômeno que surge é a chamada globalização. Gaudêncio Frigotto afirma que “globalização não é algo novo e nem negativo em si mesmo”. Da globalização são possíveis várias leituras, se bem que usa-se essa palavra para explicar coisas variáveis ou muitas coisas. Está espalhada por toda parte. Todos falam de globalização em textos de política, economia, literatura e muitos outros. Para este momento explicito duas formas mais importantes. Dentre elas uma mais linear e outra mais referencial. Tem-se globalização como sinônimo de progresso e desenvolvimento. Como algo que proporciona mais integração e menos diferenças. Tem-se mais justiça, liberdade, mais igualdade entre as partes de forma que todos conjuntamente estarão evoluindo. Também perpassa um pensar de que é um processo irreversível, isto é, a ideia da ideologia dominante em que os sindicatos, partidos, as próprias ONGs e outras organizações parecem estar impossibilitados de agir ou de criar uma barreira para conter algumas falcatruas ou devaneios da dita globalização. Porém, tem-se um outro lado que chamaremos de contradições e que, por sinal, não são poucas. Vê-se então que nem tudo é tão globalizado como parece. Do ponto de vista econômico, o capital é um fenômeno que não há como fugir, embora mais ou menos 50% da economia do mundo é globalizada, o resto não. Escapa a isso principalmente a economia, que tem a característica mais informal. Tem96

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se ainda a questão das línguas, religiões, moedas, símbolos, que por mais globalizado que seja não desapareceu e nem vai desaparecer tão logo. Lembro-me aqui que algo parecido com globalização foi o que ocorreu com o cristianismo nos primeiros séculos de nosso calendário, ou seja, a concepção cristã de mundo dominou até a Idade Média, no ocidente, e, embora ainda existam pessoas cristãs, já há uma boa parcela de pessoas que não baseiam mais sua existências em concepções míticas, místicas, ou religiosas. Nesse caso, “global e local são partes mutuamente constitutivas de um todo social contraditório”18. Essas contradições servem para mostrar que há limites e que não há uma total globalização. O que há na globalização é sim uma hegemonia da ideologia dominante, que veda ou escurece muitos projetos viáveis e experiências diferentes que necessitam ser vistas e avaliadas para se fazer notar que não existe somente a proposta vigente. No momento, a proposta/projeto hegemônico é o neoliberalismo que se instaurou principalmente após a queda do murro de Berlim em meados dos anos 90. Esse projeto neoliberal está principalmente sob o controle dos EUA, embora tem-se o G7 como emblema. É desse grupo e dos EUA que são vindas e ditadas as “normas neoliberais”, que na verdade são impostas basicamente aos países do terceiro mundo, aos do sul, países em desenvolvimento ou, mais atual, às economias emergentes. As normas fazem parte do “ajuste estrutural” que tendem a passar os países para chegarem ao pleno desenvolvimento. Esse “ajuste” tem consequências principalmente na educação. É sobre a educação no projeto neoliberal globalizante que tratará a próxima análise.

4.3

E A EDUCAÇÃO?

Nos deparamos,cotidianamente, com a era da informação, com o poder de sedução da imagem que nos leva a pensar novas estratégias, exige luta e proporciona grandes desafios. Um desses desafios é ler o que Pierre Bourdieu chama de “Evangelho do Neoliberalismo”. Ou, conforme Harvey, que o “ritmo e o conteúdo da vida 18 SILVA, Luiz H. da (org.). A escola cidadã no contexto da globalização. Petrópolis: Ed. Vozes, 1998.

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cotidiana tem se tornado mais efêmero e volátil, de modo que os valores e as virtudes são da instantaneidade e da descartabilidade”. Isso tudo é proporcionado em última instância pelo “ajuste estrutural”. Isso é algo que vem de cima, dos dominantes, do tipo de globalização que representa uma Nova Ordem Mundial. Assim:

A educação moderna, o iluminismo, direito de liberdade e tal não asseguram mais a possibilidade de uma escolarização que ensine ‘valores’ (idealmente democráticos), as habilidades (idealmente participativas) e a compreensão (idealmente global), mas sim algo que convém para explicar a natureza da realidade (SILVA, 1998, p.139).

A escola segue regras que são ditadas pelos EUA, que tem o Banco Mundial (BM) como concretizador ou auxiliar para fazer acontecer a política norte-americana. O BM ou FMI tem esse poder de intervir e ditar porque são organismos que emprestam dinheiro, financiam projetos para os países em desenvolvimento. Em contrapartida, esses países adotam algumas políticas como condição para o empréstimo, além dos juros. Essas políticas nem sempre são analisadas e adotadas na íntegra e causam o chamado endividamento externo que cria mais dependência dos países em relação ao BM e FMI. Os projetos impostos ou programas de ajuste tem uma concepção liberal privada ou privatista que é imposta aos países subordinados, dentre eles o Brasil, e que são um conjunto de normas, programas, projetos sob o prisma neoliberal que convencionou-se chamar de Consenso de Washington (CW) do qual Herbert de Souza (1996) faz uma crítica e escreve: “Quem governa o Brasil?” Para Souza nessa versão globalizada o slogan adequado seria: “Basta de intermediários, o Banco Mundial para a Presidência”. Para melhor entender o programa educacional a partir do CW destacam-se cinco eixos do mesmo: “1 – Equilíbrio orçamentário, sobretudo mediante a redução de gastos públicos. 2 – Abertura comercial, pela redução das tarifas de importação e eliminação da barreiras não-tarifárias.

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3 – Liberação financeira, por meio da reformulação das normas que restringem o ingresso do capital estrangeiro. 4 – Desregulamentação dos mercados domésticos pela eliminação dos instrumentos de intervenção do Estado, com controle de preços, incentivos, etc. 5 – Privatização das empresas e dos serviços públicos”219. Tudo está baseado no liberalismo econômico. Temos uma interpretação da globalização humanista em que aparece a igualdade de valores, respeito a diversidade, uma visão democrática, busca de direitos humanos; tem-se também uma interpretação economicista que conforme o CW coloca-se o neoliberalismo, direitos econômicos, de propriedade e, principalmente, conceitos de produtividade, eficiência e “qualidade”. Para os protagonistas do CW o que há é uma crise de eficiência, eficácia e produtividade. Tudo isso é causado porque o estado está impossibilitado de gerenciar as políticas educacionais. Os culpados dessa situação são acima de tudo os sindicatos, o estado ou o “público” já mencionado e a sociedade por que responsabiliza-se pelo que acontece a todos. O único responsável pelo fracasso deduz-se o próprio indivíduo, pois é ele quem está incapacitado de competir. Os três elementos (eficiência, eficácia e produtividade) tem o mercado como parâmetro dentro do discurso neoliberal. O que vale é a lógica do mercado, ou seja, a educação tem de ser privatizada, a escola tornar-se uma empresa e o estado tem de ser mínimo. Apesar de o estado ser mínimo é ele ainda, que na globalização, faz o papel de mediador ou intermediador das transações que ocorrem. Ocorre uma prevalência da lógica financeira de mercado sobre a lógica social e educacional. São discursos instrumentais em que o válido é a lógica de mercado que se autogesta. A educação passa para a esfera do mercado. A escola é um mercado e o que se busca são “insumos”. Compra-se saber ensino e tudo mais. O indivíduo na escola tem de competir, “passar por cima de outros”, numa visão mais pessimista.

19 DE TOMMASI; Lívia. WARDE, Mirian Jorge. HADDAD, Sérgio (orgs). O Banco Mundial e as políticas educacionais. São Paulo: Cortez Editora, 1996.

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Vê-se então que:

a realidade educacional é ameaçadora, pois, além de tudo, as escolas passam a ser financiadas por corporações que funcionam como indústrias de serviços para o capitalismo transacional e a busca de lucro dos institutos burgueses de ‘pesquisa’ prevalece na orientação da política e da prática educacional (…) (SILVA, 1998, p.88).

A escola nas mãos de particulares terá, segundo o discurso, mais dinheiro para implantar os programas de qualidade total. Qualidade total já significa para alguns, ou para os “experts” que conseguiram se destacar e ter méritos. O sucesso no mercado, o poder de competitividade fazem parte da característica meritocrática. Enquanto que o indivíduo que não souber “escolher” uma boa escola, terá queimado uma etapa e será por causa da “escolha” uma parte do seu insucesso. Aqueles que souberam adquirir um bom “insumo” conseguirão um bom desempenho em seus trabalhos, são consumidores “responsáveis” e também empreendedores. Ressalto que o indivíduo neoliberal é sempre um consumidor e aqui um consumidor de educação. Os méritos serão sempre de alguns que se “esforçam” mais e terão seus ídolos e exemplos nos “experts”, ou indivíduos que conhecem a dinâmica do mercado, com capacidade de competir e superar a ineficiência, ineficácia e improdutividade. Percebe-se cinco elementos de influência ao aspecto da educação, ou tendências:

1 – Neoliberalismo: mercado e competição.

2 – Nova economia institucional: escolhas e ações de um ator supostamente racional.

3 – O que Lyotard chama de performatividade, isto é, seja eficaz ou desapareça (isto é comensurável).

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4 – Teoria da escolha pública.

5 – Novo gerencialismo: é a nova gerência baseada no mercado de modos que busca-se delinear, normalizar e instrumentalizar a conduta das pessoas a fim de alcançar os objetivos que eles postulam como desejáveis (Du Gay, 1996, p.61).

Pode-se dizer que são algumas tendências do neofordismo ou pós-fordismo tendendo respectivamente a flexibilidade de mercado, privatização, individualismo competitivo e investimentos em setores econômicos cruciais com desenvolvimento do “capital humano”. Está-se diante das reformas na educação num plano de que os economistas manipulam em três citações:

1 – Adequar os políticos educacionais ao movimento de esvaziamento das políticas de bem-estar social;

2 – Estabelecer prioridades, cortar custos, racionalizar o sistema, enfim, embeber o campo educativo do campo econômico; e

3 – Subjugar os estudos, diagnósticos e projetos educacionais a essa mesma lógica (DE TOMMASI; WARDE; HADDAD, 1996, p.11).

