Anais VII SEPA 2010

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Universidade Federal do Pará Instituto de Letras e Comunicação Mestrado em Letras

Anais do VII SEPA Seminário de Pesquisas em Andamento

29 e 30 de setembro de 2010


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Sumário A aventura histórico-literária em tempos coloniais: uma leitura de O tetraneto del-Rei de Haroldo Maranhão............................................................................................................................................... Aline de Souza Muniz Uma pesquisa qualitativa dos alunos de graduação intensiva em Licenciatura na Língua inglesa: um enfoque no fomento da autonomia para uma melhor apropriação na habilidade oral......................................................................................................................................................... Breno de Campos Belém Sequências didáticas no ensino/aprendizagem do português e avaliação somativa: uma pesquisa em curso......................................................................................................................................................... Denise Prado da Silva A influência de diferentes línguas‐culturas no ensino-aprendizagem da produção oral em português como língua estrangeira......................................................................................................................... Edirnelis Moraes dos Santos Glossário socioterminológico do artesanato em cerâmica no distrito de Icoaraci (Belém/PA)................ Eliane Oliveira da Costa Relações entre a prosa rosiana e a crítica jornalística: Franklin de Oliveira, Wilson Martins e Álvaro Lins.......................................................................................................................................................... Elizandra Fernandes Reis O leitor-autor em fanfictions – Histórias criadas por fãs........................................................................ Fabíola do Socorro Figueiredo dos Reis Memória e migração presentes em narrativas orais, histórias e relatos de vida de migrantes da região da Amazônia paraense................................................................................................................ Flávio Reginaldo Pimentel Literatura, sociedade, história e cultura no romance Galvez Imperador do Acre.................................... Francisco Ewerton Almeida dos Santos Alteamento das vogais médias pretônicas no português da Amazônia paraense: a influência do dialeto dos migrantes no português falado em Breves.......................................................................... Giselda da Rocha Fagundes Discurso sobre o consumo consciente: a (in)formação do consumidor‐cidadão..................................... Glaciane Felipe Serrão Drummond, trajetória gauche: um estudo temático da poesia de Carlos Drummond de Andrade............................................................................................................................. ..................... Iris de Fátima Guerreiro Bastos Adalcinda camarão: “vidências” eróticas no imaginário amazônico........................................................ Iris de Fátima Lima Barbosa

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III Os blogs e a configuração da webliteratura........................................................................................... Jéssica de Souza Carneiro Webquest-sequência didática: uma ferramenta tecnológica para a avaliação do ensinoaprendizagem de língua materna............................................................................................. ....... Keifer Eleutério Rodrigues Literatura e imprensa no Grão-Pará: a produção literária na coluna folhetim........................................ Lady Ândrea Carvalho da Cruz O hibridismo de gêneros nos contos da escritora Maria Lúcia Medeiros................................................. Lídia Carla Holanda Alcântara Letramento indígena: entre o discurso do rcnei e as praticas de letramento da escola indígena da comunidade tiriyó.................................................................................................................................. Lúcia Maria Silva Rodrigues ............... Luciane Chedid Melo Borges Atividades de compreensão escrita em manuais de PLE utilizados em Belém-PA................................... Luciana Kinoshita da Silva Estudo fonológico da língua Waiwai (caribe): as vogais orais.................................................................. Mara Sílvia Jucá Acácio Silenciosas narrativas em imagem-tempo: João Gilberto Noll, esvaziamento discursivo e Cinema moderno — considerações preliminares.................................................................................................. Marcelo Pereira Brasil Variação das vogais médias pretônicas no português da Amazônia........................................................ Marcelo Pires Dias O herói na recepção crítica de Grande sertão: veredas............................................................................ Márcia Denise Assunção da Rocha O (inter)cultural em livros didáticos de português para estrangeiros...................................................... Marcos dos Reis Batista

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O livro didático como fomentador da autonomia na Aprendizagem da língua inglesa............................ Maria Amélia Carvalho Fonseca O professor e o processo motivacional na aprendizagem de línguas estrangeiras.................................. Maria Clara Vianna Sá e Matos Maria Lúcia Medeiros, na trilha das águas e dos trilhos.......................................................................... Maria de Fátima Corrêa Amador Proposta de elaboração do glossário socioterminológico da carpintaria naval em Abaetetuba............................................................................................................................................. Maria de Jesus Nascimento Quaresma Tradução intersemiótica nos contos de Grimm...................................................................................... Mariana Janaina dos Santos Alves

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IV Eu posso chamar de tu ou de você? A variação da segunda pessoa do singular na fala dos belenenses.............................................................................................................................................. 259 Mariane da Cruz da Silva A incorporação do conceito de gênero no discurso de estudantes da graduação em letras sobre o ensino-aprendizagem de língua portuguesa........................................................................................... 268 Nora Monteiro Pinto de Almeida Jornal do Pará: o caminho literário entre espaços e diálogos na Belém oitocentista.............................. 277 Patrícia Carvalho Martins Chico Buarque: metáfora e paródia no ritmo do carnaval...................................................................... 282 Paula Cristhiane da Silva Oliveira Manifestações da crise pós-moderna em Rubem Fonseca: uma análise da coletânea de contos O cobrador................................................................................................................................................. 291 Rafaele Lima da Silva Variação lexical na zona rural do estado do Pará.................................................................................... 298 Regis José da Cunha Guedes A regulação e os instrumentos formativos no processo de ensino/aprendizagem de língua materna.................................................................................................................................................. 307 Renata dos Santos Lameira Memória do povoado às margens do Lago Arari.................................................................................... 312 Rosa Maria Ramos Bentes Conto rosiano em Primeiras Estórias: uma leitura de “As margens da alegria”, “Os cimos” e “Darandina”............................................................................................................................ ......... 316 Rosalina Albuquerque Henrique A interface da autonomização e consciência linguageira na aprendizagem de língua estrangeira.............................................................................................................................................. 329 Silvia Helena Benchimol Barros Teatro na net.com: Palhaços trovadores e o processo colaborativo em O avarento de Molière................................................................................................................................................... 336 Suani Trindade Corrêa Estratégias de referenciação anafórica com núcleos nominais no twitter: em cena o prefeito de Belém do Pará............................................................................................................................. ........... 345 Vanessa Fabiane Martins de Oliveira


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Textos A AVENTURA HISTÓRICO-LITERÁRIA EM TEMPOS COLONIAIS: UMA LEITURA DE O TETRANETO DEL-REI DE HAROLDO MARANHÃO

Aline de Souza MUNIZ (CAPES/UFPA) Orientador(a): Prof. Dr. Luíz Heleno Montoril Del CASTILO (UFPA) RESUMO: O Tetraneto Del-Rei é uma obra que mescla linguagens, gêneros, discursos e tece, nesse emaranhado de fios, um texto original que recria parte de nosso período colonial questionando destrutivamente o discurso cristalizado pela história e mesmo por textos que compõe nosso cânone literário. Os textos utilizados na obra do paraense Haroldo Maranhão são reconstruídos num tom, sobretudo irônico e crítico, revelando uma outra visão do processo de colonização. Assim, partindo da produção literária dos países com colonização semelhante ao nosso, inicio a leitura considerando alguns trabalhos como os de Silviano Santiago, Antonio Candido e Roberto Schwarz. Além disso, há que se considerar aspectos históricos e sociais da empreitada portuguesa e dos discursos construídos acerca das terras recém descobertas e dos seus habitantes, discursos esses que serão reafirmados e reconstruídos pelo texto literário. PALAVRAS-CHAVE: O Tetraneto Del-Rei; colonização; construção. Walter Benjamim (1994) diz que articular o passado pela história, não significa conhecê-lo exatamente como foi, mas apropriar-se de uma reminiscência da forma como ela relampeja no momento do perigo. Tomando as reminiscências deixadas pelos textos coloniais, os fatos que por ele são relatados, O Tetraneto Del-Rei recria o plano da história a partir dela mesma e a apropriação traz uma possibilidade de verdade. ŖA verdade se passa como tenho contadoŗ, diz a segunda epígrafe do romance. O texto literário se abre também nesse ponto, produz mais que um discurso pontilhado de verdades e, enquanto texto literário, não se obriga a ser verdade, mas pode e consegue sugerir, questionar, e, sobretudo, ridicularizar ao seu modo. De acordo com Luiz Costa Lima: Ŗa literatura se pretende semelhante a um infinito caleidoscópio, tal a capacidade de transgredir fronteiras. Ficção de segundo grau, sendo a realidade a de primeiro; liberta da carga de declarar verdades ou indicar caminhos, a literatura seria o ponto de concentração e convergência da ficção.ŗ (LIMA, 1980, p. 243).


6 Em O Tetraneto Del-Rei, temos dois focos narrativos, um narrador heterodiegético que nos conduz por todo o percurso narrativo, contando-nos a trajetória do Torto desde sua saída de Portugal, chegada ao Brasil e captura pelos índios, até a saída da tribo com a mulher Muira-Ubi, ou melhor, Maria do Espírito Santo Arco Verde DřAlburquerque, após batismo cristão. Esse narrador faz interessantes comentários a cada passo dado pelos portugueses e desmente, por assim dizer, todo o relato do protagonista. É dele a voz questionadora e irônica. O outro narrador, homodiegético, cria uma metadiegese por meio das cartas, a qual pretende enviar a uma amante em Portugal contando-lhe suas façanhas. Situadas após o relato do primeiro narrador, as cartas dão o tom de galhofa à obra e se aproximam em muito ao discurso dos textos dos colonizadores. Claramente, o desejo dos cronistas, como Caminha: Ŗnão deixarei de também dar nisso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder ŕ para o bem contar e falarŗ, é revisitado no romance pela voz do protagonista Jerônimo DřAlbuquerque, que não por acaso se coloca na posição de escrivão e faz questão de enfatizar o perfil de coragem e bravura nas vezes em que capitaneava a frota mato a dentro. Partindo do relato de Jerônimo, temos um discurso que se aproxima do relato dos cronistas, sobretudo no início da narrativa no qual ele tem apenas o conhecimento das notícias que lhe chegavam ainda em Portugal, é somente depois do contato com os índios da tribo pelos quais foi capturado que sua concepção a respeito deles começa a mudar, não de todo, já que este anti-herói traz em si muitas das marcas do pícaro, mas a atitude dos ameríndios o faz refletir quanto ao estereótipo conhecido. Quanto ao primeiro contato entre a frota lusa e os habitantes da nova terra, o Torto reconta o episódio (primeiramente contado pelo narrador) de forma totalmente distinta, ao recontar, ele ratifica a ferocidade indígena e a postura de bravura do português que corajosamente enfrenta o inimigo. Dir-vos-ei que temerárias são similhantes embaixadas, à razão destes bárbaros, que solertes despedem seus mortíferos bambus, cujas extremidades são aguilhões, ocultando-se os cobardes às couraças das árvores e à sombra da vegetação, que o sol não rompe, e em meo da qual vegetação se movem como se em espaço aberto. Em prova deste discurso, gabo-me de que em dada hora do dito anteontem, em que calmos nos ocupávamos, a súbitas caíram-nos em cima os miserabilíssimos em multidão, ostentando aos olhos apertada ânsia de sangue português. O bom capitão não se perde pelas afoitezas. Cercado num círculo não de ferro mas de feros, o que a mesmíssima cousa é, atirei-me à frente da minha tão apoucada embaixada no respeito a números e nomeei-me mandatário del-rei, convidando-os à amizade. Inda não o sou eloqüente na bárbara língua, sendo assi incapaz de proferir-lhe palavras de urbanidade que a um fidalgo competiria. Tôdolos os enemigos retesavam seus arcos à máxima tensão, postas as frechas a meio


7 palmo de serem zumbidas. O aspeito deles era de assassinos, olhos de feras e sanguinolentos. (MARANHÃO, 1982, p. 17)

Os índios são descritos por seu caráter mais bárbaro, esse foi, aliás, um dos adjetivos mais utilizados para designá-los, um povo bárbaro, de bárbara língua, como ressalta também Gândavo. Se para a terra abundam as adjetivações positivas, para o habitante dela abundam as pejorativas. Assim como no romance haroldiano, em muitos textos coloniais é amplamente utilizado o termo Ŗbárbaroŗ para designar o índio. Esse termo provém do grego e em sua origem fazia referência aos estrangeiros, aos que não são gregos e não falam a sua língua, inicialmente o termo é utilizado para aludir aos persas, posteriormente aos romanos e são esses últimos que começam a denominar de bárbaros a povos com hábitos e costumes distintos aos seus. Na verdade, os povos bárbaros eram aqueles em quem não se encontravam atitudes de civilidade e abundava a crueldade, segundo o critério de avaliação romano. Desde lá, o termo vem caracterizando falta de civilidade e brutalidade. Deslocado de suas origens, o termo é reutilizado para designar os índios da América e ressaltar seu descompasso em relação ao europeu, outra forma de mostrar superioridade e justificar a dominação. O bárbaro é o inimigo que precisa ser dominado. O episódio narrado por Jerônimo confirma o estereótipo construído ao longo dos anos, por meio da brutalidade, os Ŗbárbarosŗ tentam enfrentá-los e mesmo assim são chamados de Ŗcobardesŗ, eles são caracterizados como: Ŗferosŗ, Ŗmiserabilíssimosŗ com Ŗapertada ânsia de sangue portuguêsŗ, note-se que é ressaltado o aspecto canibal neste último. São os índios que atacam, cercam os portugueses sem a menor mostra de cordialidade e, os lusos, corajosos, são capazes de enfrentá-los bravamente sem desperdiçar uma gota de sangue, saindo vitoriosos. Vejamos o desfecho do episódio. Buscando os meus tranqüilizar, conquanto pulsassem à minha cola manifestos sinais de arderem por romper à ímpeto a batalha, bradei a desdém e à boca aberta: ŕ Eles que daqui hajam por retirar-se. Se não quiserem sair-se acutilados a botas ao cu! À dita confita, arrogante exibi a minha Melgaça, que é como meu mosquete batizei; e sem mirares especiais ou certos, antes deliberadamente incertos, mas voltados para o bem alto, provoquei um trovão à mata, que se fez num direito remédio. Com grandes clamores e brados, essa danada gente houve por bem escafeder-se à malfa, consumindo muitíssimo menos tempo em tornar de onde havia vindo. (MARANHÃO, 1982, p. 18)

Os índios são facilmente assustados pelo tiro despejado por Jerônimo, o corajoso capitão do grupo, que em nenhum momento se mostrou temeroso diante do inimigo. Essa


8 narrativa provavelmente não nos causaria estranhamento, acostumados que estamos pelo discurso europeu, se o narrador não houvesse contado antes como ele realmente aconteceu, como Jerônimo se sentiu humilhado ao ver seu tricórnio chapéu jazido em terra sem a menor retribuição1, e mais, como os portugueses se puseram a correr apavorados somente por ouvir o grito: ŖQuem, tem cuuuuuuuu meeeeedo!ŗ. O narrador conta do pequeno número de índios que curiosos se aproximam do grandioso número de portugueses, mais de oitenta armados de arcabuzes, e Ŗcom modéstia de rosto e quietação de corpo, por seguro tocados pola só curiosidade de se cotejarem com os dessemelhantesŗ (MARANHÃO, 1982, p. 15), observam pacientes o próximo passo dos visitantes, os quais fogem vergonhosamente e ainda ouvem a zombaria dos demais pela fuga ao voltarem à nau. Portanto, além do discurso do colonizador, a obra traz outro que nos faz repensar quanto à veracidade dos relatos históricos. Se como nos lembra Benjamim (1994), a história é contada pelo vencedor e não pelos vencidos, somos levados pelo narrador a refletir, a questionar. É o Torto quem nos aconselha: ŖMal pensa quem não repensa.ŗ (MARANHÃO, 1982, p. 22). Voltando à narrativa, mais estranha foi a vingança relatada pelo Torto em sua terceira carta. Segundo ele, depois da desfeita recebida pela falta de cordialidade ao arremessar seu chapéu e não obter resposta, eles voltam a se encontrar e é travado um novo embate, desta vez bem diferente do primeiro. ŕ Nada de rumores e de gritas. Juízo aos miolos e arcabuzes em sossego, que a guerra não é de chumbo, mas de pica! Vejam quão miseráveis são as bimbarretas desses infelices aí, mais para almôndegas do que para paus a pique. Mostremos à simples vista que sobejos somos de marca. À batalha! E entre umas poucas de galhofas, anspeçadas, soldados e furréis deitaram à terra calções, com o que à brisa expuseram seus bordões. Acreditai, Senhora, que fiava em mais soberba empresa pela glória maior de Portugal. Verdade que se puseram no bolso, os nossos, ao enemigo. (MARANHÃO, 1982, p. 28)

Para impressionar a Senhora, Jerônimo conta que em vez de uma batalha sangrenta, como a relatada pelo narrador, houve uma batalha em que a disputa se resumia ao tamanho do pênis e na qual novamente os índios foram derrotados pelos portugueses. Não bastasse a postura de bravura, que por si só assustava os inimigos, agora eles são novamente humilhados. 1

A superioridade lusa é criativamente ironizada e logo após esse relato,

Não posso deixar de comentar que um episódio semelhante é narrado por Caminha na Carta, contudo, a retribuição acontece. Quando Nicolau Coelho lança seu chapéu, um dos índios prontamente lança seu Ŗsombreiro de penas de aveŗ e a amizade se estabelece sem nenhum percalço.


9 ironicamente o narrador questiona a veracidade do escrito: ŖAssi lia o Torto nuns papéis, aquela letra miúda mas legível letra, de cujo manuscrito se incubira um licenciado e cronista fiel, o cronista de D. Jerônimo DřAlbuquerque! Precisará dizer-se aos que distraidamente costumam lidar com as letras imprimidas, que lia o Torto um cronista nunca havido, sobre fatos não acontecidos e essas circunstâncias todas sucedidas no macio chão, claro de luzes e no geral pleno de silêncios, que assi é a atmosfera do sonho?ŗ (MARANHÃO, 1982, p. 31)

Parece que o Torto ficou excessivamente instigado com a nudez indígena, assim como os outros cronistas, mas ele vai um pouco além e enquanto os portugueses eram massacrados nas batalhas, ele sonhava com embates quiméricos. É necessário perceber que os relatos de Jerônimo mantém o discurso colonial ambivalente o qual coloca colonizador e colonizado em oposição, o português é o conquistador, corajoso, bravo; o índio é bárbaro e, sem recursos, é incapaz de combater o europeu, falta-lhe conhecimento e força suficientes para resistir. Dessa forma, o estereótipo do selvagem, bárbaro se repete na obra de forma semelhante aos textos coloniais, para Jerônimo: ŖOs demais são demasiado broncos; os homens servem só para cortar paus, pescar e flechar português; e as mulheres, não mais que parideirasŗ (MARANHÃO, p. 206). Se os homens são broncos, as mulheres chamam especial atenção por outro aspecto, assim como o cronista Caminha, Jerônimo e o capitão Duarte Coelho observam as índias e fatalmente as comparam às portuguesas, a descrição é risível: ŕ Sabes que as patrícias excedem-se no serem peludas, é aquela espessíssima mataria, em a qual não é de estranhar se acoutem bichos; e não são lá amigas da água, de que não se servem senão de longe em longe. Amálas é como se à ilharga houvéssemos que suportar um bacalhau à salga. Aprecias acaso tal gênero de petisco? De mim, confesso-te que para as cabeludas estou-me nas tintas; que agora passeio em escalvadas planícies, em que me tenho havido a tão crescentes êxitos. As naturais preferem-nos; e eles, quando amigos, de ordinário são mais complacentes que algus maridos portugueses. (MARANHÃO, p. 41)

Essas palavras foram proferidas pelo excelente capitão da frota portuguesa: Duarte Coelho o qual é, aliás, um dos que mostra calcificado o pensamento colonial quanto ao estereótipo e, em suas falas, isso fica claro, para ele: Ŗgentio é gentio, mais próximo às feras que aos seus semelhantesŗ (MARANHÃO, p. 13). É preciso notar que ao chamá-lo de gentio, Duarte Coelho traz em seu discurso uma marca cristã, um adjetivo cristão, por assim dizer, pois gentio é o não-cristão, aquele que precisa se converter ao cristianismo. Assim, ao identificá-lo como gentio, o capitão o nega, o índio não é cristão, está mais próximo às feras que a mim.


10 O discurso do português em O Tetraneto Del-Rei é carregado de fobia e fetiche, cenas que já faziam parte do imaginário luso e são ratificadas no romance. As falas de Duarte Coelho revelam a atração pela luxúria e nudez indígena, mas, ao mesmo tempo, o bárbaro, aquele que não professa a mesma religião, causa repulsa, dessemelhante, parece estar mais próximo às feras. Visto dessa maneira, o europeu é o modelo, o índio, cópia, e cópia imperfeita. Entretanto, no romance essa visão vai se modificando aos poucos, ao menos no protagonista, pois Jerônimo passa a conviver com os tabajaras pelos quais foi capturado, o que o faz repensar e questionar quanto a falta de civilidade, não do índio, mas do português, daqueles que junto com ele estavam a desbravar a nova terra. Pela própria petulância em se sentir o descendente de um rei, mesmo que distante, o Torto se sente superior aos demais suportando a convivência com eles, no entanto, é principalmente após o contato com os ameríndios que ele começa a perceber que outros eram os Ŗporcos selvagens. Porcos. Selvagens. Que selvagens eram eles, eles si: selvagens. Calafurnas, sacotos, freixos, corvinos, bacalhaos, o capitão-mor Ŕ o doido-morŗ (MARANHÃO, p. 113). Além dele, outro é encontrado convivendo entre a tribo dos tabajaras, e mesmo por isso, ele também mostra ter uma outra visão a respeito deles ao compará-los aos portugueses. Vasco Guedes, português e capturado pelos índios como o Torto, analisa o propósito dos seus compatriotas e percebe a distância entre a intenção dos dois povos. [O]s porcos são irmãos nossos, de que somos os cains e eles os abéis. Matamos, eles não matam; roubamos, eles não roubam; estupramos, eles não estupram; fornicamos sem pautas e eles no estricto se comprazem; invejamos e eles não invejam; somos todos uns filhos de putas e asseguro-te que não há porco filho de puta, que uns aos outros não deitam chavelhos. (MARANHÃO, p. 169)

O que chama maior atenção em O Tetraneto Del-Rei é também a forma como o português passa a ser retratado, seja pela fala do narrador, seja pela fala de Jerônimo. Em vez da relação de poder estabelecida pelos textos coloniais, nos quais o índio parece uma cópia imperfeita do europeu, o europeu passa a ser ridicularizado por suas atitudes, por suas intenções; o selvagem, bárbaro passa a ser o desbravador. O tom jocoso e criativamente irônico criado ao trazer a palavra do outro e a partir dela ridicularizá-lo se estabelece de maneira interessante nesse romance, haja vista vermos histórias semelhantes às relatadas pelos cronistas, contadas também pelo narrador e por Jerônimo. O narrador conta como elas parecem ter, de fato, ocorrido, Jerônimo nos surpreende


11 pela criatividade ao reinventá-las e isso nos faz questionar, enquanto leitores, quanto à veracidade do ocorrido. Aliás, ao recuperar nosso passado, Haroldo Maranhão redimensiona todo o contexto e nos faz repensar quanto a nossas questões identitárias e culturais, sugerindo um outro olhar sobre nós mesmos.

REFERÊNCIAS I.

De Haroldo Maranhão

1. MARANHÃO, Haroldo. O Tetraneto Del-Rei: O Torto: Suas idas e venidas. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1982. II. Sobre Haroldo Maranhão 1. ALVES, Sérgio Afonso Gonçalves. Fios da memória, jogo textual e ficcional de Haroldo Maranhão. Belo orizonte: UFMG, 2006. Ŕ Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários, da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. 2. GUIMARÃES, Maria Elisa. Trilha sem fronteiras: Haroldo Maranhão e o silêncio das cidades. Asas da palavra. Belém: Unama, v. 6, n.13. p. 79-83, 2002. 3. HOLANDA, Silvio. O sertão é dentro da gente: algumas anotações de torno da carta 8 de O tertaneto Del-Rei. Asas da palavra. Belém: Unama, v. 6, n. 13, p. 75-77, 2002. III. Textos teóricos e críticos 1. ÁVILLA, Affonso. Do Barroco ao Modernismo: O desenvolvimento cíclico do projeto literário brasileiro. In: ÁVILA, Affonso (Org.). O Modernismo. São Paulo, 1975. p. 29-37. 2. BENJAMIM, Walter. Magia, técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. 3. BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Editora Cultrix. 4. BORNHEIM, Gerd et alli.Tradição contradição.2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1987. 5. BOSI, Alfredo Anchieta ou as flechas opostas do sagrado. In: Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das letras, 1992. p. 64-81. 6. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução Myriam Ávila, Eliana Reis, Gláucia Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. 7. CAMPOS, Haroldo. Da razão antropofágica: Diálogo e diferença na cultura brasileira. In: Metalinguagem e outras metas. Ensaios de teoria e crítica literária. 4. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992. p. 231-255. 8. CANDIDO, Antonio. Crítica e sociologia. In: Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: Nacional, 1975. p. 3-15. 9. CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: A educação pela noite. 5ª edição. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006. p.169-196. 10. CANDIDO, Antonio. Literatura de dois gumes. In: A educação pela noite. 5ª edição. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006. p. 197-217. 11. CANDIDO, Antonio. No começo era de fato o verbo. In: LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G. H. 2 ed. Madrid; Paris; México; Buenos Aires; São Paulo; Rio de Janeiro; Lima; ALLCA XX, 1996. Disponível em: < http://www.mshs.univpoitiers.fr/crla/contenidos/Archivos/liminar/liminar_13.pdf>. Acesso em: 9 ago 2010.


12 12. COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Tradução de Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996. 13. GOELKEL, Hernando Valencia. In: MORENO, César Fernández (Org.). América Latina em sua literatura. São Paulo, Editora Perspectiva, 1979. p.113-128. 14. HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo. Tradução Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991. 15. JOZEF, Bella. O lugar da América. In: JOBIM, José Luis et al. (Orgs.). Sentido dos lugares. Rio de Janeiro: ABRALIC, 2005. 16. LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. Tradução Rosa dřAguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 17. MARANHÃO, Haroldo. O Tetraneto Del-Rei: O Torto: Suas idas e venidas. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1982. 18. MARTINEZ, José Luis. Unidade e diversidade. In: MORENO, César Fernández (Org.). América Latina em sua literatura. São Paulo, Editora Perspectiva, 1979. p. 61-81. 19. MONEGAL, Emir Rodríguez. Tradição e renovação. In: MORENO, César Fernández (Org.). América Latina em sua literatura. São Paulo, Editora Perspectiva, 1979. p. 131-159. 20. MORICONI, Italo. A problemática do pós-modernismo na literatura brasileira. Disponível em:<http://www.filologia.org.br/abf/volume3/numero1/02.htm> Acesso em: 9 ago 2010. 21. MOTA, Sonia Borges Vieira da. A gramatologia, uma ruptura nos estudos sobre a escrita. DELTA vol. 13 n. 2. São Paulo. Ago, 1997. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-44501997000200006&script=sci_arttext>. Acesso em: 9 ago 2010. 22. MORENO, César Fernández. Introdução. In: MORENO, César Fernández (Org.). América Latina em sua literatura. São Paulo, Editora Perspectiva, 1979. p. XV-XXIX. 23. ORLANDI, Eni Puccinelli. Terra à vista — Discurso do confronto: Velho e Novo Mundo. 2 ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2008. 24. HOBSBAWN, Eric. Introdução: A Invenção das Tradições. In: E. Hobsbawm & T. Ranger (Orgs.). A invenção das tradições, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984. 25. SANTIAGO, Silviano. Apesar de dependente, universal. In: Vale quanto pesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. p. 13-24. 26. SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In: Uma literatura nos trópicos: ensaios de dependência cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. p. 11-28. 27. SANTIAGO, Silviano. Por que e para que viaja o europeu? In: SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra. São Paulo. Editora Companhia das Letras, 1989. p. 189-205 28. SARGUIER, Rubén Bareiro. Encontro de culturas. In: MORENO, César Fernández (Org.). América Latina em sua literatura. São Paulo, Editora Perspectiva, 1979. 29. SCHWARZ, Roberto. Nacional por subtração. In: Que horas são? Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 29-48. 30. SCLIAR, Moacyr. Saturno nos trópicos: a melancolia européia chega ao Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 31. SOUZA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999. 32. STRATHERN, Paul. Derrida em 90 mimutos. Tradução Cassio Boechat. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. 33. TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia: apresentação dos principais poemas, manifestos, prefácios e conferências vanguardistas, de 1857 a 1972. 11 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1992. IV. Intertextos


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34. CAMINHA, Pero Vaz. Carta a El Rei D. Manuel. São Paulo: Dominus, 1963. Disponível em: <http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/carta.html> Acesso em: 9 ago 2010. 35. GÂNDAVO, Pero Magalhães. Tratado da Terra do Brasil: História da Província Santa Cruz, Belo Horizonte, Ed. Itatiaia, 1980. Disponível em: < http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/ganda1.html.> Acesso em: 9 ago 2010. 36. MONTAIGNE, Michel Eyquem. Ensaios. Tradução Sergio Milliet. 2 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília Hucitec, 1987. 37. RIBEYROLLES, Charles de. Brasil pitoresco: descrição, viagens, colonização, instituições. Tradução: Gastão Penalva. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1980. UMA PESQUISA QUALITATIVA DOS ALUNOS DE GRADUAÇÃO INTENSIVA EM LICENCIATURA NA LINGUA INGLESA: UM ENFOQUE NO FOMENTO DA AUTONOMIA PARA UMA MELHOR APROPRIAÇÃO NA HABILIDADE ORAL Breno de Campos BELÉM (UFPA) Orientador(a): Prof.ª Dr.ª Walkyria Magno e SILVA (UFPA) RESUMO: A autonomia é a chave para que o aprendente encontre meios de buscar novas informações relacionadas ao que ele está aprendendo. Os estudantes que são ativos em procurar informações, esclarecimentos e confirmação dos seus próprios pensamentos e suposições são mais bem sucedidos na aprendizagem do que aqueles que não o fazem (DICKINSON, 1992). Partindo da definição de Ushioda (1996) de que um aluno motivado é um aluno autônomo, também serão utilizados estudos de motivação de teóricos como Dörnyei (2005). Ele define motivação como Ŗum estado de alerta cumulativo e dinamicamente mutante em alguém que inicia, direciona, coordena, amplia, conclui e avalia os processos cognitivos e motores por meio dos quais os desejos e vontades iniciais são selecionados, priorizados, operacionalizados e executados (com ou sem sucesso)ŗ (DORNYEI, 2001, p. 9)ŗ. Apesar de terem definições diferentes, autonomia e motivação estão em conexão. O presente trabalho tem como objetivo averiguar que de que forma os acadêmicos do curso de licenciatura em língua inglesa, em caráter intensivo da Universidade Federal do Pará, apreendem práticas autônomas. Terá como foco principal os períodos em que os acadêmicos não estão presentes em sala de aula para uma melhor apropriação da habilidade oral, visto que é esta a habilidade de maior dificuldade de expressão ao retornar à academia. A metodologia utilizada nesta pesquisa será o estudo de caso através de entrevistas semi-etruturadas e narrativas. ABSTRACT: Autonomy is the key for the learner to find ways to search new information related to what he or she is learning. The students who are actives in searching information, clarifications and confirmation of their own thoughts and suppositions are much more successful on learning than the ones who do not do that. (DICKINSON, 1992). From Ushiodařs (1996) definition that one motivated student is an autonomus student, it will be also used motivation studies from scholars such as Dörnyei (2005). He defines motivation as the Ŗdynamically changing cumulative arousal in a person that initiates, directs, coordinates, amplifies, terminates, and evaluates the cognitive and motor processes whereby initial withes and desires are selected, prioritized, operationalised and acted out (successfully or unsuccessfully)ŗ (DORNYEI, 2001, p. 9). Even though they have different definitions,


14 autonomy and motivation are in connection. The present paper aims to investigate in which way the academics from the intensive course of languages major in English at Universidade Federal do Pará in Bragança city, apprehend autonomous practice. It will have as a main focus the periods when the students are not present in classrooms for a better appropriation of the oral skill, because they have difficulties to express themselves when they come back to the class period at university. The research methodology is a study case through semi-structures interviews. PALAVRAS-CHAVE: Autonomia, motivação, aprendizagem da habilidade oral em inglês. INTRODUÇÃO

Durante o processo do curso de graduação intensivo em língua estrangeira habilitação em língua inglesa em Bragança, ofertado pela Universidade Federal do Pará, percebemos que alguns alunos não conseguiram alcançar o nível necessário para se expressar oralmente em inglês estando prestes a terminar a graduação. Quando os aprendentes eram expostos a situações de exposição de suas idéias utilizando a oralidade, geralmente apresentavam dificuldades não apenas em se expressar com palavras adequadas, mas também em utilizar estruturas gramaticais corretas para uma comunicação efetiva. Vale ressaltar que o objetivo do Curso de Letras é formar profissionais competentes, capazes de atuar de forma ética e crítica diante das várias linguagens presentes no meio sócioeducacional, a fim de produzir, expressar e comunicar suas idéias, além de interpretar e usufruir das produções culturais e tecnológicas, em contextos formais, públicos e privados, e contextos não formais, atendendo, com isso, as diferentes intenções e situações de comunicação. Além disso, pressupõe-se que o aprendente acadêmico de línguas necessita saber que meios e métodos são utilizados para uma melhor apropriação do idioma que estão estudando, não somente para si, mas para mostrar quais caminhos seus alunos podem seguir. Dessa forma, proponho esta pesquisa qualitativa que tem como foco principal a autonomia do aprendente e como o aprendente busca as informações para aprender determinadas habilidades da língua inglesa. 2. O PROCESSO DE AUTONOMIZAÇÃO Por muitos anos os professores foram o centro e o foco nas salas de aula de língua estrangeira. As aulas explicativas centradas no professor eram tendência em todos os tipos de escolas.

Atualmente, isso tem mudado.

Os alunos são o foco e o seu processo de


15 aprendizagem é o ponto mais importante neste tipo de interação. Estudos recentes sobre o ensino e aprendizagem de línguas mostram que a autonomia tem se tornado um dos tópicos mais discutidos atualmente. Nesse sentido, Dickinson (1992) diz que os estudantes que são ativos em procurar informações, esclarecimentos e confirmação dos seus próprios pensamentos e suposições são mais bem sucedidos na aprendizagem do que aqueles que não o são. Apesar disso, alguns aprendentes de cursos de idiomas pensam que são capazes de aprender técnicas e habilidades comunicativas apenas estando presentes na sala de aula. Ao ingressar em um curso de idiomas, até mesmo na universidade, os aprendentes não irão obter tais técnicas em seus livros e professores, caso ela não faça parte do currículo. A definição de autonomia, às vezes, é confundida com independência. No processo de aprendizagem Dickinson (1992, apud BENSON 1997) associa autonomia com a idéia de aprender só e independência com a responsabilidade ativa da sua própria aprendizagem. Apesar de serem palavras diferentes, possuem significados parecidos. Em ambos os casos, os aprendentes devem ser capazes de aprender as informações sem a presença de nenhuma outra pessoa. Benson (2001) afirma que autonomia depende somente nos esforços dos aprendentes para desenvolvê-la em uma variedade de contextos em longo prazo. Sendo assim, a medida em que a autonomia estiver fazendo parte do processo de aprendizagem, os alunos serão capazes de decidir o que fazer para aprender a língua de forma mais eficiente. 2.1. A MOTIVAÇÃO DO APRENDENTE A motivação também é um aspecto de fundamental importância na aprendizagem de uma língua estrangeira.

A motivação fará com que o aprendente busque melhores

mecanismos para sua aprendizagem. Dörnyei (2001, p. 9) define motivação como Ŗum estado de alerta cumulativo e dinamicamente mutante em alguém que inicia, direciona, coordena, amplia, conclui e avalia os processos cognitivos e motores por meio dos quais os desejos e vontades iniciais são selecionados, priorizados, operacionalizados e executados (com ou sem sucesso)ŗ.

Existem fatores internos e externos que interferem no caminho desta

aprendizagem.

Williams e Burden (1997) estabeleceram uma estrutura onde foram

observados vários fatores internos e externos. Como internos eles puderam observar, por exemplo, a curiosidade do aprendente e a capacidade de desenvolver outras habilidades. Como externos eles puderam observar a interferência dos pais, professores e colegas, assim como o ambiente em que as escolas se encontravam e como elas lidavam com o ensino de


16 outra língua.

Os termos motivação intrínseca e extrínseca também são utilizados para

designar tais processos. 3. ESTRATÉGIAS E ESTILOS DE APRENDIZAGEM Teóricos na aprendizagem de línguas estrangeiras mencionam que existem métodos para se tornar um melhor aprendente e fazer um melhor uso do que foi aprendido. Reid (1998) diz que quando o aluno tem um amplo entendimento dos estilos de aprendizagem isso irá tornar o aluno capaz de ter controle sobre o seu aprendizado e maximizar o seu potencial para aprender. Christison (1996 apud REID, 1998) também diz que o maior controle sobre a sua própria inteligência e como ele funciona é que os aprendentes irão saber como usar essa inteligência para acessar o conhecimento e a informação necessária para uma determinada lição. Quando os aprendentes de uma língua estrangeira estão começando a entender o uso de técnicas de ensino para determinadas habilidades, devem tomar conhecimento de que há diversas formas de aprender.

Apesar disso muitos passam desapercebidos sobre essas

situações e acabam se desmotivando e desistindo do curso no meio do caminho por acharem que apenas eles não estão aprendendo ou não fizeram o suficiente pra aprender até o estágio em que eles se encontram. O entendimento a respeito dos estilos de aprendizagem e de como funciona o processo motivacional tem papel fundamental na autonomização do aprendente. A autonomia fará com que ele crie mecanismos para buscar novas informações relacionadas ao que está aprendendo. O professor também tem um papel importante no entendimento de todos os fatores acima mencionados. Além disso, ele é a peça fundamental para que a informação chegue ao aluno a partir de suas experiências, tanto como professor, quanto como quando foi aprendente. Nesse processo o atual aprendente deve ter um norte de como fazer e o que fazer para chegar a determinado objetivo. Mudar a visão do aluno como apenas receptor de informação também é importante. Ellis e Sinclair (1989 apud DICKINSON, 1992) falam no treinamento do aprendente que considera os fatores que afetam o seu aprendizado descobrindo as estratégias de aprendizagem que melhor se adéquam a cada caso. Também acrescenta que o aprendente no processo de aprender deve enfatizar como aprender ao invés do que aprender. Apesar de tudo isso, os aprendentes podem escolher ser dependentes do professor como acontece na maioria das escolas de ensino fundamental e médio do nosso país.


17 As estratégias de aprendizagem foram estudadas por OřMalley e Chamot (1990) e Oxford (1990).

Os dois primeiros autores defendem que as estratégias Ŗsão maneiras

especiais de processar a informação que melhoram a compreensão do aprendizado, ou a retenção da informaçãoŗ (CHAMOT e OřMALLEY, 1990, p.1). Em semelhante descrição Oxford (1990) fala que as estratégias de aprendizagem são passos tomados pelos estudantes para melhorar seu próprio aprendizado.

4. PERGUNTAS DE PESQUISA

Diante dos conceitos e descrições teóricas dos autores supracitados cabem os questionamentos: No início e durante o curso, se os alunos soubessem diferenciar ou readaptar os estilos de ensino de cada professor ao seu estilo de aprendizagem, seriam mais motivados a aprender e a continuar a busca pelo conhecimento? Esse processo também os tornaria mais autônomos? O processo de ensino-aprendizagem seria mais eficaz caso os docentes incentivassem a participação do educando durante as aulas, motivando-os a usar o que eles sabem sem medo de errar?

Os discentes apreenderiam melhor a informação caso

fossem-lhes ensinado como utilizar determinadas estratégias de aprendizagem? 5. O TIPO DE PESQUISA, OS SUJEITOS, LÓCUS E O CORPUS A pesquisa será realizada por meio de narrativas e entrevistas semi-estruturadas com 40 alunos do curso de Licenciatura em Língua Inglesa em caráter intensivo na cidade de Bragança, no interior do estado do Pará. CONSIDERAÇÕES FINAIS Partindo da observação de que uma boa parte dos alunos da graduação intensiva não alcançou o nível de comunicação desejável para se expressar oralmente em inglês é que será proposta esta pesquisa.

Baseada nas teorias acima descritas, tentar-se-á encontrar, através

dos dados coletados nas entrevistas e narrativas, a razão pela qual os alunos não foram capazes de falar da forma que a graduação lhes solicitou durante o curso. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Benson, P. Teaching and researching autonomy in language learning. London: Longman, 2001. BENSON, P; VOLLER, P. Autonomy & Independence in Language Learning. London:


18 Longman, 1997. CHAMOT, U; OřMALLEY J. Learning Strategies in Second Language Acquisition. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. DICKINSON, L. Learner Autonomy. Dublin: Authentik, 1992. DÖRNYEI, Z. Teaching and Researching Motivation. London: Pearson, 2001. OXFORD, R. Language Learning Strategies: What every teacher should know. Boston, MA.: Heinle & Heinle Publisher, 1990. REID, J. Understanding Learning Styles in the Second Language Classroom. USA: Prentice Hall Regents, 1998. WILLIANS, M.; BURDEN. Psychology for Language Teachers: a Social Constructivist Approach. [S.l.:] Cambridge University Press, 1997.