O princípio (filosófico) que guia a lógica do mercado parece constar de que os mecanismos de mercado são melhores e superiores a qualquer outro quando se trata da coordenação da atividade humana. Esse princípio filosófico não foi, porém, testado, e o que se percebe é que as propostas do BM para a educação raras vezes dão certas. Outras vezes são normas para os outros países em desenvolvimento seguirem. Os EUA, por exemplo, não segue, de modo que se pode considerar o nosso Brasil uma cobaia dos projetos do BM e FMI.

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A educação passa a formar um “capital humano” na perspectiva neoliberal, e, em segundo plano, um algo, ou instrumento para erradicar a pobreza. Podemos ter consciência de que é difícil, senão impossível, separar crescimento econômico, renda, qualidade de vida de educação, porém um crescimento “desregulado” e sem limites, concentra ainda mais a renda nas mãos de poucos e gera empobrecimento, exclusão e diminui a qualidade de vida da maioria. Quem poderá ter acesso (a boa educação) são somente alguns “privilegiados”. Além de não se efetivarem as propostas do BM, este não assume os danos causados e culpa-se a “mão invisível” do mercado. Embora isso aconteça, é preciso exigir “da escola entre outras coisas uma boa formação do ‘capital humano’ em vista de que se formem cidadãos não apenas capazes da sobrevivência num mundo rapidamente em mudança, mas que estejam permanentemente abertos à possibilidade de mudar a si próprios ou de serem mudados” (SILVA, 1998, p.151). O capitalismo cobre o mundo inteiro fazendo do trabalho de muitos a riqueza de poucos. Transfere-se cada vez mais o capital das classes médias e trabalhadoras para as altas ou “escalões superiores”. Cabe a nós minar o projeto global da educação com novas propostas e projetos, criando algo que seja útil para o Brasil, dando à utopia possibilidades e forma de concretização. É o que Shakespeare fala de que “no próprio veneno existem remédios”. É se tornar o que Paulo Freire chama de “construir a si mesmo e ser sujeito”. É nas palavras de Marisa V. Costa “se emancipar através da conscientização”. É isso que a educação globalizada deve proporcionar juntamente com uma visão democrática. Nesse sentido,

nunca o conhecimento foi tão importante como nos dias em que vivemos. E a tendência parece ser de que isso se tornará cada vez mais crucial à continuidade saudável de nossas relações, de nossos rumos. Afinal, não podemos mudar o que desconhecemos (SILVA, 1998, p. 451).

Assim percebemos que o conhecimento é importante para, dentre outras coisas, reconhecer que a globalização existe, seja humanista ou economicista, e que uma nova ordem se instaura no mundo internacional. Também reconhecer que há 102

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uma tendência da educação e das políticas sociais buscarem nos princípios liberais os seus fundamentos filosóficos. Porém, isso é desastroso e só tendo consciência desses fatos podemos mudar e dar novos horizontes de possibilidades à utopia. Na noção focaultiana: “conhecer é governar”, porém “exercer o poder não significa estar livre dele, pois o poder opera em várias direções, circula: quem narra também é narrado” (SILVA, 1998, p. 239). É da ignorância de nossos representantes que por vezes alguns projetos são falaciosos, pois do que vale montar um projeto educativo sem conhecer as reais necessidades da sociedade? Precisa-se sem dúvida, imbuirmo-nos do conhecimento das ideologias dominantes e hegemônicas e miná-las, para que se tornem boas e se concretize a utopia de igualdade de valores, justiça, liberdade, fraternidade, respeito a diversidade e tantos outros sonhos de um verdadeiro processo de globalização que, com certeza, começa pela boa educação dos cidadãos no contexto global/neoliberal.

4.4

DARWINISMO SOCIAL E NEOLIBERALISMO

Há muitos anos um pensador chamado Charles Darwin ficou conhecido no mundo intelectual por lançar, dentre outras coisas, uma nova teoria sobre a origem do mundo, ou seja, as espécies que hoje existem não foram criadas por obra da mão divina, mas sim foram mudando ao longo do tempo e constituindo-se na sua mais íntima complexidade. Essa teoria está posta em seu polêmico livro “Origem das Espécies” e é tida como “Teoria da Evolução”. A preocupação de Darwin é demonstrar que as espécies não são imutáveis, que cada uma não foi objeto de criação independente; ao contrário, derivam umas das outras e modificam-se constantemente, transmitindo hereditariamente suas novas características. Nesse processo, a seleção natural tem um papel relevante no que se refere à manutenção, fortalecimento e ampliação das características úteis à sobrevivência das espécies. Segundo Nélio Marco, a teoria de Darwin se entende da seguinte forma: UNIDADE IV - EDUCAÇÃO, GLOBALIZAÇÃO, NEOLIBERALISMO E PÓS-MODERNIDADE 103

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1) as populações podem crescer exponencialmente, ou seja, numa progressão geométrica do tipo: 2, 4, 8, 16, 32, 64, 128... Se todos os descendentes de um casal de cães sobrevivessem e se reproduzissem no mesmo ritmo, em poucos anos o planeta estaria coberto deles;

2) as populações não crescem exponencialmente. O mundo (aparentemente) não está coberto de cachorros;

3) os indivíduos de uma mesma espécie apresentam diferenças que são hereditárias;

4) por decorrência do grande número de descendentes e da falta de espaço e alimento para todos, deve existir uma ‘luta pela existência’ (competição), uma vez que grande número de indivíduos dever ser eliminado a cada geração;

5) os sobreviventes não devem ser escolhidos ao acaso, os mais aptos devem sobreviver e transmitir suas características aos seus descendentes (seleção natural).320

A teoria da evolução ataca os mitos muito fortes no tempo de Darwin e, diga-se de passagem, ainda presentes em nossos dias: 1) o mito da criação divina das espécies e 2) o mito da superioridade do homem em relação aos demais seres criados. Em poucas palavras, a teoria da evolução acaba com a visão essencialista do homem e das coisas. Ao mostrar que as espécies estão abertas para assumirem novos caracteres, novas identidades (essências) no futuro (mesmo que seja extremamente longínquo), o evolucionismo nega o esquema fechado do pensamento essencialista que determinava um estatuto rígido para cada coisa. O mundo deixa de ser fechado e repetitivo e mostra-se aberto e novidadeiro. Escreve W. Kilpatrick:

Para Aristóteles, as espécies eram fixas, imutáveis, espirituais, por natureza; e essa hipótese se baseava na essência mesma de seu sistema. Contra ela, a própria frase ‘origem das espécies’ era um 20 Nélio MARCO, O que é darwinismo, p. 28.

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ataque de frente. O conceito de mudança, imaginado por Darwin, afrouxava todas as fronteiras convenientes da mudança, dentro das quais Aristóteles a tinha procurado limitar. Que seria do futuro se novas espécies viessem a existir? Não se pode dizer o que aconteceria. Segundo as palavras surpreendentes de James, ‘tirou-se a tampa do universo’. O futuro ainda está para ser determinado. Nenhuma fórmula anterior poderá continuar a vigorar, em domínio algum. Todas as velhas certezas podem ser postas em dúvida.421

No entanto, parece que Darwin utiliza a expressão “Evolução” apenas uma vez no decorrer da primeira edição de Origem das Espécies e, também, que suas ideias foram trazidas à tona, no que tange a evolução social, de modo errôneo. Acreditar que Darwin apregoava a evolução seria um equívoco, pois o verbo evoluir, quando usado por Darwin, está em seu sentido original de estender ou desdobrar (INGOLD, 2003, p.108). Nesse sentido, uma coerência e justeza de interpretação seriam dadas pela expressão “descendência com modificação”, a qual revela de forma mais precisa e correta a tentativa de Darwin ao apresentar as leis da variação e da seleção natural. Os “equívocos” têm, não obstante, uma explicação. Uma delas é relativa às especulações feitas pelos contemporâneos de Darwin, em especial Spencer, que tomam suas leis e as aplicam, de certa forma, à sociedade. Esta se justifica concomitantemente com uma segunda, apresentada por Nélio Marco em “O que é Darwinismo”, ao colocar o darwinismo como uma teoria gestada dentro de uma sociedade – por isso não neutra como queria a “história oficial” – contendo os elementos presentes, no caso, destaca-se os do capitalismo. Isso gerou nada menos do que a interpretação de mudanças sociais como mudanças que evoluem, que proporcionam o desenvolvimento e o progresso, quer dizer, a lei da constituição dos seres vivos e da biologia passa a guiar ou ser a mesma lei da constituição das sociedades, tomando como suporte a mente e a consciência dos indivíduos (cf. INGOLD, 2003, p. 109). E, embora Darwin não fosse fã de Spencer e, tampouco estava preocupado com a evolução da vida como Spencer o julgara, acabou adotando uma de suas frases, a saber: “‘a sobrevivência do mais apto’, como alternativa possível para a ‘seleção natural’ nas edições posteriores de Origin” (INGOLD, 2003, p. 109). Isso, no entanto, de modo algum significa que o progresso e a evolução estejam associados à modificação da 21 W. KILPATRICK, Educação para uma civilização em mudança, p. 37.

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espécie, ou seja, as mudanças que acorrem não significam necessariamente progresso ou evolução. Tenhamos em mente, pois, que uma coisa são as ideias de Darwin e outra o darwinismo e, também, que há uma confusão entre “descendência com modificação” e evolução ou progresso. A primeira ideia é de que, para Spencer, a sociedade funciona como um ser vivo, biológico e que, portanto obedece à mesma lei da evolução, ou seja, na sociedade, bem como na natureza, sobrevive o mais apto, de forma que a criação de leis sociais que dão proteção aos “menos aptos” faz com que esses sobrevivam e que a sociedade não progrida. A lei geral é de que a evolução de todos os corpos opera pela passagem de um estágio primitivo, caracterizado pela homogeneidade ou pela simplicidade de estrutura a estágios sempre mais avançados, marcados por uma heterogeneidade crescente das partes, a qual se acompanha de novos modos de integração dessas partes. Quanto mais partes diferentes e heterogêneas um corpo comportar, quanto mais complexa for a sua organização, com mais razão podemos dizer que é “avançado” ou “evoluído”.

[...] a especialização dos órgãos é de fato um fator de progresso para um corpo, pois daí resulta que este vê o seu raio de ação alargar-se e multiplicarem-se as suas hipóteses de sobrevivência na luta pela vida (struggle for life) que prevalece na ordem da natureza (ROCHER, 1989, p. 53).

A concepção de sociedade começa a mudar de sentido, pois se implanta a concorrência e os interesses múltiplos, a especialização das partes, a busca de estágios sempre mais avançados de diferenciação, ou seja, de desigualdade gerada na “luta pela sobrevivência”, de Darwin, ou pela “sobrevivência do mais apto” de Spencer. Sociedade em sua acepção originária tinha um sentido de “sociável”, companheirismo, cordialidade, lugar no qual o indivíduo poderia viver em família, em comunidade. Esse termo, no entanto, ganha novos significados a partir, especialmente, do século XVIII, quando inspirado na justificativa darwinista, o modelo liberal-burguês entra em cena. Sociedade significaria agora lugar de disputa e hostilidades, de antagonismo mútuo em que as transações passam a serem motivadas por meios econômicos de interesse próprio e não mais propriamente sociais. Nesse estado social não há mais 106

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comunicabilidade, as intenções não são mais as de comunicação e inteligibilidade, ficando muito aquém deste ideal. Há um campo de disputa e batalha pela sobrevivência, domínio do egoísmo. Assim é possível verificar a proximidade ou ligação entre a evolução biológica e a evolução social, na medida em que prevalece a lei do mais forte e a extinção dos menos aptos e “inferiores”. Spencer denomina a sociedade de realidade “supraorgânica”, marcando a estreita ligação entre o biológico e o social. E por perceber uma estreita ligação entre essas duas realidades e do mesmo modo uma uniformidade e universalidade nas mudanças (da natureza e sociais) é que formula a lei geral exposta de que toda mudança se dá do mais simples ao mais complexo e do homogêneo para o heterogêneo, quer dizer sempre se dá de um estado igualitário para um estado desigualitário (cf. BOCK, 1980, p.96). Nesse sentido ganha espaço a divergência, aqui em sentido pejorativo, tornamse “normal” as diferenças e as classes sociais, pois isso nada mais significa do que os mais evoluídos e os menos evoluídos, ou os experts e os inferiores. “As diferenças sociais e culturais representam as várias etapas da evolução” (BOCK, 1980, p. 98) e os diferentes tipos de sociedade, das simples às complexas, segundo Spencer, são as sociedades primitivas, a sociedade militar e a sociedade industrial. Comparativamente, as noções psicológicas centrais do desenvolvimento seriam, neste caso, a criança, o jovem e o adulto. A sociedade é um organismo e tende a evolução, assim como um organismo vivo (biológico). Observa ainda que “qualquer dos dois organismos é dotado de três sistemas de órgãos: sistemas de nutrição, de distribuição e de regulação, cuja evolução se fez, em ambos os casos, através de uma interdependência crescente das partes componentes” (BOCK, 1980, p. 159). Essa relação de interdependência do conjunto das relações é que define a sociedade enquanto uma totalidade ou enquanto integração, e que, por sua vez, não significa uma relação de solidariedade e de familiaridade. A interpretação spenceriana do darwinismo justifica os imperialismos, elitismos e os racismos. Se apenas devem viver, enquanto humanidade, somente os que tiverem em melhores condições de vida, os superiores e os mais aptos, é fácil dizer que se eliminarmos os inferiores e menos capazes teremos uma constituição racial melhor. UNIDADE IV - EDUCAÇÃO, GLOBALIZAÇÃO, NEOLIBERALISMO E PÓS-MODERNIDADE 107

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Parece ser a tentativa de Hitler na Alemanha promovendo uma raça pura. Justifica-se também, a partir dessa visão, porque “pobres” e inferiores devem morrer ou ficarem isentos de direitos. A segunda ideia diz respeito à aproximação do conceito de evolução e progresso com o de mudança. Nesse sentido Darwin estaria a jugo de uma interpretação equivocada de suas ideias, na medida em que seus intérpretes assumem a expressão de descendência com modificação como significando evolução e daí, como ocorre esta transmutação das leis biológicas para as leis sociais, as mudanças sociais por mais precárias que sejam, ou mudanças que evidentemente destroem o social são encaradas como representantes de progresso. De outra forma poderíamos dizer que as noções de desenvolvimento social são confundidas com progresso, ou ainda, que “a civilização moveu-se, está se movendo e se moverá numa direção desejada” (BURY apud BOCK, 1980, p. 66). Mudança significa progresso e é a isso que estamos destinados segundo as teorias darwinistas expostas. Deve-se admitir ainda que a ideia de progresso é demasiadamente complexa e assume significados diferentes conforme o período histórico, ou conforme a teoria que lhe dá suporte. Encerra senão contradições um mínimo de ideias complexas que não são coerentes entre si. Há um otimismo exagerado, romântico, em relação à história e às mudanças, de tal forma que pensadores constroem itinerários e leis complexas de transformação para demonstrar uma linearidade histórica, isto é, para demonstrar que há progresso.

A ideia de progresso encerra uma imagem detalhada e abrangente de mudança. Envolve orientações específicas da história como registro de acontecimentos. Indica uma interpretação definida e singular das diferenças sociais e culturais e designa um uso de diferenças na construção de teorias de mudança social e cultural. Postula uma natureza das coisas, afirma um universalismo e cria um sistema de correspondência que nos apresenta um quadro rico e detalhado de como as coisas funcionam nas questões humanas. Identifica, como entidade real, uma categoria do acidental, do fortuito, do anormal ou não-natural (BOCK, 1980, p.67/68).

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Nesse sentido, a compreensão de história é dada como uma sucessão de acontecimentos dos quais os anteriores são sempre mais precários que os posteriores, ou seja, tomando como exemplo a ideia cristã de providência averiguamos que a história humana (terrestre) está definida com um começo e um fim, com uma ideia de progresso, de melhoramento da humanidade, que cada vez mais se aproxima da divindade, uma crença num futuro melhor, de que com o tempo as coisas melhoram. Há uma ordenação da história e nada ocorre ao acaso, metaforicamente, Deus não joga dados. Assim são, também, as concepções de progresso em relação ao crescimento do conhecimento e da “mente humana” que são “apresentadas pelos modernos como tendo mudado no tempo, e a mudança é representada como crescimento: é lenta e gradual e marcada por estágios ou fases, e não por acontecimentos” (BOCK, 1980, p. 78). Um terceiro ponto a ser explorado nesse contexto é de que o darwinismo deu possibilidades de justificativa para uma sociedade capitalista, liberal ou neoliberal. Conforme Marco, “não resta dúvida. A sociedade capitalista é, de certa forma, darwinista, isto é, seus ‘organismos’ mantêm relações muito parecidas com as relações naturais dos seres vivos” (MARCO, 1987, p. 46). Embora não foi o darwinismo em si que ofereceu fundamentos e criou o capitalismo, o darwinismo foi influenciado pelo capitalismo de tal forma que, por vezes, parece uma transposição dos acontecimentos sociais para o biológico-natural. Isso se deve ao fato de que nenhum pensador é neutro ao seu tempo e, portanto, sofre as influências do ambiente social ao qual está vinculado. Nas obras de Darwin pode-se ver a presença do pensamento britânico e das concepções capitalistas que estavam em voga anteriormente ao próprio Darwin. Dentre essas concepções a de competição e luta pela “sobrevivência”. A ciência carrega também suas “manchas” e, neste caso, serviu para justificar, em parte, interesses econômicos e políticos. Trazendo isto para o momento atual do capitalismo e da teoria neoliberal, é possível fazer algumas aproximações do darwinismo com o neoliberalismo e a economia de mercado presente, inclusive, na educação. Verifica-se facilmente que para “vencer na vida” é preciso muita competição e nessa luta vence o “mais apto”,

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o que consegue criar melhores estratégias de sobrevivência. Quer dizer, a crise de ineficiência, ineficácia apontada pela perspectiva neoliberal significa a falta de aptidão, um indivíduo que não evoluiu o suficiente para sobreviver e, portanto, é natural que ele fique em uma condição inferior. Pula-se o diagnóstico de que falta de vagas (extensão e universalização dos serviços) diretamente para a incapacidade individual. O problema não é as estruturas sociais e a organização social, falta de vagas, mas sim o indivíduo (ou grupo social/espécie) que não passou pela “seleção”. A transferência da educação “da esfera da política para a esfera do mercado, negando sua condição de direito social e transformando-a em uma possibilidade de consumo individual, variável segundo o mérito e a capacidade dos consumidores” (GENTILI, 1998, p. 19) significa a transferência para um campo natural de batalha (competição) no qual vence o mais apto (experts) que for “selecionado” e estiver mais bem adaptado para a sobrevivência num mundo supostamente mais “evoluído’. Assim parece que sobrevivem “os membros ‘superiores’, sadios, inteligentes, ricos e, obviamente, brancos” (MARCO, 1987, p.68) em contraposição aos “membros “inferiores”, mal nutridos, doentes, pobres, de constituição racial duvidosa” (Ibid., p.68). Em âmbitos educacionais, segundo essa teoria, parece evidente que não faz sentido investir em deficientes físicos, doentes mentais, em educação para “pessoas especiais”, porque estaríamos preservando uma parte ruim da sociedade que deveria desaparecer para que os homens “superiores” vivessem de modo favorável.

Deveria haver concorrência aberta para todos os homens e dever-seiam fazer desaparecer todas as leis e todos os costumes que impedem os mais capazes de conseguir seus objetivos e criar o maior número possível de crianças (DARWIN apud MARCO, 1987, p. 69).

Uma quarta e última ideia a ser explorada nos remete a uma aparente dicotomia que perpassa esse itinerário e que diz respeito, por um lado, ao aspecto biológico e, por outro, ao aspecto histórico, social e cultural que denominaremos aqui de histórico cultural. O problema se situa entre a evolução biológica humana e a história humana (evolução da sociedade).