SEQUÊNCIAS DIDÁTICAS NO ENSINO/APRENDIZAGEM DO PORTUGUÊS E AVALIAÇÃO SOMATIVA: UMA PESQUISA EM CURSO

Denise Prado da SILVA (UFPA) Orientador(a): Prof.ª Dr.ª Myriam da CUNHA(UFPA) RESUMO: A avaliação somativa tem sido denunciada como sendo um dos principais mecanismos de classificação, de seleção e de exclusão social. As críticas suscitaram várias propostas de transformações e reformulações das práticas avaliativas levando ao predomínio teórico da modalidade formativa e ao abandono das pesquisas sobre a modalidade somativa. Porém, esta modalidade é amplamente usada por professores do nível básico ao acadêmico. Além disto, a aplicação desta modalidade é necessária para a validação e certificação, pelo sistema educacional, dos resultados obtidos ao término de um período. Estes fatos e a divulgação cada vez maior das propostas de Schneuwly e Dolz (2004) de um trabalho em sala de aula com a língua materna a partir de Sequências Didáticas para auxiliar no ensino de diversidade de gêneros justificam uma pesquisa que ofereça ao profissional de Letras melhor clareza e reflexão sobre a realização de uma avaliação somativa que fuja aos padrões tradicionais e que desempenhe adequadamente sua função específica. Embora a avaliação somativa já esteja incluída como um dos componentes da Sequência Didática, pouco parece ser dito ou escrito em torno das práticas que tal modalidade pressupõe. Esta pesquisa tem como objetivo, portanto, identificar dificuldades e possíveis soluções a respeito da realização da avaliação somativa em sequências didáticas para o oral e a escrita no ensino/aprendizagem da língua portuguesa. Com base em estudos bibliográficos, pretende-se situar e caracterizar a avaliação somativa no ensino/aprendizagem de língua portuguesa. Em seguida, será analisado o espaço desta modalidade em Sequências Didáticas já relatadas em trabalhos acadêmicos publicados, apontando-se para as possibilidades de articulação dessa modalidade com a modalidade formativa, pressuposta na Sequência Didática. PALAVRAS-CHAVE: avaliação somativa, ensino/aprendizagem do português, Sequência Didática. ABSTRACT: The somative evaluation has been denounced as one of the main classification, selection and social exclusion mechanisms. The criticism has provoked some proposals of transformation and reformation of the practices of evaluation that have been leading to a theoretical predominance of assessment and to the abandonment of the researches about somative evaluation. But, this type of evaluation is more used for the teachers of all school


19 levels. The application of somative evaluation is necessary to the educational institution legitimate and certificate the obtained result on the end of a period. These facts and the divulgation of the proposals of Schneuwly and Dolz (2004) of a work in classroom with the mother language through the Didactic Sequence help in teaching of several genres and it justifies a research that offers to teachers of Letters better clarity and reflexion about the achievement of a somative evaluation that does not adopt a traditional pattern and performs appropriately its specific function. Although the somative evaluation has been included as one of components of Didactic Sequence, it seems that it is not mentioned much about the practices that type of evaluation presupposes. This research has as aim, therefore, to identify difficulties and possible solutions about the somative evaluation in Didactic Sequences to oral and writing in the teaching/learning Portuguese Language. It has as base the bibliographic studies and through it is intended situate and characterize the somative evaluation in the teaching/learning Portuguese Language. After this, it will analyzed the space of this type of evaluation in didactic sequences related in academic works already published to demonstrate the possibilities the articulation between somative evaluation and formative evaluation, presupposed in Didactic Sequence. KEY-WORDS: somative evaluation, teaching/learning Portuguese Language, Didactic Sequence.

INTRODUÇÃO O objetivo deste estudo é apresentar e discutir o espaço da avaliação somativa nas Sequências Didáticas para o oral e escrita em português. Será defendida a posição de que a avaliação somativa (tida como algo ultrapassado e, que, portanto, deve ser evitado) pode e deve ser articulada com uma proposta inovadora para o ensino/aprendizagem de língua portuguesa. A discussão dessas questões é oportuna, por duas razões complementares: a primeira é que procedimentos formativos como a "Sequência Didática" para a aprendizagem de gêneros textuais, no ensino/aprendizagem da língua materna, têm sido muito divulgados no Brasil nos últimos anos. A segunda é que, embora a avaliação somativa tenha sofrido duras críticas, nas últimas décadas, é a modalidade mais usada pelos professores. 1. AVALIAÇÃO SOMATIVA NA APRENDIZAGEM A avaliação somativa leva em conta a soma de um ou mais resultados e pode ser baseada no resultado acumulado de provas ou pode ser realizada ao final de um programa de ensino, a fim de estabelecer ou definir um conceito ou uma nota. Esta modalidade exerce um caráter social por assegurar que os alunos correspondam às exigências da instituição escolar. Verifica-se uma preferência pela utilização da avaliação somativa por parte dos professores, inclusive de língua portuguesa. Este predomínio parece ser ignorado pela maioria


20 dos estudiosos desta área de conhecimento que praticamente abandonaram as pesquisas sobre esta modalidade. A avaliação somativa tem sido denunciada como sendo um dos principais mecanismos de seleção e de exclusão social (LUCKESI, 1995). Ela também é muito criticada pelo fato de provas e testes constituírem os seus instrumentos privilegiados, os quais implicam na necessidade de uma classificação final e, assim, possibilitam uma Ŗcriação de hierarquias de excelênciaŗ (PERRENOUD, 1999). Muitos estudiosos fazem questão de apresentar o caráter quantitativo e classificatório desta modalidade para mostrar que ela é um mal que deve ser evitado ou, pelo menos, que ela deve adotar instrumentos e procedimentos diferentes dos tradicionais. Porém, como Hoffman (2010, p. 47) reconhece, Ŗ[...] é impossível o sentido de não comparação da avaliação, pois nenhum sistema de avaliação vive sem a classificaçãoŗ. A maioria dos pesquisadores defende convincentemente outras modalidades de avaliação, em especial as que, como a avaliação formativa, desempenham uma função pedagógica que a avaliação somativa não desempenha. Entretanto, a avaliação somativa pode coexistir com todas as outras modalidades. Sua aplicação pode garantir um retorno eficaz ao docente e, sobretudo, à instituição, sobre os resultados obtidos ao término de um período ou ano letivo. Ela pode constituir uma ferramenta útil de trabalho se for bem compreendida. Porém, se utilizada sem nenhum outro tipo de acompanhamento, pode realmente se constituir como vilão no processo de ensino/aprendizagem, já que, por ser tradicionalmente usada ao término de um processo educativo, não dá chance ao professor de corrigir possíveis falhas de formação e quando mais nada pode ser feito, só resta ao aluno esperar o veredicto do professor se ficará retido na mesma série ou passará para a própria etapa. As informações obtidas por meio da avaliação somativa podem servir como subsídio para todas as outras modalidades de avaliação e vice-versa. Afinal, Ŗum bom processo de ensino/aprendizagem consiste em um ciclo interativo em que se diagnostica, forma, classifica e diagnostica novamente" (INUZUKA, 2010, p.1).

2. AVALIAÇÃO SOMATIVA NAS SEQUÊNCIAS DIDÁTICAS

O ensino, a aprendizagem e a avaliação são indissociáveis, ou seja, se interdependem. Não faz sentido avaliar o que não foi objeto de ensino nem objeto de aprendizagem. Porém, este tema é tratado quase que exclusivamente na área da pedagogia, sem uma reflexão sobre os problemas específicos do ensino/aprendizagem de cada disciplina (cf. CUNHA, 1998, p.


21 109). O fato de as propostas da avaliação não serem direcionadas a uma área específica, como o ensino/aprendizagem de língua portuguesa, pode contribuir para tornar a avaliação mais abstrata e para que o professor não saiba aplicar a teoria na prática. Essa situação justifica um estudo sobre a avaliação somativa relacionado com o processo de ensino/aprendizagem de língua portuguesa, em particular com um procedimento específico da produção textual: a Sequência Didática para o trabalho com gêneros textuais. Há um intenso movimento para que o ensino da língua portuguesa mude em direção ao Ŗfuncionamento interativo da língua, que somente acontece por meio de textos orais e escritos, em práticas discursivas as mais diversas, conforme as situações sociais em que se inseremŗ (ANTUNES, 2005: 16, grifo da autora). Não é de hoje que se tenta enfocar, em sala de aula, o texto em seu funcionamento e em seu contexto de produção/leitura. O interesse pelos textos em situações de uso e a redescoberta dos trabalhos de Bakhtin levaram os estudiosos de diversos países a preconizarem um trabalho com base em gêneros textuais ou do discurso. Nesse contexto, tiveram grande repercussão as propostas dos autores Schneuwly, Dolz e colaboradores sobre o ensino escolar de gêneros escritos e orais. Schneuwly e Dolz (2004, p. 75) afirmam que o gênero pode ser considerado como um megainstrumento Ŗque fornece um suporte para a atividade, nas situações de comunicação e uma referência para os aprendizesŗ. Estes autores definem esse megainstrumento em três dimensões: a) os conteúdos que são dizíveis; b) a estrutura (comunicativa) particular dos textos pertencentes ao gênero; c) as configurações específicas das unidades de linguagem, que são sobretudo traços da posição enunciativa do enunciador, e os conjuntos particulares de sequências textuais e de tipos discursivos que formam sua estrutura. Consequentemente, a produção de um gênero numa dada situação de interação requer do enunciador capacidades de linguagem específicas que se referem à três dimensões evocadas. Essas capacidades constroem-se e transformam-se num processo contínuo de aprendizagem social do qual faz parte a aprendizagem escolar (SCHNEUWLY, 2004, p. 30).

Em seu papel de ensinar, a escola sempre utilizou diferentes formas de comunicação concretizadas em linguagens específicas. Isto significa que a escola sempre trabalhou com gêneros, já que Ŗ[...] toda forma de comunicação Ŕ portanto, também Ŕ cristaliza-se em formas de linguagem específicasŗ (SCHNEUWLY & DOLZ, 2004, p. 75). No entanto, só recentemente os gêneros se tornaram objeto específico de aprendizagem, suscitando novos procedimentos para sua escolarização. É nesse contexto que estes autores apresentam um instrumento fundamental para que o professor planeje e elabore o material didático no ensino


22 de gênero: a Sequência Didática. Na definição de Schneuwly et al. (2004, p. 97), a Sequência Didática Ŗé um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escritoŗ. A sequência se propõe a construção de oficinas de ensino/aprendizagem com atividades e exercícios que seguem uma certa ordem, suscetível de resolver progressivamente as dificuldades dos alunos. Esse procedimento tem, portanto, o objetivo específico de ajudar o aluno a dominar melhor um gênero de texto para poder escrever ou falar de uma maneira mais adequada em uma situação de comunicação. Além disso, a Sequência Didática tem como objetivo trabalhar um gênero de texto para estabelecer uma relação entre as capacidades de linguagem dos alunos, as práticas de referência e a complexidade textual. Segundo Machado e Cristovão (2006), o interesse pela Sequência Didática geralmente é justificado pelas seguintes razões: - a SD [Sequência Didática] permitiria um trabalho global e integrado; - na sua construção. Considerar-se-ia, obrigatoriamente, tanto os conteúdos de ensino fixados pelas instruções oficiais quanto os objetivos de aprendizagem específicos; - ela contemplaria a necessidade de se trabalhar com atividades e suportes de exercícios variados; - ela permitiria integrar as atividades de leitura, de escrita e de conhecimento da língua, de acordo com um calendário pré-fixado; - ela facilitaria a construção de programas em continuidade uns com os outros; - ela propiciaria a motivação dos alunos, uma vez que permitiria a explicitação dos objetivos das diferentes atividades e do objeto geral que as guia (MACHADO e CRISTOVÃO, 2006, p. 555). Evidentemente, o trabalho com a Sequência Didática é preferencialmente realizado sobre gêneros públicos que o aluno não domina ou o faz de maneira insuficiente, sobre aqueles dificilmente acessíveis, espontaneamente, pela maioria dos alunos. ŖAs sequências didáticas servem, portanto, para dar acesso aos alunos a práticas de linguagens novas ou dificilmente domináveisŗ (Schneuwly, Dolz e Noverraz, 2004, 98). A estrutura de base de uma Sequência Didática pode ser representada pelo seguinte esquema:


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Schneuwly et al (2004, p 98) Como se pode observar no esquema proposto acima, uma Seqüência Didática deve partir de uma produção inicial, em que os aprendizes tentam elaborar um primeiro texto do gênero escolhido, a fim de delimitar as capacidades e as dificuldades do aluno. Essa primeira produção é realizada após a apresentação da situação de comunicação e do projeto coletivo de produção de um gênero. Essa apresentação é a condição para a preparação de diversos módulos (oficinas) que pretendem dar conta dos problemas apresentados pelos alunos na primeira situação de escrita. Os módulos serão utilizados para dar aos alunos os instrumentos necessários para atingirem o objetivo de produzirem o gênero escolhido. A Sequência Didática termina com uma produção final em que o aluno retoma os conhecimentos adquiridos ao longo da sequência onde o professor avalia os progressos obtidos. A Sequência Didática deve ser realizada em um espaço de tempo relativamente curto e ser adaptado ao programa escolar e às possibilidades de aprendizagem dos alunos. Com a finalidade de distinguir o que já sabem e ou que ainda não sabem, os alunos devem ser expostos a variados exercícios e atividades para que o aluno possa construir, por diferentes formas, às noções e aos instrumentos, aumentando suas chances de sucesso. A longo prazo, um ensino organizado em Sequência Didática permitirá acesso progressivo e sistemático aos instrumentos comunicativos e linguísticos necessários à produção de textos pertencentes a diferentes gêneros orais e escritos. Segundo Schneuwly et al. (2004, p. 103) a Sequência Didática propõe um percurso que vai do complexo para o simples, ou seja, da produção textual inicial aos módulos, cada um trabalhando uma ou outra capacidade necessária ao domínio de um gênero. No final, o movimento leva novamente para o complexo: a produção final. A produção final permite ao professor uma avaliação do processo e dá ao aluno a oportunidade de praticar as noções e instrumentos trabalhados durante os módulos (cf. SCHNEUWLY et al, 2004, p. 106). Guimarães (2006) defende que essa avaliação pode ser feita a partir da proposta de Bronckart para análise de textos como atividades de linguagem,


24 priorizando os aspectos mais enfocados durante a Sequência Didática. De acordo com Bronckart, um texto é organizado de acordo com uma arquitetura interna, que pode ser vista como um Řfolhado textualř. Tal folhado se organiza em 3 camadas superpostas, mas interativas: a infraestrutura geral do texto, os mecanismos de textualização e os mecanismos enunciativos. A primeira camada trata do plano geral do texto, onde se verificam os tipos de discurso e suas articulações, a organização do conteúdo temático, através da qual, enfim, pode-se caracterizar o gênero textual ao qual pertence. A segunda camada verifica a progressão do conteúdo temático, apontando as grandes organizações hierárquicas, lógicas ou temporais de um texto, dentro de três conjuntos: conexão, coesão nominal e coesão verbal. Por fim, a última camada contribui para a coerência pragmática do texto, apontando posicionamentos enunciativos, articulação das vozes presentes e avaliações do conteúdo temático (GUIMARAES, 2006, p. 350 e 351).

Schneuwly et al (2004, p. 107) afirmam que a produção final é o momento para uma avaliação do tipo somativo, se assim o professor desejar. Porém, a avaliação somativa nas instituições escolares não é um caso de Ŗassim desejarŗ, pois o professor sabe que deverá prestar contas institucionalmente do desempenho escolar dos alunos por meio de notas. Este profissional não tem como fugir disto, pois o sistema escolar, a sociedade e os pais cobram esta prestação de contas. Então, ele terá que lançar mão da avaliação somativa no término da Sequência Didática. Estes autores não dizem como a avaliação somativa poderia ser utilizada em Sequência Didática dos gêneros orais e escritos e quais instrumentos este procedimento permitem além da prova e nem tratam da problemática da avaliação somativa em um procedimento altamente formativo. Só é ressaltada a importância de o aluno encontrar, de maneira explícita, em uma avaliação do tipo somativo, os elementos trabalhados em sala de aula, quer o professor utilize uma lista de constatações construída durante a sequência, quer escolha uma grade diferente quanto à sua forma. (...) Essa forma de explicitação dos critérios de avaliação permite ao professor, pelo menos parcialmente, desfazer-se de julgamentos subjetivos e de comentários frequentemente alusivos, que não são compreendidos pelos alunos, para passar a referir-se a normas explicítas e a utilizar um vocabulário conhecido pelas duas partes. Ao mesmo tempo, a grade serve, portanto, não só para avaliar num sentido mais estrito, mas também para observar as aprendizagens efetuadas e planejar a continuação do trabalho, permitindo eventuais retornos a pontos mal-assimilados (SCHNEUWLY et al, 2004, p. 107).

De acordo com Schneuwly (2004, p. 107), é Ŗno pólo do alunoŗ que o documento de síntese (a reescrita da produção inicial e as observações feitas durante a Sequência Didática)


25 ganha sua maior relevância durante a produção final já que: indica ao aluno os objetivos a serem alcançados, oportunizando um controle sobre seu próprio processo de aprendizagem. O aluno pode refletir sobre o que aprendeu e sobre o que resta a fazer; serve de instrumento para regular e controlar o seu próprio processo de produção de textos, durante a revisão e a reescrita; Permite ao aluno avaliar os progressos obtidos nas atividades realizadas. As atividades deste procedimento propiciam a avaliação formativa porque a análise das produções orais e escritas dos alunos permite avaliar de forma precisa as dificuldades encontradas pelos alunos, ou seja, Ŗo professor obtém, (...), informações preciosas para diferenciar, e até individualizar se necessário, seu ensino (SCHNEUWLY et al., 2004, p. 102)ŗ. A avaliação somativa, por sua vez, pode e deve ser articulada com a avaliação formativa ao longo da Sequência Didática. Nossa hipótese é que, somente nesta condição, essa avaliação escapa das limitações da avaliação somativa e dos instrumentos habitualmente mobilizados por ela (prova, redação). Na Sequência Didática, a modalidade somativa terá que se adequar a uma nova perspectiva, onde se deixa de avaliar o conteúdo e se passa a avaliar as competências.

CONCLUSÃO No estudo empreendido em nossa pesquisa de mestrado, estamos levantando a hipótese de que, geralmente, é dado mais importância aos outros três componentes de Sequência Didática e aos procedimentos formativos da mesma do que às possibilidades que ela oferece em termos de avaliação somativa. Essa lacuna cria um sério problema para o professor, na medida em que este perde a oportunidade de desempenhar, de forma articulada ao processo de aprendizagem e, portanto, de forma mais significativa, uma função que é exigida dele pela instituição. O problema não está com a avaliação somativa e sim com o uso inadequado que a escola tem feito dela. A utilização dessa modalidade de avaliação, dentro de um contexto coerente de aplicação, associada a outras modalidades de avaliação, é necessária e garante que sejam estipuladas metas para ser atingidas pelos estudantes, o que pode servir, inclusive, como motivação para que os mesmos dediquem-se aos seus estudos. Não há dúvidas de que a avaliação somativa constitui um dos desafios enfrentados pelo professor no seu cotidiano escolar. Ele tem um papel importante a desempenhar na


26 tentativa de tornar mais justa a avaliação da aprendizagem ao não excluir o aluno, mas incluílo como um ser crítico, pensante, ativo e participante. Esse objetivo só será atingido se este profissional souber com clareza o que pretende avaliar, como avaliar, para que avaliar e quais os instrumentos serão usados. No ensino/aprendizagem de línguas, tal objetivo parece profundamente ligado a uma articulação das práticas avaliativas em suas dimensões formativa e somativa. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTUNES, Irandé. Língua, texto e ensino: outra escola possível. São Paulo: Parábola, 2009. CUNHA, Myriam Crestian. A avaliação formativa: estratégia didática para o ensino-aprendizagem da língua materna. Moara, Revista dos cursos de pós-graduação em Letras. Belém: EDUFPA, n° 9, 1998. p. 105-133. GUIMARÃES, Ana Maria de Mattos. Construindo propostas de didatização de gênero: desafios e possibilidades. Linguagem em (dis)curso - LemD. Tubarão: Unisul, 2006, v. 6, n. 3. p. 337584. HOFFMAN, Jussara. Avaliação: mito e desafio: uma perspectiva construtivista. Porto Alegre: Mediação, 2010 INUZUKA, Marcelo Akira. Avaliação diagnóstica. Disponível em: http://wiki.sintectus.com/bin/view/EaD/AvaliacaoDiagnostica. Acessado em 07/12/2009. LUCKESI, Cipriano Carlos. Avaliação da aprendizagem escolar. São Paulo: Cortez. 1995. MACHADO, Anna Rachel; CRISTOVÃO, Vera Lúcia Lopes. A construção de modelos didáticos de gêneros: aportes e questionamentos para o ensino de gêneros. Linguagem em (Dis)curso. LemD, Tubarão, v. 6, n.3, 2006. p. 547-573. PERRENOUD, Philippe. Avaliação. Da excelência à regulação das aprendizagens - entre duas lógicas. Tradução de Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Artmed, 1999. SCHNEUWLY, Bernard, DOLZ, Joaquim e colaboradores. Gêneros orais e escritos na escola. Tradução e organização de Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004.

A INFLUÊNCIA DE DIFERENTES LÍNGUAS‐CULTURAS NO ENSINOAPRENDIZAGEM DA PRODUÇÃO ORAL EM PORTUGUÊS COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA Edirnelis Moraes dos SANTOS (UFPA) Orientador(a): Prof. Dr. José Carlos Chaves da CUNHA (UFPA) RESUMO: Os professores de Português como Língua Estrangeira (PLE), muitas vezes, trabalham em turmas que são heterogêneas não só quanto às nacionalidades, mas também quanto às línguas‐culturas presentes. Em nossa pesquisa, focalizaremos a produção oral dos aprendentes de PLE para observar como, em turmas com esse perfil, as diferentes línguas‐culturas influenciam a interação em sala de aula ou fora dela. Em seguida, planejaremos intervenções que possam otimizar a influência de diferentes línguas‐culturas no ensino‐aprendizagem da produção oral em PLE e minimizar as eventuais dificuldades encontradas. Para tanto, apoiar‐nos-emos na base teórica da Perspectiva Acional, do modelo de ensino baseado em Tarefas, e da metodologia da Pesquisa‐Ação.


27 PALAVRAS‐CHAVE: Línguas‐culturas, perspectiva acional, produção oral. RÉSUME: Les professeurs de Portugais Langue Etrangère travaillent souvent avec des groupes hétérogènes, que ce soit au niveau des nationalités qui les composent, ou des languescultures. Dans cette étude, nous nous concentrerons sur la production orale des apprenants de PLE pour observer comment les différentes langues-cultures influencent les interactions en classe ou en dehors de celle-ci. Ensuite, nous projetterons des interventions qui pourront optimiser lřinfluence des différentes langues-cultures dans lřenseignement-apprentissage de la production orale en PLE e minimiser dřéventuelles difficultés. Pour cela, nous nous appuierons sur les bases théoriques de la Perspective Actionnelle, du modèle dřenseignement basé sur Tâchesŗ et de la méthodologie de Recherche-Action. MOTS CLÉS: Langues-cultures, perspective actionnelle, production orale.

INTRODUÇÃO Nas últimas décadas, o ensino do Português como Língua Estrangeira (PLE) tem mostrado um sensível crescimento devido a acordos internacionais que motivam a ida de muitos profissionais e estudantes estrangeiros para países lusófonos. Para os professores de PLE tem sido um desafio ensinar a língua portuguesa, pois para muito dos estudantes urge saber interagir para começar a trabalhar e/ou estudar. Em muitos cursos de PLE, as salas de aula são pontos de encontro de Ŗpessoas que não se conhecem, que não partilham, em princípio, a mesma língua nem a mesma cultura, passam a conviver quotidianamenteŗ (WEISS, 2001) 1, ou seja, deparamo-nos com uma heterogeneidade de línguas-culturas, e por isso o ensino-aprendizagem (E/A) da língua portuguesa não pode dissociar esses dois componentes, pois é por meio da língua que a cultura e a linguagem se constituem. Cabe neste momento definir quais concepções de língua, cultura e linguagem que norteiam esse trabalho: Língua: Ŗsistema abstrato de signos que se pode estudar, de forma separada ou concomitante seguindo teorias, a evolução, os aspectos fonéticos e fonológicos, a morfologia, o léxico, a sintaxe, a semânticaŗ 2 (CUQ, 2006, p. 147); Cultura: Ŗconjunto de manifestações da vida de um povo, desde as mais elementares, como a busca de comida e de vestimentas, até chegar às manifestações mais complexas, como as que se referem às instituições sociais (...) que determinam a convivência, principalmente as atitudes dos homens diante do novo e do estranho, 1

O artigo de Weiss (2001) não possui paginação (Cf. Referências). Original: Ŗsystème abstrait de signes dont on peut étudier, de façon séparée ou concomitante suivant les théories, lřévolution, les aspects phonétiques et phonologiques, la morphologie, le lexique, la syntaxe, la sémantiqueŗ (CUQ, 2006, p. 147) Ŕ Exceto o résume, as traduções do francês para o português são nossas. 2


28 assim como diante das diferentes idéias e sistemas de valores e formas de vidaŗ (FERREIRA, 1998, p.40); Linguagem: Ŗatividade, como forma de ação, ação inter-individual finalisticamente orientada; como lugar de interação que possibilita aos membros de uma sociedade a prática dos mais diversos tipos de atosŗ (KOCH, 2003, p. 7-8 Ŕ destaque da autora).

Portanto, a aula de língua estrangeira não deve ser um lugar onde professor e alunos se reúnem apenas para estudar as regras gramaticais da língua, mas um espaço em que o português Ŗtorna-se, mais do que uma disciplina a ser estudada, o meio, muitas vezes único, de se estabelecer a comunicação e o entendimento mútuoŗ, já que é por meio da língua-alvo que o aprendente irá Ŗse apresentar e apresentar sua cultura e sua maneira de pensar aos outros.ŗ (WEISS, 2001). Compreender que Ŗa relação entre linguagem e cultura é tão íntimaŗ (FONTES, 2002, p. 178) possibilitará ao professor uma melhor maneira de abordar o ensino da língua portuguesa, pois propiciará ao seu aluno Ŗuma comparação com aquilo que lhe é caro, até que haja, finalmente, a compreensão e a aceitação da outra [língua-]culturaŗ (WEISS, 2001). Tendo como base o panorama apresentado, apresentamos brevemente alguns pressupostos teóricos que podem favorecer o E/A da produção oral em PLE. Primeiramente, apresentamos a Perspectiva Acional, pois ela pode oferecer embasamento para o trabalho em turmas heterogêneas de PLE. Em seguida, mostramos o modelo de ensino baseado em tarefas, pois acreditamos que ele poderá ajudar o desenvolvimento da habilidade de produção oral de alunos estrangeiros de PLE. Depois, mostramos a metodologia da pesquisa-ação, a qual será utilizada para a execução da parte prática da pesquisa. Finalizamos este artigo expondo os futuros passos de nosso trabalho na área de PLE. A PERSPECTIVA ACIONAL Algumas metodologias1 e abordagens2 têm baseado o ensino-aprendizagem (E/A) de línguas. Com relação às primeiras, encontramos metodologias que dão prioridade ao ensino gramatical, sendo chamadas de tradicionais. Quanto às abordagens, existem aquelas cuja Ŗatenção se voltou ao conhecimento e às habilidades necessárias para usar a gramática e 1

Metodologia Ŗcorresponde a todas as maneiras de ensinar, de aprender e de relacionar esses dois processosŗ (CUQ, 2006, p. 166). Original: ŖIl correspond à toutes les manières dřenseigner, dřapprendre et de mettre en relation ces deux processusŗ Ŕ Exceto o résume, as traduções do francês para o português são nossas. 2 Abordagem é uma Ŗfilosofia de trabalho, um conjunto de pressupostos explicitados, princípios estabilizados ou mesmo crenças intuitivas quanto à natureza da linguagem humana, de uma língua estrangeira em particular, de aprender e de ensinar línguas, da sala de aula de línguas e de papéis de aluno e de professor de uma outra línguaŗ (ALMEIDA FILHO, 1993, p. 13)


29 outros aspectos lingüísticos de maneira apropriada para diferentes finalidades comunicativasŗ (RICHARD, 2006, p. 14), como é o caso da Abordagem Comunicativa (AC) que surgiu na década de 1970. Em 2001, O Conselho da Europa (CE) publicou o Quadro Europeu Comum de Referências (QECR)1 para o ensino de línguas. Neste documento oficial, encontramos as primeiras reflexões acerca da Abordagem Acional, a qual visa superar as lacunas presentes na AC. Essa nova abordagem é

orientada para a acção, na medida em que considera antes de tudo o utilizador e o aprendente de uma língua como actores sociais, que têm que cumprir tarefas (que não estão apenas relacionadas com a língua) em circunstâncias e ambientes determinados, num domínio de actuação específico. (CE, 2001, p. 29)

Os autores do QECR, segundo Puren (2009b, p. 30-31), hesitam entre as denominações ŖAbordagem Acionalŗ e ŖPerspectiva Acionalŗ. Puren (2009b) argumenta que a melhor é a segunda, pois o termo Ŗperspectivaŗ ressalta a complexidade do processo de E/A e diversifica ao máximo as formas de considerar as problemáticas didáticas. Optamos em utilizar a designação Perspectiva Acional (PA), pois concordamos que ela evidencia o quão complexa é a tarefa de ensinar e aprender uma língua. Puren (2009a) destaca algumas diferenças entre a PA e a AC. Esta tem quatro características fundamentais: (1) incoatividade, (2) brevidade, (3) autossuficiência e (4) individualidade. Tomando como referência uma viagem turística, a incoatividade diz respeito ao tratamento dado nos manuais elaborados na AC ao início de um primeiro encontro entre pessoas. Nestes manuais, deveriam ser trabalhados os contatos iniciais. Porém, geralmente apresentam conversações de pessoas que se conhecem bem e viverão as situações que aluno deverá simular. Com relação à brevidade, percebe-se que o encontro não dura muito, pois começa e termina rapidamente. Os diálogos dos manuais são geralmente curtos e servem para atividades em que os alunos, em um primeiro momento, repetem o diálogo literalmente e depois trocam os dados contidos pelas suas próprias informações. No que concerne à autossuficiência, nota1

O QECR é um documento que Ŗfornece uma base comum para a elaboração de programas de línguas, linhas de orientação curriculares, exames, manuais, etc., na Europa. Descreve exaustivamente aquilo que os aprendentes de uma língua têm de aprender para serem capazes de comunicar nessa língua e quais os conhecimentos e capacidades que têm de desenvolver para serem eficazes na sua actuação. A descrição abrange também o contexto cultural dessa mesma língua. O QECR define, ainda, os níveis de proficiência que permitem medir os progressos dos aprendentes em todas as etapas da aprendizagem e ao longo da vida.ŗ (CONSELHO DA EUROPA, 2001, p. 19 - versão portuguesa anterior ao Acordo Ortográfico)


30 se que o encontro turístico é um primeiro e único encontro, já que, via de regra, as pessoas nunca mais se verão. Por isso, os diálogos são sempre fechados, sem espaço para a continuidade da conversa. Quanto à individualidade, observa-se que a viagem é vivida pelos turistas de maneira individual, mesmo que eles façam uma viagem em grupo, pois quase não se encontram atividades que privilegiem o coletivo. A PA não adota mais como base a viagem turística e traz duas novas situações sociais de referência. Uma delas toma como princípio uma sociedade multicultural e multilíngue em que uma pessoa poderá ficar durante um curto ou longo período. Para que o aluno tenha êxito durante sua estadia, ele deve ser capacitado a conviver em permanência com pessoas de línguas-culturas diferentes. A outra situação está no campo profissional, que abrange tanto a formação (ex.: escolas, universidades) quanto a sua efetivação (ex.: empresas, comércio), pois o aprendente precisa ser capaz de interagir com outros estudantes e professores, assim como trabalhar com seus colegas de línguas-culturas diferentes. A proposição da PA é, portanto, formar em nossas classes de línguas, não mais (ou não mais simplesmente) o viajante encontrando pontualmente estrangeiros (em um quadro turístico ou profissional), ou o inverso, aquele que encontra estrangeiros de passagem, mas o cidadão de um país multilíngue e multicultural integrado a um espaço comum (...), e que, no quadro de sua formação universitária e de sua profissão, deve ser capaz de trabalhar durante um longo período em línguacultura estrangeira com os alófonos e até mesmo com pessoas que compartilham sua língua materna (PUREN, 2009a, p. 91)1.

O aprendente é visto como um ator social, isto é, como um indivíduo crítico, autônomo, cidadão do mundo, que poderá ir morar em um país estrangeiro e saberá conviver em uma sociedade multilíngue e multicultural. A HETEROGENEIDADE LINGUÍSTICO-CULTURAL EM TURMAS DE PLE De acordo com Weiss (2001), os docentes de Português como Língua Estrangeira (PLE) no Brasil deparam-se com três áreas de atuação: (1) dar aulas particulares; (2) ministrar cursos para grupos de funcionários de empresas multinacionais, geralmente de mesma nacionalidade; ou (3) trabalhar em cursos ofertados por instituições públicas ou privadas que recebem estrangeiros de diversos países. 1

Original: Ŗformer dans nos classes de langues, donc, ce nřest plus (ou plus simplement) le voyageur rencontrant ponctuellement des étrangers (dans un cadre touristique ou même profissionnel), ou à lřinverse celui qui rencontre chez lui des étrangers de passage, mais le citoyen dřun pays multilingue et multiculturel intégré dans lřespace commun (...), et qui, dans le cadre de sa formation et de sa profession, doit désormais être capable de travailler dans la longue durée en langue-culture étrangère avec des allophones et même avec des personnes partageant sa langue maternelleŗ (PUREN, 2009a, p. 91).


31 Cada uma dessas áreas tem turmas com perfis diferentes. Quando se dá aula particular, a interação se restringe quase exclusivamente entre professor e aluno, o primeiro planeja aulas que visam superar as dificuldades que o aprendente apresenta em relação aos aspectos formais da língua e, quanto aos temas culturais, as atividades costumam ser de comparação entre as culturas dos dois. No segundo caso, conforme Weiss (2001), o professor possui em tese uma turma homogênea quanto à língua-cultura, não se descartando a singularidade de cada aluno. Em classes com essa característica, tem-se possibilidade de dar um tratamento homogêneo as questões linguístico-culturais, podendo-se trabalhar as dificuldades comuns Ŕ às vezes previsíveis Ŕ entre os aprendentes e preparar atividades que versem sobre os temas culturais do país de origem deles, utilizando como base para essas atividades assuntos como fatos históricos, manifestações populares, dentre outros. No que concerne às turmas cujo público é formado por estrangeiros de vários países, pode-se observar um encontro de línguas-culturas diferentes. Essa heterogeneidade linguístico-cultural nos faz refletir sobre esse ambiente de E/A, pois nem sempre o professor é conhecedor das culturas dos países representados ali em sala de aula, e nem quais são as inadequações linguísticas mais recorrentes desses alunos que começam aprender o português. Daí surge o seguinte questionamento: Até que ponto essa heterogeneidade pode (des)favorecer o E/A de PLE? Ferreira (2001), Wiel (2001), Castro e Melo-Pfeifer (2010) analisam as transferências e interferências das línguas maternas dos alunos na aprendizagem da língua portuguesa, nos níveis fonológico, morfológico, sintático e lexical. Júdice e Xavier (1998), Costa (2001) e Meyer (2002) procuram investigar quais representações culturais do Brasil são propagadas por meio dos materiais didáticos (ex.: estereótipos, tópicos históricos). Notamos nesses estudos que autores, mesmo afirmando que o E/A de uma língua não deve ser dissociado do E/A da cultura, acabam privilegiando a análise de apenas um desses componentes. Poucos são os trabalhos em que encontramos o relato de práticas docentes que tentaram articulá-los. Acreditamos que um caminho possível de ser adotado para trabalhar em turmas heterogêneas de PLE possa ser a elaboração de tarefas que explorem as diferentes línguasculturas, com o intuito de fazer com os aprendentes sejam levados a utilizar a língua-alvo para cumprir tarefas que não mais apenas simuladas e simples, mas que se aproximam do uso da linguagem oral Ŕ e também escrita Ŕ que o aprendente encontrará fora da classe. O ENSINO BASEADO EM TAREFAS


32

Conforme Puren (2004a), o ensino baseado em tarefas vem sendo adaptado e utilizado por diferentes metodologias e abordagens de E/A. Na PA, o aluno precisa ser levado a cumprir Ŗtarefas Řpróximas da vida realř escolhidas em função das necessidades que o aprendente tem fora da classe ou do contexto de aprendizagemŗ (ROSEN, 2009, p. 7) 1. Para Nunan (1989, p.10), uma tarefa pode ser Ŗum trabalho de sala de aula que envolve os aprendizes em compreender, manipular, produzir ou interagir na língua-alvoŗ. O QECR define tarefa como qualquer acção com uma finalidade considerada necessária pelo indivíduo para atingir um dado resultado no contexto da resolução de um problema, do cumprimento de uma obrigação ou da realização de um objectivo (CE, 2001, p. 30).

Rosen (2009, p. 7) cita alguns exemplos de tarefas que o aprendente executa em seu cotidiano como, por exemplo, fazer compras, reservar um quarto, cumprir diversos trâmites administrativos, fazer um curso na universidade, telefonar para um clube de esporte para saber os horários e como se inscrever. Geralmente, segundo Puren (2000d), o que encontramos nas aulas de LE são atividades que combinam a compreensão de um texto (escrito ou oral), para que, posteriormente, os alunos se expressem oralmente a partir de comentários. Dessa forma, eles estariam exercitando a produção oral. Contudo, esse tipo de atividade de comentário oral coletivo (PUREN, 2000d) dificulta a interação entre aluno e professor, já que este, na visão do aluno, conhece melhor o texto e analisará se seus comentários estão certos ou errados, inibindo-o de apresentar as suas ideias. Nunan (1989, p. 48), após analisar orientações de alguns autores sobre como planejar tarefas em AC, propõe um modelo de elaboração de tarefas com os seguintes componentes: Atividades Insumo Objetivos

Papel do professor TAREFA

Papel do aprendente Contexto

À luz da PA, este modelo não perdeu a sua validade, contudo, seus componentes ganham um novo fôlego:

1

Original: Ŗles tâches Řproches de la vie réelleř choisies en fonction des besoins de lřapprenant hors de la classe ou du contexte dřapprentissageŗ (ROSEN, 2009,p. 7).