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Quanto à evolução biológica parece plausível que tenhamos evoluído gradualmente em conformidade com os demais seres, porém resta saber se na história cultural isso se repete e, mais do que isso, se a partir do começo da história cultural houve uma estabilidade biológica. De outra forma, a história e a cultura influenciam ou não na evolução biológica? Para resolver tal dicotomia e enredar para uma posição de crítica adotamos a posição de Ingold assumindo a perspectiva relacional, pensar de modo relacional (cf. WOLF apud INGOLD, 2003, p. 117). A ideia básica é de que não há nenhuma ruptura radical que separe os humanos dos animais, ou seja, a evolução é gradual e se deu ao longo de infinitas gerações (Ibid., p. 119). Fazendo um recorte temos a seguinte sequência: australopiteco, homo habilis, homo erectus, neandertal, caçador-coletores, cientistas ocidentais. Ora, até o neandertal a evolução é biológica e não teríamos propriamente história que, por sua vez, somente começa com os caçador-coletores. Nesse período intermediário é que temos a origem dos humanos modernos, ou seja, ocorre a preparação biológica dos humanos. Sendo assim, os caçador-coletores já possuíam todas as capacidades dos modernos, ou melhor, “os cérebros dos caçador-coletores presumivelmente primitivos são tão bons e tão capazes de conduzir as ideias sofisticadas e complexas quanto os dos filósofos e cientistas ocidentais” (INGOLD, 2003, p. 121). Quer dizer, estavam dadas as condições biológicas, porém, não as histórico-culturais. Outro quesito é que o caçador-coletor não era um indivíduo autossuficiente e individualista. Por isso a perspectiva relacional, ou seja, nesse espaço-tempo há relações de companheirismo, familiaridade, mutualismo e relacionamentos face a face. Conjuga-se, também,

a autonomia pessoal que é oposta ao individualismo implicado no discurso ocidental (...) a autonomia do caçador-coletor é relacional, na qual a capacidade pessoal de agir por sua própria iniciativa surge mediante uma história de envolvimento contínuo com os outros em contextos de atividades ligadas e práticas (INGOLD, 2003, p. 118).

O Estado nesse ambiente não é possível, aliás, são contra, porque não há limites para os estrangeiros, para a exclusão e suas relações são de incorporação. UNIDADE IV - EDUCAÇÃO, GLOBALIZAÇÃO, NEOLIBERALISMO E PÓS-MODERNIDADE 111

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Os individualismos e exclusão são frutos do poder e do status que ainda não estão implicados nessas sociedades. A evolução e a própria história agora são processos em que:

os organismos se tornam seres com suas formas e capacidades particulares e, mediante suas ações ambientalmente situadas estabelecem as condições de desenvolvimento para seus sucessores. Agora, os seres humanos são tão aprisionados nesse processo quanto os organismos não humanos (INGOLD, 2003, p. 127).

A descendência está condicionada aos feitos anteriores, às situações criadas anteriormente e, portanto, a razão de se criar um ambiente no qual se proporcionem boas condições para as cultivares, ou seja, para produzir uma boa soja o agricultor aduba a terra e cria condições ambientais para tal. Para “produzir” bons cidadãos, um dos papeis da educação parece ser criar essas condições ambientais (de ambiente). Como consequência disso para as políticas educacionais, embora algumas já foram liminarmente exploradas, podemos destacar que segundo a interpretação darwinista spenceriana justificam-se as políticas neoliberais de economia de mercado, competição, racismos e elitismos, porque somente assim estaríamos proporcionando o progresso e que os mais aptos e “superiores’ sobrevivessem. Nesse sentido também não teria muita importância a preocupação com os inferiores e os “especiais”, pois estes fazem parte de uma massa que, sem aptidões para a sobrevivência tende a desaparecer, ou, no mínimo, serem substituídos e dar espaço para os experts. Segundo este entendimento é um processo natural. Se assumirmos a posição relacional, de que estamos em uma situação de igualdade quanto às condições biológicas e o que muda são apenas as condições ambientais, entendidas aqui como histórico-culturais, faz sentido então investir na criação de um ambiente social melhor, no sentido de proporcionar condições e oportunidades para todos, preservando assim um ambiente familiar e honesto. E a evolução é, então, “relativa aos processos dinâmicos de auto-organização” (INGOLD, 2003, p. 129), relativa às condições histórico-culturais criadas, constituídas e reconstituídas. 112

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A INDÚSTRIA CULTURAL – PERSPECTIVA DA SOCIOLOGIA CRÍTICA 4.5

É início do séc. XX quando ocorre um enorme progresso da ciência, surgem as novas tecnologias, é o auge da Revolução Industrial; estão em voga os meios de comunicação social em que é possível a codificação de mensagens e a dispersão (massa). São produzidos bens simbólicos uniformizados. É o século do capitalismo monopolista, das grandes crises, das grandes guerras, das grandes revoluções, das grandes promessas e das decepções e barbárie. Na ordem científica, a psicanálise derrubava tabus, bem como a evolução da eletrônica, do automobilismo, da aviação, etc. Tudo era novo, tudo era estrategicamente renovado. Em termos pedagógicos realça-se a Escola Nova. Em 1917 ocorre a Revolução Russa em que se acredita ser um processo irreversível de emancipação do proletariado. Em seguida, 1918, a divisão das duas Alemanhas pela renúncia de Guilherme II, período em que a Alemanha era tida como potência mundial, mais influente que Inglaterra e EUA. Há o surgimento de grandes movimentos sociais, com diferentes “bandeiras”, inclusive tomando posições antagônicas. Clima de rupturas sociais. Na Alemanha, em 1923, a inflação chega atingir 2870%, de modo que há um crescimento brutal do desemprego e a ocorrência de atos extremistas de terrorismo. Neste período, 1923, se dá a criação de um Instituto de Pesquisas Sociais. “A origem do Instituto é iniciativa de Félix J. Weil, filho de um negociantes de cereais, que fizera fortuna na Argentina”522, juntamente com F. Pollock, por ocasião de ter organizado a Primeira Semana de Trabalho Marxista, que deveria lançar um Marxismo “verdadeiro” ou “puro”. A meta era não estar vinculado a nenhuma organização políticopartidária, mas efetivar uma compreensão da vida social, e dos trabalhadores, na sua totalidade, o que vale a consideração de materialismo histórico. Nos anos posteriores, a Alemanha torna-se o centro dos conflitos mundiais e em 1933 Hitler toma posse, o que significaria mais tarde a posse do nazismo e da barbárie. Há uma grande onda de violência/barbárie, anti-semitismo, e por entendimento de ser contrário as ordens 22 ASSOUN, Paul-Larurent. A escola de Frankfurt. São Paulo: Ed. Ática, 1991, p. 7.

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do estado fecha-se o instituto. O instituto traz no bojo uma filosofia de caráter social, principalmente após estar sob a direção de Horkheimer em 1931, a qual lhe daria trela a ser nomeada de escola. Também caberia o nome de Teoria Crítica, que é resultado da tentativa de dar um caráter teórico original, dar uma forma e uma característica específica, nomeada a partir do artigo de Horkheimer intitulado “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”. Em 1934 transfere-se para a Inglaterra e depois para Nova Iorque, EUA. Em 1940 é transferido para Califórnia, o lugar em que é composta a obra “Dialética do esclarecimento”, concluída em 1944 e publicada em 1947. Em 1950 ocorre o retorno a Frankfurt. Dentre os pensadores destaques da Escola de Frankfurt pode-se destacar: M. Horkheimer; T. Adorno; H. Marcuse; W. Benjamin; E. Fromn; e um herdeiro J. Habermas. “A “Escola de Frankfurt” é uma etiqueta que serve para marcar um acontecimento (criação do Instituto), um projeto científico (“filosofia social”), e uma atitude (Teoria Crítica),”623 enfim, um fenômeno. Quando ao texto, “Dialética do Esclarecimento”, é escrito pela denominada primeira geração da Escola de Frankfurt, isso significa um ponto crucial em que ocorre um distanciamento do materialismo histórico, ligeiramente influenciados por Weber e Nietzche. A modernização social se impõe a modernização cultural, culminando com o que Weber chama de “cápsula de ferro”. É um contexto de guerras em que ocorre a ascensão do nazismo na Alemanha, aparecendo como partido “Nacional-Socialista”. Há uma grande popularidade do nazismo e uma aceitação do povo para a formação da raça pura, ideal. Ocorre uma grande burocratização do socialismo, principalmente no leste europeu e na URSS. Há também um contato com a sociedade americana com a cultura de massa, em que a cultura é transformada em mercadoria. Sendo que para tal crítica incorporam o conceito de Reificação de Lukács e de Weber o de “desencantamento do mundo”. Isso tudo vai colaborar para pôr em dúvida, em xeque, a capacidade emancipadora da razão iluminista, pois até 30 havia uma grande crença nos ideais de liberdade.

23 Idem, ibid., p.19.

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O problema central da obra, e também da escola, se resume no conceito de esclarecimento. O que é esclarecimento? Por que a humanidade ao invés de progredir, parece retornar a barbárie? Como se justifica a redução do conceito de esclarecimento ao de racionalidade instrumental? Vê-se então a necessidade de mudar essa concepção para que ocorra alguma inovação e se responda com clareza a pergunta: Por que os trabalhadores mesmo tomando consciência de seu estado continuam na mesma situação de submissão, exploração/alienação? Coloca-se então que a primeira geração (moderna) teve uma crença ingênua na ciência e na razão. Também estavam impossibilitados de fazer uma avaliação do esclarecimento. Era um período de embate contra a organização ou estrutura feudal e teológica. Após se dão conta de que a ciência por si só não traz a emancipação. De que o saber não trouxe a liberdade. Na tentativa de clarear esse problema Adorno e Horkheimer tem um outro modo de fazer filosofia. Há um diálogo mais constante entre áreas diferentes. Isso também caracteriza a época contemporânea. “Quando escrevem a “Dialética do Esclarecimento” relacionam a crise da razão à sua instrumentalização no âmbito da cultura, da comunicação de massa”724. Isso reflete-se na educação quando por vezes tem-se diagnosticado que ocorre uma educação para a dureza, para a insensibilidade, ou quando a educação “se prende em demasia à arbitrariedade do momento racional, sacralizando a cultura, elevando-a às alturas dos semideuses, ou se favorece em demasia a adaptação à realidade danificada do mundo dos homens”825. Ao invés de ocorrer uma contraposição (emancipação) há uma adaptação a situação, ou seja, “a cada um (é dado) o seu destino”, para cada ser tem um destino e um lugar reservado na sociedade(sistema, positivismo); exemplificando: os alemães (no início do séc. XX com Hitler) se designavam superiores e por tal tinham o poder de determinar o destino dos outros, o que é típico de uma sociedade em que os “administradores” (escolhidos, agraciados) eliminam os empecilhos, mesmo sendo sujeitos/objetos926, para criar uma sociedade pura (raça pura), sem doenças,

24 Mimio. 25 PUCCI, Bruno. Teoria crítica e educação: contribuições da teoria crítica para a formação do professor. Espaço Pedagógico: Revista da Faculdade de Educação, Passo Fundo: Ed. UPF, V. 8, n. 1, Jul. 2001, p. 17. 26 Expressão usada para designar que são eliminados os sujeitos, pessoas humanas, como se fossem objetos.