33  Atividades abrangem Ŗo exercício da (...) língua num domínio específico no processamento (recepção e/ou produção) de um ou mais textos, com vista à realização de uma tarefaŗ (CE, 2001, p. 30);  Insumo (input) diz respeito à Ŗinformação (input) linguística inteligível, substancial e contextualizadaŗ (CE, 2001, p. 196) e que pode ser autêntico ou didático, oral ou escrito;  Objetivos é Ŗo que se tenta conseguir, o resultado que nos propomos a obter a partir de meios apropriadosŗ1 (CUQ, 2006, p. 180);  Papel do Professor é detectar quais são as necessidades dos alunos, planejar as possíveis tarefas e atividades, solicitar a participação do aprendente durante esse planejamento, abrir espaço para a negociação do conteúdo, das atividades, etc;  Papel do aluno é participar Ŗactivamente do processo de aprendizagem, em colaboração com o professor e os outros estudantes, a fim de chegaremŗ (CE, 2001, p. 2002) a um acordo sobre os objetivos e atividades;  Contexto Ŗrefere-se à constelação de acontecimentos e de factores situacionais (físicos e outros), tanto internos como externos ao indivíduo, nos quais os actos de comunicação se inseremŗ (CE, 2001, p. 30). A delimitação desses componentes no ato de elaboração de uma tarefa pode favorecer o E/A da produção oral, assim como a interação entre professor-aluno, aluno-aluno, pois a participação dos aprendentes não se restringirá a breves comentários de textos. A PESQUISA-AÇÃO A pesquisa-ação, segundo Hadley (2004, p. V) Ŗé um processo sistemático de indagação do professorŗ que, ao observar problemas ou necessidades de seus alunos, busca encontrar formas para resolver questões que de algum modo interferem no processo de ensino-aprendizagem dos aprendentes. Segundo Thiollent (1997, p. 36), a pesquisa-ação pressupõe uma concepção de ação que Ŗrequer, no mínimo, a definição de vários elementos: um agente (ou ator), um objeto sobre o qual se aplica a ação, um evento ou ato, um objetivo, um ou vários meios, um campo ou domínio delimitadoŗ. Entre os elementos existentes em nossa pesquisa, destacamos: o professor e os aprendentes estrangeiros de português como os agentes (ou atores); o objeto de estudo é a produção oral; destacamos como objetivo planejar intervenções que possam otimizar a influência de diferentes línguas‐culturas no E/A da produção oral em PLE e minimizar as eventuais dificuldades encontradas. Para realizarmos essa pesquisa, tentaremos seguir o que Magno e Silva (2003, p. 74) propõe como percurso para uma pesquisa-ação, que é Ŗcomeça[r] com uma ação, passando 1

Original: Ŗce à quoi on tente de parvenir, le résultat quřon se propose dřobtenir par des moyens appropriésŗ


34 pelos estágios de observação, reflexão e estudo, planejamento de ações, ação interventiva visando melhorar a situação inicial e, finalmente, observação para verificar as mudanças ocorridas e identificar nova ação a ser alteradaŗ. CONSIDERAÇÕES FINAIS É nosso propósito em trabalhos futuros, pensar em modos de operacionalização dos pressupostos teóricos acima, colocando em foco a heterogeneidade linguístico-cultural presentes em turmas de PLE, com o objetivo de propiciar o desenvolvimento da produção oral, explorando as diferentes línguas-culturas, isto, a partir de tarefas que otimizem a influência das línguas-culturas e minimizem as eventuais dificuldades encontradas. REFERÊNCIAS ALMEIDA FILHO, José Carlos Paes de. Dimensões Comunicativas no Ensino de Línguas. Ŕ 2ª ed. Ŕ São Paulo: Pontes, 1993. CASTRO, Catarina; MELO-PFEIFER, Sílvia. Aprender Português depois de (Muitas) Outras Línguas Estrangeiras: Implicações Pedagógico-Didácticas no Ensino do PLE Junto de um Público Adulto. In: MARÇALO, Maria João (org). Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas. Universidade de Évora, 2010. (p. 1-21) Disponível em: <http://www.simelp2009.uevora.pt/pdf/slg18/01.pdf>. Acesso em: agosto 2010. CONSELHO DA EUROPA. Quadro Europeu Comum de Referências para as Línguas: Aprendizagem, ensino e avaliação. Portugal, Porto: ASA Editores, 2001. COSTA, Sonia Regina Reis. O Ensino de Português para Estrangeiros em Dimensão Intercultural: Rumo à Expansão de Adequada Imagem do Brasil. In: ALMEIDA FILHO, José Carlos Paes (org). Português para Estrangeiros Interface com o Espanhol. Campinas, SP: Pontes, 2001. (p. 99-104) CUQ, Jean-Pierre (coord.). Dictionnaire de didactique du français langue étrangère et seconde. Paris: Clé International, 2006. FERREIRA, Itacira. A Interlíngua do Falante de Espanhol e o Papel do Professor: Aceitação Tácita ou Ajuda para Superá-la? In: ALMEIDA FILHO, José Carlos Paes (org). Português para Estrangeiros Interface com o Espanhol. Campinas, SP: Pontes, 2001. (p. 39-48) _______. Perspectivas interculturais na aula de PLE. In: SILVEIRA, Regina Célia P. da. (Org.) Português língua estrangeira: perspectivas. São Paulo: Cortez, 1998. (p. 39-48) FONTES, Susana Maria. Um lugar para a cultura. In: CUNHA, Maria Jandyra Cavalcanti; SANTOS, Percília (orgs). Tópicos em Português Língua Estrangeira. Brasília: Editora da UnB, 2002. (p. 175-183) HADLEY, Gregory. Pesquisa de Ação em Sala de Aula. [tradução Ricardo Silveira]. - São Paulo: Special Book Services Livraria, 2004. JÚDICE, Norimar; XAVIER, Alice. Imagens do Brasil: texto e contexto no ensino de Português Língua Estrangeira. In: SILVEIRA, Regina Célia P. da (org). Português Língua Estrangeira: Perspectivas. São Paulo: Cortez, 1998. (p. 49-58) KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. A inter-ação pela linguagem. Ŕ 8ª ed. Ŕ São Paulo: Contexto, 2003. MAGNO E SILVA, Walkyria Alydia Grahl Passos. Autonomia no ensino e aprendizagem de línguas. In: Moara: Revista da Pós-Graduação em Letras da UFPA. n. 20, p. 73-81, jul/dez,


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GLOSSÁRIO SOCIOTERMINOLÓGICO DO ARTESANATO EM


36 CERÂMICA NO DISTRITO DE ICOARACI (BELÉM/PA) Eliane Oliveira da COSTA (UFPA) Orientador(a): Prof. Dr. Abdelhak RAZKY (UFPA) RESUMO: A inclusão da dimensão sociocultural nos estudos das línguas naturais resultou no surgimento de diversas teorias que defendem a idéia de que não podemos entender e estudar a língua fora de seus contextos sociais e culturais de uso. Dentre essas teorias, estão a Socioterminologia e a Terminologia Cultural, as quais constituem, juntamente com o princípio metodológico da Etnografia, a base teórico-metodológica adotada no presente trabalho. Partindo dessas perspectivas, então, este estudo objetiva elaborar um glossário socioterminológico da atividade cerâmica desenvolvida no bairro do Paracuri, grande pólo produtor de cerâmica artesanal em Icoaraci (Belém/PA), a partir da delimitação de oito áreas semânticas, a saber: extração da argila, preparação da matéria prima, formatação da peça, tratamento térmico, acabamento, esmaltação, decoração e comercialização. Para tanto, utilizará o discurso oral dos socioprofissionais envolvidos nessa atividade, tais como: barreiros, artesãos, oleiros e atravessadores. Esta pesquisa, ainda, está inserida no projeto Atlas Geo-sociolinguístico do Pará (ALIPA) que, entre outros, tem contemplado o estudo do léxico de especialidade por meio da elaboração de glossários socioterminológicos. PALAVRAS-CHAVE: socioterminológico.

Socioterminologia,

Terminologia

Cultural,

Glossário

RESUME: Lřinclusion de la dimension socioculturelle dans les études des langues naturelles a résulté lřapparition de plusieurs théories qui défendent lřidée quřon ne peut pas comprendre et étudier la langue hors de ses contextes sociaux et culturels dřusage. Parmi ces théories, on trouve la socioterminologie et la terminologie culturelle, auxquelles constituent simultanément avec le principe méthodologique de lřethnographie la base théoriqueméthodologique adoptée dans ce travail. Basé sur ces perspectives, alors cette étude a comme but élaborer un glossaire socioterminologique de lřactivité céramique développée dans le quartier du Paracuri (Belém/Pa), grand pôle producteur de poteries faites à la main, dřaprès la délimitation de huit champ sémantique : extraction dřargile, préparation de la matière première, formatage de la pièce, traitement thermique, la finition, lřémaillure, la décoration et la commercialisation. Pour cela, on utilisera le discours oral des socioprofessionnels impliqués dans cette activité, tels que : barreiros, artisans, potiers et les intermédiaires. Cette recherche fait partie du projet Atlas Géo-sociolinguistique du Pará (ALIPA) qui, parmi dřautres, a contemplé lřétude du lexique de spécialité, à travers de lřélaboration des glossaires socioterminologiques. MOTS-CLES : Socioterminologie, Terminologie, Culturel, Glossaire socioterminologique. CONSIDERAÇÕES INICIAIS A língua é uma instituição que funciona no âmbito social e cultural em que é utilizada. Neste sentido, uma análise linguística não pode descrevê-la entendendo-a como um fenômeno estático que não sofre pressões socioculturais. Essas pressões movimentam a língua, cuja


37 mudança é bem mais perceptível no léxico, que, dada a sua amplitude, suscita distintas abordagens teóricas, tais como: a da Lexicografia (que analisa a significação das palavras, com vistas à elaboração de dicionários, verdadeiros tesouros lexicais), a da Lexicologia (que estuda a palavra, a categorização lexical e a estruturação do léxico), a da Terminologia (que se ocupa do léxico especializado, isto é, um subconjunto do léxico de uma língua e a da Socioterminologia (que estuda a variação linguística e sociocultural do léxico de especialidade. O trabalho aqui apresentado insere-se na perspectiva da Socioterminologia e da Terminologia Cultural, uma vez que constitui uma descrição linguística e sociocultural do léxico especializado corrente na atividade de produção da cerâmica artesanal, com vistas à elaboração de um glossário socioterminológico do artesanato em cerâmica no distrito de Icoaraci (Belém/PA). A elaboração do supracitado glossário justifica-se pelo fato de o artesanato em cerâmica, no distrito de Icoaraci, ser bastante representativo em termos de comércio, já que mantém o sustento de dezenas de família, e de cultura amazônica; o fato de não existirem sob a perspectiva linguística, que seja do nosso conhecimento, trabalhos que tenham proposto a organização e a sistematização do léxico especializado do artesanato cerâmico; pela valorização dos artesãos como profissionais aptos ao mercado de trabalho; pela contribuição a estes profissionais, bem como aos iniciantes nessa atividade, já que passa de geração para geração; pelo desenvolvimento social e econômico de Icoaraci e pelo incentivo à pesquisa voltada para a descrição e análise do português falado na Amazônia. 1. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O LÉXICO O léxico das línguas vivas usadas pelas sociedades atuais sofre acelerado processo de expansão, devido ao fato de ser o movimento das ciências e das tecnologias intenso, progressivo, dinâmico e, por isso, responsável pela ampliação do repertório de signo lexicais dessas línguas. Assim, o léxico é o único domínio da língua que constitui um sistema aberto, se diferenciando dos domínios morfológico, fonológico e sintático, considerados sistemas linguísticos fechados. Para Oliveira e Isquerdo (2001, p. 9), o léxico: representa a janela através da qual uma comunidade pode ver o mundo, uma vez que esse nível da língua é o que mais deixa transparecer os valores, as crenças, os hábitos e costumes de uma comunidade, como também, as inovações tecnológicas, transformações sócio-econômicas e políticas ocorridas numa sociedade.


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A partir do que dizem as referidas autoras, podemos depreender que o léxico é a primeira instância de codificação e representação do universo. Dentro desse entendimento, Vilela (1995, p. 13) explica que o léxico pode ser visto a partir de duas perspectivas: a cognitivo-representativa, em que o léxico é defendido como a codificação da realidade extralinguística interiorizada no saber de uma dada comunidade linguística, e a comunicativa, em que o léxico é posto como um conjunto de palavras que permite a comunicação entre os membros de uma comunidade linguística. Nessas duas perspectivas, vê-se a codificação de um saber partilhado. Assim, cabe fazer alusão à distinção entre léxico comum e léxico de especialidade, sendo aquele referente à língua comum e este relativo à língua especializada. Os domínios de ambos os léxicos se entrecruzam, haja vista Ŗque cresce o número de sentidos terminológicos nos verbetes da lexicografia comum.ŗ (KRIEGER, 2000, p. 217). Claudine Normand, citado por Krieger, na mesma obra citada, explica que o léxico científico: tomado na comunicação, comporta-se como qualquer outro léxico: difusão, empréstimos, analogias intervém e são acompanhadas de mudanças de sentido, a sinonímia, e a polissemia persistem, ligadas à atividade científica ela mesma; em todos os casos observa-se um trabalho constante de reformulação.

Dessa forma, observa-se que o léxico, de modo geral, resulta de processos linguísticos os quais são responsáveis pela constante renovação do repertório lexical de uma determinada língua. Este trabalho toma para si as unidades lexicais especializadas que compõem o léxico especializado corrente no artesanato cerâmico em Icoaraci, descrevendo-as a partir de seus contextos reais de uso, o que significa a consideração da variação terminológica, objeto de estudo da Socioterminologia.

2. A SOCIOTERMINOLOGIA

A primeira manifestação no sentido de estudar os termos técnico-científicos surgiu no século XX por meio do engenheiro austríaco Eugen Wüster, que introduziu a disciplina Terminologia1 na Universidade de Viena. Wüster preocupava-se com a padronização do uso

1

No sentido de conjunto de termos, terminologia é grafada com Ŗtŗ minúsculo. Já no sentido de campo de estudo, é grafada com ŖTŗ maiúsculo.


39 dos termos técnicos, tendo em vista a univocidade comunicacional no plano internacional. Assim, ele desenvolveu uma série de estudos que proporcionou o surgimento da Teoria Geral da Terminologia, a TGT. Essa teoria caracterizou-se, sobretudo, pelas orientações prescritivas que norteavam o estudo das terminologias, as quais desconsideravam o real funcionamento da linguagem, sendo os termos entendidos como Ŗrótulos e etiquetas com os quais conscientemente, enominam-se os resultados das ciências e das técnicas, de modo a evitar a polissemia e as ambigüidades do léxico comum.ŗ (KRIEGER, 2000, p. 216) Contudo, Alain Rey, na década de 1980, expressa um pensamento fundamental que significou a primeira postura de divergência à TGT, provocando o redirecionamento dos estudos terminológicos. Ele explicou que Ŗna origem das reflexões sobre o nome e a denominação, base da Terminologia, encontra-se toda a reflexão sobre a linguagem e o sentido.ŗ (REY, 1979, p. 3 apud KRIEGER & FINATTO, 2004, p. 34). Esse pensamento funcionou como ponto de partida para novas abordagens teóricas como a Socioterminologia, que tem como precursor François Gaudin, o qual afirmou: no mesmo movimento que conduziu à linguística estrutural à sociolinguística, uma Socioterminologia pode levar em conta a realidade do funcionamento da linguagem e restituir toda sua dimensão social às práticas linguageiras concernidas.ř (GAUDIN, 1993 apud Krieger & FINATTO, 2004, p. 34-35)

Neste sentido, os estudos terminológicos devem partir do contexto de produção onde os temos emergem, o que significou definir a variação terminológica nas comunicações especializadas como objeto de estudo da Socioterminologia. Nas palavras de Faulstich (1995), a Socioterminologia é Ŗa disciplina que se ocupa da identificação das variantes linguísticas dos termos em diferentes tipos de situação de uso de língua.ŗ

3. TERMINOLOGIA CULTURAL A Terminologia Cultural é uma teoria que converge com a Socioterminologia, uma vez que se situa entre os estudos que emergem em sentido oposto a Terminologia Clássica. Tem por objetivo principal entender a apropriação do conhecimento e das tecnologias, para a qual a percepção cultural tem grande importância. Dentro dessa perspectiva, os termos são


40 entendidos como Ŗproduits langagiers culturellement intégrès1.ŗ (DIKI-KIDIRI, 2000, p. 27). Em outras palavras: A Terminologia Cultural (...) demonstra que a percepção dos termos pelos membros de uma comunidade está ligada a fatores de ordem histórica e cultural (RODRIGUES, 2010, p. 31)

Assim, a cultura, entendida como Ŗel conjunto de las experiencias vividas, producciones realizadas, y conocimientos generados por una comunidad humana que vive en un mismo espacio, a un mismo tiempo 2.ŗ (DIKI-KIDIRI, 2002, p. 7), é o lugar das reflexões acerca das terminologias, uma vez que a visão de mundo da comunidade cultural determina o modo como ela mesma classifica, ordena e nomeia o que percebe ou concebe, incluindo a sua identidade. 4. METODOLOGIA Nesta pesquisa prevalece o ponto de vista descritivo, uma vez que apreenderemos a terminologia que nós propomos a analisar no seio do contexto social e cultural em que os termos emergem. Assim, entendemos que as comunicações realizadas pelos membros da comunidade comportam a variação terminológica, o que proporciona o abandono do ideal de univocidade, cuja base é o princípio da monossemia terminológica. Este trabalho desenvolverse-á mediante a realização das seguintes etapas: a) Contado com órgãos como o SEBRAE; b) Visita aos centros de referência do comércio de artesanato em cerâmica em Icoaraci, tais como a COARTI (Cooperativa dos Artesãos de Icoaraci), a SOAMI (Sociedade dos amigos de Icoaraci) e a COSAPA (Conselho Superior do artesão do Pará); c) Visita à comunidade linguística, para reconhecimento de sua estrutura e dos socioprofissionais que dela fazem parte; d) Seleção dos participantes da pesquisa, para a composição da amostra; e) Observação participante3 e aplicação do Questionário Terminológico; f) Registro iconográfico das etapas de produção da cerâmica e dos materiais nele envolvidos; g) Transcrição e tratamento dos dados coletados. CONSIDERAÇÕES FINAIS

1

Produtos culturalmente incorporados. Conjunto das experiências vividas, produções realizadas, e conhecimentos gerados por uma comunidade humana que vive em um mesmo espaço, a um mesmo tempo. 3 É um método de pesquisa de campo da Etnografia, que foi concebida por Malinowski a partir de 1922 (data de publicação de sua primeira obra ŖOs Argonautas do Pacífico Ocidental). (COSTA, 2009, p. 35) 2


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No trabalho de análise de línguas naturais, a consideração da dimensão sociocultural é o que garante a descrição dos fatos linguísticos, tais como acontecem na linguagem diária dos indivíduos que as utilizam. Esperamos neste trabalho efetivar uma pesquisa que vá buscar e analisar o seu objeto de estudo, a terminologia do artesanato em cerâmica, no seu lugar de origem e de vivência, para que possamos chegar às unidades terminológicas que vão compor o Glossário Socioterminológico do Artesanato em Cerâmica no Distrito de Icoaraci (Belém/PA). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS COSTA, Celiane Sousa. Glossário Terminológico da Cultura do cacau em Medicilândia/PA. Dissertação (Mestrado) Ŕ Instituto de Letras e Comunicação, Universidade Federal do Pará, 2009. DIKI-KIDIRI, Marcel. Une approche culturelle de la terminologie. Cahiers Du Rifal - Réseau international francophonedřaménagement linguistique. Jun. de 2000. Vol. 21 (Terminologie et diversité culturelle). DIKI-KIDIRI, Marcel. La Terminología Cultural: fundamento de una verdadera localización. VIII Simposio Iberoamericano de Terminología: La Terminología, entre la globalización y la localización, Cartagena, Colômbia, 28-31 de outubro de 2002. Disponível em: <http://www.riterm.net/revista>. Acesso em 02/07/2010. FAULSTICH, Enilde. Socioterminologia: mais que um método de pesquisa uma disciplina. Ciência da Informação, Brasília, v. 24, n. 3, 1995. ISQUERDO, Aparecida Negri; OLIVEIRA, Ana Maria Pinto Pires de. As ciências do Léxico: Lexicologia, Lexicografia, Terminologia. Campo Grande, MS: UFMS, 2001. KRIEGER, da Graça. Terminologia Revisitada. Delta, São Paulo, v. 16, n. 2, 2000. KRIEGER, Maria da Graça; FINATTO, Maria José Bocorny. Introdução à Terminologia: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2004. RODRIGUES, Elias Maurício da Silva Rodrigues. Glossário Socioterminológico da Cultura da Farinha. Dissertação (Mestrado) Ŕ Instituto de Letras e Comunicação, Universidade Federal do Pará, 2010. VILELA, Mário. Ensino da Língua portuguesa: léxico e gramática. Coimbra, Portugal: ALMEDINA, 1995. RELAÇÕES ENTRE A PROSA ROSIANA E A CRÍTICA JORNALÍSTICA: FRANKLIN DE OLIVEIRA, WILSON MARTINS E ÁLVARO LINS Elizandra Fernandes REIS (Mestranda/UFPA) Orientador(a): Prof. Dr. Sílvio Augusto de O. HOLANDA (UFPA) RESUMO: A crítica literária era publicada, antes da década de 60, em jornais e revistas, nos quais era denominada como crítica de rodapé. Essa nomenclatura surgiu em virtude de serem publicadas em colunas jornalísticas, divulgadas na parte inferior das páginas de periódicos, tendo como características a erudição e a eloquência sobressaíam em tom subjetivo, marcadas por digressões e textos longos. Porém, posteriormente tais publicações passaram para o formato livro. Neste cenário da crítica literária, são publicadas obras como: Sagarana (1946),


42 Corpo de Baile (1956) e Grande Sertão: Veredas (1956) de Guimarães Rosa, livros que, em virtude da linguagem e do tratamento do tema regionalista, foram alvo de várias interpretações por parte de articulistas que publicavam em jornais da época. Levando em conta esse contexto, pretende-se analisar, neste trabalho, a recepção destas obras literárias por parte de críticos literários, no âmbito da crítica de rodapé, em obras como as seguintes: Mortos de sobrecasaca (1963), de Álvaro Lins, Fantasia Exata (1959) e Viola d‘amore (1965), de Franklin de Oliveira, História de Inteligência Brasileira (1978), de Wilson Martins, entre outras. Além disso, buscando refletir sobre a recepção por parte da crítica literária, ter-se-á a Estética da recepção, formulada por Hans Robert Jauss, uma vez que, embora a crítica possua instrumentos teóricos, comparativos, históricos e sociais, o crítico que a realiza é primeiramente um leitor e passará também pelas etapas da recepção. Desse modo, compreender certas particularidades de um veículo de análise literária proporciona entrar em contato com um processo dialético de compreensão, interpretação e aplicação de uma determinada produção literária. E, assim, proporcionar, a academia e ao público em geral, uma pesquisa que aborde aspectos sociais, culturais, históricos e políticos que permeiam a crítica literária, em particular, às produções rosianas, em uma determinada época, mas que serve de base para as mais variadas leituras, atualmente. PALAVRAS-CHAVE: Guimarães Rosa. Crítica jornalística. Estética da recepção.

RELATIONSHIP BETWEEN PROSE ROSIANA AND THE CRITICAL JOURNALISM: FRANKLIN DE OLIVEIRA, WILSON MARTINS AND ÁLVARO LINS ABSTRACT: The literary critic was published before the 60's, in newspapers and magazines, in which it was called the critical footnotes. This nomenclature arose due to be published in newspaper columns, published at the bottom of the pages of journals, with the characteristics of scholarship and excelled in eloquence subjective tone, marked by digressions and long texts. However, these authors have subsequently for the book format. In this scenario of literary criticism published works are as Sagarana (1946), Corpo de Baile (1956) and Grande Sertão: Veredas (1956), of Guimarães Rosa, books which, because of language and treatment of the subject regionalist, were targeted various interpretations by writers who published in newspapers. Given this context, we intend to examine in this work, the reception of these literary works by literary critics, within the critical footnotes, in works such as the following: Mortos de sobrecasaca (1963), Álvaro Lins, Fantasia Exata (1959) and Viola d‘amore (1965), of Franklin de Oliveira, História de Inteligência Brasileira (1978), of Wilson Martins, among others. Moreover, seeking to reflect on the reception by the literary critic, will have the aesthetics of reception, made by Hans Robert Jauss, since, although the criticism has theoretical tools, comparative, historical and social critic that place is primarily a reader and will also by the stages of reception. Thus, understanding certain features of a vehicle of literary analysis provides contact a dialectical process of understanding, interpretation and application of a certain literary production. And so, provide academia and the general public, a survey that addresses the social, cultural, historical and political factors that permeate the literary criticism, in particular, to rosianas' productions in a season, but that is the basis for the most varied readings today. KEY-WORDS: Guimarães Rosa, Journalistic criticism, Aesthetics of reception.


43 O presente artigo é parte da pesquisa intitulada ŖRelações entre a prosa rosiana e a crítica jornalística: Franklin de Oliveira, Wilson Martins e Álvaro Linsŗ, tendo como principal objetivo se faze conhecer como projeto de pesquisa em fase de desenvolvimento que guarda em si certas peculiaridades que o torna disseminador de conhecimento. Nesse breve artigo, longe se tentar problematizar as peculiaridades da crítica literária e artística, em geral, volta-se o olhar para um modelo de crítica que já surge no século XIX com Charles Augustin Sainte-Beuve (1804 Ŕ1896) e perdura até meados do século XX, a crítica jornalística, a qual sobrevive hoje em razão de serem transferidas dos jornais para os livros. Todavia, há de salientar-se que de Saint-Beuve até outros críticos-jornalistas, como Álvaro Lins no Brasil, não há como deixar de perceber a ausência de homogeneidade nesse fazer da crítica, que parte de um biografismo ao campo em que a obra literária se apresenta como foco de discussões que perpassam as humanidades em geral. A crítica humanística, praticada pelos jornalistas, em primeiros meados do século XX, proporciona ler a obra de arte literária sob vários prismas, sociológico, psicológico, filosófico etc. Mas como se constituíram dessa maneira? Talvez o motivo esteja presente na própria formação desses críticos que eram jornalistas, sociólogos, juristas, políticos etc, homens que conservam em sua natureza o livre exercício de intelectualidade, porquanto não era difícil de constatar um crítico jornalista em uma semana escrever sobre política, noutra sobre geografia e em outra sobre arte ou literatura. O bom exemplo desse fato é o crítico literário, jornalista, professor e advogado, Álvaro Lins (1912Ŕ1970), pois se em um ano publica o conjunto de ensaio sobre sociologia e política, A glória de Cesar e o punhal de Brutus (1962), em outro publica o conjunto de ensaios sobre crítica literária Mortos de sobrecasaca (1963). Outro exemplo, também citado no corpo e no título dessa pesquisa, é do crítico literário, magistrado, jornalista, historiador, Wilson Martins (1921Ŕ2010), o qual nos sete volumes intitulados História da inteligência brasileira (1978), apresenta um misto de historiografia, crítica literária e análise sociológica que reflete sobre um Brasil que vai de 1550 a 1960. O último a ser citado participa também desse grupo de intelectuais os quais cooperam para construção da imagem da crítica literária existente no Brasil antes da década de 60, durante a qual se tem a propagação do new criticism promulgada pelo teórico e crítico Afrânio Coutinho e pelas academias de letras que se fizeram presente a partir dessa década no Brasil; Franklin de Oliveira (1916Ŕ2000), crítico literário e jornalista, com obras que vão desde A fantasia exata (1959), ensaio de crítica literária, artística pictórica e musical à Morte da memória nacional (1967), ao conjunto de


44 ensaios historiográficos que refletem sobre aspectos culturais, sociais e políticos do Brasil. O que estes três críticos têm em comum? Todos fazem parte de uma história da impressa que proporciona verificar um vínculo muito próximo entre o jornalismo e a literatura, pois o jornalismo, por meio do exercício da crítica literária, permite uma análise e reflexão sobre o trabalho de recepção das obras literárias realizado por leitores que não são nem leitores comuns, nem críticos-teóricos, são críticos jornalistas que possuem a tarefa de levar suas leituras interpretativas de obras literárias a leitores que nunca as leram e influenciar um número grande de pessoas a se lançarem ou não na leitura de tais obras, proporcionando um refinamento dos gostos. Porém, nem sempre era fácil escrever crítica literária sobre obras com temáticas e estilos que ora ou outra se repetiam, de escritores que tendiam a serem sublevados e outros quase esquecidos, fazendo da crítica jornalística um monótono campo ou de apadrinhamento ou de disputas literárias. Além disso, tornando o exercício da crítica nos jornais verdadeiros campos ideológicos, gerando rivalidades entre opiniões. O escritor Guimarães Rosa ao escrever as suas obras também as teve circulando por meio das críticas em jornais, que se apresentavam ora severas, ora exaltantes. O primeiro desses escritos críticos foi o do crítico Álvaro Lins, que ao analisar o conjunto de contos rosianos intitulados Sagarana (1946), em Uma grande estreia, publicado primeiramente no jornal Correio da manhã em 12 de abril de 1946, encontrou nestes a razão de se ter Ŗmotivo para que se mantenha a fé nas faculdades criadoras de sua época intelectualŗ (LINS, 1963, p. 258). Nesse ínterim, há de se levar em consideração que, como jornalistas acostumados a verem desvendadas as vidas dos mais excêntricos e eminentes homens públicos, era quase impossível desvincular a biografia de um autor, como Guimarães Rosa, da sua obra, pois enquanto médico conviveu com a difícil vida do homem sertanejo, percorrendo estradas e lugares que parecem ser utilizados como objetos vindos da memória para prática da mimesis manifesta em Sagarana. Por essa razão, ainda guardando marcas de um beuvenismo, Lins afirma, Sabe-se que o Sr. Guimarães Rosa nasceu e viveu durante muitos anos nessa região, inclusive como médico da roça e pelo seu livro verificamos com que intensidade de sentimento e imaginação ele se fundiu com o espírito da sua terra, com que sensível poder de comunicação ele trouxe para dentro de si mesmo o mundo de gentes, de bichos, de natureza física, ao qual se ligou profundamente na juventude. (LINS, 1963, p. 259-260)

Todavia, não é, simplesmente, dizer que o trabalho criador presente na obra de Guimarães Rosa se equivale as suas vivências, isso seria segundo esse crítico equipara-lo ao


45 escritor de mera representação da realidade, muitas vezes apresentada de forma picaresca ou meramente descritiva, mas sim que o autor de Sagarana faria desta obra uma representação do nacional com expressão universal, no qual o mundo bárbaro do interior foi enriquecido pelo ato representação estética presente em cada um dos nove contos. Não somente isso, Álvaro Lins introduziu a discussão sobre a possibilidade de tais contos serem antes de tudo rapsódias, se distanciando de fábulas, porquanto os animais que percorrem esse livro não possuem características humanas à maneira do universo fabulístico com plano de fundo moralista, mas os bois agem e falam como se realmente pudessem fazer se assim os fosse permitido, uma vez que Ŗmovimentos sentimentais do Sr. Guimarães Rosa aproveitam ainda mais aos bichos do que aos homensŗ (LINS, 1963, p. 260). Todavia, até que ponto essa crítica pode hoje ser confirmada? Vejamos que no decorrer desta leitura não há nenhuma recorrência a uma fortuna crítica ou a uma teoria que possa legitimar essa interpretação, afinal essa foi a pioneira a tratar sobre Sagarana. Todavia, haveria mesmo, em Sagarana, uma espécie de filosofia bovina, manifesta no oitavo conto ŖConversa de boisŗ, em virtude dos diálogos entre bois que questionam a grandeza e o benefício do pensar como homem? Ou haveria antes subscrito uma velada crítica do escritor aos malefícios da racionalidade humana, ao ponto de mostrar ao seu leitor que embora a racionalidade transforme e coopere com a natureza nesse movimento de criar novas formas e obras, também essa mesma racionalidade colabora na construção de fontes de tristezas, legando a esse pensar um estado confuso e contraditório? Nesse ponto seriam fábulas, pois guardaria em si um fundo moralístico, levando o homem a refletir sobre sua própria humanidade, questionada por animais. O segundo crítico nos leva pensar sobre até que ponto o autor pode se comprometer com sua obra? Em que sentido ela é revolucionaria e trás no seu interior reflexões filosóficas que tratam sobre ser humano de forma universal? Qual o limite do efeito de uma obra literária. Franklin de Oliveira já recorrendo a um número cada vez maior de teorias filosóficas e até mesmo literárias, como o estruturalismo e a estilística, e já assumindo um posicionamento que considera a obra literária como signo estético transitivo, contempla em suas análises o efeito da obra literária e a capacidade desta de ser renovar durante épocas, por meio dos leitores e das leituras que são feitas destas, porquanto [A]obra literária não deve ser considerada como obra de arte autárquica, no sentido de que dispense o receptor, mas como signo estético transitivo ŕ ela se endereça ao leitor. Esse leitor ŕ e aqui vai uma tipologia dos receptores ŕ tanto pode ser o de senso comum, melhor definido como puro contempla-


46 dor, como o leitor intelectualizado, isto é, capaz de reprodução simbólica, ou seja, o leitor que é potencialmente autor. Neste caso, a recepção da obra literária age seminalmente, sendo capaz, inclusive, de provocar desvios de norma, nos casos em que a obra recepcionada responde às exigências do desenvolvimento literário. (OLIVEIRA, 1983, p. 58-59)

Porém sem deixar de lado, o biografismo Franklin de Oliveira afirma que o escritor Guimarães Rosa imolou sua própria vida em favor de sua arte, não que se anulasse em favor de sua obra, mas que no interior das produções rosianas há muito de seu autor, sua preocupação política e humana. Não é por acaso que ao fazer referência a crônica ŖMal humor de Wotamŗ, menciona que esta surgiu a partir do horror que seu o escritor possuía do nazismo. Além disso, a visão excêntrica do escritor Guimarães Rosa é confirmada quando o Franklin de Oliveira o expõe como um homem que enfrenta a difícil tarefa de conviver, porquanto o descreve como alguém adepto da solidão, que não se priva somente da companhia de amigos e familiares,

O homem que se permitia vir a público estava no escritor. O outro só se confiava ao responsável afeto, às amizades preexistentes. Não era um coração ignorante. Sabia as coisas e as pessoas. Cordialíssimo como homem que tinha de pagar tributo e imposto ao inevitável conviver na labuta ordinária do cotidiano, ele, que era um ser necessitado de calor humano, e para quem a afeição era o bem soberano, evadia-se, ileso e arisco, quando os que dele se aproximavam o faziam tentando a indiscreta escalada. (OLIVEIRA, 1986, p. 485)

Todavia, é possível conferir, a essa aparência de um escritor que buscava a solidão ou apenas a companhia de íntimos, as qualidades e diferenciais da produção literária de Guimarães Rosa? Ao escrever Sagarana, o autor afirma ŖEntão, passei horas de dias, fechado no quarto, cantando cantigas sertanejas, dialogando com vaqueiros de velhas lembranças, Ŗrevendoŗ paisagens da minha terra, e aboiando para um gado imensoŗ (ROSA, 1984, p.8). Ao se ler a reflexão do próprio autor que sua obra nasceu de suas experiências e de suas memórias, é possível concordar com Franklin de Oliveira. Portanto, este crítico, mesclando ainda mais os vários meios de se ler a obra literária, abre margem para o biografismo e, além disso, discute o processo estilístico, estético e filosófico das obras rosianas. Porém até que ponto pode-se confirmar essa perspectiva santificada do autor e de sua obra? Até hoje no interior das críticas publicadas em jornais e revistas a figura do autor de literatura é envolta a uma ambientação de mistério e excentricidade, como apresenta Lajolo e Zilbermam, Em uma primeira reflexão, pode-se considerar original a identidade que o


47 jornal constrói para o artista. A clave do exotismo costuma surpreender e agradar leitores, talvez cada vez mais anestesiados diante do que não seja sublinhado e apregoado como insólito. (LAJOLO E ZILBERMAM, 2009, p. 147)

Franklin de Oliveira esbanjava em seus ensaios de uma linguagem imersa em metáforas e elementos poéticos que faziam de seus ensaios verdadeiras poesias sobre o ato da escrita literária, por isso, enquanto amigo e admirador de Guimarães Rosa, é inevitável que, embora fosse conhecedor da teoria, Franklin de Oliveira esbanjasse em elogios fatídicos ao então autor da revolução rosiana. Mas como deixar de entrever marcas de pessoalismo em tais críticas de amigos, apreciadores e leitores, que por sua aproximação ao escritor Guimarães Rosa, não interpretariam o conjunto das obras rosianas como menor no cenário das produções da terceira fase do modernismo de 45. Porém, é em Wilson Martins que certos aspectos da crítica negativa serão manifestos, a feição da crítica que tende a diminuir o grau de inovação de determinadas obras. Wilson Martins defende que essa superelevação da obra rosiana fez cair no esquecimento autores tão bons como Guimarães Rosa e que seu grau de inovação não é se não uma reprodução de modelos até então já existentes, de Rui Barbosa, de Coelho Neto e de Euclides da Cunha. A concepção da literatura como obra de arte não apenas da língua, mas também da linguagem, é a costela de Rui Barbosa que vai reaparecer de repente na obra de João Guimarães Rosa, conforme as agudas observações de Autran Dourado: ŖHá em Guimarães Rosa [...] um lado Rui Barbosa, um lado Euclides da Cunha, um lado Coelho Neto, um lado Afonso Arinos de Pelo Sertão, um tipo de linguagem que procuro satirizar, um tipo de linguagem que está Ŗnas vascas da morteŗ, como diz claramente o título do bloco II de O Risco do Bordado. (MARTINS, 1978, p. 251)

Porém, como compreender o valor do estudo de tais críticas que, inevitavelmente, são marcadas por uma pessoalidade dos críticos e por contraditórias interpretações? Jauss em seu artigo a História da literatura como provocação a teoria literária (1967), por meio da discussão sobre a recepção da obra literária, apresenta conceitos que podem ser utilizados para legitimar o estudo da crítica jornalística. Um desses vai se pautar pela noção de implicação histórica que confere à obra literária a capacidade de ser enriquecida por meio das mais variadas leituras realizadas no decorrer dos tempos. Interpretações que dialogam entre si, possibilitando que se tenha um leque de comentários, conforme a teoria utilizada e a época em que o leitor e crítico se encontre, contribuindo para construção de sua fortuna crítica e, consequentemente, de seu valor estético, porquanto


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A implicação histórica manifesta-se na possibilidade de, numa cadeia de recepções, a compreensão dos primeiros leitores ter continuidade e enriquecer-se de geração em geração, decidindo, assim, o próprio significado histórico de uma obra e tornando visível sua qualidade estética. (JAUSS, 1994, p. 23)

Também nas interpretações realizadas pelos jornalistas pode ser observada não uma visão de um todo das obras rosianas, mas como cada obra foi recebida no momento de sua publicação. Como exemplo, no artigo de Álvaro Lins ver-se a leitura, de um jornalista e crítico, apenas sobre obra Sagarana, no momento de sua publicação, podendo ser visualizados: o primeiro impacto dessa produção, as primeiras impressões possibilitadas por meio de sua leitura e, assim, percebendo-se qual foi a evolução de seu escritor no decorrer das outras publicações. Será que o sucesso se legitimou do decorrer dos anos? Será que o conjunto de suas produções conservou a mesma receptividade pela crítica? Até que ponto as leituras que foram feitas posteriormente negam ou confirmam essa primeira leitura? Levando essas questões em consideração, torna-se possível traçar o que seria então denominado de distância estética, uma vez que essa é [A]quela que medeia entre o horizonte de expectativa preexistente e a aparição de uma obra nova ŕ cuja acolhida, dando-se por intermédio da negação de experiências conhecidas ou da conscientização de outras, jamais expressas, pode ter por conseqüência uma Ŗmudança de horizonteŗ ŕ, tal distância estética deixa-se objetivar historicamente no espectro das reações do público e do juízo da crítica (sucesso espontâneo, rejeição ou choque, casos isolados de aprovação, compreensão gradual ou tardia). (JAUSS, 1994, p. 31)

Além disso, essa procura pelas primeiras leituras realizadas da obra literária coopera para determinação de seu valor estático, pois esse será conferindo a partir das reações dos primeiros leitores e de sua determinação e valorização no círculo literário, isto é, como outros escritores, revistas literárias, jornais, academias, críticos e intelectuais da época de sua publicação a receberam, contribuindo para seu processo de canonização. Nesse ponto, o olhar para crítica jornalística é justamente buscar esse valor que se assenta na seguinte determinação, A maneira pela qual uma obra literária, no momento histórico de sua aparição, atende, supera, decepciona ou contraria as expectativas de seu público inicial oferece-nos claramente um critério para a determinação de seu valor estético. (JAUSS, 1994, p. 31)

Não se pode deixar de discutir, para afirmação de é importante a leitura das obras


49 rosiana realizadas pela crítica jornalística, sobre o quão necessárias são para que se tenha uma interpretação capaz de dialogar com outras épocas, sem basear-se em uma perspectiva historiográfica fechada em um determinado tempo histórico, mas que possa buscar em outros momentos respostas para questões apresentadas pela obra literária que uma determinada crítica ficou devendo ou respondeu de forma não mais satisfatória. Nesse sentido, entende-se que As citações não constituem apenas um apelo a uma autoridade com o propósito único de sancionar determinado passo no curso da reflexão científica. Elas podem também retomar uma questão antiga visando demonstrar que uma resposta já tornada clássica não mais se revela satisfatória, que essa própria resposta fez-se novamente histórica, demandando de nós uma renovação da pergunta e de sua solução. (JAUSS, 1994, p. 9)

Desse modo, a retomada da questão antiga apresentada pela obra literária possibilita, nesse ínterim de diálogos críticos pautados nas mais diversas interpretações permitidas pela própria capacidade da uma literária de apresentar um número infinito de interpretações que não dependem do estado ou da intenção de seu leitor, uma fusão de horizontes de expectativas, porquanto O Ŗjuízo dos séculosŗ acerca de uma obra literária é mais do que apenas Ŗo juízo acumulado de outros leitores, críticos, espectadores e até mesmo professoresŗ; ele é o desdobramento de um potencial de sentido virtualmente presente na obra, historicamente atualizado em sua recepção e concretizado na história do efeito, potencial este que se descortina ao juízo que compreende na medida em que, no encontro com a tradição, ele realize a Ŗfusão dos horizontesŗ de forma controlada. (JAUSS, 1994, p. 37)

Por fim, essa prática de buscar leituras interpretativas distantes temporalmente das que são realizadas na atualidade não contribuem apenas para uma perspectiva historiográfica da produção da crítica literária dos primeiros meados do século XIX, mas também possibilita a abertura de novas possibilidades para experiências futuras por meio da procura por leituras não realizadas e por questões que carecem de amplitude, assim compreende-se que O horizonte de expectativa da literatura distingue-se daquele da práxis histórica pelo fato de não apenas conservar as experiências vividas, mas também antecipar possibilidades não concretizadas, expandir o espaço limitado do comportamento social rumo a novos desejos, pretensões e objetivos, abrindo, assim, novos caminhos para a experiência futura. (JAUSS, 1994, p. 52)

Assim, a presente pesquisa ŖRelações entre a prosa rosiana e a crítica jornalística:


50 Franklin de Oliveira, Wilson Martins e Álvaro Linsŗ, não é tão somente uma tentativa de reconstruir e construir uma fortuna crítica das obras de Guimarães Rosa, é algo a mais, tornase: um deslumbrar do valor estético da obra rosiana, a possibilidade de retomar questões já sancionadas e uma abertura de caminhos para novas experiências. Além disso, as reflexões que estão sendo feitas no decorrer desta pesquisa constitui-se em uma verificação de que, assim como fizeram os críticos jornalistas, é possível mesclar métodos de análises que não se contraponham para a interpretação das obras literárias e buscar a valorização de outras formas de leituras literárias, alcançadas em disciplinas não encontradas, necessariamente, no campo da teoria literária, como filosóficas, psicológicas, históricas, etc, que respondam as perguntas oferecidas pelo conjunto de obras de Guimarães Rosa. REFERÊNCIAS JAUSS, Hans Robert et al. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994. 78 p. LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Das tábuas da lei à tela do computador: leitura em seus discursos. 1. ed. São Paulo: Àtica, 2009. 176 p. LINS, Álvaro. Os mortos de sobrecasaca: ensaios e estudos. Rio Janeiro: Civilização Brasileira, 1963. 460 p. ____________. A glória de Cesar e o punhal de Brutus: ideais políticas, situações históricas, questões do nosso tempo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962. 322 p MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira. São Paulo: Cultrix; Ed. Universidade de São Paulo, 1978. v. 7, 597 p OLIVEIRA, Franklin de. Guimarães Rosa. In: COUTINHO, Afrânio (dir.). A Literatura no Brasil. Rio de Janeiro: J. Olympio; Niterói: UFF, 1986. v. 5, p. 475-526. ____________________. A fantasia exata: Ensaios de literatura e música. Rio de Janeiro: Zahar, 1959. 313 p. ____________________. Morte da memória nacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. 236 p. ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Universal, 1946. 333 p.

O LEITOR-AUTOR EM FANFICTIONS – HISTÓRIAS CRIADAS POR FÃS Fabíola do Socorro Figueiredo dos REIS (UFPA/CAPES) Orientador(a): Profª. Drª. Lilia Silvestre CHAVES (UFPA) RESUMO: O presente estudo tem como foco a presença do leitor-autor em histórias criadas e

publicadas na Internet, um autor que foi uma vez leitor de uma história original e que assume a função de continuar a história (do ponto em que a deixou seu primeiro criador) ou de modificá-la de forma a agradar a si mesmo e/ou a outros leitores eventuais, pois, conforme afirmou uma vez Roland Barthes (2004), o escritor sempre será um imitador de escritos anteriores à sua época, mas nunca original. A partir de análises das histórias criadas por fãsautores (como são chamados nessa pesquisa os autores que se dedicam à escrita desse tipo de


51 história), percebe-se então a modificação do conceito de autoria na atualidade, pois muitas vezes o autor perde seu posto ao manter contato com alguma forma de tecnologia da informação Ŕ e lida agora com gêneros chamados híbridos: textos que não são puros, que não possuem uma característica apenas para poderem ser definidos pelos manuais comuns. Desta forma é difícil definir o que é, afinal, o autor na era dos gêneros digitais. Num momento em que a cada dia as pessoas do mundo inteiro aumentam seu número de horas navegando, os gêneros digitais representam uma nova relação entre ser humano e instrumento semiótico, com diversos aspectos a serem observados. PALAVRAS-CHAVE: fanfiction, leitura, autoria. ABSTRACT: The present study takes as focus the presence of the reader-author in stories created and published on Internet, an author who was once a reader of an original story and who assumes the task of continuing it or modifying it, in order to be please yourself or other eventual readers. According to what it was once affirmed by Roland Barthes (2004), one writer will always be an imitator of previous written to his time, and never original. From some analyses of stories created by fans-authors, there a modification of the concept of authorship in currently days, as long as the original author loses his post while maintaining contact with someone form of technology of the information Ŕ and it deals now with types of texts called hybrids: texts that are not pure, what have not only one characteristic to be able to be defined by the common school manuals. It is difficult to define what is, at last, the author in the era of the digital texts. At a moment in which to each day the persons of the whole world increase the time spent on Internet, the digital texts represent a new relationship between human being and Semiotics, with several aspects to be observed. KEYWORDS: fanfiction, reading, authorship.

1. INTRODUÇÃO O projeto de pesquisa de mestrado intitulado O leitor-autor em fanfictions – histórias criadas por fãs surgiu a partir da monografia de conclusão de curso da graduação em Letras Ŕ que abordava o uso de fanfictions virtuais no campo do letramento. Desta vez, na pósgraduação, a questão não é saber como o fanfiction pode ser uma atividade trabalhada em sala de aula. As reflexões voltam-se agora para a produção escrita e, mais especificamente, para as pesquisas sobre a web no que diz respeito à questão do autor nas publicações virtuais escritas por leitores-fãs ativos, ou seja, aqueles que participam de comunidades cujas atividades giram em torno de um produto Ŕ no sentido usado por Henry Jenkins, em Cultura da Convergência (2009): de um objeto que faz parte de uma corporação de mídia corporativa, tendo como donos produtores e anunciantes. Trata-se de leitores ou espectadores que, depois de lerem um livro ou de verem um filme, desejosos de participar de continuar a história ou mesmo de inventar algum episódio que gostariam de ter visto, decidem ser autores da produção. A questão do fanfiction Ŕ mais especificamente o papel do leitor-autor Ŕ migrou então, nas minhas pesquisas, da sala de aula para os Estudos Literários.


52 A pesquisa encontrou, dessa maneira, espaço no projeto do Mestrado em Estudos Literários da Universidade Federal do Pará Ler e Escrever na era da Internet, sob coordenação das professoras Lilia Silvestre Chaves e Izabel Cristina Soares. A nova versão do projeto, de 2010, tem um abrangente subtítulo: dos gêneros aos e-gêneros: limites e deslimites, pois o projeto avançou de tal forma que abriga diversos objetivos específicos. Um deles, justamente, é o estudo da construção das figuras de autor e de leitor no ciberespaço, trazendo à tona novas conceituações de crítica literária, de estilo e de autoria. O principal objetivo da pesquisa é analisar a figura deste leitor, um fã tão aficionado por uma história já criada (por um autor original registrado como o Ŗdonoŗ da obra), a ponto de querer, por exemplo, prolongar o contato com os personagens. De leitor, o fã que decide Ŗcontinuarŗ uma obra passa a ser autor também, sem perder as características de crítico e de admirador ao mesmo tempo, pois, como no caso da continuação apócrifa de Dom Quixote de Cervantes, muitas vezes são capazes de apontar falhas da história original e corrigi-las posteriormente. Com a aprovação do projeto na seleção para o Mestrado, foi possível então iniciar, sob orientação da professora Lilia Chaves, a escrita da dissertação.

2. HISTÓRICO DOS FANFICTIONS

As ficções criadas por fãs são mais comuns na Internet do que nas publicações em papel, ligadas a editoras. Não se sabe ao certo quando e de que forma esse tipo de ficção em coautoria (independente da vontade do autor original) surgiu, embora Roger Chartier cite o caso registrado, no terceiro capítulo de Inscrever e Apagar (2006), de uma continuação de Dom Quixote de La Mancha, de Cervantes, publicado originalmente em 1605. Essa continuação, chamada Segundo tomo Del Ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha, que contiene su tercera salida; y es la quinta parte de sus aventuras 1 foi idealizada por um editor do século XVII, chamado Alonso Fernandez de Avellaneda, que resolveu continuar as aventuras do cavaleiro medieval. Essa sequência foi composta com base nas últimas páginas da primeira parte da obra, e foi impressa em 1614 em Tarragona. Os críticos, entre eles o próprio Cervantes, admitem que a continuação apócrifa sobre o Dom Quixote foi escrita com interesse e zelo próprios do novo Ŗautorŗ, que encontrou, inclusive, Ŗfalhasŗ na primeira parte (como a do roubo do burrinho de Sancho Pança e o reaparecimento inexplicável dele em um capítulo posterior). Ainda mais interessante é o fato de Cervantes apropriar-se de alguns fatos 1

ŖSegunda parte do Engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha, que contém sua terceira partida, e constitui a quinta parte de suas aventurasŗ (CHARTIER, 2006, p. 110).


53 narrados para encaixá-los no capítulo LIX da segunda parte original de Dom Quixote (Onde se conta o extraordinário caso, que se pode chamar aventura, que aconteceu a Dom Quixote), na cena em que se vê Dom João a ler e a criticar outro capítulo da segunda parte de Dom Quixote1. De acordo com Maria Lúcia Vargas (2005), foi na década de 1970 que surgiram as convenções de fãs (conventions, em inglês), que ficaram mais populares com o lançamento de Guerra nas Estrelas (Star Wars, 1977), escrito e dirigido pelo então cineasta novato George Lucas (na época com 33 anos). Nessas convenções, os admiradores reuniam-se para discutir sobre o filme ou objeto (livros também) em questão, comprar produtos da franquia, ver exibições e apresentar outras histórias escritas por eles mesmos em prosa (fanfictions) ou em quadrinhos (fanzines2). Ali também poderiam receber comentários a respeito dos trabalhos produzidos. Surgiram, então, os chamados fandoms (comunidades de fãs), hoje apontados pelos teóricos sociais, entre eles Henry Jenkins, como grandes centros das organizações midiáticas, pois são os responsáveis pelo sustento das vendas de produtos da indústria cultural. Os fanfictions são publicados hoje na Internet, frequentemente nos websites exclusivos para postagens das histórias em capítulos. Há sites centrados em um fandom em particular, oferecendo uma parte dedicada também aos fanfictions. Nos dois casos as histórias são classificadas por gêneros, como romance, tragédia, suspense ou drama. Considerado por alguns como uma espécie de revanche da escrita sobre o audiovisual (isto é, sobre as adaptações fílmicas das obras realizadas pelo cinema), o fanfiction é um modo de expressão popular por se tratar de uma atividade da qual qualquer um pode participar sem precisar de uma formação ou pagar, o acesso é gratuito. Henry Jenkins (2009) afirma que isto é uma maneira que a cultura criou como forma de reparar os desgastes cometidos em um sistema em que as obras contemporâneos são propriedade das empresas em vez de ser das pessoas, facilitando o acesso. Jenkins nos introduz aos fãs de Harry Potter (personagem principal dos livros de mesmo nome escritos pela inglesa J. K. Rowling), por exemplo, que escrevem suas próprias histórias, enquanto os executivos fazem o possível para impedir e controlar a franquia. Ele afirma ainda que as fanficções conduzem a narrativa a novos patamares, criando um universo que junta partes da história entre filmes (que já são adaptações do livro), quadrinhos, games, websites e animações. 1

Segundo uma fala de Dom Jerônimo: ŖŔ Para que quer Vossa Mercê ler esses disparates, Senhor Dom João, se quem tiver lido a primeira parte da história de Dom Quixote de la Mancha não pode encontrar gosto de ler a segunda?ŗ (CERVANTES, 2006, p. 416). 2 Termo que surgiu da expressão em inglês fan magazines, ou revista de fãs.


54

3. LEITURA E RELEITURAS EM FANFICTIONS No universo dos fanfictions, construir uma história exige mais do que ter uma série, um livro ou um filme favorito. Fazer parte de uma comunidade, de um fandom, é um fator que impulsiona a criação, mas não é o principal. Segundo Henry Jenkins (1992), os fandoms são responsáveis pelo surgimento de grande parte dos gêneros digitais como forma de o leitor manter contato mais próximo com o que aprecia, uma interação que a virtualidade permite ao fã exercer, muito mais do que se fosse na vida real. Vale repetir que, conforme Vargas (2005), os fandoms surgiram muito antes da chegada e expansão da Internet, porém a rede permitiu que as comunidades passassem a agregar maior número de pessoas, facilitando o contato entre todos Ŕ tanto entre outros fãs que moram em qualquer parte do mundo, tanto com o próprio produto: Com o advento da internet, os fandoms passaram a agregar um número cada vez maior de pessoas, rompendo barreiras geográficas e até mesmo linguísticas e a produção de fanfictions também cresceu, particularmente na década de 1990. Isso fez com que a prática fosse quase restrita ao gênero ficção científica, onde teria nascido, para a condição de amplamente exercida por fãs de vários outros gêneros, como séries policiais e de suspense, filmes, histórias em quadrinhos, videogames e livros ficcionais (VARGAS, 2005, p. 24).

Escrever uma história está relacionado à forma mais fácil ou criativa que o ficwriter busca para si. O fã-autor que mantém o cânone zela pelo respeito à história original e também pela reputação das personagens. Ele tenta manter o mesmo ritmo da história original com as mesmas personagens, sem descaracterizá-las e muitas vezes sem introduzir alguém novo para acompanhar as aventuras. Muitas vezes essas histórias propõem uma continuação de um livro acabado, ou uma aventura totalmente inédita, como um capítulo intermediário. Ao contrário destas, os fanfictions de universo alternativo costumam fazer uso das mesmas personagens e alterar o ambiente da história original. Em lugar da Alice, de Alice no País das Maravilhas, ser uma menina perdida num lugar desconhecido e que foge de uma rainha má, ela pode muito bem ser uma jovem de vinte e poucos anos à procura de um namorado, em pleno século XXI. Isto é apenas para se ter uma ideia do que os ficwriters podem escolher para ser o cenário das histórias. Para se criar um fanfiction, pode-se, por exemplo, escrever um capítulo extra que segue a história original, mantendo as mesmas personagens (ou se tornar narrador-personagem da história, ou ainda criar novas personagens além das originais, para criar uma outra história),


55 no mesmo espaço-tempo criado pelo autor verdadeiro, ou em outro universo, um universo alternativo Ŕ ou seja, Ŗembora as personagens sejam retiradas de um texto previamente existente, o autor do fanfiction cria todo um universo novo para a sua açãoŗ (VARGAS, 2005, p. 66). Esse fenômeno, chamado também de deslocamento de personagensŗ por Vargas (2005) é bastante comum nas adaptações de obras literárias em narrativas fílmicas. Um exemplo é Romeu e Julieta, dirigido por Baz Luhrmann e lançado nos cinemas em 1996. Os atores Leonardo DiCaprio e Claire Danes vivem os papéis principais da famosa peça de mesmo nome, escrita entre 1591 e 1595, de William Shakespeare (1564-1616), e seus diálogos não diferem em nada, nem mesmo uma palavra a mais, da obra original, apesar de a trama se passar em uma moderna Verona do final do século XX. Um outro caso serve como exemplo, mas como fanfiction publicado não na Internet, mas sim em livro. Trata-se de The Looking Glass Wars [As Guerras Através do Espelho],1 de Frank Beddor, publicado em 2004. É, na verdade, uma recriação de Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, publicado originalmente em 1865, que conta a saga da pequena Alice, que lê um livro junto à irmã e acorda num lugar desconhecido, onde precisará correr e se proteger de pessoas desconhecidas e ameaçadoras, como a Rainha de Copas. No Brasil, as traduções do primeiro livro e de Alice através do espelho e o que Alice encontrou lá (CARROLL, 1871) ficaram a cargo do poeta Sebastião Uchoa Leite, responsável também pela versão em português de Crônicas Italianas (1839) de Stendhal e de Signos em rotação (1982), de Octávio Paz. Este é o primeiro livro de uma trilogia (ainda sem previsão de lançamento no Brasil), cujo enredo é baseado na história criada no século XIX por Lewis Carroll. No primeiro capítulo, Alice Liddell se diz chocada com a história apresentada num livro chamado Alice no País das Maravilhas (CARROLL,1865). Aquilo que ela lia era pura ficção, e ela, sim, era uma figura real. O reverendo Charles Dodgson, que apresentou o manuscrito à menina, ainda ouve dela que seu nome verdadeiro não era escrito daquela forma. É Alyss, não Alice. O narrador em Looking Glass Wars explica ao leitor, logo no primeiro capítulo, que Alice vivenciou em Alice no País das Maravilhas apenas uma ilusão, e que a aventura verdadeira é a que ele (leitor) agora está lendo. Nela, Alyss é forçada a fugir do livro para o mundo real depois que a tia dela, a rainha Redd (a rainha de Copas e a rainha Vermelha da história original), conquista o País das Maravilhas e destrói todos que se opõem a ela. Para ajudá-la, o assassino Gato de Cherishe persegue Alice Ŕ que é protegida por Hatter Madigan, 1

Tradução minha de todos os títulos.


56 guarda-costas da Rainha e que sabe das intenções malignas dela em querer matar Alice e ficar com mais poder. Refugiada no mundo real, Alice é obrigada a viver num lugar desconhecido e é protegida por Hatter Madigan e por Dodge Anders, o filho do reverendo Charles Dodgson, assassinado a mando da rainha má. As aventuras do primeiro livro renderam duas continuações: a segunda parte, Seeing Redd [Avistando Redd], publicada em 2007, e a terceira parte, Arch-Enemy [Arquiinimigo] que teve seu lançamento em outubro de 2009.

Todas têm

Alice como personagem principal. A heroína Alice, no final da história original, desperta do sono e vê-se Ŗentão deitada no barranco com a cabeça no colo da sua irmã, que delicadamente afastava do seu rosto algumas folhas mortas que haviam tombado da árvoreŗ (CARROLL, 1980, p. 130). Conta, então, a história de seus Ŗsonhosŗ para a irmã mais velha, que, depois se põe a sonhar as mesmas aventuras que a mais nova teve, Ŗembora soubesse que bastava abrir os olhos outra vez e tudo se transformaria na enfadonha realidade de voltaŗ. Nas aventuras reescritas por Frank Beddor, Alice Liddell, também conhecida por Alyss Heart, está a conversar com o reverendo Charles Dodgson, (nome real de Lewis Carroll), que acabara de dar de presente a ela o livro escrito e ilustrado por ele mesmo. Ela, que também contara a ele a respeito do sonho cheio de aventuras no País das Maravilhas, estranha, porém, o título dado à obra: ŖOh!ŗ, As Aventuras subterrâneas de Alice? Que tipo de título é esse? E por que o nome dela estava escrito de forma errada? Ela falou a Dodgson como se soletrava corretamente o nome dela, até mostrou escrito a ele. ŖPor Lewis Carroll?ŗ, ela leu com enorme preocupação1 (BEDDOR, 2006, p. 2).

O sonho de Alice é recontado no livro do reverendo de tal forma que ela mesma, que é claramente a protagonista, não entende e considera uma aventura nonsense de algo que lhe bastante pessoal. Charles Dodgson, então, esclarece que a contou de forma diferente em trechos que ele julgava necessário: Admito que tomei algumas liberdades com sua história,ŗ Dodgson explicou, Ŗpara transformá-la em nossa, como disse que poderia fazer. Você reconhece o tutor que me descreveu? Ele é o Coelho Branco. Tive a ideia depois que descobri que as letras do nome do tutor poderiam formar a palavra Řcoelho brancoř[...]2 (BEDDOR, 2006, p. 3). 1

No original: Oh! Alice‘s Adventures Underground? What sort of title was that? And why was her name misspelled? She had told Dodgson how to correctly spell her name, had even written it out for him. ―By Lewis Carroll?‖ she read with growing concern (BEDDOR, 2006, p. 2). 2 No original: I admit that I took a few liberties with your story,‖ Dodgson explained, ―to make it ours, as I said I would. Do you recognize the tutor fellow you once described to me? He‘s the White Rabbit character. I got the idea for him upon discovering that the letters of the tutor‘s name could be made to spell ‗white rabbit‘ […]‖


57

The Looking Glass Wars (BEDDOR, 2004) nada mais é, no final das contas, do que um fanfiction bem vendido Ŕ cuja história é um universo alternativo da história original. O autor, que também trabalha como produtor de cinema, planeja também a adaptação para o cinema da obra, conforme divulgado no site oficial da saga de Alyss1.

4. CONCLUSÃO Este trabalho é voltado para o estudo da figura do autor-leitor de fanfictions numa época em que se discute o papel da autoria na era da web. Há vários exemplos de fanfictions publicados tanto em livros quanto no formato quadrinhos, e milhares de outros escritos para com espaço para divulgação na Internet. A ênfase da pesquisa, no entanto, permanece na análise de fanficções postadas em rede, com o fim de ir mais além, de esclarecer como se forma o sujeito responsável pela releitura e reescritura dessas histórias. Para isso, escolhi histórias cujo valor dentro da literatura universal é justificado por críticas (positivas ou negativas) com trechos da história original e do respectivo fanfiction. Há também novas propostas de pesquisa, pontos a serem discutidos posteriormente, como: i) a questão de letramento a partir dos fanfictions em sala de aula; ii) as traduções; iii) os songfics: fanfictions que usam música como tema para desenvolvimento da história, ideias essas que reservo aos futuros projetos de pesquisa da pós-graduação. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARTHES, Roland. O Prazer do Texto. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1987, 86 p. BEDDOR, Frank. The Looking Glass Wars. Londres: Speak/Penguin Group, 2004, 358 p. CARROL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. Trad. Sebastião Uchoa Leite. 9. ed. São Paulo: Summus, 1980, 279 p. CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote – Segunda parte do engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha. Trad. Viscondes de Castilho e Azevedo. Porto Alegre: L&PM, 2006, 518 p. CHARTIER, Roger. A prensa e suas fontes Ŕ Dom Quixote na oficina de impressão. In: Inscrever e Apagar. São Paulo: Editora Unesp, 2006, p. 85-128. _____________. Os Desafios da Escrita. Trad. Fulvia M. L. Moretto. São Paulo: Editora Unesp, 2002, 144 p. JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. Trad. Susana Alexandria. 2.ed. São Paulo: Aleph, 2009, 428 p. VARGAS, M. L. Bandeira. O fenômeno fanfiction: novas leituras e escrituras em meio eletrônico. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2005, 127 p. (BEDDOR, 2006, p. 3). 1 Informação retirada de: <http://www.thelookingglasswars.com/>


58 XAVIER, Antonio Carlos. Reflexões em torno da escrita nos novos gêneros digitais na Internet. Investigações (Recife), v. 18, p. 104-116, 2006.

MEMÓRIA E MIGRAÇÃO PRESENTES EM NARRATIVAS ORAIS, HISTÓRIAS E RELATOS DE VIDA DE MIGRANTES DA REGIÃO DA AMAZÔNIA PARAENSE Flávio Reginaldo PIMENTEL (UFPA) Orientador(a): Prof. Dr. José Guilherme dos Santos FERNANDES (UFPA) RESUMO: O projeto de pesquisa de mestrado em Letras do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará tem como proposta principal, estudar a Memória e Migração e como estão contidas em narrativas orais, histórias e relatos de vida de migrantes da região da Amazônia Paraense. Uma das premissas para o desenvolvimento desse projeto é que, a enorme diversidade cultural existente na região amazônica é constituída também pela contribuição dos migrantes, oriundos de vários lugares do Brasil, e principalmente, do nordeste brasileiro que se estabeleceram no estado do Pará. Importante salientar que entendemos tais manifestações como pertencentes à Cultura Popular e Literatura Popular. A literatura popular é entendida como o resultado de todo um processo vivido pelo povo no decorrer dos anos e que vai se tornando de alguma maneira presentes nas mais diversas práticas representativas, como comidas, crenças, línguas, danças e literatura e que tais manifestações estão historicamente ligadas às populações menos favorecidas e marginalizadas da sociedade que construiu para si, formas de criação e produção de sua identidade. PALAVRAS-CHAVE: Memória, Migração, Narrativas orais.

RESUMÉ: Le projet de recherche de Metrise en Léttres du Programme de Pós-Grade en Léttres de l´Université Federal du Pará, a comme objectif, l´étude de la Mémoire et Migration et encore de la façon comme ce sujet est dant les récits oraux, histoires et récits de vie des migrateurs dans le contexte de lřAmazonie Paraense. Pour le dévéloppement de ce projet on considere la grande diversité culturelle que existe dans la région de l´Amazonie qui a reçu la contribution des migrateurs, dont l´origine est de diverses places du Brasil, sourtout de la région du Nordest brésilien. C´est important détacher la notre compreension sur les manifestations de la Culture Populaire et Literature Populaire. La littérature populaire est le result de tout procès qui est vécu par le peuple pendant les années et qui se dévient, de quelque façon, presents dans les plusieurs pratiques de représentation, comme les nourritures, les croyances, la langue, les dances et la littérature. Cettes manifestatios sont, depuis long temps, liées à population pauvre et qui vive en marge de la societé, ils ont fait pour soi même, plusieurs maniéres de création et production de sa identité. MOTS-CLÉS: Memoire, Migration, Récit oraux. O objetivo deste projeto de mestrado em Letras é estudar a ŖMemória e Migração


59 presentes em narrativas orais, histórias e relatos de vida de migrantes da região da Amazônia Paraense.ŗ, e está sendo desenvolvido na área de concentração em Estudos Literários na linha de pesquisa em Literatura, cultura e história, sob a orientação do Professor Dr. José Guilherme da Santos Fernandes. Em primeiro lugar, queremos ressaltar que estamos no inicio da pesquisa propriamente dita, pois conforme o cronograma proposto, os dois primeiros semestres estão sendo dedicados quase que exclusivamente ao cumprimento das disciplinas, obrigatórias e optativas para que possamos alcançar os créditos exigidos pelo programa de pós-graduação. A relevância desta pesquisa está em realizar um estudo sobre os temas acima citados, como forma de contribuir nas pesquisas sobre a diversidade cultural existente na Amazônia, bem como contribuir para os estudos sobre Literatura Popular na região. Umas das premissas que acreditamos é que, a enorme variedade cultural existente na região se constitui também pela contribuição dos migrantes, oriundos de várias regiões do Brasil e principalmente, do nordeste brasileiro que se estabeleceram no Pará, para isso vale citar o que Porto Gonçalves fala sobre a diversidade na região amazônica:Ŗa Amazônia, longe de ser homogênea, é uma região extremamente complexa e diversificadaŗ 1. Na Amazônia Paraense, temos um rico acervo oral de histórias e relatos de vida. Pode parecer a principio que a pesquisa não traga nenhuma novidade do ponto de vista quantitativo, pois alguns projetos maiores estão sendo estudados e pesquisados, como o IFNOPAP (O Imaginário das Formas Narrativas Populares da Amazônia Paraense) coordenado pela professora Socorro Simões ou o projeto Rotas do Mito coordenado pelo professor José Guilherme Fernandes, projetos que também buscam compor um acervo sobre Literatura Popular no Pará. Porém quero justificar que este trabalho é importante na medida em que pretende estudar categorias ainda não levadas em conta, como Memória e Migração, pois é difícil para o migrante, deixar sua terra natal e ir morar em outro lugar, e suportar tudo isso com mera passividade ou indiferença. Percebemos também que estes temas, Memória e Migração, vão ganhar novas feições e definições quando tratados pelos migrantes e contidos na forma oral, através das entrevistas que se pretende realizar. Como é um trabalho que vai tratar com cultura popular, em especial a literatura popular da região da Amazônia paraense, será uma grande contribuição para entender os processos migratórios ocorridos nesta região e as manifestações culturais resultantes desses processos. Na região norte, mais especificamente na Amazônia paraense, percebemos que a 1

Carlos Porto Gonçalves. Amazônia, Amazônias. Contexto. São Paulo. 2001.


60 diversidade cultural é muito grande, diversidade, principalmente na origem das pessoas que constituem a população. Isso se dá pela constante migração, seja nordestina, seja de outras regiões brasileiras. Oriundas de diversos lugares, muitas pessoas estabeleceram-se em Belém, no Pará e na Amazônia trazidas pelo desejo de Řmelhorar de vidař. Essa população traz em sua bagagem não somente sonhos e esperanças, mas também o sotaque, os costumes, as crenças e as Řlembranças do vividoř na memória. Sobre o crescimento da diversidade cultural na Amazônia, vale ressaltar o que diz o professor José Guilherme Fernandes em seu artigo, ao tratar das narrativas migrantes dos nordestinos: Ŗos nordestinos, foram os grandes responsáveis por um salto não apenas demográfico, mas também por um alargamento na demologia da região amazônica, ao trazerem não só sua força de trabalho para os seringais, mas seus cantos, encantos, costumes, festas, sua identidade para reconstruir na nova terra que vai habitarŗ1

Portanto, acreditamos também que o migrante ao chegar aqui, passa por um processo de adaptação, onde irão conviver, com a natureza, os rios, as florestas e os nativos da terra. Mas também ele traz consigo elementos próprios do ser humano, a memória, onde ficou registrada sua cultura primeira, adquirida no lugar de origem e como ocorreu o processo de migração e o seu deslocamento até o novo lar. As histórias e relatos de vida na forma oral são ricos em detalhes, lembranças, recordações que fazem voltar aos Ŗbons e felizes momentosŗ que estão guardados na memória. Falar destes temas é importante, pois afinal, tais pessoas, ao migrarem, deixam sua casa, sua terra natal, seus familiares, mas não suas crenças, sua identidade, enquanto ser, membro de uma sociedade culturalmente organizada. Tentar a vida em outro lugar, melhorar de vida, crescer na vida, ou simplesmente, sobreviver. Estas são algumas das afirmações que ouvimos quando conversamos com essas pessoas. As pessoas ao migrarem, não apagam da memória o que foram em suas terras e recomeçam do zero o que serão nas terras estrangeiras. Cumpre então dizer que este projeto assume papel importante nos estudos literários e pesquisa sobre Literatura Popular e Cultura Popular, pois teremos como corpus de pesquisa, narrativas, histórias e relatos de vida do povo, especialmente os migrantes.

1

Artigo: Narrativas migrantes e a constituição da cultura popular na Amazônia. 2005.


61 CULTURA POPULAR E LITERATURA POPULAR

Pelo exposto acima, faz-se necessário tecer breves comentários sobre o que entendemos por Cultura Popular e Literatura Popular. A principio a cultura popular é entendida como o resultado de todo um processo vivido pelo povo no decorrer dos anos que vai se tornando de alguma maneira presente nas mais diversas práticas representativas, como comida, crença, língua, danças, literatura. Acrescemos também o que diz, Ayala&Ayala: Ŗcultura popular é entendida como produção historicamente determinada, elaborada e consumida pelos grupos subalternos de uma sociedade capitalistaŗ. 1

Entendemos então que, cultura popular são manifestações historicamente ligadas às populações menos favorecidas e marginalizadas da sociedade, ou seja, o povo Ŗsimplesŗ e Ŗhumildeŗ foi capaz de construir para si, formas de criação e produção de sua identidade, como isso procura manter viva a memória, mantendo seus valores e princípios, contidos nas danças, cantoria, celebrações festivas, histórias, contos e relatos, enfim, nas mais diversas manifestações culturais. Dentre tais manifestações da cultura popular está aquilo que comumente se chama de Literatura Popular ou Literatura Oral. 2 Percebemos que na região norte do Brasil, de modo especial na Amazônia paraense, tal manifestação é bastante significativa e rica em acervo. Importante salientar que quando estudamos a literatura de um povo, sempre nos deparamos quase exclusivamente com manifestações escritas. Mesmo os primeiros estudos acerca da literatura surgem tendo como ponto de partida a poesia, encarada como a principal, ou talvez única manifestação literária permitida. Por isso, a escrita ocupa espaço privilegiado nas pesquisas e estudos, principalmente no meio acadêmico. Ora, uma de nossas justificativas para elaboração deste projeto é tentar demonstrar que, histórias, relatos de vida e narrativas populares podem ser estudados do ponto de vista de uma manifestação cultural e literária, pois percebemos que, como nos diz Leal: Ŗexiste certa marginalização por parte dos estudiosos que privilegiam o texto

1

Ayala, Marcos e Ayala, Maria Ignez Novais. Cultura Popular no Brasil. 2 ed. São Paulo: Ática, 1995. Entendemos por Literatura Popular as manifestações culturais oriundas da oralidade, como por exemplo, contos, narrativas, lendas, histórias de vida, relatos, poesias. Incluímos aqui também a Literatura de Cordel que possui a forma escrita para divulgar a sua poesia. 2


62 escrito em detrimento do material vindo da oralidade popularŗ.1

Para muitos pesquisadores, a obra literária ou manifestação literária é a escrita e pertence aos grandes escritores e mestres da literatura. Neste ponto, entende-se que tais histórias, narrativas e relatos, podem ser incluídos na chamada Literatura Popular, um ramo da Literatura que ainda não é unanimidade na academia. Reforçando o que foi mencionado, Leal ainda nos diz: ŖEsta marginalização tinha sua origem na definição etimológica de literatura, que privilegiava o texto escrito em detrimento do material oriundo da oralidadeŗ.2

Completando este pensamento, ressaltamos o que nos diz Câmara Cascudo: ŖAo lado do pensamento intelectual letrado, correm as águas paralelas, solitárias e poderosas, da memória e da imaginação popularŗ.3

SOBRE MEMÓRIA E MIGRAÇÃO

A memória e migração são categorias de pesquisa e análise que precisamos definir mais claramente durante a pesquisa para a elaboração da dissertação, mas que podemos desenhar um pequeno esboço. As duas categorias Memória e Migração não são sinônimas, mas estão ligadas, visto que é difícil desvinculá-las. Vamos sempre encontrá-las em relação contínua uma com a outra. Em conversas informais, por exemplo, é comum ouvirmos frases do tipo, Řtempo bom que não volta maisř, Řde onde eu vimř, Řna minha terrař, Řsaudade de meu tempo de meninoř, Řantigamente as coisas eram diferentesř, frases que deixam claro como a nossa história e a história da sociedade a qual pertencemos está intimamente ligada à memória e com ela vai se firmando. Na Amazônia, tivemos importantes levas de migrações, oriundas principalmente do nordeste brasileiro, dois períodos merecem destaques, o primeiro período do ciclo da borracha, que vai do final do século XIX(1879) ao inicio do XX(1912) e depois um segundo ciclo, que vai de 1939 a 1940, período da segunda guerra mundial, em que desembarcaram milhares de migrantes, trazendo na bagagem principalmente sonhos de uma vida melhor. No

1

Leal, José Carlos. A Natureza do Conto Popular. Rio de Janeiro. 1985. Idem. 3 Cascudo, Câmara. Contos Tradicionais do Brasil. Rio de Janeiro. 1999. 2


63 segundo ciclo dos chamados Ŗsoldados da borrachaŗ calcula-se que mais de 60.000 nordestinos, especialmente vindos do Ceará, desembarcaram nestas terras amazônicas. Mas atualmente ainda ocorrem migrações constantes, claro que não nos moldes ocorridos anteriormente, em menor fluxo, mas ocorrem. Então é impossível dizer que a cultura de uma região não é de certa maneira influenciada pelas migrações. E hoje podemos perceber que muitas pessoas, são netos (as), filhos (as) ou são parentes de alguém que em determinado momento migrou pra Amazônia Paraense, trazendo sua cultura também e que se misturou com o que havia aqui, resultando em novas leituras e releituras culturais. A relação de vinculo entre Memória e Migração está no fato de que é praticamente impossível ao narrador ou contador de histórias, narrar ou contar, sem recorrer à memória, e geralmente este ato, por si só está carregado de sentimento saudoso, lembrar dos motivos que levaram a migrar e recordar determinado acontecimento ou local significa trazer a tona, a cultura adormecida, a cultura aprendida com os pais e avós que foram deixados longe, a cultura de seu grupo social. Apesar de a memória ter um caráter individual, porém não está desvinculada do aspecto coletivo, ou seja, o grupo social ao qual pertence o migrante. Entendendo essa relação entre o pessoal e o coletivo é que poderemos compreender melhor sobre as narrativas, histórias e relatos de vida dos migrantes na Amazônia. Sobre pesquisas baseadas em história de vida, Pollack ressalta: Ŗdiversas pesquisas que utilizam entrevistas, sobretudo entrevistas de história de vida, é obvio que o que se recolhe são memórias individuais, ou se for o caso de entrevistas de grupo, memórias mais coletivas, e o problema ai é saber como interpretar esse materialŗ 1.

A memória parece ser um fenômeno de caráter individual, algo relativamente íntimo, próprio de cada pessoa, e parece variar de pessoa pra pessoa, mas os estudos de Maurice Halbwachs, na década de 20, nos revelam que: Ŗa memória deve ser entendida também, ou, sobretudo como um fenômeno de ordem coletivo e social, um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações e mudanças constantesŗ 2

Em primeiro lugar queremos dizer que é impossível a continuidade das culturas 1

Pollack, Michel. Memória e identidade social. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212. 2 Idem.


64 humanas, sem levarmos em conta que o homem é capaz de armazenar de posteriormente transmitir informações que sirvam de alguma maneira aos seus semelhantes, a esta faculdade pode ser enquadrada a memória, mecanismo inerente e essencial ao ser humano. E entendemos que a memória nos leva pelos caminhos da cultura popular, pois é através dela que os excluídos conseguem fazer parte da história, não só da sua história, mas da história do mundo e fixam seus parâmetros no mundo. Por isso, considerando nosso corpus de pesquisa, que são as narrativas, histórias e relatos de vida, vamos perceber que tais manifestações surgiram principalmente pela oralidade, uma espécie de transmissão cultural, Darcy Ribeiro fala que: Ŗcultura é a herança social de uma comunidade humanaŗ.1 Nessa perspectiva, acreditamos que muitos valores, princípios, códigos, condutas, regras são repassados de pais para filhos, de avós para netos, que herdam através da oralidade, histórias, relatos de vida e narrativas contadas vinculadas a Memória e Migração vivida. Podemos então definir como sendo objetivos da pesquisa, estudar e analisar os temas Memória e Migração presentes em narrativas, histórias e relatos de vida de migrantes nordestinos, preferencialmente, os que se estabeleceram na região da Amazônia Paraense, advindos de processos migratórios ocorridos. Tendo a compreensão que tais manifestações culturais oriundas da oralidade tornam-se importante material de estudo para a contribuição da construção de uma tradição nos estudos sobre Literatura Popular na Amazônia. Queremos também com esta pesquisa entender os processos de migrações ocorridos na região amazônica, compreendendo como está formada a grande diversidade cultural existente, para que se leve em conta, nesta diversidade cultural, o elemento que migrou do nordeste e veio estabelecer residência no estado do Pará, apontando mecanismos de superação das diferenças, incentivando o resgate e preservação das manifestações culturais oriundas da oralidade e por fim, reunir o maior número possível de narrativas, histórias e relatos de vida que tragam como tema Memória e Migração como forma de subsidiar estudos posteriores sobre o assunto. Convém mencionar também que para elaboração deste projeto de pesquisa foram feitas leituras sobre o tema proposto, porém não foram esgotadas, além do mais, estamos fazendo e continuaremos o trabalho de levantamento bibliográfico acerca das obras sobre o período e assunto, isso significa que outras leituras serão feitas, anotações, fichamento e sistematizações sobre essas leituras, bem como também constantes discussões com o professor (a) orientador 1

Ribeiro Darcy. Os Brasileiros: teorias do Brasil. Rio de Janeiro. 1975.


65 (a) para que possamos encaminhar o trabalho de melhor maneira possível. Para alcançarmos nossos objetivos propostos, pretendemos coletar e analisar o maior número de entrevistas com migrantes e/ou descendentes de nordestinos que se estabeleceram na Amazônia paraense que serão previamente selecionados. Vamos estabelecer critérios para selecionarmos nossos informantes, como origem, idade, tempo de moradia no Pará, entre outros. Pretendemos dar enfoque ao aspecto qualitativo, ou seja, selecionar do acervo, entrevistas que tratem do tema Memória e Migração e que estão intimamente ligados ao informante. Para as possíveis entrevistas que serão realizadas, é preciso uma conversa preliminar de esclarecimento, bem como elaborar questões que possam trazer a tona os temas por nós pesquisados, conforme diz Montenegro: Ŗo inicio de toda entrevista deve ser marcado por uma conversa de esclarecimento com o entrevistado para que este compreenda por que, para que e para quem ele está registrando sua memóriaŗ. 1

A partir desse ponto, vamos através da entrevista com o informante, coletar o corpus de nossa pesquisa, buscando sempre, respeitar e ouvir tudo o que o entrevistado quer dizer, porém, exercendo o papel de Řfacilitadorř do processo de emersão da memória e conseqüentemente do processo migratório por ele vivido. Acreditamos na importância deste trabalho para os Estudos Literários na Amazônia e queremos ressaltar também que, estudar Literatura Popular e Cultura Popular é um desafio, visto que trabalhar com a oralidade é dispendioso e requer comprometimento com a verdade, pois o pesquisador deve estar isento de qualquer interferência, e deixar que a memória flua de forma abundante. Pois, é na memória, que está guardada a mais rica manifestação da cultura popular brasileira.

BIBLIOGRAFIA AMARAL, A. Tradições Populares. 3. ed. São Paulo: Huctec, Brasília: INL, 1982. AYALA, Marcos e AYALA Maria Ignez Novais. Cultura Popular no Brasil. 2. ed. São Paulo: Àtica, 1995. BENJAMIN, Walter. O Narrador. IN: Testos escolhidos. São Paulo: Abril, 1980. BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. BOM MEIHY, J. C. S. Manual de história oral. São Paulo: Loyola, 1996. 1

Montenegro, Antonio Torres. História oral e memória, a cultura popular revisitada. São Paulo. 1992.


66 BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembrança de velhos. 4. ed. São Paulo: Cia. Das Letras, 1995. CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas. São Paulo: Edusp, 1998. CASCUDO, Luis Câmara. Contos Tradicionais do Brasil. 13. ed. Ediouro. Rio de Janeiro. 1999 ______________. A literatura oral no Brasil. 3. ed. Belo Horizonte, São Paulo: Itatiaia, Edusp, 1984. CULLER. Jonathan. Teoria literária: uma introdução. Trad. Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos. São Paulo. Beca Produções Culturais, 1999. ECO, Umberto. Como se faz uma tese. 9. ed. São Paulo. Editora Retrospectiva, 1992. FERNANDES, José Guilherme. Narrativas migrantes e a constituição da cultura popular na Amazônia. IN: Artigo. 2005. FERNANDES, José Guilherme. Do Oral ao Escrito: Implicações e Complicações na Transcrição de Narrativas Orais. 2006. FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2ª edição. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986. GONÇALVES, Carlos Porto. Amazônia, Amazônias. Contexto. São Paulo. 2001. LEAL, J. C. A Natureza do Conto Popular. Editora Conquista. Rio de Janeiro. LUYTEN, Joseph M. O que é Literatura Popular. Editora Brasiliense. São Paulo. 1983. MONTENEGRO. Antonio Torres. História Oral e Memória Ŕ A cultura popular revisitada. Editora Contexto. POLLACK, Michel. Memória e identidade social. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212. THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Trad. Lólio Lourenço de Oliveira. São Paulo: Paz e Terra, 1992.

LITERATURA, SOCIEDADE, HISTÓRIA E CULTURA NO ROMANCE GALVEZ IMPERADOR DO ACRE Francisco Ewerton Almeida dos SANTOS (UFPA) Orientador(a): Prof. Dr. Luis Heleno Montoril Del CASTILO (UFPA) RESUMO: A presente comunicação tem por objetivo prestar contas do andamento do projeto de pesquisa ŖColagem, subversão e antropofagia em Galvez imperador do Acre, de Márcio Souzaŗ. A pesquisa e produção da dissertação no 1º semestre de 2010 renderam um capítulo teórico, intitulado ŖAs relações entre Literatura, Sociedade, História e Culturaŗ, cujo conteúdo se divide em quatro seções: Ŗa infinita abertura do signoŗ; Ŗa escritura e o socialŗ; Ŗa retomada histórica como subversão da tradição e Ŗpós-modernidade e resistência culturalŗ. Baseados nessa estrutura, abordaremos questões como a ressignificação de textos literários em Galvez imperador do Acre por meio do processo de colagem e intertextualidade, as relações entre o romance e o momento histórico que retoma, bem como com aquele em que foi produzido, a operação de resgate do passado de forma crítica e transformadora e as aproximações e afastamentos do texto literário com as teorias pós-modernistas e póscolonialistas. Assim, proporemos um diálogo aberto entre textos literários e momentos históricos, assim como entre a Literatura, a realidade social, a História, sobretudo vista à partir da perspectiva do Materialismo Histórico, e as tendências teóricas dos Estudos Culturais, que propõe o ato de tradução e hibridização entre línguas, linguagens e culturas


67 como forma de resistência cultural dos países outrora colonizados e hoje economicamente dependentes. Para tal, traremos à baila os pressupostos teóricos de Jaques Derrida, Walter Benjamim, Claude Levi-Strauss, Fredric Jameson, Luiz Costa Lima, Antonio Candido, Aijaz Ahmad, Homi Bhabha, Stuart Hall, Canclini, Silviano Santiago, Angel Rama, entre outros, afim de, à partir do romance em análise, aprofundarmos a discussão teórica acerca das relações comparativas entre textos literários e entre os Estudos Literários e outros campos de estudo. PALAVRAS-CHAVE: Galvez imperador do Acre, Pós-modernidade, intertextualidade.