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livre de qualquer mal. Há uma classificação em que os designados inferiores devem automaticamente ser eliminados, excluídos, para não afetar os demais. São essas questões de racismo e preconceito que revelam a insensibilidade e a exploração. A Cultura Contemporânea se caracteriza por conferir a tudo um ar de semelhança. Existe uma unidade evidente entre o macro e o microcosmo. Isso significa dizer que o universal está no particular, assim como o particular está no universal. Dessa forma se gesta o novo modelo de cultura contemporânea: a falsa identidade do universal e do particular. A partir disso, sob o ponto de vista dos monopolizadores, toda cultura de massa é idêntica, pois todas reproduzem aqueles pressupostos traçados por uma cultura dominante. O cinema e o rádio aparecem como legitimadores do modelo cultural, não mais com a preocupação de se apresentar como arte. Mas como essa visão de domínio é tão facilmente aceita? A justificativa está na inevitável disseminação de bens padronizados para a satisfação de necessidades iguais. Os padrões são criados a partir das necessidades dos consumidores. Realmente é isso que acontece, porém não se diz que o terreno onde a técnica conquista seu poder sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais fortes exercem sobre a sociedade. Desse modo, a racionalidade técnica se equipara a racionalidade da dominação representando ambas as mesmas coisas. O grande problema de se avaliar tal fenômeno social é que não se consegue localizar o foco central de discussão. Setores individuais da sociedade se interpenetram em uma profunda trama econômica dificultando essa percepção. A Indústria Cultural toma para si a ideia de sujeito kantiana. A adequação do objeto ao sujeito é feita através do que se chama “esquematismo de produção”, que nada mais é do que referir necessidades pessoais a conceitos fundamentais. Por esse esquematismo de produção tudo o que se produz não vem ao acaso, tudo se antecipa a nível de produção por esse esquematismo. Por detrás de todo esse esquema existem interesses econômicos, políticos e ideológicos e os consumidores são reduzidos a simples material estatístico.

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Assim, os produtos são feitos para atrair o consumidor e procuram sempre oferecer inovações tanto estéticas quanto de conteúdo. A maneira como as “mensagens” são transmitidas também muda. Porém, tudo o que se apresenta como novo muda só na aparência. É um constante novo, sempre velho. A Indústria Cultural usa-se do sistema e da padronização para ludibriar o homem, ou seja, produz por meio da padronização do consumo a consciência de que todos têm as mesmas oportunidades e de que há uma igualdade na satisfação das necessidades, pois afinal há uma identificação comum por meio do consumo de produtos que possuem a mesma etiqueta ou marca. Assim cada grupo se comporta de uma maneira, ou seja, conforme a aparência e o consumo de produtos tem a participação em um nível social. Como todos bebem Coca-cola, ricos e pobres, há uma (pseudo) igualdade possível, o que ameniza o sofrimento e a consciência de exclusão. Torna-se presente também quando se consome algo pelas aparências, ou seja, porque tem uma marca de status, um rótulo que chama a atenção, o que significa dizer que algo é bom ou ruim dependendo de como é feita a propaganda, de como é rotulado, e não pelo conteúdo que traz. Talvez mais do que ser bom é importante parecer bom. Uma formação assim está vinculada com a indústria de massa, que produz rótulos e não conteúdos, que produz objetos e não sujeitos. Assim “as próprias necessidades básicas, tais como as de caráter afetivo, subsumem-se cada vez mais àquelas produzidas de acordo com as regras de consumo”1027. Como pano de fundo trabalha-se com dois conceitos, que são o de resistência e adaptação. Sendo a resistência configurada pela capacidade de não se deixar absorver totalmente pela dependência às condições que a cultura impõe, o que revela uma certa autonomia, ou então, a liberdade humana. Traça-se uma crítica à visão ortodoxa (do marxismo), às teorias afirmativas que propõe um modelo único e inflexível a ser seguido. E conforme a cultura de massa, tudo tende a se uniformizar. Também, a medida que a Indústria Cultural conquista espaço, produz e repassa conteúdos ideológicos. A arte não é mais entretenimento, nem diversão. A diversão 27 PUCCI, Bruno; RAMOS DE OLIVEIRA, Newton; ZUIN, Antônio A. Soares. T. W. Adorno: o poder educativo do pensamento crítico. 3ª ed., Petrópolis: Vozes, 2001.

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passa a ser uma forma de elevar o progresso cultural. Pois divertir significa estar de acordo, não há necessidade de reflexão. O logro da Indústria Cultural não está em propor diversão, mas sim porque ela estraga o prazer com o envolvimento de seu tino comercial. Não há necessidade de pensar, basta esquecer o sofrimento até mesmo onde ele é mostrado. A partir da Indússtria Cultural, tenta-se escapar do cotidiano, mas o que geralmente se recebe em troca é uma simples cópia deste cotidiano, ela parece ser um ingrediente para que as pessoas possam dominar na vida real os impulsos humanos. A Indústria Cultural nesses termos convida para uma identificação ingênua. O indivíduo passa a ser genérico, se vê na imagem produzida. Identifica-se com o representante do filme. Cada espaço, cada gesto do personagem é pensado estrategicamente a ponto do espectador se identificar com tal figura. A Indústria Cultural só se interessa pelos homens como clientes e empregados, enquanto clientes verão o cinema, a empresa demonstrar-lhes os acontecimentos da vida privada das pessoas. Quanto menos promessas a Indústria Cultural tem a fazer, quanto menos ela consegue dar uma explicação a vida como algo dotado de sentido, mais torna-se necessária a ideologia que ela difunde. A ideologia assim reduzida a um vago discurso descompromissado nem por isso se torna mais transparente e tampouco mais fraca. Ela manifesta-se como meta do liberalismo, a qual censura a falta de estilo. A rebeldia passa a ser considerada como uma forma de mostrar uma nova ideia para a Indústria Cultural, pois suas tendências visam abrir caminho para os homens capazes. Sendo assim, o que realmente surge não é propriamente algo novo, mas sim a modificação de algo já existente. “A máquina gira sem sair do lugar. Ao mesmo tempo já determina o consumo, ela descarta o que ainda não foi experimentado porque é um risco.” No mundo da Indústria Cultural, são apontadas duas opções: participar ou omitir-se. O belo artístico já não tem mais sentido, o belo é tudo aquilo que a câmara produz. É um campo de dominação do social. O belo, a arte passa a fornecer a substância trágica que a pura diversão não pode por si só trazer, mas da qual ela

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precisa se quiser manter fiel de uma ou de outra meneira ao princípio da reprodução exata do fenômeno. O inimigo que se combate é o inimigo que já está derrotado: o sujeito pensante. A Indústria Cultural conduz a uma mentalidade de conformismo, ilusão. O que vale são os conhecimentos especializados. Apresenta-se um mundo de receitas, modelos que podem servir para todas as pessoas, transformando-as naquilo que o sistema força a ser. A cultura é vista como uma mercadoria paradoxal. Está submetida fortemente numa relação de troca e uso que envolve o mercado. Por isso, a cultura se insere diretamente na publicidade. Quanto mais deixa de lado o seu sentido aumenta seu poder. Ou seja, é mantida simplesmente por objetivos lucrativos. Mas para dar a sustentação à indústria cultural e também para produzir apatia entre os consumidores, é indispensável a publicidade. É esta que lhe confere existência e perpetuação. É a publicidade que tem a função de projetar e sustentar a mercadoria na sociedade por meio do rádio, propaganda, TV, etc., consolidando o valor e a existência do produto. A partir do momento em que o sistema exigiu que todo o produto deveria utilizar da técnica da publicidade, esta invadiu o idioma, o estilo da Indústria Cultural. É por isso que nessa relação envolve meios ideológicos para difundirem esta cultura. Por exemplo: panfletos, trailer do filme, rádio, TV, slogans, etc. Assim a indústria cultural se beneficia da publicidade para se sustentar na relação, a publicidade por sua vez por meio da técnica, comunicação e linguagem faz o seu papel. Enfim,

as mais íntimas reações das pessoas estão tão completamente reificadas para elas próprias que a ideia de algo peculiar a elas só perdura na mais extrema abstração: personality significa para elas pouco mais do que possuir dentes deslumbrantemente brancos e estar livres do suor nas axilas e das emoções.1128

28 ADORNO/HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1985, p.156.

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4.6

A MODERNIDADE E A PÓS-MODERNIDADE

As discussões abaixo, sobre a modernidade e pós-modernidade, referem-se, especialmente, à HABERMAS, J. “Concepções da Modernidade. Um olhar retrospectivo sobre duas tradições”, in: HABERMAS, J. A Constelação Pós-Nacional, São Paulo: Littera Mundi, 2001, p. 167-198. 1. A discussão habermasiana sobre a modernidade pode ser remontada, tematicamente, pelo menos ao início dos anos 80, quando ele profere duas conferências: a primeira, com o título “Die Moderne – ein unvollendetes Projekt” (A modernidade: um projeto inacabado), diz respeito a uma palestra proferida em setembro de 1980, por ocasião da entrega do Prêmio Adorno da cidade de Frankfurt; a segunda, intitulada “Moderne und postmoderne Architektur” (Arquitetura moderna e pós-moderna) foi proferida em novembro de 1981 na abertura da exposição intitulada “A outra tradição: Arquitetura em Munique de 1800 à Atualidade”. Nos anos seguintes Habermas profere lições (aulas) sobre esta temática, primeiro na França em 1983, depois no USA em 1984 e, simultaneamente, no semestre de verão de 1983 e no semestre de inverno de 1983/84 na Universidade de Frankfurt. O material reelaborado dessas aulas resultou na publicação do livro “Der philosophische Diskurs der Moderne” (O Discurso Filosófico da Modernidade) em 1985. Mais de dez anos depois ele volta a se ocupar com este problema numa palestra intitulada “Konzeptionen der Moderne – ein rückschauender Blick über zwei Traditionen” (Concepções da Modernidade. Um olhar retrospectivo sobre duas tradições) proferida na Sociedade Coreana de Filosofia em Seul no mês de maio de 1996. 2. Um comentário detalhado desses textos e, sobretudo, do livro “O Discurso Filosófico da Modernidade” extrapolaria em muito os objetivos dessa comunicação, a qual se limita apenas a oferecer uma pequena síntese sobre alguns aspectos da posição habermasiana no debate sobre modernidade e pós-modernidade. Tal síntese deve orientar-se por algumas questões introdutórias: Por que nessas duas últimas décadas Habermas se interessou cada vez mais pelo tema da modernidade? Em que sentido ele consegue demonstrar que tal tema é um problema filosófico? Qual é o conceito de modernidade que ele assume e o que esse conceito significa para o seu propósito de 120