ABSTRACT: This notice is intended to give an account of the progress of the research project "Collage, subversion and cannibalism in Márcio Souzařs novel Galvez imperador do Acre‖. The research and production of the dissertation in the 1st half of 2010 yielded a theoretical chapter, entitled "Relations between Literature, Society, History and Culture", whose content is divided into four sections: "the infinite openness of the sign"; "the writing and social, "" the resumption of the historical tradition and subversion as "post-modernity and cultural resistance." Based on this structure, we will tackle issues such as the redefinition of literary texts in Galvez imperador do Acre through the process of collage and intertextuality, the relationship between the novel and the historical moment which incorporates, as well as one in which it was produced, the rescue operation the past in a critical and transformative approaches and departures and the literary text with theories post-modernist and postcolonialists. Thus, we propose an open dialogue between literary texts and historical moments, as well as between literature, the social reality, history, mainly aimed at from the perspective of historical materialism, the theoretical and Cultural Studies, proposes that the act of translation and hybridization between cultures and languages as a form of cultural resistance in the countries formerly colonized and now economically dependent. To this end, we will bring into question the theoretical assumptions of Jacques Derrida, Walter Benjamin, Claude Levi-Strauss, Fredric Jameson, Luiz Costa Lima, Antonio Candido, Aijaz Ahmad, Homi Bhabha, Stuart Hall, Canclini, Silviano Santiago, Angel Rama, and others in order to, from the novel under review, deepen the theoretical discussion about the relationship between literary texts and comparative between Literary Studies and other fields of study. KEYWORDS: Galvez Emperor of Acre, Postmodernity, intertextuality. INTRODUÇÃO O romance Galvez Imperador do Acre (1976)1, escrito pelo amazonense Márcio Souza, conta a história de como o aventureiro espanhol Luiz Galvez, em suas andanças por terras amazônicas, envolveu-se em uma conspiração revolucionária, que pretendia libertar o Acre do jugo estrangeiro, isto é, dos aliados Bolívia e Estados Unidos, transformá-lo em um estado independente, para, posteriormente, anexá-lo novamente ao território brasileiro. Com o êxito dessa revolução, Galvez transformou o Acre em uma monarquia e proclamou-se imperador, contudo, seu reinado durou pouco, pois logo os comerciantes do látex, percebendo as 1

SOUZA, Márcio. Galvez, imperador do Acre. São Paulo: Marco Zero, 1983.


68 desvantagens e prejuízos que aquele governo lhes trazia, tomaram providências para derrubálo. Utilizando-se da forma de folhetim, com sua estrutura dividida em pequenas cenas permitindo uma narrativa rápida e dinâmica, o romance retoma a Belle Époque do eixo Belém-Manaus, viabilizada pela extração do látex, matéria prima retirada, principalmente, dos seringais acreanos, sendo essa a principal causa do conflito político que move a narrativa. Contudo, este momento histórico é reescrito de forma subversiva e dessacralizadora e modificado, através da paródia e da sátira. O paradigma da história oficial é desviado mediante a mescla de fatos históricos e ficção, e, por meio destes recursos, são destiladas duras críticas não só a este passado, mas a todo um processo histórico e cultural pelo qual passou (e passa) a Amazônia, o qual o texto literário Ŗrefleteŗ como um espelho irônico. No presente momento, a dissertação está previamente estruturada. Serão uma introdução, três capítulos de desenvolvimento e uma conclusão. Quanto aos capítulos, são eles: 1 Ŕ ŖGalvez imperador do Acre e a recepção‖, no qual se fará levantamento e análise de recepção crítica, para, por um lado, identificar a posição do romance dentro do campo literário e sua relação com os leitores, e, por outro, que pontos o horizonte interpretativo da crítica relevou, elencar alguns e levar adiante em nossa análise; 2 Ŕ ŖAs relações entre Literatura, Sociedade, História e Culturaŗ, no qual são apresentadas as bases teóricas para o desenvolvimento do trabalho; 3 Ŕ ŖGalvez imperador do Acre e o Modernismo Latino Americanoŗ, no qual sublinharemos a complexidade epistemológica existente em tentar caracterizar uma Ŗprosa pós-modernaŗ na América Latina. Se Galvez imperador do Acre poderia ser identificado como tal, também é imprescindível analisarmos em sua tessitura a onitemporalidade, a convivência de diferentes temporalidades históricas, o grau de continuidade que apresenta com relação ao modernismo, e em que sentido se diferencia de suas vanguardas. Para isso, far-se-á necessária uma análise comparativa entre o romance de Márcio Souza e alguns autores do Modernismo Latino Americano, principalmente Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Jorge Luis Borges. Dentre os capítulos acima citados, dois estão concluídos: o primeiro o segundo. Este último, com aproximadamente 85 páginas, se divide nas seguintes seções: 1- A infinita abertura do signo; 2 Ŕ A escritura e o social; 3 Ŕ A retomada histórica como subversão da tradição; 4 ŔPós-modernidade e resistência cultural. Faremos aqui uma explanação geral acerca dos pontos principais levantados neste capítulo. 1 – A INFINITA ABERTURA DO SIGNO


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Neste tópico, propõe-se uma discussão acerca da abertura da escritura, mais especificamente, da escritura literária, para infinitas interpretações, calcada principalmente nas obras A escritura e a Diferença 1 e Torres de Babel2, de Jaques Derrida, além de outros autores como Walter Benjamim3, Claude Levi-Strauss4, Roman Jakobson5 e Garcia-Roza6. Esse debate faz-se importante para embasar nossa concepção de signo na investigação dos procedimentos semióticos levados a cabo no romance, os quais consistem na desarticulação de trechos de textos diversos, retirados de diversos contextos sócio-histórico-culturais, e rearticulação em um novo contexto que é o próprio espaço do romance, operando-se uma ressiginificação de cunho parodístico. A questão da escritura e a abertura do sentido, a infinita produção de diferença, são os pontos-chave do livro A escritura e a Diferença, de Derrida. A repetição produtora de diferenças é o que garante à escritura a historicidade de sua produção de sentidos, que seria a impossibilidade de ater a obra a um presente estático. É o que Derrida chama de historicidade interna da obra, não externa, isto é, não compreender a obra como efeito ou produto de algo que a precede e está fora de si (autor, momento histórico, classe social, etc.), prendendo seu sentido a um presente absoluto, pois este, sua produção, a operação interna dessa produção, é histórico e contingente. Para tal, é preciso compreender que a escritura caminha alheia à intenção de seu autor. Sendo assim, a escritura é ausência Também ausência do escritor. Escrever é retirar-se. Não para sua tenda para escrever, mas da sua própria escritura. Cair longe da sua linguagem, emancipá-la ou desampará-la, deixá-la caminhar sozinha. Abandonar a palavra. Ser poeta é saber abandonar a palavra. Deixá-la falar sozinha, o que ela só pode fazer escrevendo. (...) Abandonar a escritura é só lá estar para lhe dar passagem, para ser o elemento diáfano da sua procissão: tudo e nada.7

Em Derrida, o sujeito é descentrado, e a linguagem é quem fala. O pai da escritura, seu autor, desde o primeiro, desde Deus, cala, ausenta-se da escritura, deixa-a falar, significar por conta própria. A ausência do escritor, a ausência da origem, essa é a base da historicidade da letra, o próprio sentido é ausência. Daí abre-se a possibilidade de compreender a repetição não 1

DERRIDA, Jaques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1995. DERRIDA, Jaques. Torres de Babel. Tradução de Junia Barreto. Belo Horizonte: UFMG, 2002. 3 CASTELO BRANCO, Lúcia (Org.). A tarefa do tradutor, de Walter Benjamim: quatro traduções para o português. Belo Horizonte: Fale/ UFMG, 2008. 4 LEVI-STRAUSS, Claude. O Pensamento Selvagem. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 1970. 5 JAKOBSON, Roman. Lingüística; poética; cinema. São Paulo: Perspectiva, 1970 6 GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Acaso e repetição em psicanálise:uma introdução à teoria das pulsões. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. 7 DERRIDA, Jaques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1995. p. 61 2


70 como reprodução de algo exterior, mas sim da recriação, livre e original, da experiência, produtora da novidade e de diferenças. Assim também a concebe Derrida. Como nos diz Cristina Carneiro Rodrigues, Derrida não associa a repetição à permanência de um mesmo, pois Ŗiter, de novo, vem de itara, outro, o que Ŗliga a repetição à alteridadeŗ. 1 Derrida propõe, ainda, a aproximação dessa concepção de escritura ao conceito de bricoleur cunhado por Lévi-Strauss em seu livro La Pensée sauvage: O bricoleur, diz Lévi-Strauss, é aquele que utiliza Ŗos meios à mãoŗ, isto é, os instrumentos que encontra à sua disposição em torno de si, que já estão ali, que não foram especialmente concebidos para a operação, na qual vão servir e à qual procuramos, por tentativas várias, adaptá-los, não hesitando em trocá-los cada vez que isso parece necessário, em experimentar vários ao mesmo tempo, mesmo se a sua origem e a sua forma são heterogêneas, etc. 2

Concluímos com o pensador argelino que todo discurso é bricolagem, todo falante/escritor bricoleur, visto que a escritura é uma prática de leitura e vice-versa. Compreender a descentralização do signo é compreender também que o sentido não está no signo, ele é acrescentado a ele. Como o centro é ausente, o signo que o substituirá será um suplemento, algo a mais que vem para suprir uma falta. A significação é acrescentada ao signo num movimento de permutações infinitas dentro de um campo finito, o próprio campo do jogo, um sistema organizado de língua e cultura. Todo texto trabalha em cima de outro(s) texto(s), toda prática de linguagem é, portanto, bricolagem. O sentido é, assim, contingente, mutável dentro de um sistema de diferenças, maturado com a história das leituras/traduções. 2 – A ESCRITURA E O SOCIAL

Na segunda seção discutem-se as relações entre literatura e sociedade, que levam ao campo da mimese e representação. Tomando por base a leitura de Antonio Candido3, Bela Josef4, Luis Costa Lima5, Fredric Jameson6, Roberto Schwarz7, Silviano Santiago 8 e Nestor Nestor Garcia Canclini9, conclui-se que Galvez imperador do Acre traduz para sua economia 1

RODRIGUES. Cristina Carneiro. Tradução e Diferença. São Paulo: UNESP, 2000. p. 202. DERRIDA, Jaques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1995. p. 239. 3 CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1967. 4 JOSEF, Bela. A Máscara e o Enígma. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 2006. 5 LIMA, Luis Costa. Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. 6 JAMESON, Frederic. O inconsciente político: a narrativa como ato socialmente simbólico. São Paulo: Ática, 1992. 7 SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: 34, 2000. 8 SANTIAGO, Silviano. Nas Malhas da Letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 9 CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas. São Paulo: EDUSP, 2008. 2


71 interna um contexto histórico social, criticando-o e ironizando-o. Segundo a concepção hegeliana, o sujeito só reconhece sua verdade quando a repete por meio da língua a outro sujeito. Essa repetição da experiência pela linguagem passa a ser uma releitura por meio da qual desvela-se o sentido da experiência, ou do real. Assim, se compreendermos o texto literário como essa releitura do real por meio da linguagem, chegaremos à conclusão de que ele desvela o sentido, a verdade desse real. Contudo, lembremos que esse processo produz a verdade, isto é, a releitura não remete a um sentido dado, ela plasma sentido. Estamos novamente no campo da repetição diferencial, contudo, agora a direcionamos para o campo das relações entre literatura e sociedade, ou, se preferirmos, a literatura e o real. Uma possibilidade de compreender essa relação é a proposta teórica apresentada por Antonio Candido em seu livro Literatura e Sociedade. Candido afirma que construção artística pode refletir a estrutura de uma sociedade. O autor parte da oposição entre duas correntes metodológicas para esclarecer a sua própria: uma que buscava investigar o texto literário unicamente por seus fatores externos ŕ históricos e sociais ŕ e outra que seguia um caminho oposto, buscando investigá-la exclusivamente por seus fatores internos ŕ formais. Acerca dessa contradição, afirma o estudioso: Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos ainda que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno.1

O referido romance traduz para sua estética a estrutura social do presente que dramatiza, qual seja, a Belle Époque amazônica, contudo, esse não foi o contexto em que foi produzido. O romance foi publicado na década de setenta do século XX. Se levarmos em consideração os pressupostos de Antonio Candido, concluiremos que é esse contexto de produção que será traduzido para a estrutura do texto literário, assim, o contexto histórico que é abordado no romance, na verdade se apresenta como um falso passado, uma dissimulação temporal, ou melhor, uma onitemporalidade, que extrapola qualquer totalidade histórica determinada e coloca diferentes momentos históricos em situação de simultaneidade, faz com que esses momentos (o presente do discurso, o presente de produção e o presente de recepção do texto) 1

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1967. p. 04


72 se cruzem, se toquem e ocupem o mesmo ponto no tabuleiro da história, sendo que o texto nunca se concluirá em nenhum deles, estará e permanecerá aberto e inconcluso. É essa a assertiva de Silviano Santiago, proposta em seu texto ŖPara além da história socialŗ: Produto de uma história e de uma sociedade, o texto artístico paradoxalmente escapa aos limites da história e da sociedade que o originam, independente mesmo dos sucessivos leitores que o reorganizam racionalmente, para afirmar-se universal.1

3 - A RETOMADA HISTÓRICA COMO SUBVERSÃO DA TRADIÇÃO Na terceira seção procura-se deslindar o processo de retomada histórica operado em Galvez imperador do Acre segundo os pressupostos apresentados por Walter Benjamim em seu ensaio ŖSobre o conceito de Históriaŗ 2. Um dos pontos principais é a diferenciação entre o historicismo tradicional e a historiografia materialista. A diferença básica é: o historicismo volta seu olhar pro progresso. Compreende os fatos históricos como uma cadeia de acontecimentos que se desencadeiam linearmente, numa sucessão cronológica, é o que Benjamim chama de Ŗtempo homogêneo e vazioŗ. Por sua vez, o materialista histórico deve voltar seu olhar para o passado, contudo, ao retomar uma época, não deve procurar conhecê-la como ele foi, e sim interpretá-la tal qual se apresenta no presente, segundo as necessidades históricas desse presente. Percebemos então que em Galvez imperador do Acre o passado é recuperado de forma crítica face a um projeto transformativo do presente. Isso se dá em pelo menos três níveis seguindo duas das estratégias elencadas por Julio Plaza 3. Primeiramente observamos a recuperação da antropofagia característica do modernismo de 22, utilizando-a como

1

SANTIAGO, Silviano. ŖPara além da história socialŗ. In: Nas Malhas da Letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 224. 2

BENJAMIM, Walter. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1996. 3 Segundo o autor, o presente pode recuperar o passado como estratégia poética-política face a um projeto do projeto construtivo do presente, como a recuperação de Sousândrade e pelos poetas concretos, ou de Gregório de Mattos pelos modernistas; como estilização, fetiche, conservadorismo, nostalgia; como é o caso do Ŗsalto de tigre para o passadoŗ feito pela moda dentro dos interesses do consumismo; e, finalmente, como paródia, inversão, discordância, com uma atitude crítica e polêmica frente ao modelo, como em Guernica de Pablo Picasso. Dada a importância deste último caso, faremos uma longa citação para melhor traçarmos um paralelo com nosso objeto de estudo: ŖPicasso aborda os modelos e estilemas da tradição de um ponto de vista crítico, discordando deles, numa operação inversa à estilização e ao revival que não seria senão uma recuperação amável da história amável. Ele recupera a história para pôr a descoberto o desconforto da realidade de seu momento, o mal estar que o presente produz (Guerra da Espanha, 1937).ŗ PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva. 1987. p. 7.


73 ferramenta poético-política que atende a necessidades críticas de seu momento histórica, afastado 50 anos daquele em que Oswald concebeu a antropofagia. Contudo, a própria antropofagia já consiste também numa forma de recuperação do passado, ou melhor, da tradição literária, por meio da paródia e inversão dos modelos canônicos da tradição européia. Em Galvez há, portanto, também essa forma de recuperação do passado inscrita na antropofagia. Por fim, há o terceiro nível de diálogo histórico no romance em questão, esse muito semelhante ao apontado por Plaza em sua leitura de Guernica, isto é, a recuperação de um determinado momento do passado, no caso de Galvez imperador do Acre, o período da extração da borracha na Amazônia, não para, numa atitude nostálgica e ufanista, louvar o passado glorioso Ŗda terraŗ, e sim para, por meio desse passado, desvelar um desconforto com o presente. Ele assume um posicionamento crítico e antagônico com relação a esse passado, para também nele investigar a barbárie do processo de transmissão de cultura, principalmente no contexto colonialista, que reduz uma sociedade a um mero arremedo das Ŗmetrópolesŗ, mesmo após a suposta independência, Assim, mostra também no presente, como reflexo desse modelo de formação cultural, as marcas indeléveis da barbárie colonial e neo-colonial. Essas três estratégias estão, portanto, imbricadas, são inseparáveis, e constituem na rede, no jogo, do texto, sua principal atitude frente ao passado. 4 – PÓS-MODERNIDADE E RESISTÊNCIA CULTURAL

Na quarta e última seção do primeiro capítulo, desenvolve-se a possibilidade de ler o romance segundo as perspectivas Pós-modernas e Pós-coloniais, seguindo as premissas de alguns dos principais teóricos da área, como Homi Bhabha 1, Stuart Hall2, Aijaz Ahmad3, os latino americanos Nestor Garcia Canclini4, Angel Rama5 e Silviano Santiago6, entre outros. Percebemos, portanto, que se poderia compreender o romance Galvez imperador do Acre por meio da crítica pós-colonial. Sem dúvidas, podemos observar em sua tessitura a reescritura dos efeitos da colonização no inicio do séc. XX, desvelando seu caráter transnacional e transcultural e ironizando o nacionalismo imperial das metrópoles e da própria república 1

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998. HALL, Stuart. Da Diáspora – Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003. 3 AHMAD, Aijaz. Linhagens do Presente: ensaios. São Paulo: Boitempo, 2002. 4 CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas. São Paulo: EDUSP, 2008. 5 VASCONCELOS, Sandra Guardini (Org.). Angél Rama: Literatura e cultura na América Latina. São Paulo: EDUSP, 2001. 6 SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. São Paulo: Perspectiva. 1978. 2


74 recém proclamada do estado brasileiro. Por outro lado, como já dissemos, o romance se inscreve nos pontos em que diferentes momentos históricos se cruzam, sendo assim, no momento em que mostra os efeitos das relações econômicas neocolonias durante o ciclo da borracha na Amazônia, também evidencia problemas que encontramos na globalização contemporânea e seus efeitos contraditórios, isto é, que, ao mesmo tempo em que ideologicamente é liderada pelo neoliberalismo com tendência cultural dominante e homogeneizante, tem também causado efeitos diferenciadores entre ou no interior de sociedades. Contudo, algumas questões levantadas por Canclini nos levam a identificar a contradição da América Latina, onde tivemos um Ŗmodernismo sem modernizaçãoŗ, o que sublinha a complexidade em tentar caracterizar uma Ŗprosa pós-modernaŗ na América Latina, o que torna necessária a análise comparativa entre Galvez imperador do Acre e o modernismo, com o já referido intuito de analisar em que medida há continuidade e diferença entre o modernismo e um possível pós-modernismo nas letras latino americanas. Tais pontos serão aprofundados nos capítulos posteriores da dissertação. REFERÊNCIAS AHMAD, Aijaz. Linhagens do Presente: ensaios. São Paulo: Boitempo, 2002. BENJAMIM, Walter. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1996. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998. BORGES, Jorge Luis. Ficções. Porto Alegre: Editora Globo, 1970. CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas. São Paulo: EDUSP, 2008. CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1967. CASTELO BRANCO, Lúcia (Org.). A tarefa do tradutor, de Walter Benjamim: quatro traduções para o português. Belo Horizonte: Fale/ UFMG, 2008. DERRIDA, Jaques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1995. DERRIDA, Jaques. Torres de Babel. Tradução de Junia Barreto. Belo Horizonte: UFMG, 2002. GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Acaso e repetição em psicanálise:uma introdução à teoria das pulsões. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. GLISSAND, Édouard. Introdução a uma Poética da Diversidade. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005. HALL, Stuart. Da Diáspora – Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003. HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis: Vozes, 2003. JAKOBSON, Roman. Lingüística; poética; cinema. São Paulo: Perspectiva, 1970 JAMESON, Frederic. O inconsciente político: a narrativa como ato socialmente simbólico. São Paulo: Ática, 1992. JOSEF, Bela. A Máscara e o Enígma. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 2006. LEVI-STRAUSS, Claude. O Pensamento Selvagem. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 1970. _____. Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva. 1987.


75 RAMA, Angél. Transculturación narrativa en América Latina. México: Siglo XXI, 2007. RODRIGUES. Cristina Carneiro. Tradução e Diferença. São Paulo: UNESP, 2000. SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. São Paulo: Perspectiva. 1978. _____. Nas Malhas da Letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989 _____. Vale quanto pesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1982. SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: 34, 2000. SOUZA, Márcio. Galvez, imperador do Acre. São Paulo: Marco Zero, 1983. VASCONCELOS, Sandra Guardini (Org.). Angél Rama: Literatura e cultura na América Latina. São Paulo: EDUSP, 2001.

ALTEAMENTO DAS VOGAIS MÉDIAS PRETÔNICAS NO PORTUGUÊS DA AMAZÔNIA PARAENSE: A INFLUÊNCIA DO DIALETO DOS MIGRANTES NO PORTUGUÊS FALADO EM BREVES Giselda da Rocha FAGUNDES (UFPA) Orientador(a): Prof.ª Dr.ª Regina Célia Fernandes CRUZ (UFPA/CNPq/CAPES/FULBRIGHT) RESUMO: Esta pesquisa está vinculada ao projeto Vozes da Amazônia (Portaria Nº 075/2009 ILC), coordenado pela Professora Doutora Regina Célia Fernandes Cruz, e surgiu quando, a partir dos resultados advindos da versão anterior do Vozes da Amazônia (2007-2009, Portaria 052/2007 Ŕ CLCS), evidenciou-se a necessidade de se aprofundar suas fronteiras e discutir temas relacionados ao desenvolvimento de políticas lingüísticas e à identidade sociodiscursiva do amazônida nas regiões onde se atesta contato interdialetal decorrente de fluxo migratório intenso motivado por projetos econômicos na região Amazônica, o que inclui o tratamento de aspectos culturais, sociais, históricos e político-ideológicos. O objetivo central é o de mapear a situação sociolingüística diagnosticada por Cruz et al (2009) identificada na Amazônia paraense. Diante do mapeamento obtido pelo Projeto Vozes da Amazônia com relação à situação sociolinguística das vogais médias pretônicas do português regional paraense, sentiuse uma clara necessidade de se verificar a causa do dialeto falado na zona urbana da cidade de Breves (PA) destoar consideravelmente dos demais dialetos paraenses. O índice destoante de ausência de alteamento das vogais médias pretônicas na variedade lingüística de Breves (33%) indica a necessidade de uma investigação mais aprofundada sobre a situação sociolingüística deste município. A coleta de narrativas de experiência pessoal (Tarallo 1988) será o objetivo principal do trabalho de campo. Este projeto trará ainda o exame do fenômeno das vogais pretônicas na fala de grupos de migrantes e de seus descendentes no município de Breves (PA) à luz do tempo da duração da residência na localidade escolhida, dos anos de escolaridade, da estabilidade de emprego dos informantes selecionados, além dos parâmetros usuais de sexo e idade como fizera Bortoni-Ricardo (1985) ao proceder a um estudo sociolingüístico sobre a difusão dialetal no repertório dos falantes do português no Brasil que migram da região rural para a urbana. PALAVRAS-CHAVE: variação linguística, contato interdialetal, Amazônia Paraense.

ABSTRACT: This research is linked to the project Voices of the Amazon (Ordinance No.


76 075/2009 ILC), coordinated by Dr. Regina Celia Fernandes Cruz, and appeared when, from the results stemming from the earlier version of Voices of the Amazon (2007 to 2009, Ordinance 052 / 2007 - SCLC), there was a need to deepen their borders and discuss issues related to the development of language policies and the identity of the Amazonian regions socio discursive where it confirms contact inter dialectal due to heavy migration motivated by economic projects in the Amazon region This includes the treatment of cultural, social, historical and political-ideological aspects. The central objective is to map out the sociolinguistic situation diagnosed by Cruz et al (2009) identified in the Amazon state of Pará. Before the mapping obtained by the Voices Project this author felt a clear need to ascertain the cause of the dialect spoken in the area of the town of Breves (PA) clash with the considerably other Para dialects. The index of jarring lack of heightening the middle unstressed vowels in language variety of Breves (33%) indicates the need for further research on the sociolinguistic situation of the municipality. The collection of narratives of personal experience (Tarallo 1988) is the main objective of the fieldwork. This project will also examining the phenomenon of unstressed vowels in the speech of groups of migrants or their descendants in the municipality of brief time in the light of the length of residence in the location chosen, in years of education, stability of employment of informants selected, besides the usual parameters of sex and age as did Bortoni-Ricardo (1985) to conduct a study on the sociolinguistic dialect diffusion in the repertoire of Portuguese speakers in Brazil who migrate from rural to urban areas. KEY-WORDS: linguistic variation, dialectal contact, Amazon, Marajo Island.

INTRODUÇÃO

O projeto Vozes da Amazônia, ao qual este Projeto de Dissertação está vinculado, já procedeu a descrições do processo de variação das vogais médias pretônicas de cinco localidades do Estado do Pará, a saber: i) do português falado em Cametá (Rodrigues & Araújo 2007); ii) em Mocajuba (Campos 2008); iii) em Breves (Cassique et al 2009; Dias et al 2007; Oliveira 2007); iv) em Belém (Sousa 2010; Cruz et al 2008) e; v) em Breu Branco (Marques 2008, Coelho 2008, Campelo 2008). Todas são descrições sociolingüísticas de cunho variacionista. O fato de estas descrições terem seguido orientações metodológicas comuns permite uma comparação de seus resultados quanto ao fenômeno estudado, no caso o alteamento das vogais médias pretônicas, e consequentemente o diagnóstico sociolingüístico da Amazônia paraense aqui descrito. Portanto, tomaram-se como base para o presente projeto de pesquisa as descrições variacionistas já concluídas para os dialetos de Belém (Cruz et al 2008, Sousa 2010), de Breves (Cassique et al 2009; Dias et al 2007; Oliveira 2007), de Cametá (Rodrigues & Araújo 2007), de Mocajuba (Campos 2008) e de Breu Branco (Marques 2008). Estas descrições


77 contêm uma análise quantitativa através do programa de análise de regra varíável (VARBRUL). Todos os resultados sobre as variedades do português da Amazônia paraense apontam para uma tendência dos dialetos paraenses, dos quais se tem descrição do fenômeno em questão, de preferência pela preservação das médias pretônicas em detrimento do alçamento, como pode ser verificado no quadro 1 abaixo. Quadro 1. Ŕ Percentual de alteamento nas variedades linguísticas investigadas pelo Projeto Vozes da Amazônia. Dialeto

Ausência

Presença

Fonte

Breves (urbano)

81

19

Oliveira (2007)

Breves (rural)

57

43

Dias et al (2007)

Breves (geral)

67

33

Cassique et al (2009)

Belém (rural)

53

47

Cruz et al (2008)

Belém (urbano)

64

36

Sousa (2010)

Cametá

60

40

Rodrigues & Araújo (2007)

Mocajuba

51

49

Campos (2008)

Breu Branco

76

24

Marques (2008) Fonte: Cruz et al (2009)

Os dialetos da Amazônia paraense apresentam uma configuração do fenômeno de alteamento que exige um maior aprofundamento de suas causas sejam internas ou externas, pois os dialetos da zona rural de Breves (Dias et al 2007), das ilhas de Belém (Cruz et al 2008) e de Mocajuba (Campos 2008) apresentam percentuais muito próximo de alteamento e manutenção das médias pretônicas com tendência maior para ausência de alteamento, atestando, inclusive variação neutra das vogais médias pretônicas no caso do português falado em Mocajuba (Campos 2008), reforçado por Cametá (Rodrigues & Araújo 2007), por Belém (zona urbana) e por Breves no geral (Cassique et al 2009) que comprovam uma tendência mais acentuada para ausência de elevação das médias. A relação presença versus ausência de alteamento é ainda mais acentuada no português falado na zona urbana de Breves (Oliveira 2007) e no município de Breu Branco (Marques 2008), como se comprova no gráfico 1 abaixo. Gráfico 1 - Tendência à ausência de alteamento das vogais médias pretônicas no Português da Amazônia Paraense. Fonte: Cruz et al (2009)


78

Diante do mapeamento obtido pelo Projeto Vozes da Amazônia com relação à situação sociolinguística das vogais médias pretônicas do português regional paraense, sentiu-se uma clara necessidade de se verificar a causa do dialeto falado na zona urbana da cidade de Breves destoar consideravelmente dos demais dialetos paraenses. Esta é exatamente a motivação do presente projeto de Dissertação. 1. POR QUE BREVES? Cassique (2006), tomando como base as considerações de Silva Neto (1957), apresenta uma nova divisão dialetal do Pará que está sendo considerada nas investigações conduzidas no seio do Projeto Vozes da Amazônia e, conseqüentemente, está na base da escolha da localidade-alvo do presente estudo. A divisão dialetal do Pará estabelecida por Cassique (2006) considera as várias fases migratórias ocorridas no Estado e que foram responsáveis pelas alterações da configuração original da situação sociolingüística da região. A primeira fase corresponde à chegada dos açorianos ao Pará ainda no século XVII, quando o português não conseguia sua implantação definitiva, uma vez que se atesta a situação de língua Franca com o domínio de uma variante do tupinambá, a Língua Geral Amazônica Ŕ LGA - (CALDAS et al. 2005). Segundo Rodrigues (1996), a primeira importante leva de falantes nativos de português chegou à Amazônia apenas no primeiro ciclo da Borracha no século XVIII, estes primeiros falantes nativos eram os nordestinos que migraram para a Amazônia seduzidos pelo poder econômico da borracha. Até o final do século XIX, o português falado em todo o Pará foi o resultado do contato direto com a LGA, este português resiste ainda hoje na zona 1 do mapa 1, mostrado abaixo. Mapa 1 - Mapa do Pará destacando as zonas dialetais, nas quais ainda há a presença do dialeto


79 amazônico: (1) área do português regional paraense, a mais extensa, que abarca todo o norte do Estado; (2) área “bragantina”, a nordeste e ao extremo leste do Estado, especialmente nas áreas urbanas; (3) área do “Sul do Pará”, abarcando toda a parte setentrional do Estado.

Fonte: Cassique (2006)

O mapa 2 mostrado abaixo proposto por Cassique (2006) apresenta as três zonas dialetais presentes no Estado no Pará. A primeira zona (1) se refere ao dialeto Ŗcanua cheia de cúcus de pupa a pruaŗ,a mais extensa e que abarca quase toda a parte norte do Estado, sendo que os principais municípios já estudados dessa região são: Belém, Breves, Cametá e Mocajuba. A segunda zona dialetal (2) é conhecida como zona bragantina, que vai do nordeste ao extremo leste do Estado, sendo que os principais municípios são Bragança (PA) e Castanhal (PA). A zona 3, que pertence a área do Sul do Pará, abarca toda a parte setentrional do Estado e não há dialeto definido, já que essa região sofreu intenso fluxo migratório, sendo que há mescla da variedade lingüística dos estados do Centro-oeste, do Sul e do Sudeste, com a contribuição de nordestinos de Estados mais distantes, tais como baianos e paraibanos (cf. Cassique, Idem). O mapa 2 abaixo mostra que os percentuais de alteamento são muito baixos de modo geral nas três zonas dialetais do Pará. Mapa 2 Ŕ Percentuais de alteamento nas zonas dialetais do Pará1.

1

O percentual de alteamento de Bragança foi emprestado de Freitas (2001).


80

Fonte: Cruz et al (2009).

O índice destoante de Breves (33%) indica a necessidade de uma investigação mais aprofundada sobre a situação sociolingüística deste município que recebeu um fluxo migratório considerável em decorrência de projetos econômicos da região. O município de Breves sozinho apresenta uma população1 três vezes maior de que todo arquipélago marajoara. O inchaço populacional sofrido por Breves se deu no segundo ciclo da borracha, durante a segunda guerra mundial, quando o governo, apostando em um crescimento econômico oriundo da borracha, fez vir nordestinos para trabalharem na exploração da borracha na Amazônia, os ditos soldados da borracha. Uma vez terminada a guerra e o declínio do segundo ciclo da borracha, os imigrantes nordestinos não tiveram como voltar para a sua terra de origem e foram forçados a fixar residência obrigatoriamente na Amazônia, uma boa parte deles ficou justamente na cidade de Breves. O fato de a localidade de Breves ter recebido uma forte migração de falantes do português de outras regiões do Brasil por conta de projetos econômicos faz com que sua variedade lingüística se assemelhe muito as demais variedades da zona 3 do mapa 1 de Cassique (2006), pois ela não possui marcas de identidades (e aí em todos os sentidos) com a Amazônia paraense, e tudo indica principalmente na variedade linguística. Portanto o objetivo geral desta pesquisa é identificar a influência de fatores extralinguísticos na configuração dos dialetos da Amazônia paraense, mais especificamente na cidade de Breves, cujo fluxo migratório é considerável em decorrência de projetos econômicos desenvolvidos na região Amazônica. A hipótese levantada é a de que os fatores externos são relevantes no condicionamento 1

A população total do município de Breves é de 80.158 habitantes, destes 40.074 habitantes vivem na área urbana, de acordo com o censo 2000 do IBGE.


81 da realização das variantes das médias pretônicas e fazem com que tal variedade seja muito diferente da demais, na fala da Amazônia paraense. Para comprovar tal hipótese precisaremos de uma nova coleta de dados, controlando como principal fator a origem ou ascendência do falante. Acreditamos ser talvez a variável que esteja controlando a realização dessas variantes. Verificaremos também além da variável origem do falante, a variante idade dos falantes, em especial na fala dos mais jovens, a fim de se verificar se se trata de uma mudança estável ou em progresso. Como última hipótese, acreditamos que na região em questão Ŕ Breves - ainda não se cristalizou uma nova norma resultado do contato intervariedades nessa região, como ocorrido em Brasília, e o fato desta nova norma ainda não ter sido estabelecida resulta em contraste muito acentuados da realização das variantes atestadas.

2. METODOLOGIA

A coleta de narrativas de experiência pessoal (Tarallo 1988) será o objetivo principal do trabalho de campo. Este projeto trará ainda o exame do fenômeno das vogais pretônicas na fala de grupos de migrantes ou de seus descendentes no município de Breves à luz do tempo da duração da residência na localidade escolhida, dos anos de escolaridade, da estabilidade de emprego dos informantes selecionados, além dos parâmetros usuais de sexo e idade como fizera Bortoni-Ricardo (1985) ao proceder a um estudo sociolingüístico sobre a difusão dialetal no repertório dos falantes do português no Brasil que migram da região rural para a urbana. Pensa-se tal como Bortoni-Ricardo (1985) ter de considerar fatores sócio-ecológicos e variáveis independentes na correlação com o comportamento lingüístico. Segundo a autora supramencionada, o melhor instrumento para lidar simultaneamente com as diferenças individuais e com a identificação da variação sutil dos padrões sistemáticos é o da analise das redes sociais dos migrantes, já usado anteriormente em Sociolinguistica Correlacional (Labov, 1972; Milroy, 1980). Segundo Bortoni-Ricardo (1985 apud Cunha [s.d.]), a rede social é o conjunto de ligações que se estabelecem entre indivíduos. Utilizam-se as redes sociais em investigações sociolingüísticas envolvendo comunidades lingüísticas de migrantes quando o interesse da investigação não está nos atributos dos indivíduos, mas na caracterização das relações de um com outro, a qual pode predizer e explicar o comportamento destes indivíduos, inclusive o


82 comportamento lingüístico. A rede de relações sociais será utilizada como conceito ancilar da análise a ser empreendida como o fez Bortoni-Ricardo (1985). Igualmente acrescentar-se-á o conceito de grupo de referência dos falantes, como fez a referida autora. Segundo Bortoni-Ricardo (1985), o grupo de referência é o grupo que serve de alavanca à construção da identidade do indivíduo, ou seja, o falante modela seu discurso de acordo com o grupo com o qual ele busca identificar-se, o grupo que atende as suas expectativas psicossociais. Partindo dos fatores socio-ecológicos como variáveis independentes, e, considerando como variáveis intervenientes tanto a rede social como o grupo de referência, Bortoni-Ricardo (1985) estabelece um modelo metodológico, eficiente e inovador, para a explicação da variável dependente, o comportamento lingüístico, como pode ser visualizado no esquema 1. Esquema 1 Ŕ Relação estabelecida entre as partes componentes do modelo metodológico de Bortoni-Ricardo (1985).

Fonte: Bortoni-Ricardo (1985). Com base no modelo de análise proposto por Bortoni-Ricardo iremos: relacionar aspectos de variação inter- e intradialetal; caracterizar sociolinguisticamente o português falado em Breves; e identificar fatores sociais favorecedores da variação dialetal do português da Amazônia paraense falado nas regiões de forte migração interna. A pesquisa será realizada, como exposto anteriormente, no município de Breves, no arquipélago marajoara, e dois grupos de informantes serão formados. Um grupo de ancoragem a ser formado com 24 informantes (12 do sexo masculino e 12 do sexo feminino), distribuídos em duas faixas etárias de 26 a 46 anos e acima de 50 anos. E um grupo de controle de 12 informantes (6 do sexo masculino e 6 do sexo feminino), todos devem ser filhos, netos ou sobrinhos do grupo de ancoragem. O grupo de ancoragem, assim chamado por servir de base a pesquisa, será composto por falantes não nativos do Estado, portanto todos devem ser provenientes de uma determinada região do Brasil. O grupo de controle, que servirá como parâmetro para o grupo de ancoragem, será composto por jovens nascidos na mesma região proveniente de seus ascendentes, que vieram ainda crianças para os municípios paraenses locus do presente


83 projeto ou mesmo que já tenha nascido nas localidades em questão. Uma vez o trabalho de campo concluído, o tratamento dos dados seguirá todas as etapas previstas em um estudo sociolingüístico, a saber: (i) transcrição dos dados no moldes da análise da conversação (Castilho 2003); (ii) triagem dos grupos de força (Câmara Jr. 1969); (iii) transcrição fonética dos vocábulos contendo marcas dialetais, utilizando-se o alfabeto SAMPA; (iv) codificação dos dados e; (v) tratamento quantitativo VARBRUL. CONSIDERAÇÕES FINAIS Esta pesquisa, que discutirá o alteamento das vogais médias pretônicas no português da amazônia paraense, e que tem como objetivo identificar a influência de fatores extralinguísticos na configuração dos dialetos da Amazônia paraense, especificamente na cidade de Breves, está se desenvolvendo de acordo com um cronograma montado para este fim. A cidade de Breves foi escolhida para este estudo por ter recebido um fluxo migratório considerável em decorrência de projetos econômicos desenvolvidos na região Amazônica, e acreditamos em Breves ainda não se cristalizou uma nova norma resultado do contato intervariedades nessa região, como ocorrido em Brasília. Para esta pesquisa fizemos um levantamento bibliográfico, consolidação do pressuposto teórico, e alguns preparativos para o trabalho de campo. Atualmente a pesquisa está em fase final de coleta de dados dos informantes selecionados para a coleta de narrativas de experiência pessoal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BORTONI-RICARDO, Stella M. The urbanization of rural dialect speakers: a sociolinguistic study in Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 1985. 265p. CALDAS, Raimunda, CRUZ, Regina & SILVA, Tabita. ŖPossibilidade de interferência da Língua Geral Amazônica na combinação de orações em Urubú-Kařapórŗ, in Atas do Workshop sobre Lingüística Histórica e Línguas em Contato: Línguas Indígenas Brasileiras e de Áreas Adjacentes. Brasília: UnB, 2005. CAMARA JR, Joaquim Mattoso. Estrutura da Língua Portuguesa. Petrópolis: Vozes, 1969. CAMPELO, Maria Madalena. A Variação das Vogais Médias Anteriores Pretônicas no Português Falado no Município de Breu Branco(PA): uma Abordagem Variacionista. Belém: UFPA/ILC/FALE, 2008. (Trabalho de Conclusão de Curso em Letras). CAMPOS, Benedita M. do S. Pinto. Alteamento vocálico em posição pretônica no português falado no Município de Mocajuba-Pará. 2008. Dissertação (Curso de Mestrado em Letras) Ŕ Universidade Federal do Pará, Belém: UFPA. Orientador: Regina Célia Fernandes Cruz. CAMPOS, Socorro & CRUZ, Regina. ŖAlteamento Vocálico em Posição Pretônica no Português Falado no Município de Mocajuba (Pará), comunicação oral apresentada no X


84 Congresso Nacional e IV Congresso Internacional de Fonética e Fonologia, no Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense, no período de 24 a 26 de novembro de 2008. CASTILHO, Ataliba de. A língua falada no ensino do português, 5ª. Edição. São Paulo: Contexto, 2003. CASSIQUE, Orlando. Projeto de Doutorado ŖLinguagem, Estigma e Identidade no Interior da Amazônia Paraense: um exame de base variacionista da nasalidae vocálica pretônica no município de Breves (PA)ŗ, 2006. (Projeto de Pesquisa. Inédito). CASSIQUE, Orlando et al. ŖVariação das Vogais Médias Pré-tônicas no português falado em Breves (PA)ŗ, in Atas do I Simpósio sobre Vogais (SIS-Vogais). João Pessoa (PB): UFPB/PROLING, 2009. COELHO, Maria Lúcia. A Variação das Vogais Médias Posteriores Pretônicas no Português Falado no Município de Breu Branco (PA): uma abordagem variacionista. Belém: UFPA/ILC/FALE, 2008. (Trabalho de Conclusão de Curso em Letras). CRUZ, Regina et al. ŖAs Vogais Médias Pretônicas no Português Falado nas Ilhas de Belém (PA), in Maria do Socorro Silva de ARAGÃO (Org.). Estudos em fonética e fonologia no Brasil. João Pessoa: GT-Fonética e Fonologia / ANPOLL, 2008. ISBN 978-85-906544-4-5. CRUZ, Regina et al. ŖAlteamento vocálico das médias pretônicas no Português falado na Amazônia Paraenseŗ, Comunicação Oral apresentada no II Sis-Vogais (Simpósio sobre Vogais do Português Brasileiro), realizado na UFMG (BH), de 21 a 23 de maio de 2009. CUNHA, Jandira. Resenha ŖThe urbanization of rural dialect speakers: a sociolinguistic study in Brazil‖, [s.d.]. DIAS, Marcelo Pires; CASSIQUE, Orlando & CRUZ, Regina. ŖO alteamento das vogais prétônicas no português falado na área rural do município de Breves (PA): uma abordagem variacionistaŗ. Revista Virtual de Estudos da Linguagem (REVEL). Porto Alegre, n. 9, vol. 5, jul. 2007. (Disponível em: http://www.revel.inf.br/site2007/_pdf/9/artigos/) FREITAS, Simone Negrão de. As vogais Médias Pretônicas no Falar da Cidade de Bragança. Dissertação (Curso de Mestrado em Letras) Ŕ Universidade Federal do Pará, Belém: UFPA. 2001. LABOV, Willian. Language in the inner city. Philadelphia: University Press, 1972. MARQUES, Luzia Carmen dos Santos. Alteamento das Vogais Médias Pré-tônicas no Português Falado no Município de Breu Branco(PA): uma Abordagem Variacionista. Belém: UFPA/ILC/FALE, 2008. (Trabalho de Conclusão de Curso em Letras). MILROY, L. Language and social networks. Oxford: Basil Blackwell, 1980. OLIVEIRA, Daniele de Abreu. Harmonização vocálica no português falado na área urbana do município de Breves/PA: uma abordagem variacionista. Plano PIBIC/CNPq, Belém: UFPA. 2007. RODRIGUES, Doriedson do Socorro. Da zona urbana à rural/entre a tônica e a prétônica: alteamento /o/ > [u] no português falado no município de Cametá/NE paraense - uma abordagem variacionista. Belém Ŕ Pará: UFPA, 2005. (Dissertação de Mestrado) RODRIGUES, Doriedson do Socorro & ARAÚJO, Marivana dos Prazeres. ŖAs vogais médias pretônicas / e / e / o / no português falado no município de Cametá/PA Ŕ a harmonização vocálica numa abordagem variacionistaŗ, Cadernos de Pesquisa em Linguística, Variação no Português Brasileiro, Leda Bisol & Cláudia Brescancini (orgas.), volume 3, Porto Alegre, novembro de 2007, pp. 104-126. SOUSA, Josivane do Carmo Campos. A Variação das Vogais Médias Pretôncias no Português Falado na área Urbana do Município de Belém (PA). Dissertação (Curso de Mestrado em Letras) Ŕ Universidade Federal do Pará, Belém: UFPA. 2010.


85 DISCURSO SOBRE O CONSUMO CONSCIENTE: A (IN)FORMAÇÃO DO CONSUMIDOR‐CIDADÃO Glaciane Felipe SERRÃO (UFPA) Orientador(a): Prof.ª Dr.ª Fátima Cristina da Costa PESSOA (UFPA) RESUMO: O propósito desta pesquisa é investigar as relações interdiscursivas entre o discurso da preservação ambiental e o discurso do consumo, que constituem a gênese do discurso sobre o consumo consciente. Para tanto, este trabalho tem como perspectiva teórica e epistêmica basilar a Análise do Discurso francesa, especialmente, os conceitos de interdiscurso, interincompreensão e polêmica, propostos por Maingueneau. O corpus desta investigação é formado por diversos gêneros que constituem a prática interdiscursiva dos posicionamentos em análise, entre eles, reportagens, artigos e anúncios difundidos por meio do site do Instituto Akatu, por exemplo. O discurso do consumo consciente busca fazer com que as pessoas se sintam responsáveis pela crise ambiental do planeta e que passem a priorizar a compra de produtos ecologicamente corretos. Assim, mais do que a simples compra de um produto, os indivíduos são levados a acreditar que estão exercendo o seu papel de cidadão. Partimos do princípio de que esse discurso é, na verdade, um desdobramento, uma recontextualização do discurso capitalista no cenário atual como uma forma de manter sua hegemonia, pois essa prática discursiva não alude uma transformação efetiva nos níveis de consumo da sociedade, mas sim, institui um novo perfil de consumidor, voltado a atender às demandas de um mercado verde em ascensão. PALAVRAS-CHAVE: Interdiscurso, Consumo consciente, Consumidor-cidadão ABSTRACT: This research aims at investigating the interdiscoursive relationship between the environment preservation discourse and the consumption discourse, which together constitute the origins of conscious consumption discourse. For this purpose, this work holds as its basic theoretical and epistemic perspective the French Discourse Analysis, mainly the concepts of interdiscourse, inter-incomprehension, and polemics, proposed by Maingueneau. The corpus of this investigation is formed by distinct genres which form the interdiscoursive practice of the positions under the focus of analysis, among them, news reports, articles and advertisements spread out by means of the Instituto Akatu site, for instance. The conscious consumption intends to make people feel responsible for the planet environmental crisis and start to prioritize the purchase of environmentally friendly products. In doing so, besides the simple purchase of one product, individuals are led to believe they are playing their role as citizens. We start from the premise that this discourse is indeed, an evolvement, a recontextualization of the capitalist discourse, in the current scenery, in an effort to maintain its hegemony, since this discoursive practice does not allude an effective transformation of the consumption levels in society, instead it creates a new consumer profile, focused in fulfilling the demands of an emergent green market. KEY-WORDS: Interdiscourse, Conscious consumption, Citizen consumer. INTRODUÇÃO Este trabalho apresenta, brevemente, algumas reflexões teórico-metodológicas


86 preliminares que fundamentam a pesquisa que venho empreendendo no curso de Mestrado em Letras/UFPA. Trata-se de uma investigação que se encontra ainda no início e tem como objetivo central analisar as relações interdiscursivas que se estabeleceram na constituição do discurso sobre o consumo consciente e busca compreender o funcionamento dessa prática discursiva tão difundida nos dias atuais. Para tanto, esta pesquisa tem como aparato teórico-metodológico a Análise do Discurso francesa, especialmente as contribuições de Dominique Maingueneau. Essa recente perspectiva concebe a linguagem como uma prática social, uma forma de ação sobre o mundo, sobre os outros e sobre si mesmo. Ela nasceu da constatação de que nem tudo que dizemos está inscrito objetivamente na superfície da língua, mas no interior de práticas sociodiscursivas, delimitadas por um tempo e espaço. Essa vertente se opõe à ideia de um sentido imanente ao texto como se eles fossem óbvios e pré-estabelecidos. Para a AD, o sentido não está no texto em si, e que o trabalho do pesquisador se resume a abstraí-lo, mas é construído a partir dele, levando em conta não apenas fatores linguísticos, mas extralinguísticos de ordem social e histórica. No quadro epistemológico da AD, em que se insere este trabalho, o discurso é entendido como Ŗuma dispersão de textos cujo modo de inscrição histórica permite definir como um espaço de regularidades enunciativasŗ (MAINGUENEAU, 2005, p.15). Segundo Maingueneau (2005), a unidade pertinente de análise não é, de imediato, o discurso, mas sim, o interdiscurso. Para o teórico, não basta somente que o analista identifique as diferentes discursividades existentes em uma sociedade, mas que é necessário compreender que esses vários discursos não surgem ao acaso e também não se enraízam na sociedade de forma isolada. Todo discurso se constitui a partir de uma inter-relação entre discursos anteriores. Isso quer dizer que os discursos não se constituem independentemente um dos outros e, posteriormente, são posto em relação, mas que constituem a sua identidade no interior de um interdiscurso. Portanto, para a vertente teórica que embasa esta investigação, o trabalho do analista não é estudar o discurso fechado em si, mas o diálogo e/ou a polêmica entre discursos provenientes de Formações Discursivas distintas. Michel Foucault designou por Formação Discursiva, doravante FD, os princípios e leis aceitáveis em um determinado contexto sócio-histórico que regulamentam a enunciação do indivíduo. Esse sujeito não é completamente livre de constrições, nem assujeitado, e sim, heterogeneamente constituído. O teórico citado por Maingueneau define FD como:


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Um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas ao tempo e ao espaço que definiram em uma época dada, e para uma área social, econômica, geográfica ou lingüística das condições de exercício da função enunciativa. (FOUCAULT, apud MAINGUENEAU, 2005, p.16)

Em outros termos, a FD determina o que pode/deve ser dito em uma determina conjuntura. Ela é um espaço sempre invadido por discursos de outras FDs, e não como uma estrutura fechada, monológica e autônoma. Outro conceito basilar mobilizado por Maingueneau, que fundamenta sua teoria a respeito do primado do interdiscurso sobre o discurso, é a noção de heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva, desenvolvida por Authier-Revuz: Só a primeira é acessível aos aparelhos linguísticos, na medida em que permite apreender seqüências delimitadas que mostram claramente sua alteridade (discurso citado, auto-correções, palavras entre aspas). A segunda, ao contrário, não deixa marcas visíveis: as palavras, os enunciados de outrem estão intimamente ligados ao texto que não podem ser apreendidos por uma abordagem stricto sensu (MAINGUENEAU, 2005, p. 33)

Authier-Revuz (2004) esclarece que os dois níveis de heterogeneidade Ŕ mostrada e a constitutiva Ŕ são, na verdade, facetas do mesmo fenômeno. Isso decorre do caráter essencialmente dialógico e heterogêneo. O Outro está presente no discurso do Mesmo independemente de qualquer marca explícita de alteridade. O que acontece é que a heterogeneidade mostrada, ao trazer o Outro fragmentado e localizável, busca falsear uma homogeneidade, negando a presença do Outro no resto de seu dizer. Maingueneau (2005) explica que o Mesmo só pode se relacionar com Outro, dentro de um espaço discursivo, por meio de um simulacro que dele constrói, e não o Outro como tal. Isso implica em processo de interincompreensão mútua, isto é, faz com que o discurso do Outro, oriundo de uma dada FD, seja Ŗtraduzidoŗ e Ŗcompreendidoŗ no interior de outra FD. Essa Ŗtraduçãoŗ não se opera de uma língua para outra, mas de uma Formação Discursiva à outra. Segundo Possenti (2009, p. 24), a interincompreensão Ŗnão tem nada a ver com má vontade ou incompetência dos adversários mútuosŗ - na verdade, ela significa que Ŗtodos que têm acesso a um discurso Řde forař compreendem-no Řerradamenteř Ŕ porque o compreendem a partir de sua própria posição e não da posição dos enunciadores daquele discursoŗ. Neste sentido, a relação estabelecida entre discursos que partilham o mesmo espaço discursivo será sempre polêmica. Maingueneau (2005) designa por polêmica constitutiva as relações que se estabelecem


88 entre duas FD em que as marcas da alteridade não podem ser depreendidas na superfície discursiva, e por polêmica discursiva a um tipo de heterogeneidade em que as controvérsias entre as FD são manifestas explicitamente no enunciado, por meio de citações, aspas etc. Dito isso, a motivação para a elaboração desta pesquisa, que se encontra ainda no início, reside, fundamentalmente, em compreender: a) de que maneira um discurso constitui sua identidade, a partir da inter-relação entre o Mesmo e seu Outro? b) Como é possível que discursos conflitantes possam coexistir no mesmo espaço discursivo? c) Que mecanismos linguísticos são acionados neste espaço de trocas? Tomamos como objeto de investigação o discurso sobre o consumo consciente, visando investigar as relações interdiscursivas que constituíram a sua gênese e verificar de que maneira essa prática discursiva está muito mais a serviço de uma lógica capitalista do que ambientalista.

O DISCURSO DO CONSUMO CONSCIENTE A questão ambiental tem ganhado cada vez mais destaque na contemporaneidade. As preocupações em torno desse tema vêm desde a década de 60, época do chamado ambientalismo Ŗoriginalŗ ou Ŗalternativoŗ, movimento que se contrapunha à ordem econômica dominante, fundamentada no individualismo e no consumismo. A partir da realização da Conferência Rio92, se acentuaram os debates em torno de políticas ambientais. Esse evento reuniu representantes de entidades governamentais, não governamentais, setor empresarial etc., a fim de discutirem alternativas que atenuassem o prejuízo aos ecossistemas sem comprometer o desenvolvimento econômico. Foi nesse período que surgiu o conceito de sustentabilidade. Segundo a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CMMAD), da Organização das Nações Unidas (ONU), desenvolvimento sustentável é um conjunto de procedimentos e atitudes que atende às necessidades presentes sem comprometer as necessidades das futuras gerações. A sustentabilidade aponta para um modelo de gestão pautado no equilíbrio entre desenvolvimento econômico e conservação ambiental. A partir de então, uma série de outras expressões similares o sucederam: Ŗprodutos verdesŗ, Ŗselos verdesŗ, Ŗconsumo conscienteŗ. Produtos verdes ou eco produtos são produtos ecologicamente corretos e/ou de baixo impacto ambiental. Os eco selos são certificações emitidas sobre esses produtos que seguem normas de padronização de gestão ambiental, tanto no seu processo de fabricação quanto seu descarte. O consumidor consciente é aquele


89 indivíduo que compra esse produto. Temos, assim, a formação de um mercado Ŗverdeŗ. Segundo Portilho (2005, p.112), Ŗessa nova forma de percepção e definição da questão ambiental estimulou o surgimento de uma série de estratégias políticas ambientais voltadas para a esfera do consumoŗ. De forma gradativa, a responsabilidade ambiental antes atribuída apenas às empresas e ao governo, ou seja, situada na esfera produtiva, deslocou-se para o âmbito do consumo, isto é, passou a ser exigida também da sociedade civil. Nossas investigações se detêm, fundamentalmente, em compreender a constituição e o funcionamento do discurso do consumo consciente, tomando como base os estudos desenvolvidos por Portilho (2005) a respeito do consumo sustentável: [...] o consumo verde, ao contrário de promover um enfrentamento (à problemática ambiental), atenderia à continuidade dos privilégios das sociedades afluentes, dando continuidade à sacralização da Sociedade de Consumo e favorecendo a expansão do capitalismo predatório. [...] Além disso, o consumo verde atacaria somente uma parte da equação Ŕ a tecnologia Ŕ e não os processos de produção e distribuição, além da cultura do consumismo. (PORTILHO, 2005, p.119)

Partimos do princípio de que o discurso sobre o consumo consciente nasceu a partir de uma série de operações entre o discurso do consumo Ŕ que filia-se a uma FD que põe os interesses econômicos acima de questões ambientais, ou seja, situa-se no interior de um discurso francamente capitalista - e o discurso da preservação ambiental Ŕ que alinha-se a uma FD que advoga em prol da salvação do planeta em detrimento de questões financeiras e defende a necessidade de uma transformação radical nos hábitos de consumo da sociedade, ou seja, situa-se no interior de um discurso francamente ambientalista. Posteriormente, a partir do intercruzamento dessas duas perspectivas, emergiu uma terceira vertente, que seria o ponto de convergência/equilíbrio entre elas: o discurso do consumo consciente. Ao nosso entender, o discurso do consumo foi integrando/incorporando, paulatinamente, elementos do discurso da preservação ambiental à sua grade semântica, constituindo, assim, a gênese do discurso sobre o consumo consciente. O discurso do consumo consciente é uma prática discursiva bastante difundida nos dias atuais e tem como finalidade primordial favorecer a compra de produtos ecologicamente corretos. A ideia do discurso do consumo consciente é incutir nas pessoas um senso de culpabilidade/responsabilidade ao mostrar que o meio ambiente está em crise devido aos seus maus hábitos de consumo. Portanto, cabe a elas o dever de protegê-lo por meio de atividades de consumo sustentáveis. Embora seja investido de um forte apelo ecológico, esse discurso não alude um amplo


90 debate sobre o consumismo nas sociedades modernas e não propõe uma transformação efetiva nos seus padrões de consumo. Essa prática apenas promove uma espécie de deslocamento no âmbito discursivo: do consumo Ŗalienadoŗ para a legitimação de um consumo Ŗconscienteŗ. Trata-se, portanto, de uma forma de ressignificar e reestruturar novas necessidades de consumo. Neste

sentido,

esse

discurso

seria,

na

verdade,

um desdobramento,

uma

recontextualização do discurso capitalista no cenário contemporâneo como uma forma de manter sua hegemonia, pois essa prática discursiva não alude uma transformação efetiva nos níveis de consumo da sociedade, mas sim, institui um novo perfil de consumidor Ŕ o consumidor-cidadão Ŕ, voltado a atender às demandas de um mercado verde em ascensão. O CONSUMIDOR-CIDADÃO O consumidor-cidadão é aquele indivíduo Ŗconscienteŗ e bem Ŗinformadoŗ dos prejuízos que suas atividades de consumo geram ao meio ambiente. Logo, esse sujeito privilegia o consumo de produtos com baixo impacto ambiental e, paralelamente, adota medidas simples no seu dia a dia como a coleta seletiva de lixo, reciclagem etc. Dessa forma, eles estariam demonstrando a sua Ŗconsciência ecológicaŗ e, consequentemente, contribuindo para a preservação do patrimônio natural da humanidade: o meio ambiente. Nesse novo paradigma, o ato de consumir passa a ser encarado como um exercício da cidadania. As pessoas passam a ser vistas não apenas como consumidores, mas como consumidores-cidadãos que possuem o dever ético e social de preservar ecossistemas através de suas práticas de consumo responsáveis. Essa nova percepção tende a levar os indivíduos a acreditarem que o consumo é uma forma legítima de cidadania. Nota-se, dessa forma, que o cidadão é reduzido ao papel de consumidor. Portilho (2005) assinala que o sistema econômico atual vem, paulatinamente, banalizando a noção de cidadania: [...] O cidadão é reduzido à esfera do consumo, já que consumir torna-se sinônimo de participar da esfera pública. Em lugar do cidadão forma-se um consumidor, que aceita ser chamado de cliente e usuário e aceita ser cobrado por uma espécie de Ŗobrigação moral é cívica de consumirŗ. O consumo, conforme foi dito, passa a ser encarado não apenas como um Ŗdireitoŗ ou um Ŗprazerŗ, mas como um Ŗdever do cidadãoŗ (PORTILHO, 2005, p.184)

Assim sendo, o modelo sustentável em questão está em consonância com o ideário


91 capitalista, o que acaba gerando uma Ŗdespolitizaçãoŗ da causa ambiental reduzida meramente à esfera do consumo. Um dos cernes da AD é demonstrar que essas significações são, na verdade, criações discursivas historicamente construídas que privilegiam os interesses de certos grupos sociais em detrimento de outros. Muitas vezes, elas passam despercebidas, são tão naturais que se tornam legítimas, inquestionáveis e, consequentemente, difícil de serem desconstruídas. O instrumental teórico-metodológico da AD possibilita refletir o papel da linguagem na condução da vida social e o modo como ela reflete mudanças históricas, decorrentes de tensões ideológicas, políticas e econômicas. As reflexões aqui apresentadas são o fruto de observações preliminares que só poderão ser confirmadas ou refutadas a partir da análise minuciosa do corpus ao longo da pesquisa que se situa ainda no começo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AUTHIER-REVUZ, J. Entre a transparência e a opacidade Ŕ um estudo enunciativo do sentido. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. JÖHR, Hans. O verde é negócio. 2. ed. São Paulo : Saraiva, 1994. MAINGUENEAU, Dominique. Gêneses do Discurso. Tradução Sírio Possenti. Curitiba: Criar Edições, 2005. _______. Novas Tendências em Análise do Discurso. Campinas, SP: Pontes: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 3ª ed., 1997. PORTILHO, Fátima. Sustentabilidade Ambiental, Consumo e Cidadania. São Paulo: Cortez, 2005. DRUMMOND, TRAJETÓRIA GAUCHE: UM ESTUDO TEMÁTICO DA POESIA DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE Iris de Fátima Guerreiro BASTOS (UFPA) Orientador(a): Prof.ª Dr.ª Lilia Silvestre CHAVES (UFPA) RESUMO: Drummond, poeta inscrito no modernismo brasileiro, ao mesmo tempo em que faz parte desse movimento vanguardista pós-22, destaca-se e diferencia-se de seus pares modernos, seja pelo tratamento dado aos temas, seja pela própria particularidade dos assuntos de sua poesia ou ainda pela relação singular que manteve com os ideais do movimento modernista. Autor de uma vasta e diversificada obra literária, em especial no que se refere à poesia, o sentido de sua trajetória poética pode ser percebido desde os versos inaugurais de seu primeiro livro publicado, Alguma Poesia: ŖQuando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: Vai Carlos! ser gauche na vidaŗ (Poema de Sete Faces). Esses versos preconizam o percurso de um ser que nasceu para ser Ŗgauche na vidaŗ, isto é, um ser esquerdo e desajeitado que está sempre em busca da compreensão de seu Ŗestar no mundoŗ. Ainda que trate de temas os mais diversos, a poesia drummondiana caracteriza-se


92 principalmente por ter este fio condutor: o conflito entre o eu e o mundo, que engendra a Ŗlutaŗ do gauche na relação que este estabelece com a realidade. A partir desses pressupostos, pretende-se fazer um estudo temático da obra poética do autor, analisando sua poesia à luz de teorias como a do crítico Affonso Romano de SantřAnna, Antonio Candido, dentre outros, demonstrando, por meio de poemas selecionados da obra de Drummond, a tese de que a trajetória do poeta configura-se como o movimento do gauche no espaço-tempo com o intuito de adaptação/compreensão do mundo e da poesia. E é justamente a relação com esse Ŗvasto mundoŗ, muitas vezes incompreensível para ele, o mote para toda a produção poética do autor, em que a imagem recorrente do gauche soa como leitmotiv dentro de sua poética. PALAVRAS-CHAVE: Drummond, Poesia, Trajetória Gauche. ABSTRACT: Drummond, poet enrolled in Brazilian modernism, while forming part of that movement avant-garde post-22, stands out and differentiates itself from its modern couple, either by treatment of the subjects, or by the very particularity of the subjects of his poetry or by the unique relationship he had with the ideals of the modernist movement. Author of a vast and diverse literary work, especially with regard to poetry, the meaning of his poetic career can be seen from the verses inaugural his first published book, Some Poetry: "When I was born, an angel bent / such that live in shadow, / said, Go Carlos! be gauche in life "(Poem of Seven Faces). These verses call for the route of a being who was born to be "gauche in life," i.e., being left a clumsy and is always in search of understanding of their "being in the world." Still dealing with the most diverse topics, Drummondřs poetry is mainly characterized by having this thread: the conflict between self and world, which engenders a "struggle" in the gauche relationship that he establishes with reality. On this basis, we intend to make a thematic study of the poetic work of the author, analyzing his poetry by the light of theories such as critical Affonso Romano de Sant'Anna, Antonio Candido, among others, demonstrating through selected poems of Drummond's work, the thesis that the trajectory of the poet appears as the movement of the gauche in space-time in order to adapt/ understand the world and poetry. And it is precisely the relation with the "wide world", often incomprehensible to him, the motto for all the poetry of the author, in which the recurring image of the gauche sounds like leitmotiv in his poetry. KEYWORDS: Drummond, Poetry, Journey Gauche. INTRODUÇÃO ŖQuando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: Vai Carlos! ser gauche na vida.ŗ (ANDRADE, 2008, p. 5). Os versos acima inauguram a obra poética de Carlos Drummond de Andrade. Eles, entretanto, não se configuram apenas como os primeiros versos do poema inicial de seu primeiro livro publicado: Alguma Poesia (1930). De fato, neste primeiro livro o poeta tenta comunicar ao leitor Ŗalguma poesiaŗ, como bem sugere o título, e o faz com maestria. Conforme o crítico Affonso Romano de SantřAnna (2008), esses versos representam o ponto de partida de uma trajetória gauche do poeta, que se manterá ao longo de sua vasta produção


93 poética. Um percurso marcado pelo movimento do ser no espaço-tempo, que na visão do autor, representam, dentro da poética drummondiana, um todo uníssono. Neste primeiro poema, Poema de Sete Faces, estão as marcas fundamentais que caracterizam o gauche em seu primeiro estágio. Ao longo de seus mais de 20 livros de poesia publicados, o poeta Drummond registrará a trajetória deste ser desajustado em busca da compreensão de seu Ŗestar no mundoŗ. Ainda que trate de temas os mais diversos, sua poesia caracteriza-se principalmente por ter esse fio condutor: o conflito eu versus mundo, que engendra a Ŗlutaŗ do gauche na relação que este estabelece entre a sua realidade interior e a exterior. Entre o gauche e a realidade existe uma disritmia. Ele rompe com a harmonia normal, introduz seu ritmo próprio, que não coincide com o andamento comum. Essa ruptura é resolvida, no caso do artista, em termos estéticos pela construção de uma obra de arte, que funciona como ponte entre ele e o mundo. (SANTřANNA, 2008, p. 66).

A partir desses pressupostos, pretende-se fazer um estudo temático da obra poética de Carlos Drummond de Andrade, analisando sua poesia à luz de teorias como as dos críticos Affonso Romano de SantřAnna, Antonio Candido, entre outros, a fim de compreender como está organizada sua poética.

1. DRUMMOND E SUAS INQUIETUDES: O POETA GAUCHE.

De acordo com o crítico Antonio Candido (1977) em estudo da poesia drummondiana, a trajetória poética de Drummond é marcada por inquietudes, inquietações das quais brota a experiência poética do artista: As inquietudes [...] manifestam o estado-de-espírito desse Ŗeu todo retorcidoŗ, que fora anunciado por um Ŗanjo tortoŗ e, sem saber estabelecer comunicação real, fica Ŗtorto no seu cantoŗ, Ŗtorcendo-se caladoŗ, com seus Ŗpensamentos curvosŗ e o seu Ŗdesejo tortoŗ, capaz de amar apenas de Ŗmaneira torcidaŗ. Na obra de Drummond, essa torção é um tema, menos no sentido tradicional de assunto, do que no sentido específico da moderna psicologia literária: um núcleo emocional a cuja volta se organiza a experiência poética (CANDIDO, 1977, p. 98).

Esse núcleo emocional do qual fala o crítico poderia ser caracterizado também como um núcleo cognitivo da obra de Drummond já que este concebe a criação poética como fruto de


94 um trabalho cognitivo mais do que de simples inspiração. De um modo ou de outro, o tema do gauche poderia ser compreendido também como um leitmotiv dentro da poética drummondiana, afinal é uma figura recorrente em seus poemas, aparecendo desde Poema de Sete Faces. Conforme o crítico Affonso Romano de SantřAnna, nestes versos estariam as características fundamentais do gauche numa primeira fase de sua trajetória: um ser desarticulado diante da realidade, disfarçado atrás dos óculos e do bigode, que tem poucos, raros amigos e que vê tudo de baixo, do canto, alheio ao movimento exterior. Esse ser, que ao mando do anjo torto que vive na sombra (note-se as imagens sugestivas de um anjo que vai completamente de encontro à usual figura de protetor, o anjo drummondiano lança sobre o poeta uma espécie de maldição ou carma que este precisa carregar ao longo de sua trajetória), surge como um grande personagem da poética de Drummond que, ao longo de seus mais de 20 livros de poesia publicados, registra o movimento desse ser desajustado em busca da compreensão de seu Ŗestar no mundoŗ. Mas afinal, o que é um ser gauche? Adjetivo francês, o vocábulo gauche poderia ser traduzido para o português como esquerdo. Pode designar o acanhado, o desajeitado, o estranho, o deslocado. Assim, o poeta gauche é aquele que não consegue adaptar-se à realidade em que vive, estando, desse modo, sempre marginal, excluído, em busca de algo que dê sentido a sua própria existência. Como o gauche não consegue inserir-se na realidade que o rodeia, este ser Ŗdesajeitadoŗ e Ŗesquerdoŗ cria pela poesia uma maneira singular de olhar e compreender o mundo. Em seus primeiros livros publicados, o movimento do poeta gauche dá-se timidamente, o mundo é visto sob uma perspectiva do Ŗcantoŗ, do que está alheio. Assim, a conquista do espaçotempo vai se desenvolvendo ao longo de sua obra poética. É o gauche que se move e pela poesia conquista o mundo. Um mundo caduco, que pesa sobre seus ombros, mas que pode ser compreendido pelas lentes que a poesia proporciona. A poesia é, segundo SantřAnna (2008), um código de rupturas, ela subverte o prosaico e o linear, matéria da qual se alimenta. Na poesia drummondiana,

o poeta como autêntico gauche ao utilizar da língua comum, na verdade está propondo uma substituição da realidade, na medida em que altera ele mesmo a própria linguagem. Todo o desajustamento psicológico é revelado por uma quebra de padrões lingüísticos. O poeta-gauche transfere para a língua seus conflitos internos, de tal maneira que o estilo, como produto final, há de revelar sempre as marcas psicológicas do autor, e os conflitos maiores que o envolveram em sua época (SANTřANNA, 2008, p. 66-67).


95

De acordo com Tavares (2002), a poesia cria signos e realidades próprias, pois,

os significados das palavras não se referem a fatos reais. Pelo contrário, os fatos aqui adquirem qualquer coisa de estranhamente irreal, pelo menos uma existência particular absolutamente diversa da realidade. Os fatos ou, como quereríamos dizer, a objectualidade (que é claro, abrange também seres, sentimentos, acontecimentos) existe somente como realidade evocada por estas frases poéticas. As frases do poema têm a capacidade de provocar a sua própria objectualidade (TAVARES, 2002, p. 28).

Segundo Mendes (2001), esta poesia desprende os homens de um mundo físico, oferecendo-os outra realidade, mais autêntica, que só a obra de arte é capaz de transmitir. Para ele, a poesia moderna ou ainda, a poesia contemporânea, tem

alargada os seus domínios e abandonado aquela sua função clássica de deleitar e de educar (...). Por ela começou o homem a indagar da verdade de todas as coisas, mesmo das que não caem sob a ação dos sentidos e das que a ciência não fornece informações positivas, a pedir o conhecimento do mundo, e até, a razão de ser da sua própria existência e a solução do problema do seu destino. É uma poesia que está, pois subordinada a fins que a ultrapassam (MENDES, 2001, p. 189).

A recepção da obra de Drummond representa, sem dúvida, entrar em contato com esta outra realidade, conforme propõe Mendes. E notadamente a poética drummondiana está todo tempo a indagar sobre a existência, sobre a verdade das coisas, em busca de entendimento do mundo. Sua poesia que acompanha o decorrer do século XX, marcado por grandes guerras e muitos outros acontecimentos que revolucionaram o mundo, ao mesmo tempo em que revela esta realidade por vezes cruel, apresenta ao leitor um plano diferenciado, dentro do qual se move o gauche. Ler a poesia de Drummond, como afirma Silviano Santiago na introdução à leitura da obra completa do poeta, é compreender que o Ŗcaminhar conflituoso do século XX está indissoluvelmente interligado ao desenvolvimento em ritmo de vai e vem da sua poesiaŗ (SANTIAGO, 2008, p. III Ŕ IV). A poesia de Drummond está, pois na intercessão de uma realidade histórica e de uma realidade particular. Para Antonio Candido, no entanto, a poesia do gauche Ŗinstitui um objeto novo, elaborado à custa da desfiguração, ou mesmo destruição ritual do ser e do mundo, para refazê-los no plano estéticoŗ (CANDIDO, 1977, p. 95). Esse modo singular de se relacionar com a realidade a sua volta compreende a inserção da poesia de Drummond no que podemos chamar de gauchismo, que pode ser assim


96 caracterizado:

O gauchismo seria uma maneira de se ver e de se portar no mundo, seria ainda uma maneira de ver o mundo. O gauche sente-se desconfortável, deslocado, constantemente em causa, constantemente em questão. É um ser despido de base fixa, que erra sem destino e sem meta, que erra sem saber de onde veio, ou porque veio, ou o que tem que realizar ou aonde tem que chegar. (...) O gauche não se satisfaz, não se reconhece nas essências que se apresentam de antemão, ele vive na constante angústia da existência, encontrando-se e se perdendo a cada passo (TEORIA DO GAUCHISMO, 2007).

Esse jeito gauche de se portar no mundo, no entanto, poderia ser reflexo de uma época em que as esperanças foram dissipadas pelo peso dos acontecimentos, como pode ser verificado nos versos de poemas como Os ombros suportam o mundo, Mãos dadas etc. Assim, o gauchismo poderia ser uma manifestação não somente individual, mas coletiva. Antonio Candido (1977) vai falar que as próprias concepções de tempo e espaço, na poética drummondiana, também se apresentam como categorias deformadas, acompanhando a deformação daquele eu retorcido para o qual Ŗo mundo social é torto de iniqüidade e incompreensãoŗ (CANDIDO, 1977, p. 103). E este mundo torto dá origem a uma visão igualmente esquerda do mundo: O gauche é um torto, vê o mundo torto ou entorta o mundo. Revela tortura onde se mostra a aparência de paz, revela tronchura onde normalmente se vê retidão. (...) Drummond é um gauche. O gauche tem um pensamento não linear, pensa por paradoxos, pensa de modo retorcido e, desse, modo libertase das amarras e limitações da lógica e da linguagem. Conseqüentemente, o gauche consegue enxergar mais longe, ou mais perto, sempre melhor, com mais agudeza! (TEORIA DO GAUCHISMO, 2007).

Paradoxalmente, o gauche em seu desajuste consegue ver mais claramente. Talvez porque como ele os indivíduos são igualmente deslocados e excluídos da realidade, numa espécie de metonímia na qual Ŗo eu estrangulado é em parte consequência, produto das circunstâncias; se assim for, o eu torto do poeta é igualmente uma espécie de subjetividade de todos, ou de muitos, no mundo tortoŗ (Candido, 1977, p. 108).

2. DRUMMOND LUTADOR: O MISTÉRIO DA CRIAÇÃO POÉTICA DO GAUCHE. Drummond, considerado por muitos o poeta da sintaxe, por sua imensa capacidade de (des)construir palavras, arranjando-as de maneira harmoniosa e rítmica, e por sua grande


97 habilidade produtiva, criativa e lúdica, conforme propõe Sônia Santos (2008), acreditava que Ŗa poesia está escondida, agarrada nas palavras; o trabalho poético permitirá arranjá-las de tal maneira que elas a libertem, pois poesia não é arte do objeto (...), mas do nome do objeto, para construir uma realidade novaŗ (Candido, 1977, p. 117). Por esta razão, o trabalho de criação empreende uma verdadeira luta. A poesia está ali, nas palavras que precisam ser arranjadas pelo poeta como nos versos do poema O Lutador (José, 1942):

Lutar com palavras é a luta mais vã. Entanto lutamos mal rompe a manhã. São muitas, eu pouco. Algumas, tão fortes como o javali. Não me julgo louco. Se o fosse, teria poder de encantá-las. Mas lúcido e frio, apareço e tento apanhar algumas para meu sustento num dia de vida. (...) Palavra, palavra (digo exasperado), se me desafias, aceito o combate. (...) Luto corpo a corpo, luto todo o tempo, sem maior proveito que o da caça ao vento. (Andrade, 2008, p. 99-100).

Nota-se nestes excertos do poema O lutador o conflito que há entre escritor e palavra. Escrever poesia é, na visão do poeta, um trabalho árduo de seleção, arranjo e posterior construção do poema. E esse trabalho, como se vê nos versos acima, é uma luta, um embate corpo a corpo realizado diariamente com as palavras, matéria da qual brota a poesia. Esse embate com as palavras reflete um modo particular de criação artística. Para Drummond, como já anteriormente mencionado, poesia é trabalho, é criação que exige esforço intelectual e físico. E isso tem a ver com seu desajuste diante do mundo e de si


98 mesmo. Talvez a personalidade gauche do poeta o faça ser Ŗum lutadorŗ que apesar de se reconhecer incapaz de aprisionar ou encantar as palavras, aceita o combate. O trabalho com a linguagem e a busca incessante pela conquista da poesia, ainda que a luta seja vã, compreende outro tema recorrente na poética drummondiana, ou para usar a nomenclatura adotada por Antonio Candido (1977), outras de suas Ŗinquietudesŗ. Assim, a relação do poeta com a poesia e a linguagem manifesta seu desajuste com a realidade transposta para o domínio estético, no qual o poder e a importância das palavras possuem papel fundamental para compreensão ou construção do próprio ser. Em outro poema de sua trajetória poética, O Elefante, do livro A Rosa do Povo (1945), Drummond descreve a figura de um elefante fabricado por ele. O artefato é construído de papel, restos de madeira, retalhos. É recheado de algodão e paina, de nuvens e flores, montando assim, uma arquitetura desengonçada e prestes a se desmanchar. Esse elefante, no entanto, consegue ser elegante e sensível, de um passo pesado devido seu corpo grande, mas ao mesmo tempo suave e cheio de graça e beleza. O elefante sai às ruas à procura de amigos e ao final de sua caminhada ao longo de um dia, ele volta à noite cansado, pois não conseguiu encontrar o que necessitava. Nos últimos do poema, o poeta revela que o elefante é ele próprio disfarçado e que apesar de não realizar seu desejo naquela empreitada, no dia seguinte ele retornará e começará o ciclo novamente. Podemos interpretar a metáfora do elefante como a concepção de criação poética que tem o autor. O poema está assim inscrito entre dois temas típicos da poesia drummondiana: a criação poética e o poeta gauche. Há no poema uma metamorfose. O elefante é ao mesmo tempo o poema, o poeta e a própria criação poética. O elefante se disfarça de poema e seu desajustamento, sua falta de jeito está diretamente associado à figura do gauche. O animal pesado surge como figura de leveza, seu passo desajeitado torna-se elegante, sua fragmentação e fragilidade representam o todo e a força. É tipicamente o gauche em suas contrariedades, em seus paradoxos existenciais. E com estes paradoxos segue o animal balofo e gracioso pela rua cheia e vazia ao mesmo tempo. É a figura torta cantada por Drummond desde seu Poema de Sete Faces, mas com uma compreensão mais aguçada das coisas e do mundo. O personagem elefante é incompreendido, porém sábio, faminto de coisas tão profundas como o oceano. E como um mito ele é reavivado a cada dia, recomeçando seu desígnio, renascendo de si próprio, como a própria poesia o faz num ciclo infinito. A poesia é por vezes incompreendida como o elefante. Sai à procura de leitores como o elefante à procura de amigos e só se realiza plenamente quando se mostra se revela aos olhos de leitores.


99 Assim, a criação artística em Drummond é revelada também por meio de sua personalidade gauche, daí a questão da luta com as palavras ou do fato de seu poema-elefante não ser compreendido por onde passa. O mistério da criação poética em Drummond também pode ser evidenciado em poemas como Procura da Poesia e Consideração do Poema, ambos de A Rosa do Povo (1945), em que o poeta faz uma espécie de tratado, orientação, discurso sobre o fazer poético e sobre a essência da própria poesia. No primeiro poema, o autor revela que a poesia não está nem nos acontecimentos nem nos lugares, nas coisas concretas tampouco nos sentimentos. A poesia está, pois, em um reino em que os poemas estão paralisados, em estado de dicionário e cabe ao poeta conviver com esses poemas, encontrar a chave que revela as faces mil das palavras. No segundo poema, o poeta nos indica que o jogo com as palavras é infinito, não se prende a rimas previamente estabelecidas, pois Ŗas palavras não nascem amarradas,/ elas saltam, se beijam, se dissolvem,/ (...) são puras, largas autênticas, indevassáveisŗ (ANDRADE, 2008, p. 115). No entanto, para se fazer poesia não basta apenas o trabalho com as palavras. É preciso trabalho, esforço e leitura. O poeta confessa ser leitor de outros poetas: Murilo Mendes, Vinícius de Moraes, Apollinaire, Neruda, Maiakovski. Considera-os irmão nesta difícil tarefa de escrever poesia. A poesia surge como meio de existência do gauche, seja na forma de elefante ou de qualquer outro disfarce, ela é a ponte que o liga ao mundo já que por outros caminhos ele não consegue ingressar neste. CONCLUSÃO

Ao finalizarmos este trabalho, de forma alguma temos a pretensão de esgotar o assunto, o que seria definitivamente impossível, até mesmo pelo caráter limitado de um artigo. Além disso, este trabalho é fruto de uma pesquisa ainda em construção, portanto, fica evidente seu caráter inacabado. No entanto, podemos, a partir da compreensão de que a obra poética de Drummond constitui o percurso do poeta gauche, vislumbrar alguns aspectos que particularizam sua obra. Sua trajetória poética está, como aqui se mencionou, centrada num tema para o qual convergem os demais. De sua personalidade torta, esquerda, surge um poeta que vive todos os dias o drama de existir, revelado no plano da linguagem. Sua visão acerca da poesia revela também esse desajuste. E em vários de seus poemas é possível identificar o conflito do eu versus o mundo atualizado, ressignificado, renascido como o elefante que no outro dia recomeça seu desígnio. E o poeta não desiste, continua sempre, caminha em busca


100 de compreender os outros e a si mesmo. Anunciado pelo anjo torto para ser gauche na vida, esse é o destino do poeta que passa a viver pela poesia, estando sempre a caminhar em um embate que não é somente com as palavras, mas consigo próprio, com o mundo incompreensível, com a realidade que o cerca e muitas vezes o angustia. Sem dúvida, Drummond foi um dos maiores poetas brasileiros e estudar sua poesia é encarar também os dramas pelos quais ele passa, é questionar-se acerca das coisas e do mundo, ser levado a refletir e entrar em contato com a nova realidade criada por meio da linguagem, da poesia. É ainda, questionar-se sobre a própria poesia e o fazer poético, como se falou aqui. Compreender sua trajetória poética é também se deliciar com seu humor, sua fina ironia e sua visão apurada das coisas. O gauche, em suas contrariedades e paradoxos termina também paradoxalmente a possuir uma visão mais apurada, em seu desajuste ele consegue ver mais claramente. Compreender essa trajetória poética de Drummond a partir do tema do gauche é o que inicialmente se pretender fazer nesta pesquisa, como ficou demonstrado aqui, no entanto, pelo caráter inicial da pesquisa, outros aspectos serão agregados a este a fim de que se componha um trabalho mais completo e específico acerca da poesia drummondiana.