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fundamentar criticamente uma teoria da sociedade com base num conceito de razão comunicativa? Quais são as implicações de uma leitura da modernidade que opera com um conceito de “dialética do Iluminismo” fundamentado em bases linguísticas, ou seja, fundamentado no conceito de razão comunicativa? Por fim, todas estas questões podem ser resumidas por essa outra: o que significa modernidade e razão comunicativa em Habermas e que contribuição essa temática pode trazer para se pensar problemas pedagógicos? 3. Com o intuito de oferecer algumas ideias que possam orientar uma possível resposta a estas questões, quero resenhar, em largos traços, sua palestra proferida em Seul: “Concepções da Modernidade. Um olhar retrospectivo sobre duas tradições”. Habermas divide-a em três partes: na primeira ele trata da “modernidade clássica”, tomando Kant e Hegel como representantes típicos da mesma. Aí ele se propõe a mostrar que é justamente nesses dois autores e de modo explícito (autoconsciente) em Hegel que a modernidade se torna um problema filosófico. Na segunda parte, procurando mediar as tradições sociológicas e filosóficas de interpretação da modernidade ele resume, primeiro, o diagnóstico weberiano da modernidade que serve de base para a crítica de Lukács e da primeira geração de frankfurtianos (interpretação sociológica) e, depois, expõe a tentativa de recontextualização da razão assumido por Heidegger e Wittgenstein através de uma concepção de linguagem como “apreensão do mundo” (interpretação filosófica). Ele expõe ainda nessa segunda parte aspectos da crítica pós-moderna que, segundo ele, se originam em parte da própria crítica de Heidegger e Wittgenstein ao conceito metafísico, ocidental e moderno, de razão. Na última parte de sua conferência ele se volta resumidamente para o conceito de razão comunicativa e procura, por um lado, mostrar o limite das “concepções da modernidade” apresentadas por aqueles autores (pertencentes tanto à tradição sociológica como a filosófica) e, por outro lado, reformular o conceito clássico de modernidade concebendo-o não mais com base numa confrontação abstrata entre sociedade disciplinadora e subjetividade vulnerável dos indivíduos (Weber, Lukács, Adorno e Horkheimer), mas sim como uma confrontação de “processos circulares entre mundos da vida e sistemas”.

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4. Habermas concebe a modernidade como um conceito (e como um projeto) filosófico que tem sua origem em Hegel, porque este filósofo, segundo ele, é o primeiro a tornar a modernidade um problema filosófico. Tal projeto é levado a diante, com base numa teoria da sociedade, pelos pensamentos de Marx, Weber, Lukács e a Escola de Frankfurt. Esses autores se envolvem numa aporia na medida em que procuram fundamentar a modernidade por meio da autorreferencialidade de uma crítica totalizante da razão. Por esse fato, o projeto moderno é repensado por meio de um outro conceito de razão, personificada e situada linguisticamente. Dessa virada linguística surgem duas concepções diferentes: a “superação pós-moderna da autocompreensão normativa da modernidade” e a “transformação intersubjetiva do conceito clássico de modernidade ambígua” (HABERMAS, J., 2001, p.167). 5. A partir de acontecimentos históricos como o Renascimento, a Reforma Protestante, o Iluminismo e a Revolução Francesa, atingiu-se uma consciência temporal moderna que a fez colocar-se em oposição aos períodos históricos anteriores. “A expressão ‘moderno’ continuou a ser utilizada na Europa – cada vez com conteúdos diferentes – para expressar a consciência de uma nova época” (HABERMAS, J., 2001, p.168). Tal consciência traz em si, como seu ponto específico, a necessidade de que a modernidade vá buscar nela mesma a sua autocertificação, uma vez que o processo de secularização, ao atingir também o domínio da filosofia, implica numa rejeição de qualquer fundamentação que venha de fora da razão ou do sujeito pensante. Desse modo, todas aquelas posições que procuram se autojustificarem quer seja baseando-se na ideia do ser (justificativa ontológica) ou na ideia de Deus (justificativa teológica) revelam-se inadequadas para a fundamentação dos “tempos modernos”. Produz-se assim uma “consciência temporal moderna” que atinge também, de um modo particular, a filosofia. É com Hegel que a filosofia adquire pela primeira vez a necessidade de compreender a sua época presente em pensamento. Hegel foi, segundo Habermas, “o primeiro filósofo que articulou essa nova necessidade de ‘abarcar em pensamentos’ a sua época” (2001, p.170). 6. Uma vez que rejeitou, como fonte de fundamentação, tudo o que vinha de fora do sujeito pensante, a modernidade teve que se apoiar na única autoridade que

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lhe restou, ou seja, no conceito de razão. Em nome da razão a modernidade, enquanto originária do Iluminismo, “desvalorizou e superou a tradição”. Hegel estabelece uma espécie de afinidade eletiva entre razão e Iluminismo e, com base nela,

identifica a necessidade de autocertificação da modernidade como ‘necessidade da filosofia’. A filosofia nomeada como guardiã da razão compreende a modernidade como uma filha do Iluminismo (HABERMAS, J.,2001, p.170).

Em sua caracterização da modernidade, Hegel parte, inicialmente, do princípio da subjetividade, o qual é fundamentado primeiro pela filosofia cartesiana e, depois, pela filosofia kantiana. Em Descartes o “espírito toma posse de si com base em uma auto-reflexão que abarca a consciência como uma esfera não tanto de objetos, mas sim, antes, de representações de objetos” (HABERMAS, J., 2001, p. 170). Isso vale também para Kant, com uma diferença de que nele a “autocompreensão da modernidade é caracterizada não apenas pela ‘autoconsciência’ teórica, por um posicionamento autocrítico diante da tradição, mas, antes, também pelas ideias morais e éticas da ‘autodeterminação’ e da ‘auto-realização’”. Nesta direção Hegel procurou historicizar a crítica transcendental kantiana do conceito de razão lendo as suas três críticas como “uma interpretação decisiva da autocompreensão da modernidade” (HABERMAS, J., 2001, p.171). Assim cada um dos três empregos da razão pura, o teórico, o prático e o estético, são vistos por Hegel, “como ‘corporificações’ do princípio da subjetividade”, isto porque Hegel já tem diante dos olhos o processo de diferenciação da cultura nas três esferas de valor: a ciência, a moral e a arte. 7. Em síntese, a modernidade transforma-se em tema filosófico no momento em que ela tem de buscar em si mesma a sua autocertificação, a qual só pode ser dada através do nexo estreito entre razão e subjetividade. Kant procura fundamentá-lo na forma de uma autocrítica da razão, concebendo-a como subjetividade transcendente e diferenciando-a em três domínios autônomos. Partindo dessa crítica e considerando

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o processo de diferenciação interna da cultura, no sentido mais amplo em três esferas de valores, Hegel não mediu esforços em compreender essas diferenciações como “corporificações do princípio da subjetividade” (HABERMAS, J., 2001, p.172). Característico de todo este processo de autofundamentação da modernidade em Kant e Hegel é, segundo Habermas, o conceito de crítica:

Como pretexto da ‘crítica e crise’ Hegel pôde compreender a crítica kantiana da razão como instrutiva, mas incompleta como apenas interpretação sintomática da essência racional do mundo moderno [...]. Kant havia desconhecido tanto a dolorosa abstração como a necessidade de se restaurar em um nível mais elevado a totalidade anterior (HABERMAS, J., 2001, p.173).

O que Hegel procura fazer a partir dessa crítica é mostrar que a subjetividade, e a estrutura da autoconsciência que a acompanha, torna insuficiente enquanto princípio fundamentador da modernidade, porque ela se revela como uma concepção extremamente “seletiva da razão que não deve ser identificada com o todo da razão” (HABERMAS, J., 2001, p.173). 8. O tema da crítica conduz Hegel a ver então também no princípio da subjetividade, o lado perverso e astuto da razão, que aparece como a sua violência velada:

A mesma subjetividade que apareceu a princípio como fonte de liberdade e de emancipação – ‘apareceu’ no duplo sentido de manifestação e de engano – revela-se como origem de uma objetivação que se tornou selvagem (HABERMAS, J., 2001, p.174).

Hegel consegue ver com nitidez, segundo Habermas, aquele processo de estreitamento da razão que, ao transformar-se em entendimento, “transforma tudo em volta em objeto, ou seja, em objetos passíveis de manipulação” (HABERMAS, J., 2001, p.174). Esse programa do Jovem Hegel é acompanhado ainda pelo Hegel

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maduro, com a diferença de que este procura agora provar historicamente o conceito de razão na realidade.

A Filosofia do Direito é então a tentativa de compreender conceitualmente as corporificações ambivalentes da razão na sociedade, ou seja, nas ordens sociais da família, da economia de mercado e do Estado nacional (HABERMAS, J., 2001, p.175).

A tentativa de objetivar a razão na história, orientada por uma dialética do Iluminismo, leva Hegel a tematizar a esfera do social (o conceito de sociedade) como o “âmbito dos fenômenos profundamente ambíguos que exige uma interpretação crítica” (HABERMAS, J., 2001, p.175). Exatamente aí se origina aquela necessidade, a qual torna-se cada vez mais evidente no desenvolvimento da modernidade depois de Hegel, da filosofia de buscar apoio numa teoria da sociedade. Com essa ideia Habermas já introduz o tema da segunda parte de sua conferência, a saber, os problemas que surgem daquela divisão de trabalho entre filosofia e sociologia que começa a ocorrer no início do século XX. 9. Habermas inicia a discussão desses problemas tratando da teoria weberiana da racionalização da sociedade e o seu compromisso com a “dialética do Iluminismo”. Weber concebe o processo de modernização europeia como um processo constante de racionalização da cultura, no qual ocorre a diferenciação das “esferas de valores”. O problema maior dessa diferenciação é que os conflitos que surgem no interior daquelas esferas não podem mais serem agregados e, por isso, serem pacificados por uma concepção de mundo superior, quer seja ela cosmológica ou religiosa. Ao dividir o processo de modernização em duas dimensões, a social e a cultural, Weber se concentra na modernização social concebendo-a como sendo composta por dois subsistemas, o político-administrativo e o econômico, nos quais impera uma lógica bem definida, no primeiro é a questão do poder e no segundo é a questão do dinheiro. Dentro disso ele “compreende a modernização da sociedade como uma institucionalização da ação [Handeln] conforme a fins racionais (sobretudo nos dois setores nucleares dinâmicos do Estado e da economia)” (HABERMAS, J., 2001, p.177). A racionalidade estratégica meio-fim orienta, portanto, tanto a esfera do Estado capitalista moderno como a

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produção da economia de mercado; ambos os domínios se caracterizam por serem administrados por profissionais competentes e que agem conforme a fins racionais. A ideia chave que leva Weber a conceber a modernização nos moldes de uma “dialética do Iluminismo” consiste, segundo Habermas, na transformação daqueles âmbitos de ação, que teriam servido de base para a emancipação dos indivíduos da socialização corporativista da sociedade pré-moderna, num processo fechado e altamente burocratizado que Weber denominou de “stählernes Gehäuse” (“cápsula de ferro”). Essa mesma dialética do Iluminismo é exposta por Marx em sua análise da expressão “trabalho assalariado livre”: livre das dependências feudais, mas também livre para o destino capitalista (exploração, pobreza, desemprego, etc). No mesmo sentido Weber, ao analisar “a complexidade crescente dos sistemas de ação autonomizados” visualiza, por toda a parte a transformação de liberdades em disciplinas: “Partindo das pressões disciplinadoras da burocratização e da organização jurídica, ele desenvolve o quadro-negro de uma sociedade administrada” (HABERMAS, J., 2001, p.179). Sua dialética do Iluminismo diferencia-se tanto de Hegel como de Marx, porque Weber permanece cético diante do ‘carisma da razão’ [...]. Do seu ponto de vista, as ‘desavenças’ de uma razão instrumental que penetram toda a sociedade não podem ser vencidas no interior da esfera da sociedade mesma (HABERMAS, J., 2001, p.179). 10. Dessa sua análise Weber deriva o conceito de “sociedade totalmente administrada” e, com ele, as teses da “perda de liberdade” e da “perda de sentido”. Essa mesma análise e os conceitos dela derivados serão, segundo Habermas, radicalizados pela tradição do marxismo ocidental de Lukács até Adorno. O que a primeira geração da Teoria Crítica vai fazer com base na psicologia social analítica é lançar a hipótese de que “os respectivos modelos de socialização dominantes transferem os imperativos funcionais do Estado e da economia do nível das instituições para o nível das estruturas da personalidade” (HABERMAS, J., 2001, p.179). Desse modo, até aquele “resíduo” de emancipação que ainda havia permanecido na análise weberiana mediante a ideia do “sujeito forte” ou dos “indivíduos heróicos” desvanece por completo na tese frankfurtiana de uma sociedade totalmente administrada. “O livro Dialektik der Aufklärung [Dialética do Iluminismo] 126

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de Horkheimer e Adorno pode ser compreendido como a retro-tradução das teses weberianas na linguagem da filosofia da história hegeliano-marxista” (HABERMAS, J., 2001, p.180). Nesses dois autores, a racionalidade instrumental se apodera integralmente do conceito de razão sem deixar nenhum traço, com exceção somente das “forças miméticas”: “Benjamin e Adorno denominam de miméticos os lamentos nostálgicos de uma natureza reprimida e emudecida, que tem sua própria voz roubada, mas que se alça à voz na linguagem da arte de vanguarda” (HABERMAS, J., 2001, p.180). Mas o conceito mimético já não é mais suficiente enquanto fundamento normativo para uma crítica da modernidade. Assim, a conjugação de dois fatores na análise de Adorno e Horkheimer, o prolongamento do conceito de racionalidade instrumental e o modelo de crítica total da razão, impedem que a crítica ao conceito de razão instrumental seja realizada em nome da razão. 11. Depois de uma breve referência à crítica frankfurtiana, Habermas se volta para duas abordagens sociológicas do presente, a saber, para a teoria da escolha racional e para a teoria dos sistemas. Cada uma delas toma como referência um dos dois conceitos de racionalidade de Max Weber: a teoria da escolha racional se baseia na conformidade a fins racionais dos atores singulares e a teoria dos sistemas na funcionalidade racional de grandes organizações. Embora sejam duas imagens da modernidade que concorrem entre si, “ambas as visões assemelham-se, de algum modo, à concepção de M. Weber do mundo administrado” (HABERMAS, J., 2001, p. 182). Considerando que essas duas teorias não podem oferecer uma autocompreensão crítica da modernidade, Habermas busca outra aproximação, a saber, entre Heidegger e Wittgenstein, os quais, segundo ele, “oferecem um conceito alternativo de razão e um novo procedimento da crítica da razão” (HABERMAS, J., 2001, p.182). 12. Na medida em que Heidegger desloca o acento da crítica dos fenômenos socioeconômicos e políticos para os culturais, ele se constitui numa contrapartida da crítica da coisificação social levada a cabo pelo marxismo ocidental. Nesse contexto, “com a virada da pesquisa transcendental (Kant) para a hermenêutica (Dilthey, Husserl e Heidegger) deitaram-se os trilhos para uma razão personificada simbolicamente, encaixada em um contexto cultural e situada historicamente” (HABERMAS, J., 2001, p.183). Como contrapartida da crítica hegeliana a Kant, a qual havia transformado as ideias em possibilidade de recuperação reflexiva das objetivações dessas mesmas

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ideias, “Heidegger reconstrói a história da metafísica como uma consequência inevitável de apreensões do mundo [Welterschliessungen] de diferentes épocas que estabeleceram um espaço para as interpretações e para os modos de ação no mundo respectivamente possíveis” (HABERMAS, J., 2001, p.183). Determinadas linguagens são dominantes numa determinada era metafísica e em sua síntese e em seu vocabulário encontram-se inseridas várias ontologias, as quais possuem a função de categorizar “o pré-entendimento holístico dos membros que atribuem um significado a priori para tudo que possam encontrar no mundo” (HABERMAS, J., 2001, p. 184). Heidegger concebe assim a linguagem como apreendedora do mundo, definindo-a “como um conjunto de condições possibilitadoras que [...] determinam a priori aquilo que se move dentro do seu horizonte de conceitos fundamentais [...]” (HABERMAS, J., 2001, p.184). 13. Wittgenstein, assim como Heidegger, ocupa-se com a função de apreensão do mundo e, assim como aquele, acusa a tradição filosófica

de ter ignorado essa dimensão linguística da geração do mundo [...]. Para Heidegger, assim como para Wittgenstein, a aparência transcendental de uma razão incondicionada e pura, independente de contexto e universal, atinge o auge da cegueira no paradigma mentalista (HABERMAS, J., 2001, p.185).

Nesse contexto, uma crítica à razão não pode ser confiada ingenuamente ao movimento especulativo da autorreflexão (crítica a Hegel). Então, a “hermenêutica da suspeita” deve ser a postura metodológica adequada para transportar aquela subjetividade transformada em ídolo “de volta para aquele contexto da própria proveniência, o qual a razão abstrata esconde de si mesma como o seu inconsciente”(HABERMAS, J., 2001, p.185). O que estes dois autores fazem na verdade é, segundo Habermas, recontextualizar aquele conceito de razão que fora tornado transcendental (Kant) e absoluto (Hegel) pela tradição do idealismo alemão. 14. Na esteira de Heidegger e Wittgenstein os pós-modernos posicionam a crítica da razão “de modo direto e sem reservas contra o Iluminismo e a sua dialética”. 128

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Tal crítica não “deve apenas desmascarar as falsas pretensões da razão, mas retirar a força da razão enquanto tal”(HABERMAS, J., 2001, p.186). Sem duvidar da contribuição que a pós-modernidade dá ao debate atual, na medida em que ela chama atenção para aspectos importantes de qualquer análise crítica da modernidade, como o “acento na fragmentação, na cisão e na marginalização, na autoridade, na diferença e no não-idêntico”, Habermas afirma que estas consequências bem-vindas devem-se, no entanto, a premissas questionáveis, das quais ele destaca duas; “(a) um certo gênero de idealismo linguístico e (b) a falta de compreensão quanto às realizações universalistas da modernidade” (HABERMAS, J., 2001, p.186). A primeira premissa está baseada na guinada que ocorre na pesquisa dos pós-modernos, na medida em que eles “manejam de preferência ferramentas da crítica filológica e estética do que as da crítica sociológica” (HABERMAS, J., 2001, p.187). A segunda emerge de uma postura cegamente contrária a qualquer tipo de universalismo, tirando disso a “a falsa conclusão segundo a qual os parâmetros da razão mesma modificam-se em cada contexto novo” (HABERMAS, J.,2001, p.188). Se a sua denúncia dos efeitos colonizadores da razão e do discurso ocidentais faz sentido, as teorias dos pós-modernos, por outro lado, “estão mal equipadas para a tarefa de diferenciar entre os discursos colonizadores e os convincentes (...)” (HABERMAS, J., 2001, p.189). Sendo assim, elas tem a tendência de fechar os olhos para conquistas centrais da modernidade, como a constituição universal dos direitos humanos e os aspectos positivos da ciência e da técnica. 15. Na terceira parte de sua conferência, Habermas aprecia criticamente aquele processo de naturalização da razão fundado por Heidegger e Wittgenstein e levado adiante pelos pós-modernos e que se baseia na “constituição linguística de ‘mundos’ fechados de modo auto-referencial” (HABERMAS, J., 2001, p.192). Ora, uma teoria da linguagem que tem como “função apreender o mundo” com base numa “incontornável pré-compreensão linguística do mundo” culmina em última instância no bloqueamento do “próprio direito ao uso comunicativo da linguagem”. Somente por meio da pragmática linguística “que parte da questão de como os participantes da comunicação [...] podem atingir um entendimento quanto a algo no mundo” (p. 192) pode-se então resgatar e fundamentar o uso comunicativo da linguagem. UNIDADE IV - EDUCAÇÃO, GLOBALIZAÇÃO, NEOLIBERALISMO E PÓS-MODERNIDADE 129