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101 SANTOS, Sônia Maria Fernandes. Literatura e Cinema: Interfaces nřO [Caso do] Vestido. 2008. 98f. Dissertação (Mestrado em Letras Ŕ Estudos Literários) Programa de PósGraduação em Letras, Universidade Federal do Pará, Belém. TAVARES, Hênio. Literatura. In: Teoria literária. 12. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002. p. 27-44. TEORIA do Gauchismo Ŕ Intempéries em Louvor de Drummond. In: Gauche Virtual. 2007. Disponível em: <http://gauche-virtual.blogspot.com/2007/12/teoria-do-gauchismo-intempriesem.html>. Acesso em: 17 jun. 2010.

ADALCINDA CAMARÃO: “VIDÊNCIAS” ERÓTICAS NO IMAGINÁRIO AMAZÔNICO Iris de Fátima Lima BARBOSA (UFPA) Orientador(a): Prof. Dr. José Guilherme Fernandes dos SANTOS (UFPA) RESUMO: Este trabalho, de caráter introdutório, se insere no projeto de dissertação de Mestrado da linha de pesquisa Literatura, Cultura e História e tem por objetivo estudar a produção poética de Adalcinda Magno Camarão Luxardo (1920-2005), em particular sua obra Vidência (1941), assim como o período literário em que a poeta produziu. Importante é dizer que a autora contribuiu com revistas literárias que circulavam na sociedade belemense na primeira metade do século XX Ŕ Terra Imatura, Guajarina e a Semana Ŕ, que ajudaram a difundir sua habilidade poética, além de escrever para os jornais O diário e a Província, o que demonstra sua inserção e importância na cena literária daquele momento, nos auspícios da constituição de um movimento literário local (primeira metade do século XX). Portanto, através deste trabalho, procuraremos abordar as alegorias do erotismo associadas ao imaginário amazônico, mediante imagens da mitologia amazônica. Estabeleceremos, ainda, analogias em relação ao momento literário que permeava a produção da autora que de certa forma compactuava com os ideais dos intelectuais da Geração de 45. Através do estudo da obra Ŕ Vidência –situaremos os poemas que deixam transparecer a caracterização deste período literário, destacando as temáticas, as formas, as métricas... , assim como também daremos ênfase ao estudo dos elementos que circundam as poesias e que ressoam a erotização da Amazônia, ambiente em que perpassam mitos e lendas presentes em sua cultura. Além disso, infere-se que os elementos como a água, a noite, a terra, a lua, o vento, encontrados nas poesias da autora, associados às figuras do Boto, Iara e Boiúna, remetem ao universo simbólico da sedução que circundam a atmosfera mítica amazônica através das imagens evocadas por Adalcinda em alguns poemas contidos no livro. PALAVRAS-CHAVE: Adalcinda Camarão, Vidência, Imaginário Amazônico. ABSTRACT: This work, it has introductory character, is part of the master thesis project of the research on literature, culture and history, and aims to study the poetry production of Adalcinda Magno Camarão Luxardo (1920-2005), particularly her work Vidência (1941), as well as the literary period in which the poet produced. It is Important to mention that the author contributed with literary magazines that circulated in belemense society in the first half of the XX century which were called Terra Imatura, Guajarina and Semana, which helped her to define her poetic skill, besides she has wrote for O diário and Província newspapers, which demonstrates her importance and inclusion in the literary scene at that time, under the auspices of the constitution of a local literary movement (first half of the XX century). Therefore, this work will seek to address the allegories of the erotic associated with the


102 Amazon imagery, through images of Amazonian mythology. Also will be established similarities in the literary period which permeated the authorřs production that somehow interacted with the ideals of the intellectuals of the 45 Generation. Through the study of Vidência, will be placed the poems which shows the characterization of this literary period, highlighting the themes, forms, metrics ... , as well as will be emphasized the study of the elements that surround the poetry and echo the sexualization of the Amazon, environment that runs through the myths and legends present in its culture. Moreover, it is clear that the elements like the water, the night, the earth, the moon, the wind, have found in the authorřs poetry, associated with the Boto, Iara and Boiúna figures, refer to the symbolic universe of seduction that surround the Amazon mythical atmosphere through the images evoked by Adalcinda in some poems in the book. KEY WORDS: Adalcinda Camarão, Vidência, Amazon imagery.

INTRODUÇÃO Sabemos que a Literatura nos proporciona um vasto campo de pesquisas com inúmeras vertentes a serem desvendadas e estudadas, cada uma com a sua própria particularidade, fazendo desta área um constante meio de descobertas. Vemos também que ela exerce um papel fundamental no cenário mundial e no Estado do Pará não é diferente, a literatura produzida neste local revela através das letras a história de seu povo em suas características mais minuciosas, ou seja, a história e a literatura compactuando para a construção da identidade do povo amazônida. Portanto, através desta pesquisa procuraremos abordar temáticas relacionadas ao imaginário amazônico e o erotismo que o envolve em Vidência, obra da autora Adalcinda Magno Camarão Luxardo (18/07/1920-17/01/2005), adentraremos também em discussões de autores da geração de 45 que através de seus escritos deixaram transparecer um pouco do que foi o universo modernista que circundou o estado do Pará, além dos próprios registros da autora Adalcinda Camarão, que acabaram por contribuir para o embasamento teórico na construção deste trabalho. 1. MODERNISMO NO PARÁ: GERAÇÃO DE 45 Partindo da analogia existente entre os diálogos literários e históricos que solicitam debates que traduzam não apenas o aspecto histórico, mas também o literário da sociedade, a historiografia literária; vemos a literatura inserida na história utilizada como fonte para comprovar a interpretação de determinados fatos e a história na literatura como Ŗinspiraçãoŗ de muitos escritores para instigar ainda mais a capacidade imaginativa. Dessa forma, a


103 estética da literatura está em constante comunicação com o seu tempo, por isso a idiossincrasia entre literatura e história é crucial nessa pesquisa, destacando o período histórico literário em que a autora produzia - um cenário cultural que se encontrava em efervescência naquele período, o Modernismo. Situarei apenas para ilustração algumas das discussões sobre a estética moderna no Pará, pois no que diz respeito ao aspecto modernista paraense, é notório que, apesar de a época moderna já mostrar-se no final do século XIX início do séc. XX, o panorama artístico ainda não estava livre totalmente das influências passadistas, os cânones literários da Academia Brasileira de Letras, ainda trabalhavam com a arte parnasiana, suas formas clássicas, métricas e rimas. Entretanto, os jovens inquietos envolvidos pelos ares da modernidade faziam-se pronunciar causando Ŗagitaçõesŗ na sociedade da época. No cenário nacional modernista, São Paulo se destacava como o centro cultural da nova estética consagrando-se com a Semana de Arte Moderna de 1922. As visões dos que aderiram ao movimento se voltavam para um sentimento mais nacionalista, uma reconstrução da cultura brasileira sob as bases nacionais, a ruptura com as convenções do passado nas diversas modalidades artísticas: música, pintura, literatura... Contudo, apesar da localização e do pouco contato existente entre Belém/ São Paulo, aquela já respirava ares modernistas. Segundo Joaquim Inojosa, as capitais que atenderam ao chamado paulistano foram: Recife, Belém, Belo Horizonte... Tratava-se então de pioneiros da arte moderna. Na cidade de Belém do Pará, os jovens paraenses já cultivavam essas inquietações, muitos grupos foram formados, defendendo inovações, reformulações na Literatura Brasileira. Em 1919, chefiado por Lucídio Freitas, entrava em cena o Grupo Efémeris, com a participação de Tito Franco, Dejard de Mendonça, Alves de Souza; já transpareciam a inquietude da época. Mais tarde em 1921 outro grupo concentrava jovens de espírito nacionalista, formando uma Academia ao Ar Livre, Abguar Bastos, De Campos Ribeiro, Bruno de Menezes, Raul Bopp, Clóvis de Gusmão, Santana Marques, Nunes Pereira, Paulo de Oliveira, Severino Silva, jovens que deixavam transluzir pensamentos de retorno aos valores nativos. Diante disso, podemos perceber que mesmo mantendo quase nenhum tipo de ligação nesta época com São Paulo, a vanguarda paraense já desenvolvia alguns ideais modernos, tanto no cenário histórico e social com a belle époque1 no século XIX e todos os seus 1

Daou, Ana Maria. A belle époque amazônica. Jorge Zahar Editor, 2000. _______ A Ŗbela épocaŗ é a expressão


104 aparatos, quanto no cenário literário no final do séc. XIX início do séc. XX, sem fazer nenhuma analogia com o que viria a se transformar em Modernismo. Ŗ[...] O grupo Efémeris, bem como o posterior, da academia ao ar livre, jamais pensou em Modernismo do que explodiria em São Paulo, em 1922[...]ŗ (ROCHA, Alonso et al. 1994, p. 122) Alguns estudiosos compactuam da precoce idéia Modernista paraense, como o estudioso paraense Paulo Nunes, A juventude belenense, sem identificar suas inquietações como modernistasPaulistanas, era já moderna, pois não dispensava reuniões no Café Central e do terraço do Grande Hotel. Já tínhamos em Belém a organização cultural expressa através da revista Efémeris, ou da academia ao ar livre. Ambos, no entanto, não tinham ligações expressas com os Modernistas de São Paulo. (NUNES, 2000)

Outro estudioso que também discorre sobre o cenário modernista paraense é o Professor Drº. Aldrin Moura de Figueiredo através de seu artigo, Querelas Esquecidas: O Modernismo Brasileiro Visto das Margens. Neste artigo, com uma visão partindo dos literatos da década de 40, Figueiredo nos relata como se deu os primeiros sopros modernos, enfatizando a questão entre Ŗnovosŗ e Ŗvelhosŗ, a geração de 40 e a geração de 20 dos intelectuais paraenses, ressaltando que mesmo em um curto intervalo de tempo entre eles os novos até então não atentavam para os aspectos modernos e tampouco eram situados no que acontecera com os literatos de 20, seus movimentos, suas manifestações. Benedito Nunes, um dos mais novos acadêmicos da época de 40, destacava que os anseios dos jovens dessa época centravam-se na fundação de uma academia que compartilhasse os modelos da Academia Brasileira de Letras, os discursos, posses, as poltronas, enfim toda a pompa, todo o aparato que a academia possuía, o padrão ideal.

Muito ao contrário do que acreditavam Mário de Andrade e Afrânio Peixoto, os moços paraenses ambicionavam criar uma verdadeira Ŗmansão da eloqüênciaŗ, no sentido mais clássico que a expressão pudesse comportar, tal qual ensinavam seus professores de Literatura, Latim, Língua Portuguesa nos tradicionais colégios de Belém. Para esses rapazes, que mal sabiam sobre as idéias novas de São Paulo, era mesmo impossível que algum dia pudesse ter havido qualquer experiência de renovação estética no Pará, relacionada àquelas lacunas da Paulicéia de 22. (FIGUEIREDO, 2003, p, 264)

Os jovens se encontravam a priori na casa das tias de Benedito Nunes, residência que da euforia e do triunfo da sociedade burguesa no momento em que se notabilizavam as conquistas materiais e tecnológicas, ampliando as redes de comercialização. Na Amazônia, a belle époque, contemplava temas expressivos voltados para as riquezas da borracha (ou seringa) e da euforia social.


105 traria o máximo de proximidade com a magnificência da Academia Brasileira de Letras, anseios da nova juventude, criava-se ali a Academia dos Novos. Antero Soeiro (redator de O Estado do Pará) foi eleito como primeiro membro da academia, atraindo também para as reuniões Gelmirez Melo, Alonso Rocha 1, Jurandir Bezerra, Max Martins. Max Martins, ao tomar conhecimento dos fatos ocorridos na Semana de 22, desperta para o Modernismo, pois, assim como Graça Aranha na década de 20, o literato exclama em meio a uma das reuniões um ŖMorra Academia!ŗ Iniciando seu percurso no Modernismo, com seus ensaios poéticos em versos livres. Apesar de todo esse clima moderno circundar o universo da academia dos novos, entre os intelectuais da geração de 45, a modernidade poética também se imiscuía com a essência tradicional, sobre esse aspecto, a escritora Marinilce Coelhos discorre que [...] alguns lamentam o passadismo de uma nova geração sem mestres, enquanto outros saúdam a volta à ordem métrica como primeiro sintoma de uma nova ordem social do mundo [...] A ordem restabelecida do futuro não poderá ser anarquista nem passadista, tampouco futurista, contudo será uma ordem. Então haverá uma poesia nova (nem modernista, nem antimodernista) ao lado da grande poesia do passado... (COELHO, 2005, p. 117)

Nesse contexto sobre a presença do Modernismo no Pará, desvelo a presença expressiva na literatura paraense da autora Adalcinda Camarão e sua obra Vidência (1941). Segundo Alonso Rocha, Ŗ[...] em verdade, no século XX houve um expressivo número de grandes poetas. Feita essa ressalva, destaco a história de Adalcinda Camarão, a maior poeta-mulher da Amazônia e entre os homens Bruno de Menezesŗ.2

2. ADALCINDA CAMARÃO:

Adalcinda nasceu na cidade de Muaná, na Ilha do Marajó-Pará. Desde muito cedo já apresentava uma tendência para as letras, pois o hábito de escrever tornou-se cada vez mais constante, tendo como inspirações o amor pela família, a religiosidade cultivada no seio familiar, as paisagens marajoaras, etc. ŖAo redor dela, motivação de garças brancas, tambatajás... Terra, vento, céu, o rio absoluto... e a herança mítica pesando-lhe no seio...ŗ (CAMARÃO, 2005, p. 141.)

1

Raimundo Alonso Pinheiro Rocha, nascido no Pará, em 15 de Dezembro de 1926, membro da Academia Paraense de Letras. 2 Alonso Rocha em entrevista a revista Cultura, ano 2. Setembro de 2007.


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[...] vivia constantemente presa de encantamento por tudo que me cercava: das pupunheiras torcidas pela fúria incoercível dos ventos errantes;... do orvalho morno que eu pisava nos campos,... nascera em mim a poesia numa daquelas horas de absoluto repouso do lar, que era o meu melhor momento do dia. Quando eu, mergulhada naquele estado de ternura,... quando no entorpecimento do ser nada mais fala a não ser o coração semi Ŕ adormecido e feliz[...] Adalcinda Camarão1

A autora teve uma contribuição muito forte nas revistas literárias paraenses como: Terra Imatura, Guajarina e a Semana, além de escrever para os jornais O Diário e a Província, produções radiofônicas e para o teatro. A jovem poetisa acrescentava para as rodas intelectuais da época toques femininos carregados de ideias e pensamentos inovadores, incluindo-se na geração modernista da literatura paraense. ŖA vocação de Adalcinda, desde os primórdios, sempre foi pela poesia moderna, liberta dos cânones do passado, da rima, da métrica, mas conservando sempre a melodia e a pureza da palavra.ŗ (CAMARÃO, 2005, p. 7.). Com um vasto leque temático presente em suas obras, Adalcinda sempre escreveu de tudo um pouco, uma vez que em seus poemas tinha a facilidade de misturar várias temáticas, cultivando pensamentos universais, sempre valorizando o cantar de sua terra, a cultura regional, a natureza. Nessa atmosfera o escritor Paes Loureiro discorre sobre os que percorrem os caminhos da Amazônia, tanto literariamente, quanto com outras finalidades, pois para ele São muitos os que percorrem a Amazônia, tanto literal como metaforicamente. Em diferentes épocas, sob perspectivas diversas em distintas linguagens, percorrem a floresta e o rio, a realidade e o mito, em busca do desconhecido, inextricável [...] A Amazônia está no imaginário de todo mundo, como a vastidão das águas, matas e ares. (LOUREIRO, 2001)

A autora também aborda a temática religiosa, os sentimentos líricos, os aspectos míticos com elementos do imaginário amazônico erotizados, pois esses elementos contribuem para a tematização do prazer, da sedução - o Boto, a Iara, a Boiúna... - são figuras que atraem que enfeitiçam, que encantam, e que são personagens que permeiam o imaginário do povo amazônida, segundo Mircea Eliade Os personagens dos mitos são os Entes Sobrenaturais. Eles são conhecidos sobretudo pelo que fizeram no tempo prestigioso dos Ŗprimórdiosŗ. Os mitos revelam, portanto, sua atividade criadora e desvendam a sacralidade (ou 1

Discurso de posse da poetisa ao assumir a cadeira de nº 17 da Academia Paraense de Letras, em 1950.


107 simplesmente a Ŗsobrenaturalidadeŗ) de suas obras. (ELIADE, 2002, p. 11)

E é através desse poder de sedução e dessa linguagem simbólica que Adalcinda discorre de forma poética sobre essa relação do imaginário amazônico trazendo figuras como a noite, a lua, o vento, o mar, a água, todos envoltos de uma linguagem criativa, delicada, simples e extremamente regional entrelaçado ao erotismo, transparecendo uma atmosfera erótica, definida como algo mais suave, ameno, nessa perspectiva Milla Baleeiro de Sá Adami acrescenta que [...] O erotismo surge como a representação mais suave da sexualidade. Inclui outras dimensões das vivências sexuais, como a sensualidade, a experiência estética e a relação intersubjetiva [...]. (ADAMI, 2003)

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Convém registrar que este trabalho é a priori uma proposta de pesquisa aprovada no programa de pós-graduação do mestrado em letras ano 2010 em Estudos Literários, pela Universidade Federal do Pará Ŕ Campus de Belém. E sendo esta pesquisa de caráter bibliográfico, ela trará discussões sobre a poética de Adalcinda Camarão, a presença do imaginário amazônico erotizado em seu livro Vidência e o Modernismo no Pará, geração de 45. Portanto, este projeto visa descortinar a poética da autora, ressaltando ainda sua inserção no cenário cultural e literário da época, assim como a sua participação em revistas literárias que circulavam neste período. Inicialmente as pesquisas serão feitas através das coletas de dados envolvendo revistas, livros, jornais, sites, entrevistas, documentos e materiais teóricos que darão suporte para essas considerações. Vale ressaltar que as coletas já foram iniciadas nas revistas literárias: A Semana, Guajarina e Belém Nova, encontradas no Museu da UFPA e na Academia Paraense de Letras. As informações coletadas envolverão a estética Modernista no Pará, em particular a geração de 45, dialogadas na poesia da autora em questão, trazendo em seus versos o imaginário amazônico, além de consultas as suas obras literárias e seus escritos. Logo, faremos os estudos e análises necessárias desse material, observando os aspectos eróticos das figuras lendárias do imaginário amazônico, levando em consideração como esses elementos remetem à simbologia erótica permitindo-nos adentrar e compreender um pouco desse universo mítico que a autora deixa transparecer em sua poética. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


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FONTES IMPRESSAS Discurso de posse da poetisa ao assumir a cadeira de nº 17 da Academia Paraense de Letras, em 1950. Revista Cultura, ano 2. Setembro de 2007. FONTES ORAIS Alonso Rocha, membro da Academia Paraense de Letras. FONTES BIBLIOGRÁFICAS ADAMI, Milla Baleeiro de Sá. O Erotismo. Científico. Ano III, v. I, Salvador, Janeiro-Junho 2003. CAMARÃO, Adalcinda. Antologia Poética. Belém: Cejup, 1995. COELHO, Marinilce Oliveira. O Grupo dos Novos (1946-1952): Memórias Literárias de Belém do Pará. Belém-Pará: Ed. Universitária UFPA, 2005. DAOU, Ana Maria. A belle époque amazônica. Jorge Zahar Editor, 2000. ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002. FIGUEIREDO, Aldrin Moura. Querelas Esquecidas: O Modernismo Brasileiro Visto das Margens. In: PRIORE, Mary Del, GOMES, Flávio dos Santos (org). Os Senhores dos rios. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003. GOMES, Álvaro Cardoso. O Simbolismo. São Paulo: Editora Ática, 1994. LOUREIRO, João de Jesus Paes, obras reunidas: Cultura amazônica: uma poética do imaginário. São Paulo: Escrituras Editora, 2001. MEDEIROS, Seleneh de. ŖApresentação da obra Caminho do Ventoŗ. In: CAMARÃO, Adalcinda. Antologia poética. Belém: Cejup, 2005. MEIRA, Clóvis.ŖApresentação da obra Antologia Poética. In: CAMARÃO, 2005. MEIRA, Clóvis, ILDONE, José & CASTRO, Acyr. Introdução à Literatura no Pará. Academia Paraense de Letras. 2º volume. Belém: Cejup, 1990. NUNES, Paulo.Os brasis contínuo no Brasil: A modernidade da Amazônia. 2000. ROCHA, Alonso et al. Bruno de Menezes ou a Sutileza da transição: Ensaios. Belém: Cejup, Universidade Federal do Pará, 1994.

OS BLOGS E A CONFIGURAÇÃO DA WEBLITERATURA Jéssica de Souza CARNEIRO (UFPA) Orientador(a): Prof.ª Dr.ª Lilia Silvestre CHAVES (UFPA) RESUMO: As tecnologias digitais trouxeram novas configurações para a comunicação, como um todo, e para a literatura em particular. Uma das mais antigas tecnologias existentes, a escrita, é reconcebida, em função das características técnicas das novas tecnologias. O presente projeto propõe uma discussão sobre os efeitos culturais dos tempos contemporâneos na tendência de fazer literatura, tomando como foco de análise a dimensão virtual ofertada pelas novas tecnologias midiáticas, especialmente a internet. A partir da análise de dispositivos de mídia que se apresentam como espaços de livre circulação e expressão, a exemplo dos blogs, abordaremos a maneira como o campo dos media da contemporaneidade interfere nas práticas literárias atuais, modificando as formas de interação escritor/obra, escritor/leitor e leitor/obra, mediante o engendramento de uma função de mediação que, por sua vez, cria novos processos culturais de remodelamento dos padrões de percepção do mundo, dos indivíduos e da realidade social. Assim, pretende-se investigar as linguagens da


109 Ŗnarrativa onlineŗ, originadas da efetiva exploração por autores dos recursos da hipermídia para a configuração de formatos expressivos próprios do meio em questão, a partir do que será denominado de texto webliterário. PALAVRAS-CHAVE: Contemporaneidade. Blogs. Webliteratura. ABSTRACT: Digital technologies have brought new settings for the communication as a whole, and for literature in particular. One of the oldest existing technologies, the writing, is redesigned, according to the technical characteristics of new technologies. This project proposes a discussion about the cultural effects of contemporary times in the trend of making literature, focusing analysis of the virtual dimension offered by new media technologies, especially the internet. From the analysis of media devices that appear as spaces for free movement and expression, like blogs, discuss how the field of contemporary media interferes with the current literary practices, changing the forms of interaction writer/literature, writer/reader and reader/literature, by engendering a mediation function which, in turn, creates new cultural process of remodeling of patterns of perception of the world, individuals and social reality. We intend to investigate the languages of online narrative, originated by the effective exploitation of resources by authors of hypermedia for setting up own expressive shapes the environment in question, from what is called text webliterary. KEYWORDS: Contemporary. Blogs. Webliterature.

Entramos no século XXI testemunhando uma transformação histórica nas formas de interação do homem com a realidade através da escrita, mudança que está intimamente relacionada com o surgimento de amplos contingentes populacionais providos de informática e de telefonia, conectados por internet, via de fibras óticas, satélites, microondas e um turbilhão de aparatos e potencialidades digitais, que resultam no fenômeno que conhecemos como convergência digital, em que as ferramentas de comunicação são unificadas e rompem a tradicional relação espaço-tempo - virtualiza-se a realidade. A chamada convergência dos meios de comunicação, nesse sentido, vem operando em pelo menos duas vias, a da produção, em que se insere a linguagem, e a da distribuição, na qual o ciberespaço é aglutinador de vários tipos de meios de comunicação Ŕ o livro, o jornal, o rádio e a televisão Ŕ, que, no mundo virtual, encontram um canal a mais para sua representação. Trata-se do resultado mais concreto de uma das maiores transformações culturais em curso: aparecimento do suporte digital traz mudanças em modelos estabelecidos por aquela que conhecemos como Ŗcultura do impressoŗ, ou seja, a maior parte das formas de escrita e de leitura, que faziam parte da nossa cultura antes do aparecimento dos meios digitais de informação e comunicação. No que diz respeito às práticas literárias, estudos recentes investigam o surgimento do


110 que seriam formatos próprios da narrativa nos meios digitais, baseados, principalmente, na hipermídia. Nesse contexto, a internet é presente e seu uso cada vez mais crescente. A chamada realidade virtual suscita inúmeras questões e gera reflexões por todo o mundo, oferecendo possibilidades de um autor, por exemplo, se transformar em personagem, interagir com outros autores e leitores e distanciar-se de suas próprias características e da sua própria identidade. Por outro lado, oferece também a possibilidade de que o autor seja ele mesmo e se expresse como quiser. É nesse cenário que, os blogs1, representando um dos novos gêneros textuais proporcionados por esse universo digital (Marcushi, 2005), se tornaram uma forma de comunicação e expressão tão penetrante e influente que as linhas que os separavam da mídia tradicional praticamente desapareceram. A cada dia, aumenta o número de blogueiros profissionais, semiprofissionais e amadores que estão criando novas experiências de mídia e de práticas literárias, produzindo maneiras diferenciadas de demonstrar subjetividade, redesenhando limites que antes pareciam bastante nítidos, tais como o público e o privado, o íntimo e o social. Estes fenômenos parecem recriar um hábito cuja sentença de morte já tinha sido decretada, que teve seu auge nos séculos XVIII e XIX e estava fortemente vinculado à sensibilidade da época: a paciente e minuciosa Ŗescrita de siŗ nos diários íntimos. A intenção é focalizar um aspecto especialmente significativo das novas Ŗnarrativas do euŗ: sendo expostas aos milhões de olhos que têm acesso à mídia, as confissões cotidianas dos autores revelam uma peculiar inscrição na fronteira entre o extremamente privado e o absolutamente público. Intui-se uma subversão das fronteiras que costumavam separar essas duas esferas no mundo moderno, junto a importantes mutações nos tipos de subjetividades que germinavam nos cenários assim delimitados, com fortes abalos nas noções de interioridade, intimidade e privacidade2

Compreendemos, então, que, nos tempos contemporâneos, as tecnologias digitais inovam no que consiste às relações de interação entre autor/obra, autor/leitor e leitor/obra,

1

Um blog (contração do termo Weblog) é um site cuja estrutura permite a atualização rápida a partir de acréscimos dos chamados artigos ou posts. Estes são, em geral, organizados de forma cronológica inversa e podem ser escritos por um número variável de pessoas. Um blog típico combina texto, imagens e links para outros blogs, páginas da web e mídias relacionadas a seu tema. A capacidade de leitores deixarem comentários de forma a interagir com o autor e outros leitores é uma característica à parte. (Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Blog>. Acesso em: 23 out. 2009). 2 Excerto do artigo ŖOs diários íntimos na Internet e a crise da interioridade psicológicaŗ, de autoria da pesquisadora Paula Sibila, mestre em Comunicação, Imagem e Informação (IACS/UFF) e doutora em Comunicação e Cultura (ECO/UFRJ), disponível no site:<http://www.comunica.unisinos.br/tics/textos/2003/GT12TB6.PDF. Acessado em 05/12/2006>. Acesso em: 23 out. 2009.


111 relação que surge a partir da função de mediação desempenhada pelo texto que se ancora no espaço virtual enquanto suporte de comunicação. E, assim, percebemos que a fragmentação da experiência social coletiva e as mudanças nas formas de sociabilidade e comunicabilidade, consequências da emergência da era contemporânea, vêm interferir fortemente na técnica do fazer literário e, para seguir as exigências da indústria cultural, condicionar as relações entre o Ŗeuŗ e os outros no espaço público midiático, alterando padrões de vida e comportamentos sociais, criando formas sistemáticas de sentir e expressar esse sentimento. O ciberespaço circunscreve esse novo lugar de circulação da escrita, marcado pela pluralidade e heterogeneidade das experiências literárias. Tendo em perspectiva as práticas literárias que encontramos nos blogs da internet, por exemplo, só para citar um dos diversos gêneros para a manifestação da escrita que hoje circulam nesse espaço virtual, observamos que as narrativas hipertextuais aí encontradas possibilitam a convergência de uma linguagem híbrida, a qual mescla comentário, crítica, escrita íntima, prosa, crônica, conto ou poesia, em palavras, imagens ou em audiovisual, ou até mesmo todas as formas reunidas para seguir as características próprias do meio digital. A literatura da contemporaneidade encontra, assim, no ciberespaço um ambiente rico e diverso em possibilidades de expressão, agora, mediadas pelo computador. Nesse mundo, nascidos na era digital compõem sua própria forma de produção webliterária, introjetam o hábito da webleitura ao molde de hipertextos e de maneira cada vez mais aleatória, simultânea, subjetiva, sensorial e heterogênea, fazendo do novo aparato ferramenta não apenas de recepção, mas de produção e reprodução de conhecimento de textos literários. Com vistas a essa discussão, compreendemos que as novas tecnologias da comunicação são tecnologias da linguagem, e têm a capacidade de submeter essa linguagem a novas modalidades de tratamento. O referencial teórico ao qual pretendemos submeter a presente análise passa pela necessidade do entendimento de como ocorreram as transformações que fizeram a tradicional cultura do impresso ganhar uma nova roupagem, caracterizada pela realidade virtual ofertada pelas tecnologias digitais. Ao mesmo tempo, também se faz necessário especificar as novas singularidades da manifestação literária na internet, a partir de análises do tipo de narrativa manifestado no gênero textual blog. O fenômeno de convergência digital nos mostra que o fim da editora tradicional como historicamente a conhecemos, talvez, esteja próximo. Atualmente, a literatura está praticamente fora dos interesses dos editores e livreiros. Publicam-se todo ano, no Brasil,


112 milhares de livros de poesia e prosa de ficção quase sempre à custa dos próprios autores e em pequenas tiragens. As exceções seriam os clássicos, que têm como leitores estudantes e escritores; e os best sellers, produzidos segundo os moldes da indústria cultural. Diante desse contexto, a (neo)literatura (presente e futura) tem cada vez mais facilidade em ser editada por conta dos próprios autores e de pequenas editoras, que encontram no espaço digital uma nova perspectiva de expressão para a busca de uma forma diferenciada de alcance do público, este cada vez mais imerso nas tendências tecnológicas do século XXI. Segundo Maciel (1998)1, acontece, então, de muitos autores escreverem para si mesmos ou para outros escritores, como se a literatura fosse a linguagem de uma sociedade emergente, com símbolos próprios. ŖSeria a criação de uma literatura que sai do plano mercadológico em contraposição à subliteratura ou a uma literatura 'popular', do gosto das massasŗ. Saindo do âmbito dos suportes tradicionais para explorar as possibilidades que quebram todas as fronteiras espaço-temporais até hoje conhecidas, potencializadas pela internet, os escritores não-mercantis não estariam voltados para o leitor, para o outro, mas para si mesmos. E dessa forma, haveria, então, uma literatura sem mercado ou fora dele (produzida no espaço público virtual) e uma literatura produzida especialmente para o mercado (aquela pré-produzida pelas editoras empresariais). À luz de conceitos como o da indústria cultural (ADORNO & HORKHEIMER, 1987), que compreende a conversão da cultura em mercadoria, fica mais claro perceber que, a partir de certo momento sócio-histórico, é cada vez mais evidente a necessidade de se criar uma relação diferenciada entre as formas poéticas tradicionais e os novos meios de difusão da mensagem. O ciberespaço (LÉVY, 1999), assim, apresenta-se como uma direção inevitável para o escritor contemporâneo reformular sua posição enquanto agente de um processo de comunicação, procurando abrir-se à possibilidade de atingir o grande público. As novas tecnologias, então, permitem à literatura se tornar capaz de entrar em comunicação com os homens nas condições próprias que a contemporaneidade oferece, à mercê do tom narrativo característico do lirismo tradicional, conforme propõe Chartier (1999): Esta encarnação característica do texto numa materialidade específica carrega as diferentes interpretações, compreensões e usos de seus diferentes públicos [(...)]. O texto eletrônico torna possível uma relação muito mais distanciada, não corporal. O mesmo processo ocorre com quem escreve. Aquele que escreve na era da pena produz uma grafia diretamente ligada a seus gestos corporais. Com o computador, a mediação do teclado, que já 1

Artigo ŖLiteratura e Mídiaŗ, publicado na revista Literatura, Brasília, setembro de 1998. Nilto Maciel é editor da revista Literatura.


113 existia com a máquina de escrever, mas se amplia, instaura um afastamento entre o autor e seu texto (CHARTIER, 1999, P.16).

Autores como Lemos (1993, p.14) sugerem que Ŗtoda a economia, a cultura, o saber, a política do século XXI vão passar por um processo de negociação, distorção, apropriação dessa nova dimensão espaço-temporal, que é o ciberespaçoŗ. Lemos diz ainda: Hoje entendemos o ciberespaço segundo duas perspectivas: como o Ŗlugarŗ onde estamos quando entramos num ambiente virtual (realidade virtual), e como o conjunto de redes de computadores, interligadas ou não, em todo o planeta (LEMOS, 1993, p.14).

Com os hipertextos, textos compostos por blocos de informação não só verbais, mas também sonoras e visuais (quando se torna hipermídia), que pode ser lido por meio de conexões, a figura do escritor e também a do leitor são substituídas pela dos Ŗnavegadoresŗ da Internet, ou Ŗleitores imersivosŗ, no dizer de Santaella (2007, p.321), que teriam na hipermídia um espaço no qual se supõe um Ŗdesenho estrutural para sua inserção interativaŗ (SANTAELLA, 2007, p.321). Os avanços técnicos ligados ao computador, portanto, como a hipermídia, apontam para uma nova forma de expressão da escrita com base em meios audiovisuais e também para a necessidade de novos parâmetros de leitura e fruição por parte dos receptores, os quais, simultaneamente, podem ocupar ainda o lugar de emissores. Como afirmou McLuhan, citado por Lemos (1993, p.15), ŖGutemberg nos fez leitores, a máquina de xerox nos fez editores e a eletrônica e os computadores em rede nos faz autoresŗ. Sobre isso, a justificativa está no fato de que todas as formas de sociabilidade contemporâneas encontram na tecnologia um potencializador, um catalisador, um instrumento de conexão, que envolve a ideia de múltiplas relações na produção das configurações sociais e subjetivas, buscando traduzir a complexidade dessas relações. Na rede, cada Ŗnavegadorŗ é, ao mesmo tempo, um autor, cuja atividade consiste em fazer alianças com novos elementos, e um leitor, capaz de redefinir e transformar seus componentes. Ou seja, um autor, no ciberespaço, é um leitor moldado por relações heterogêneas (e vice-versa), pois ele é um efeito de rede que, por sua vez, participa e molda outras redes. O ato de se conectar ao ciberespaço sugere versões dos ritos de agregação e de separação, onde a tela do monitor possibilita a passagem a um Ŗoutro mundoŗ. A tela é a fronteira entre o individual e o coletivo; entre o orgânico e o artificial; entre o corpo e o espírito. O ciberespaço é onde se realizam


114 ritos de passagem do espaço físico e analógico ao espaço digital sem fronteiras, do corpo Ŗátomoŗ ao corpo Ŗbitŗ 1. Conectar-se ao ciberespaço significa ainda, a passagem da modernidade (onde o espaço é esculpido pelo tempo) à pós-modernidade [ou contemporaneidade] 2 (onde o tempo aniquila o espaço); de um social marcado pelo indivíduo autônomo e isolado ao coletivo tribal e digital (LEMOS, 1993, p.21).

Assim, a dinâmica cultural do desenvolvimento das redes de computadores e seu crescimento exponencial caracterizam o ciberespaço como um Ŗorganismoŗ complexo, interativo e auto-organizante. O computador torna mais fácil produzir, reproduzir e transmitir trabalho cultural, acelerando potencialmente os ganhos intelectuais e abrindo o acesso cultural de forma sem precedentes. Aí, a noção de mediação oferece um modelo que supera a visão reducionista de uma única modalidade de mídia e chama a atenção para as diferentes ordens de tensão existentes nesse campo, quando se trata da hipermídia, e as relações que se estabelecem entre os agentes da mídia e os demais atores sociais. E sobre a articulação e convergência de diferentes campos sociais sob a égide de campos de mediação, temos como referencial Adriano Duarte Rodrigues (2001), para quem tornou-se um lugar comum dizer que vivemos hoje numa sociedade midiática em que a realidade reproduz em grande medida aquilo que os media selecionam, tratam e difundem. Alguns autores utilizam, inclusive, o conceito de sociedade da informação para designar este mundo mediatizado em que hoje vivemos. De facto, a percepção que temos hoje do mundo tornou-se dependente de complexos e permanentes dispositivos de mediatização que marcam o ritmo da nossa vida cotidiana, sobrepondo-se cada vez mais não só à nossa percepção imediata do mundo, mas também aos ritmos do funcionamento das instituições que formam os quadros da nossa experiência individual e colectiva (RODRIGUES, 1999, p. 1)3.

Compreende-se, portanto, que, com a internet, são cada vez mais complexos os dispositivos técnicos de mediação que ajustam a nossa percepção do mundo às suas capacidades de simulação. A experiência agora é virtual, mediada pela técnica, e o padrão de realidade acaba sendo cada vez mais o simulacro (BAUDRILLARD, 1991) 4. E, no interior

1

Contração de binary digit ou dígito binário, sistema que codifica e decodifica a informação digital. Usaremos aqui o termo Ŗcontemporaneidadeŗ em vez de Ŗpós-modernidadeŗ por não acreditar na ocorrência de uma ruptura entre o período da modernidade e o momento seguinte, uma vez que o Ŗpós-modernismoŗ é mais um conceito de contraste, de reação ao Ŗmodernismoŗ, do que de rompimento mesmo, como sugere David Harvey em 1998 (ver bibliografia). 3 RODRIGUES, Adriano Duarte. Experiência, modernidade e campos dos media. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1999. Disponível em: <www.bocc.ubi.pt>. Acesso em: 14 jul. 2009. 4 Baudrillard retoma o conceito simulacro dos filósofos gregos e leva este conceito para o de uma imagem que 2


115 dessas práticas, encontramos certa proliferação de narrativas autobiográficas e/ou ficcionais, como imitação de realidade, em blogs confessionais, que colocam na internet descrições e imagens da vida cotidiana e da vida Ŗprivadaŗ. Nesse sentido, cabe verificar o trabalho de Néstor Garcia Canclini (1993, p. 34-35) e Barbero (1995, p. 65), os quais, respectivamente, afirmam que: Nesse momento, a comunicação cultural deixa de assumir a figura do intermediário entre criadores e consumidores para assumir a tarefa do mediador que atua na abolição das barreiras e das exclusões sociais e simbólicas, no deslocamento do horizonte informativo das obras para as experiências e as práticas, e na desterritorialidade das múltiplas possibilidades da produção cultural. Essa transformação das relações entre o público e o privado no consumo cultural cotidiano representa uma mudança básica das condições em que deverá se exercer um novo tipo de [sociabilidade].

Entendemos, então, que a comunicação mediada por computador abrange vários formatos literários e os respectivos gêneros que emergem nesse contexto. Segundo Maruschi (2005), assim como chats, fóruns e e-mails, o blog pode ser considerado um novo gênero digital. Concebido como um espaço em que o blogueiro pode expressar o que quiser na atividade da prática literária, com a escolha de imagens e de sons que compõem o todo do texto veiculado pela internet, o blog possibilita a manifestação do modo narrativo em formato de hipertexto, uma vez que os chamados posts (entrada de texto efetuada num blog) podem conter muitos elos para acesso externo a outros blogs e outros textos, por meio de links. Dentre outras características, as narrativas hipertextuais publicadas em blogs são organizadas em uma linha cronológica de tempo, de acordo com a data de publicação; estão associadas a seções para a publicação de comentários dos leitores; e geralmente apresentam linguagem informal e espontânea, que revelam o uso de verbos na primeira pessoa do singular. As práticas literárias no ciberespaço, portanto, refletem ainda uma outra tendência da contemporaneidade que consiste em um movimento que investe prioritariamente na busca de visibilidade e interatividade. A interatividade significa uma diferenciação na relação do usuário com a informação que se torna visível. Segundo Shedroff (1994), a interatividade inclui a quantidade de controle que a audiência tem sobre as ferramentas e sobre o conteúdo; a quantidade de escolhas que este controle oferece, e a habilidade para usar a ferramenta ou o conteúdo com o objetivo de ser produtivo ou criar (SHEDROFF, 1994, p. 9).

inventa a realidade (ver bibliografia).