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Por não poder analisar detalhadamente o conceito de ação comunicativa ou o uso comunicativo da linguagem nesta Conferência, Habermas oferece uma caracterização geral da mesma: a) trata-se daquela “razão comunicativa que sempre se encontra trabalhando na argumentação, bem como na práxis cotidiana”; b) disso resulta que a razão comunicativa se radica em diferentes mundos da vida, sendo que cada um deles “equipa os seus membros com um estoque comum de saber cultural, de padrões de socialização, valores e normas” e; c) suas estruturas simbólicas “conservam uma relação interna com a razão comunicativa que os atores devem levar em consideração na sua práxis cotidiana, se eles alçam reivindicações de validade passíveis de crítica e reagem a isso com ‘sim’ ou ‘não’” (HABERMAS, J., 2001, p.193). 16. Essa breve caracterização da razão comunicativa permite Habermas reformular de outro modo o diagnóstico weberiano da modernidade: a) uma racionalização dos mundos de vida pré-modernos serviu como fonte cognitiva e motivadora para a forma econômica capitalista e para a o Estado administrador, mas estes, ao longo de seu desenvolvimento, transformaram-se em “sistemas autoregulados conduzidos pelo dinheiro e pelo poder” e independizados de contextos de ação específicos do mundo da vida.

O saldo desses resultados multifacetados torna-se mais negativo, à medida que o sistema econômico e administrativo se alastra em direção aos âmbitos nucleares do mundo da vida, a saber, para a reprodução cultural, para a socialização e para a integração social” (HABERMAS,J., 2001, p.194).

Mas os efeitos alienantes e destrutivos desse processo surgem sobretudo quando âmbitos vitais voltados funcionalmente para orientações de valor, normas obrigatórias e processos de entendimento passam a ser monetarizados e burocratizados” (p. 195). Em seu diagnóstico da modernidade Habermas substitui, portanto, aquela “oposição abstrata entre uma sociedade disciplinadora e a subjetividade vulnerável dos indivíduos”, que constitui a base do conceito clássico de modernidade tal como foi desenvolvido por Weber, Lukács e pela Escola de Frankfurt, pela confrontação dos

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“processos circulares entre mundo da vida e sistemas” (HABERMAS, J., 2001, p.195). Isso possibilita, segundo ele, uma maior produtividade na análise da interação entre sistema e mundo da vida, porque não concebe a modernização social por si só como fonte de alienação. 17. Além de uma reformulação do conceito de modernização social sua proposta permite, segundo Habermas, também reformular uma resposta para problemas que se colocam no contexto da modernização cultural. Um desses principais problemas consiste no seguinte: com a racionalização do mundo da vida, é atrofiado ou esfacelado aquele consenso de fundo mediante o qual as pessoas construíam relações solidárias com base em valores e normas transmitidas. Entretanto, a esse processo negativo da racionalização vem se somar um outro, positivo, o qual só é possível por causa do diagnóstico da modernidade baseado no conceito de razão comunicativa:

Na esfera do mundo da vida a ‘racionalização’ não bloqueia as fontes de solidariedade, mas antes, abre novas se as antigas se fecham. Essa comunicação com força produtiva também é importante para os desafios da ‘modernização reflexiva’ (HABERMAS, J., 2001, p.196).

Na plataforma estará disponível uma atividade para análise e links para que você se aprofunde nesses aspectos. Não se esqueça de buscar novas informações, inclusive, antes de testar seu conhecimento.

4.7

CONSIDERAÇÕES DA UNIDADE IV

É parte desta unidade a quarta teleaula. Lembre-se de assisti-la no polo e no seu ambiente virtual de aprendizagem para complementar seus estudos. Com isso, você aprofunda a compreensão das relações sociais e o contato com as algumas discussões de âmbito mais geral da sociologia. Na plataforma você também terá disponível uma atividade para análise.

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Lembre-se de que você pode se utilizar também do Fórum de Dúvidas para esclarecer assuntos pertinentes à disciplina. Leia, estude, busque informações, mesmo antes de testar o seu conhecimento. Assim, chegamos ao final das discussões e desejo que tenhamos tido um ótimo aprendizado. Bom trabalho!

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TESTE SEU CONHECIMENTO

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REFERÊNCIAS

ARANHA, Maria L. de Arruda. Filosofando: introdução à Filosofia. São Paulo: Moderna, 1993. COSTA, Maria C. Castilho. Sociologia: introdução à ciência da sociedade. São Paulo: Moderna, 1998. DE TOMMASI, Lívia; WARDE, Mirian Jorge; HADDAD, Sérgio (orgs). O Banco Mundial e as políticas educacionais. São Paulo: Cortez Editora, 1996. DU GAY,P. Consumption and Identity at Work. Londres: Sage,1996. DUVERNOU, J.F.. Para Conhecer o Pensamento de Maquiavel. Porto Alegre: L&PM,1974. FREDERICO, CELSO. O Jovem Marx: 1843-44: as origens da ontologia do ser social. São Paulo: Ed. Cortez, 1995. FRIGOTTO, Gaudêncio (org.). Educação e Crise do Trabalho. Petrópolis: Vozes,1998. GENTILI & FRIGOTTO (orgs). A cidadania negada: Políticas de exclusão na educação e no trabalho. Buenos Aires: Clacso, 2000. GENTILI, Pablo A. A. & SILVA, Tomaz Tadeu da (orgs). Neoliberalismo, qualidade total e educação. Petrópolis: Vozes,1997. GENTILI, Pablo (org.). Pedagogia da Exclusão. 4a ed. Petrópolis: Vozes, 1998. JÚNIOR, José N. Maquiavel o Poder. São Paulo: Martin Claret, 1999. LUKÁCS, Gyorgy. Ontologia do ser social. São Paulo: Ciências Humanas, 1979. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Porto Alegre: L&PM ,1999.

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REFERÊNCIAS

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MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. Lisboa: Edições 70,1993. MARX & ENGELS. A Ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1998, (Feuerbach – Oposição entre a concepção materialista e a idealista – parte A), p. 5-55. MARTINS, Carlos Benedito. O que é Sociologia. SP: Brasiliense, 1982.

MEKSENAS, Paulo. Sociologia. São Paulo: Cortez, 1994. MOTA & BRAICK. História das cavernas ao terceiro milênio. Belo Horizonte: Moderna,1998. OLIVEIRA, Pérsio Santos de. Introdução à Sociologia: série Brasil. São Paulo: Ática, 2004. SILVA, Luiz H. da (org.). A escola cidadã no contexto da globalização. Petrópolis: Vozes, 1998.

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REFERÊNCIAS


RESPOSTAS COMENTADAS

UNIDADE I 1. a) Sociologia é uma ciência específica e, por tal, dispensa comentários ou análises não científicas, como as teológicas, supersticiosas etc. Ainda, uma ciência que analisa o processo, não para preservar, mas para entender o movimento. 2. e) Nesse caso, todas as interpretações estão coerentes com aquilo que está posto na carta. Além dos conhecimentos em sociologia se julga a capacidade de interpretação que compreenda o significado do texto em questão. 3. c) A assertiva III não está correta, pois a sociologia não pretende, por princípio, limitar a organização social, ou então, por barreiras para a interação humana. Ao contrário, sua preocupação é em compreender tal relação. 4. b) Socialização é um processo pelo qual se absorve cultura, padrões de comportamento, independente, por exemplo, de deficiências. Ainda, é um processo amplo que, de uma forma ou de outra, diz respeito a todos os homens. 5. b) Todas as assertivas estão corretas, pois são coerentes com o pensamento de N. Maquiavel.

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UNIDADE II 1. b) Para o pensamento do autor referenciado, a base são as ciências naturais em quaisquer aspectos que se queira analisar. 2. a) As três características são as mais relevantes, centrais e coerentes com o pensamento do autor. 3. a) Destacam-se aqui os princípios do protestantismo que favoreceram o surgimento do capitalismo. Trata-se de afinar os princípios dos dois sistemas. 4. c) São os quatro tipos de ação, conforme apresentadas pelo autor em seus livros, ou em nossa apresentação neste livro didático. 5. b) A solidariedade é resultante da divisão do trabalho, para o pensador. Portanto, é uma interpretação dessa tese geral.

UNIDADE III 1. c) A base é a infraestrutura que determina a superestrutura. Portanto, a vida material e as mudanças na vida material que determinam o pensamento e os produtos do mesmo. 2. a) Burguês, em todos os tempos, é aquele que detém o poderio sobre os meios de produção, atualmente, sobre o capital. Com isso comanda os demais aspectos do processo. 3. c) É a máquina que dita o nível de atividade fisiológica do ser humano, o adestra, por assim dizer. 4. a) O que define mesmo são as condições materiais de toda a produção e base de todo o processo.

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5. b) Conforme as discussões, a Vontade Geral não é da maioria ou minoria, mas sempre tem em vista o interesse social, isto é, o interesse comum.

UNIDADE IV 1. d) Uma das características principais da globalização é, de fato, a relação com o mercado, lei de mercado. 2. e) Trata-se de uma questão de interpretação, em primeira instância e, num segundo momento, de balizar com os problemas sociológicos relevantes. Nesse caso, com o problema da desigualdade social. 3. c) Ideologia, dentre outras coisas, se refere à uma determinada visão de mundo, como regra da classe dominante que visa ditar as normas de ações para o restante da população (grande massa). 4. a) O cidadão não possui apenas direitos e deveres, tampouco entra em conflito nas relações sociais, mas age, ativamente, para construir uma sociedade solidária, democrática. 5. b) Todas as assertivas são condizentes ou fazem parte da interpretação e compreensão do pensamento neoliberal. Algumas são mais gerais, outras mais particulares, mas todas referem-se, corretamente, ao mesmo ponto de vista.

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RESPOSTAS COMENTADAS

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