116 Nesse sentido, pretendemos analisar exemplos de narrativas hipertextuais publicadas em blogs pré-selecionados e, assim, verificar os formatos de linguagem da webliteratura. Isso porque uma das manifestações mais explícitas dos formatos da linguagem digital, no caso das práticas literárias, aparece através desses produtos narrativos. A pesquisa ŖAs tecnologias digitais e a configuração da webliteratura Ŕ Uma análise das narrativas hipertextuais publicadas em blogsŗ está em fase de produção no Mestrado em Estudos Literários do Instituto de Letras e Comunicação, da Universidade Federal do Pará (ILC/UFPA). O trabalho busca analisar três grupos de blogs: o primeiro referente a blogs de autoria de escritores profissionais; o segundo formado por blogs mantidos por pessoas que têm a escrita como profissão, mas não são consagrados no meio literário, a exemplo de jornalistas, professores de Letras ou críticos literários; e o terceiro enquadrando os blogs de escritores amadores, dos quais a blogosfera está repleta: escritores anônimos e nomeados, fictícios e reais, que encontram na rede um canal para externar gratuitamente suas produções. A ideia é a de elencar dois blogs em cada grupo e estabelecer análise individual, contextual e comparativa entre os grupos e entre os blogs. Como representante do primeiro grupo, por exemplo, elegemos os blogs Portal Literal1 e o Caderno de Saramago2. O que se pretende é discutir sobre o que já há disponível na internet que pode ser classificado como oficialmente literário e o que pode gerar dúvidas no que tange à literariedade das informações disponibilizadas. É o caso do Portal Literal, administrado pela pesquisadora das Letras, Heloisa Buarque de Holanda, classificado como Ŗum projeto que pretende levar à internet o melhor da produção literária nacionalŗ, 3 hospedando informações sobre vida e obra de escritores consagrados como Ferreira Gullar, Rubem Fonseca, Lygia Fagundes Telles, Zuenir Ventura, Luis Fernando Veríssimo, e oferecendo espaço para diversos Ŗautoresŗ (blogueiros, embora não necessariamente escritores profissionais) postarem notícias, entrevistas, reportagens, resenhas e artigos sobre literatura. Já o Caderno de Saramago, supostamente de autoria do recém-falecido escritor português José Saramago, nos oferece a discussão sobre a identidade do autor na internet, uma vez que há especulações sobre a real identidade de quem, de fato, escrevia no referido blog utilizando o nome do escritor. No segundo grupo de blogs, um dos representantes é o Todo Prosa4, do escritor Sérgio Rodrigues, que apresenta em seus posts entrevistas, resenhas e artigos literários. A escolha se 1

Disponível em: <http://www.literal.com.br/>. Acesso em: 6 jul. 2010. Disponível em: <http://caderno.josesaramago.org/category/o-caderno-de-saramago>. Acesso em: 6 jul. 2010. 3 Disponível em: <http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/?p=736>. Acesso em: 6 jul. 2010. 4 Disponível em: <http://veja.abril.com.br/blog/todoprosa>. Acesso em: 6 jul. 2010. 2


117 justifica pela oportunidade de avaliar a expressão de uma Ŗcrítica autorizadaŗ manifestada em um novo suporte, o qual oferece recursos diferenciados para a manifestação de opiniões. Outro blog escolhido para este grupo é o Bêbado Gonzo1, do jornalista Anderson Araújo, que se aproveita claramente do espaço ofertado pelos blogs para exercitar um novo estilo literário, o qual permite a parcialidade da informação, característica totalmente inaceitável no jornalismo enquanto gênero da escrita. Por fim, para o último grupo, elegemos os blogs Mafalds2 e Vago3 de escritores amadores, que podem ser fictícios ou reais e que encontram na rede um canal para externar gratuitamente suas produções com finalidades diversas. No caso de Mafalds, vemos o espaço do weblog como evasão de uma escrita íntima. Enquanto que o Vago utiliza o domínio do blog como um espaço para a experimentação literária. Em síntese, demonstraremos que os usos mais inovadores das possibilidades hipermidiáticas efetivamente estão levando o discurso narrativo rumo ao que chamamos de texto webliterário, que segue a linguagem da textualidade eletrônica formada pelo hipertexto, próprio ao ambiente online de informação e comunicação. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, Theodor. ŖA indústria culturalŗ. In: Comunicação e indústria cultural. Gabriel Cohn (Org.). São Paulo: Nacional / EDUSP, 1987. BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação (trad. Maria João da Costa Pereira). Lisboa: ed. Relógio Dřágua, 1981. CANCLINI, Néstor Garcia. Consumidores e cidadãos; conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1995. CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. (trad. Reginaldo de Moraes). São Paulo: Editora UNESP / Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999. HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança Cultural. 6ª ed. São Paulo: Loyola, 1996. LEMOS, André. ŖA Estrutura Antropológica do Ciberespaçoŗ. In: Textos, nº 35. Facom/UFBA, julho 1993. LÉVY, Pierre. ŖO ciberespaço ou a virtualização da comunicaçãoŗ. In: Cibercultura. (trad. Carlos Irineu da Costa). São Paulo: Ed. 34, 1999. MACIEL, Nilto. ŖLiteratura e Mídiaŗ. In: Revista Literatura. Brasília, setembro/1998. MARCUSHI, L. A; XAVIER, A. C. Hipertexto e gêneros digitais: novas formas de construção de sentido. Rio de Janeiro: Lucena, 2005. MARTÍN-BARBERO, Jésus. ŖIndústrias Culturais: modernidade e identidadeŗ. In: Indústrias culturais e os desafios da integração latino-americana. Organizadora M. Krohling Kunsch Ŕ São Paulo: Intercon, 1993. 1

Disponível em: <http://bebadogonzo.blogspot.com>. Acesso em: 6 jul. 2010. Disponível em <http://egotrincheiras.blogspot.com/p/eu.html>. Acesso em: 6 jul. 2010. 3 Disponível em: <http://va-go.blogspot.com>. Acesso em: 6 jul.2 010. 2


118 RODRIGUES, Adriano Duarte. Estratégias da Comunicação: questão comunicacional e formas de sociabilidade. 3ª ed. Lisboa: Presença, 2001. _______________. Experiência, modernidade e campo dos media. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1999. Disponível em: <www.bocc.ubi.pt>. Acesso em 14 de jul. 2009. SANTAELLA, Lúcia. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus, 2007. SHEDROFF, Nathan. Information Interaction design: a unified field theory of design. (1994). Disponível em: <http://www.nathan.com/thoughts/unified/>. Acesso em 4 mar. 2009.

WEBQUEST-SEQUÊNCIA DIDÁTICA: UMA FERRAMENTA TECNOLÓGICA PARA A AVALIAÇÃO DO ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUA MATERNA Keifer Eleutério RODRIGUES (UFPA) Orientador(a): Prof.ª Dr.ª Myriam Crestian Chaves da CUNHA (UFPA)

RESUMO: Este artigo abordará a questão da utilização da Internet no ensino/aprendizagem de línguas, mais especificamente o uso da Webquest juntamente com o procedimento seqüência didática, como recurso didático pedagógico que auxilia na apropriação de competências linguageiras, focando-se o processo de aquisição de gêneros textuais. A princípio, se realizará uma reflexão em torno da necessidade de inserção das Novas Tecnologias da Informação e Comunicação na escola, apresentando-se os benefícios e as dificuldades que esta suscita, deste modo, tratando de questões como as das abordagens metodológicas/teóricas que orientam esta prática e de algumas problemáticas na educação; posteriormente se recomendará o trabalho com uma perspectiva de ensino de natureza formadora, por um viés funcional-pragmático, para tanto, se utilizará como instrumento metodológico a Webquest trabalhada em conjunto com a seqüência didática. Neste contexto, se definirá mais especificamente os procedimentos metodológicos da Webquest e da seqüência didática, em que a primeira foca na questão da utilização da Tecnologia Educacional, que permite a interação do aluno com variadas informações, pessoas e com os gêneros dentro de seus suportes autênticos, e a segunda permite uma aproximação mais precisa com os processos de natureza formativa e da a língua em seu uso real. O objetivo principal deste trabalho é defender a hipótese de que a Webquest na junção com a seqüência didática favorece procedimentos (auto)avaliativos e de (auto)regulação da aprendizagem, indispensáveis ao desenvolvimento das competências linguageiras na produção escrita, contribuindo também no processo de inclusão social e tecnológica do aluno. Portanto, se fundamentará a reflexão no tripé teórico constituído por estudos sobre Novas Tecnologias da Informação e Comunicação na Educação, concepção interacional de ensino-aprendizagem da língua materna e concepção formativa da avaliação da aprendizagem. PALAVRAS-CHAVE: Webquest, seqüência didática, avaliação formativa. ABSTRACT: This article will address the issue of Internet use in teaching and learning of languages, more specifically the use of the Webquest conjunction with the procedure teaching sequence, as a teaching resource that assists in teaching language skills appropriation, focusing on the textual genre acquisition. At first, there will be a reflection on the necessity of including the New Information Technologies and Communication in school, presenting the benefits and difficulties that this raises, thus, it dealing with issues such as methodological approaches / theories that guide this practice and some problems in education; subsequently it will recommend working with a teaching of nature forming, by a functional-pragmatic bias,


119 for so much, will be used as a methodological tool Webquest in conjunction with the teaching sequence. In this context, we define more specifically the methodological procedures of the Webquest and teaching sequence, the first focuses on the question of Educational Technology use, that it allows the interaction of students with varied information, people and genres within their authentic supports, and the second allows a more accurate aproximation with the processes of formative nature and the language in actual usage. The main objective of this work is to defend the hypothesis that the Webquest at the junction with the teaching sequence favors (auto)evaluative and (self-) regulation procedures of learning, indispensable for the development of language skills in written production, also contributing to student's inclusion process social and technology. Therefore, it will be the foundation for theoretical reflection on the tripod formed by studies on New Information Technologies and Communication in Education, designing interactive teaching-learning the mother tongue and designing formative assessment of learning. KEYWORDS: Webquest, teaching sequence, formative assessment. INTRODUÇÃO

Estamos submersos em uma sociedade que é atravessada por um novo discurso, o da era tecnológica, em que todas as esferas de nosso cotidiano remetem a práticas que necessitam ou envolvam de algum modo às Novas Tecnologias da Informação e da Comunicação, desta forma, Ŗexigindo das pessoas, das instituições e da sociedade como um todo, a busca de formas de inserção e participação na nova realidade" (SIMÕES, 2002). Portanto, a escola precisa se engajar neste atual quadro tecnológico, buscando inserir e preparar o aluno para esta realidade de novas exigências, assim encarando a aprendizagem como um processo que precisa de uma metodologia que caminhe de acordo com os avanços da sociedade atual. Apesar disto, verifica-se pouca freqüência na utilização das ferramentas tecnológicas na sala de aula e quando é realizada esta prática, ela é feita de maneira equivocada, por um viés mecanicista, em que estes instrumentos servem apenas para a transmissão de informações, sem qualquer reflexão ou mediação de saberes entre aluno e professor, ou propiciando a construção mútua do conhecimento (FREIRE, 1996). Deste modo, são os professores que a priori necessitam de uma melhor formação, que possibilite um trabalho mais eficiente com as novas tecnologias e em se tratando da mediação de conhecimento (SAMPAIO; LEITE, 1999), pois muitos acreditam erroneamente, que basta a inserção destas ferramentas no cotidiano escolar, que assim se promoverá um ensino produtivo.


120 1. TECNOLOGIAS E ENSINO DE LÍNGUA MATERNA São inúmeras as vantagens inerentes à utilização dos recursos tecnológicos na escola. Os instrumentos tecnológicos permitem um acesso mais rico, rápido e igualitário, a uma gama variada de conhecimento produzido no decorrer da história e ao contato social e cultural diversificado, sendo a distância não mais empecilho para a interação entre os sujeitos e saberes, além de facilitar a superação do entrave de exclusão social, tanto em se tratando de pessoas com algum tipo de deficiência física, que seriam auxiliadas por estes recursos nas suas práticas cotidianas, como referente a pessoas excluídas de certos âmbitos sociais, por não possuírem domínio sobre determinados conhecimentos (SAMPAIO; LEITE: 1999). Ademais, estas ferramentas tecnológicas permitem um ensino contextualizado, pois possibilitam o acesso a variados gêneros de texto do dia-a-dia do aluno, dentro de seus autênticos e dinâmicos suportes, sendo exemplos reais de textos a serem trabalhados com os alunos em sala, pois segundo os PCNS (Parâmetros Curriculares Nacionais), o ensino de línguas deve centrar-se na diversidade de gêneros e de situações de produção, devendo ultrapassar a interação dialógica da sala de aula, procurando desenvolver as competências de produção de textos em seus contextos reais de uso, o que pode fazer com que o aluno enxergue uma função social para as atividades desenvolvidas em sala de aula. Entretanto, isso não significa que a tecnologia como instrumento didático será a Ŗfórmula mágicaŗ que irá resolver antigos problemas do ensino da língua materna - que circundam questões como as de concepção de língua e linguagem, de ensino e aprendizagem, de avaliação etc. Ŕ pois como já foi citado, estas tecnológicos podem ser usados por um viés que focalize práticas descritivistas e prescritivistas do ensino normativo, ou numa perspectiva de ensino funcional-pragmática de natureza formadora, que trabalhe a língua em seus usos reais. A maneira como estas ferramentas são utilizadas é fundamental, ou seja, os tipos de abordagens teóricas que orientariam esta prática serão essenciais na elaboração de um trabalho eficiente com estas tecnologias. Sugere-se então uma proposta de ensino centrado em uma perspectiva de língua dinâmica e heterogênea, que considere o sujeito como atuante e a língua como meio de sua atuação, permitindo que este sujeito se posicione de maneira crítica e desempenhe produtivamente seu papel de cidadão na sociedade (ANTUNES, 2003). Para tanto, tem-se como base norteadora uma concepção Pragmática de linguagem, que leva em conta o uso real


121 da língua, concebendo-a como lugar de interação e ação social1, e visa-se uma metodologia que utiliza a Tecnologia Educacional2 como ferramenta auxiliadora no processo de ensino-aprendizagem de língua materna.

2. A WEBQUEST: CONCEITUAÇÃO E SUAS PARTES

Uma proposta que se centra no uso das novas tecnologias como recurso didático e pode ser usada de maneira produtiva é a atividade Webquest (WQ daqui em diante). Segundo Bernie Dodge (1995) a WQ Ŕ Ŗwebŗ3 ou Rede de alcance mundial e Ŗquestŗ, Ŗbuscaŗ em inglês - é um tipo de busca orientada na Internet 4, em que quase todos os recursos utilizados são provenientes da mesma. Trata-se de uma espécie de tarefa virtual, por ocorrer Ŗon-lineŗ, isto é, ligado a rede da Internet, que aproveita a imensa riqueza de informações veiculadas na Web. Dodge (1995) a conceitua como sendo: Ŗuma atividade investigativa, em que alguma ou toda informação com que os alunos interagem provém da Internetŗ. Dogde, ao ministrar um curso de capacitação de professores, notou que apenas obter informações na Internet não era suficiente, faltava um contexto significativo. Assim ele criou e propôs aos alunos uma determinada situação simulada dentro de uma atividade educativa e ficou impressionado com a produtividade do seu experimento. Os alunos alcançaram um domínio de conteúdo muito mais expressivo que o verificado em situações convencionais de ensino. Em geral a WQ é elaborada pelo professor para ser solucionada pelos alunos. Esta parte de uma temática e propõe a resolução de uma tarefa que exige investigação em livros, vídeos e de preferência em páginas da internet. Deste modo, se promoveria um trabalho de reflexão a respeito da autonomia que o educando precisa ter a fim de direcionar sua aprendizagem, mais especificamente sua Ŗnavegaçãoŗ na Web, aprendendo a selecionar informações e filtrá-las e interagir tanto com textos virtuais, como com o professor, e com Ŗinternautasŗ, para chegar a uma aprendizagem de fato. A WQ é composta no geral por sete seções, que podem ser alteradas pelo seu produtor: 1

Os sujeitos (interlocutores) ocupam lugares sociais, Ŗfalamŗ e Ŗouvemŗ, exercendo assim seus papéis sociais, deste modo levando-se em conta: o contexto sócio-comunicativo de produção, os sujeitos falantes/ouvintes envolvidos na enunciação e suas intenções (TRAVAGLIA, 1996). 2 Ŗ... a forma sistemática de planejar, implementar e avaliar o processo total da aprendizagem e da instrução em termos de objetivos específicos, baseados nas pesquisas de aprendizagem humana e comunicação e materiais, de maneira a tornar a instrução mais efetivaŗ (LUCKESI,1986: 56). 3 Sistemas de documentos em hipermídia que são interligados e executados na Internet. 4 A Internet é um conglomerado de redes em escala mundial de milhões de computadores interligados que permite o acesso a informações e todo tipo de transferência de dados.


122 - Introdução: um texto curto que apresenta o tema e antecipa aos alunos quais atividades eles terão de realizar; - Tarefa: expõe, de forma clara e motivadora, que Ŗprodutoŗ se espera dos alunos ao final da WQ, como por exemplo, a resolução de um problema; a solução de um mistério; a formulação e defesa ou qualquer coisa que exija dos aprendizes processarem e transformar as informações coletadas; - Processo: apresenta detalhadamente os passos que os alunos terão de seguir para desenvolver a Tarefa; - Fontes de Informação: traz os sites, livros, vídeos etc. que o professor escolhe e que devem ser consultados pelos alunos na realização da Tarefa; - Avaliação: informa aos alunos como o seu desempenho será avaliado, expondo os elementos que serão considerados, os parâmetros de avaliação; - Conclusão: resume os assuntos explorados na WQ e os objetivos atingidos. É também lugar de incentivo para a continuidade de reflexão sobre o assunto tratado, a partir de questionamentos e links adicionais. - Créditos: apresenta as fontes de todos os materiais utilizados pelo autor para a produção da WQ, como imagens, músicas, livros, sites, páginas da Web. Uma WQ bem elaborada permite alcançar objetivos educacionais bastante relevantes como: garantir acesso a informações autênticas e atualizadas, promover aprendizagem cooperativa, desenvolver habilidades cognitivas, transformar informações ativamente, incentivar a criatividade e favorecer o trabalho de autoria dos participantes (alunos, professor, escola, comunidade etc.). A atividade WQ envolve níveis cognitivos variados como por exemplo: conhecimento, compreensão, aplicação, análise, síntese e avaliação, segundo a nomenclatura de Bloom1, desta forma, ela se constitui como uma alternativa para o ensino de Língua Materna. Portanto, os recursos tecnológicos teriam um importante papel na prática pedagógica, abarcando desde o princípio da mediação-interativa de conhecimentos entre professor e aluno, até o procedimento integral de avaliação da aprendizagem do discente. Contudo, é importante frisar que estas ferramentas educacionais não devem ser tomadas como algo que independe da orientação de professores, dentro de um contexto educacional propício e inovador, mas sim como auxiliador e otimizador do acesso e interação entre pessoas e conhecimentos.

1

Benjamin Bloom e outros estudiosos criaram uma divisão de objetivos educacionais em três partes: cognitiva, afetiva e psicomotora.


123 3. WEBQUEST E AVALIAÇÃO FORMATIVA

Em se tratando da esfera da avaliação do aprendizado do aluno, como já foi citado anteriormente, estas ferramentas também podem ser consideradas produtivas, no caso mais específico da WQ, verifica-se que uma de suas secções, a denominada ŖAvaliaçãoŗ, é centrada nesta questão, expondo ao aluno os critério de sua avaliação, isto é, discutindo claramente que habilidades este precisa desenvolver para ser bem sucedido na tarefa proposta. Esta fase do procedimento e outras acabam remetendo em alguns aspectos à noção de Avaliação Formativa (AF daqui em diante), como veremos a seguir. Primeiramente elucidaremos alguns aspectos alusivos à concepção de AF. Na AF defende-se que se deixe de priorizar o único aspecto considerado pela avaliação somativa tradicional - a atribuição de um "juízo de valor" ao conhecimento do aluno - e que se passe a valorizar outras esferas importantes do processo de ensino/aprendizado, como a relação de parceria autônoma entre professor e aluno na construção do conhecimento. Esta é resultante de uma forma de um ensino-aprendizagem reflexivo, em que se leve em conta não só os produtos da avaliação, mas os processos destinados a regular e melhorar as aprendizagens e o ensino, onde os alunos possuem um papel relevante a desempenhar (LUCKESI, 2003: 99). A AF não está focada nas Ŗnotasŗ obtidas pelos alunos ou com Ŗresolver provasŗ (pedagogia do exame), mas sim com o desenvolvimento efetivo do discente, com sua aprendizagem, como se pode ver no excerto: ŖA preocupação do professor não é, pois, Řcomo gerar notař, mas, fundamentalmente, Řcomo gerar aprendizagemřŗ (VASCONCELOS, 2003: 97), mas, geralmente a avaliação escolar foca-se somente em Ŗdar notaŗ, sendo concebida apenas como a memorização mecânica de conteúdos que devem ser Ŗdevolvidosŗ no momento da realização das Ŗprovas avaliativasŗ, o que gera a fragmentação dos saberes e descontinuidade com o cotidiano do aluno. A AF centra-se em conceitos de interação, de processos cognitivos e de feedback, regulação, autoavaliação e de autorregulação do aprendizado (FERNANDES, 2006: 22). Estes processos seriam instrumentos de regulação das aprendizagens, servindo como base para intervenções didáticas, que permitam que os próprios alunos possam de maneira mais autônoma regular sua aprendizagem e assim se auto-avaliar. Estes conceitos veiculados na concepção de AF possuem imbricações implícitas com as teorias contidas na concepção de Tecnologia Educacional, e mais especificamente com a


124 WQ, que propicia a efetivação dos processos de feedback, autoavaliação, regulação e autorregulação pertencentes a AF. Este fato pode ser observado mais explicitamente, como já citado, na secção Ŗavaliaçãoŗ da WQ, em que se busca discutir com o aluno seu atual estado no processo de ensino-aprendizagem, e que competências ele necessita atingir para adquirir um dado conhecimento e realizar de modo eficaz a dada tarefa da WQ, o que proporcionaria sua autorregulação e autoavaliação. Outro exemplo de relação direta entre as teorias da AF com a WQ é o ensino reflexivo, pois esta forma de atividade não é mais uma tradicional solicitação direta de conteúdos desconexos e descontextualizados, pois a construção dos conhecimentos é realizada por meio de interações/mediações contínuas entre professor e aluno, por meio do e-mail, fóruns da Webquest, MSN, e em sala de aula, paulatinamente durante a resolução da tarefa da Webquest; Internet e aluno, através da busca quase que autônoma de conhecimentos na Internet; gêneros digitais e aluno, internautas e aluno etc. A Webquest apesar de ter um potencial formativo, muitas vezes esse potencial é anulado, ou seja, o cerne das atividades desenvolvidas na WQ acabam sendo fundamentalmente a simples transmissão de conteúdos declarativos ou da nomenclatura Gramatical, sem qualquer reflexão sobre os usos da língua, deste modo, o que se vê são frases soltas, gêneros ou tipos textuais sem qualquer contextualização, fora de seus suportes autênticos, conteúdos totalmente distantes da realidade do aluno e exercícios sem a reflexão do aluno, com respostas mecânicas, que somente verificam se o aluno é capaz de recuperar ou memorizar conteúdos declarativos. Acabando por não permitir a autoavaliaçao e autorregulação do aprendiz, pois não promove a reescritura ou revisão de seu texto, apenas indica e tenta discutir com este os aspectos, que servirão de parâmetro de sua avaliação, ou de modelo textual para sua escrita, na verdade apenas pontua de modo linear os itens de um bom texto, atribuindo a estes uma escala de pontuação, deste modo, não há a interação ou a construção mútua dos conhecimentos ou a regulação da aprendizagem por parte do aluno e do professor.

4. WEBQUEST MAIS A SEQÜÊNCIA DIDÁTICA

Um modo de recuperar essa natureza formativa da Webquest é adaptá-la ao procedimento seqüência didática (SD) de Dolz e Schneuwly (2004), apesar deste também poder ter seu caráter formativo esvaziado, o que é mais raro e difícil de ocorrer. A SD consiste em uma espécie de atividade continuada, que envolve uma série de


125 exercícios em torno de um determinado gênero oral ou escrito, que se realizam em módulos. Mais especificamente, a seqüência didática se realiza da seguinte maneira: primeiramente apresenta-se a situação ao aluno, na qual se descreve de maneira detalhada a tarefa que ele deve desempenhar, culminando na produção de um primeiro texto por parte do discente. Nesta fase, o docente pode avaliar, que capacidades o aluno já possui e quais ele precisa adquirir para dominar o gênero abordado, ajustando as atividades e exercícios previstos na seqüência à realidade da turma. Ademias, ela irá definir para o educando o que seria uma seqüência, que habilidades ele precisa desenvolver para melhorar sua produção textual. Posteriormente, colocam-se em vigor os módulos da seqüência, constituídos por vários exercícios que deverão abordar as especificidades do gênero em questão, podendo-se utilizar os aspectos do gênero destacados por Bakhtin, conteúdo, organização e estilo, buscando-se dar instrumentos para os alunos no processo de assimilação do gênero, sendo os problemas de produção e características do gênero, trabalhados de maneira sistemática e aprofundada. E como última etapa, apresenta-se a produção final do aluno, em que ele pode por em prática todos os conhecimentos adquiridos com relação ao gênero trabalhado, medindo junto com o professor os progressos alcançados. A seqüência didática apesar de possuir um caráter formativo em sua essência, despende muito esforço para o professor na realização de seus módulos, pois é bastante trabalhoso colocar os alunos em contato com diversos elementos do gênero trabalhado (estrutura, conteúdo temático e contexto), além de outros gêneros que podem servir de apoio para o ensino do gênero abordado, e também com os variados suportes autênticos desses gêneros, tornando a situação/contexto de ensino mais próximo possível do real. A junção dos dois procedimentos metodológicos (WQ e SD) vai proporcionar ganhos para ambos, em que um poderia complementar o outro ou retificar suas lacunas. Seria viável e simplificado inserir uma SD em uma WQ, pois ambas têm módulos/seções parecidas, sendo também dois procedimentos bastante maleáveis quanto a sua estruturação, desta forma, poderíamos recuperar a natureza formativa da Webquest e enriquecer e facilitar o procedimento da seqüência didática. Essa melhoria se daria não somente quanto à otimização do acesso do aluno e do professor aos dados que vão sustentar os módulos da SD, facilitando também a organização dos mesmos, que seriam anexados nas páginas da Webquest, como também se permitiria o acesso destes gêneros dentro de seus contextos reais e dinâmicos, ultrapassar a interação dialógica da sala de aula, o que pode fazer com que o aluno enxergue uma função social para as atividades desenvolvidas em sala de aula. Além de que, a


126 Webquest trás uma contribuição muito importante para os dias de hoje, o contato e aprimoramento das competências cibernéticas do aluno, que através da orientação do docente quanto a busca de conhecimento na internet (busca orientada), com a discussão de parâmetros de busca e qualidade de sites e informações, ele aprende a filtrar as informações e interagir com estas, tendo um acesso mais rico, rápido e igualitário aos conhecimentos e também a vantagem de lidar com a ferramenta computador. A hipótese central do presente trabalho é de que a WQ junto com a SD pode promover uma abordagem formadora, que focalize não somente os resultados finais das aprendizagens, mas o decorrer do processo em si, auxiliando e otimizando a apropriação de gêneros textuais por parte dos alunos, pois ambos os procedimentos podem refletir, de certo modo, os mesmos princípios teóricos dessa abordagem. Além de possuir inúmeras fontes de recursos cibernéticos, de interação o de acesso a conteúdos, entre outros fatores favoráveis para a atividade pedagógica do ensino-aprendizagem de língua materna. Buscando-se desta forma promover um ensino mais autônomo e interativo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estas abordagens além de atentarem para as diversificadas formas de uso efetivo da língua, os vários textos existentes nas situações comunicativas diárias (formas de interações sociais ou gêneros textuais), conseqüentemente apreciam elementos oriundos do cotidiano do aluno, acabando também por levar em consideração as necessidades sociais dos mesmos, dando assim a eles, motivação e sentido para as atividades escolares. Estas não devem ser consideradas como receitas supremas e infalíveis, e sim como algumas instruções gerais, que podem ser modificadas a partir realidade de cada sala de aula, isto é, os princípios que dirigem estas abordagens não compõem um conjunto rígido e fechado de idéias, e sim um grupo suficientemente flexível para abranger o maior número de grupos sociais possíveis (CUNHA, 2000: 27), possibilitando assim, o desenvolvimento de atividades variadas e produtivas. Conclui-se então que esta temática não é algo estanque, na verdade demanda conceitos excessivamente complexos, propiciando ainda o desenvolvimento de inúmeros estudos e que provavelmente ainda há muito a se especular sobre este assunto.


127 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTUNES, Irandé. Muito além da gramática: por um ensino de línguas sem pedras no caminho. São Paulo: Parábola Editorial, 2007. ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro & interação/ Irandé Antunes. São Paulo: Parábola, 2003- (Série Aula;1) BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas e fundamentos do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo. Hucitec, 1992. Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa/ Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998. 106 p. BORMANN, Laura Viviane dos Santos. Webquest: uma alternativa para o ensino de Língua Portuguesa. 2008. Trabalho de Conclusão de Curso. (Graduação em Letras e Artes) UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ BUZEN, Clécio. Da era da composição à era dos gêneros: o ensino de produção de texto no ensino médio. In: Português no ensino médio e formação do professor. BUZEN, Glécio. MENDONÇA, Márcia (orgs.); KLEIMAN, Ângela...[et al.]. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. CUNHA, Myriam Crestian. Uma abordagem interacional para o ensino-aprendizagem do português: condições e características. In: CUNHA, José Carlos da; CUNHA, Myriam Crestian (orgs.). Pragmática lingüística e ensino-aprendizagem do português: reflexão e ação. Belém: CLA/UFPA, 2000, p. 24 Ŕ 54. DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michele; SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004. p. 95-128. FERNANDES, Domingos. Para uma teoria da avaliação formativa. Universidade de Lisboa, Portugal. Revista Portuguesa de Educação, 2006, 19(2), pp. 21-50 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 39 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. KOCH, Ingedore Villaça. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2003 LUCKESI, C. Carlos. Independência e inovação em Tecnologia Educacional: ação-reflexão. Tecnologia Educacional. Rio de Janeiro, v.15, n71/72, p.55-64, jul./out.1986. LUCKESI, Cipriano. Avaliação da Aprendizagem Escolar. São Paulo: Cortez. 2003. COSTA, Marília de. Em busca da autonomia na sala de aula de língua portuguesa. 2007.130 f. Dissertação (Mestrado) Ŕ Curso de Mestrado em Letras, Universidade Federal do Pará, Belém. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Orientações Curriculares para o Ensino Médio: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. Vol. 1. Brasília: Secretaria de Educação Básica, 2006. ORTH, Miguel. Porque usar as novas tecnologias em sala de aula? Educação e Cidadania. Porto Alegre: v.2, n.2, 1999, p. 44. SAMPAIO, Marisa Narcizo; LEITE, Lígia Silva. Alfabetização Tecnológica do Professor. 5 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. SIMÕES, Viviane Augusta Pires. Utilização de novas tecnologias educacionais nas escolas da rede estadual da cidade de Umuarama Ŕ PR. Dissertação de Mestrado em Educação. UFU, 2002. TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no 1º e 2º graus. São Paulo: Cortez, 1996. VASCONCELLOS, Celso dos Santos. Avaliação da Aprendizagem - Práticas de Mudança: por uma práxis transformadora. São Paulo: Libertad.


128 LITERATURA E IMPRENSA NO GRÃO-PARÁ: A PRODUÇÃO LITERÁRIA NA COLUNA FOLHETIM Lady Ândrea Carvalho da CRUZ (UFPA) Orientador(a): Prof.ª Dr.ª Germana Maria Araújo SALES (UFPA) RESUMO: No Brasil, o comércio livreiro se consolida no final do século XIX. Nesse período, a leitura também se transformou, pois com o desenvolvimento da imprensa e a publicação de romances em folhetins, o Brasil passou por um incremento das Ŗletrasŗ. Este pode ser considerado o momento de expansão do romance, manifestação literária acessível a um público específico, que lia nas obras a narração de costumes urbanos e/ou rurais, envolviase com a trama, deleitava-se com os cenários e as personagens, e, com isso, a Ŗfebreŗ dos romances em folhetins, alcançou um mercado e um público na sociedade vigente. É nesse contexto de crescimento cultural, que cresce a importância dos jornais, livros, e outros materiais impressos. Mas é o jornal que assume importância, Ŗgraças à aceleração do processo de impressão, ele teve condições de se torna diário (...) pôde ser produzido em grande quantidade, o que reduziu seu custo e facilitou a integração ao cotidiano burguês, especialmente no contexto urbanoŗ, conforme afirma Regina Zilberman (2001). Aliado a esse fator, surgiu, na França, com o intuito de atrair um público cada vez mais exigente, a coluna Folhetim, fórmula importada para o Brasil, tornando-se uma prática em todas as capitais. Considerando os aspectos abordados, pretendemos verificar as ocorrências de romancesfolhetins, no periódico Diário de Notícias, nos anos de 1881 a 1889, em Belém, PA, e considerar a importância da pesquisa em jornais e periódicos, bem como ressaltar sua relevância e contribuição para os Estudos da História da Leitura no Brasil e para o registro da História Literária Brasileira. PALAVRAS-CHAVE: periódico, Diário de Notícias, romance-folhetim. RÉSUMÉ: Au Brésil, le commerce du livre est consolidée dans le fin du XIXe siècle. Pendant cette période, la lecture est aussi devenu, comme le développement de romans dřimpression et de publication des romans en feuiletons, le Brésil a connu une augmentation de ŘŘlettresřř. Cela peut être considéré comme du temps de lřexpansion du roman, la manifestation littéraire accessible à un public, il a lu le récit dans les oeuvres de douane urbains et/ou les zones rurales, il sřest impliqué dans le complot, il se plaisait dans les scénarios et les personnages, et, par conséquent la ŘŘfièvreřř des romans en feuilletons, a atteint un marché et une force publique dans la société. Dans ce contexte de croissance culturelle, ce qui augmente lřimportance de journaux, livres et autres documents imprimés. Mais cřest le journal qui prend une importance, ŘŘgrâce à une accélération du processus dřimpression, il a pu devenir (...) quotidienne pourrait être produit en grandes quantités, en réduisant leur coût et de facilité dřintégration à la bourgeoisie de tous les jours, en particulier dans le contexte urbain, comme le dit Regina Zilberman (2001). Allied à ce facteur, est apparu en France en vue dřattirer un public toujours plus exigeant, le formulaire de la colonne Feuilleton importés au Brésil, devient une pratique dans toutes les capitales de lřÉtat. Considérant les aspects abordés, nous avons lřintention dřenquêter sur les événements des romans-feuilletons, le journal Diário de Notícias, dans les années 1881 à 1889, à Belém, PA, et dřexaminer lřimportance de la recherche dans les journaux et périodiques, ainsi que mettre en évidence sa pertinence et sa contribution pour lřétude de lřhistoire de la lecture au Brésil et le record brésilien de lřhistoire littéraire.


129

MOTS CLES : périodiques, Diário de Notícias, roman-feuilleton.

INTRODUÇÃO A leitura do folhetim semanal ou das Sagradas Escrituras invade o lar burguês, integrando-se ao cotidiano familiar e passando a constar das representações imaginárias da classe média, traduzidas, por exemplo, por pinturas e fotografias que retratam a paz doméstica abrigada pelo livro. (LAJOLO & ZILBERMAN)1

O presente artigo propõe levantar as ocorrências da produção literária de romancesfolhetins, publicados em especial na coluna Folhetim, do jornal o Diário de Notícias, 2 na década de 80 da segunda metade do século XIX, em Belém do Pará. Tal objetivo foi proposto após constatarmos que Belém, assim como as demais capitais do Brasil, como Rio de Janeiro, Cuiabá e Porto Alegre, andara a passos largos em relação ao desenvolvimento da imprensa e do mercado livreiro, bem como em relação à propagação da leitura entre um público em formação. É nesse contexto, que abordaremos a relação entre literatura e imprensa, e como se materializou a produção literária na coluna Folhetim. Os primeiros estudos, segundo afirma Robert Darton voltados para a história do livro como objeto material se iniciaram, de fato, a partir do século XIX, Ŗquando o estudo dos livros como objetos materiais levou ao crescimento da bibliografia analítica na Inglaterraŗ. 3 Já no século XX, na França, durante a década de 60, os historiadores do livro introduziram os novos assuntos dentro de pautas estudadas pela escola dos Annales, que existia intelectualmente desde a década de 1930 e institucionalmente após a década de 45. A História do Livro inicia, de fato, no século XIX, Esses estudos chegaram ao Brasil e os pesquisadores, na década de 80 do século XX principiam em questionar as relações estabelecidas entre os homens e os livros, bibliotecas, clubes de leitura, autores, editores, livreiros e a leitura em séculos anteriores e também na contemporaneidade. É um Ŗcircuitoŗ, que envolve inúmeros agentes, dentre eles o leitor, que aparece como um elemento que está na ponta, fechando o sistema, como nos informa Robert Darnton,

1

LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. São Paulo: Ática, 1999. p.16. Periódico escolhido como corpus para a pesquisa, seção Folhetim. 3 DARNTON, Robert. O que é a História dos Livros? In: O Beijo de Lamourette: mídia, Cultura e Revolução. São Paulo: Companhia da Letras, 1995, p.110. 2


130 a história do livro se interessa por cada fase desse processo e pelo processo como um todo, em todas as suas variações no tempo e no espaço, e em todas as suas relações com outros sistemas, econômico, social, político e cultural, no meio circundante (...) os historiadores do livro geralmente recortam um segmento do circuito de comunicações e analisam-no segundo os procedimentos de uma única disciplina Ŕ a impressão (...). Mas as partes não adquirem seu significado completo enquanto não são relacionadas com o todo (...) 1

Sob esse ponto de vista, destacamos a importância da leitura em seus múltiplos suportes material e apontamos a imprensa como fonte primária de pesquisa, observando, mais especificamente, os romances-folhetins que circularam na década de 80 na Belém oitocentista, na seção Folhetim do Diário de Notícias, como objeto desta reflexão.

1. A IMPRENSA NO GRÃO-PARÁ Com a invenção do tipo móvel feita por Gutenberg no século XV, percebemos que já existe uma redução da despesa com gastos e diminuição do tempo de impressão de textos, o que possibilita a circulação da escrita em formato impresso e o acesso à leitura oral no cotidiano das pessoas. No século XIX, a produção e atividade literárias giram em torno dos periódicos. Em Paris, na primeira metade do século XIX, o valor alto das assinaturas, de um jornal, por exemplo, chegava à quantia de 80 francos anual. 2 Por isso quem não podia pagar estava na dependência dos cafés, ponto de encontro das pessoas em torno de um só exemplar, que proporcionava o acesso à informação às pessoas. Entretanto, de acordo com Walter Benjamin, o jornal de Émile Girardin, La Presse, tivera papel decisivo no aumento de assinantes, pois trouxera Ŗtrês importantes inovações: a redução do preço da assinatura para 40 francos anual, o anúncio e o romance-folhetimŗ.3 Sobre o barateamento dos jornais, proporcionado pelas inovações tecnológicas da prensa, a imprensa no Brasil, assim como na Europa, utiliza a estratégia comercial de baixo custo e insere os anúncios como nova fonte de lucro. De acordo com Nelson Werneck Sodré, nos jornais mais lidos, os anúncios invadem até a primeira página: transbordam de todos os lados, o espaço deixado à redação é muito restrito e, nesse campo já diminuto, se esparramam 1

Idem, Ibidem, p.112. Em 1824 havia em Paris 47 mil assinantes de jornal; em 1836 eram 70 mil, e em 1846, 200 mil. Ler BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989. Obras escolhidas. V.3. p.23. 3 Idem, Ibidem. p.23. 2


131 diminutas notícias pessoais, (...) e fatos insignificantes.

1

De fato, a imprensa simples, artesanal, estava sendo substituída pela de grande porte, e em seguida acabam se tornando verdadeiras empresas jornalísticas já nas primeiras décadas do século XX. Todo investimento que se fez nas maquinarias de prensa, visavam lucros, que miravam consumidores. E o público, em crescimento, contribuiu bastante para que de fato se realizasse o consumo para tudo o que era escrito, em especial a literatura, através dos gêneros literários. A circulação de textos literários era uma das estratégias para atrair um grande número de leitores que, Ŗiria sendo lentamente conquistado para a literatura principalmente pelo folhetim, que se conjugou com a imprensa e foi produto específico do Romantismo europeu, aqui imitado com sucesso amplo, nas condições do tempoŗ. 2 Já no Brasil, além dos investimentos em máquinas, propagandas, anúncios que enchiam páginas inteiras, tem-se bem nítida, a presença da mão-de-obra de escritores assalariados, neste contexto capitalista. Os autores inseridos num ritmo de escritura intenso, já que vendem o produto de seu trabalho e passam a prestar contas de sua produtividade. Este último evidencia a relação de interdependência entre escritor, jornalista e uma nova classe emergente de leitores, a burguesia. Uma relação entre autor, obra e leitores e, na qual desencadeia o processo de expansão da imprensa, o reconhecimento profissional do autor e a participação do leitor. Sobre o processo de relação entre obra/leitor/autor, Antonio Candido afirma que,

(...) a obra não é produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem este é passivo, homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito. São dois termos que atuam um sobre o outro, e aos quais se junta o autor, termo inicial desse processo de circulação literária, para configurar a realidade da literatura atuando no tempo. 3

O autor que há tempos busca a valoração no âmbito das letras, por meio do reconhecimento através de sua obra e aceitabilidade através do público, desempenha também numa comunidade de leitores, grande papel de formação social no indivíduo. Conforme afirma Antonio Candido,

O escritor, numa determinada sociedade, é não apenas o indivíduo capaz de 1

SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. 3ed. São Paulo: Martins Fontes, 1983. p. 252, 253. Idem, Ibidem, p.23. 3 CANDIDO, Antonio. O escritor e o público. In: Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006. p.84. 2


132 exprimir a sua originalidade (que o delimita e especifica entre todos), mas alguém desempenhando um papel social, ocupando uma posição relativa ao seu grupo profissional e correspondendo a certas expectativas dos leitores ou auditores. A matéria e a forma da sua obra dependerão em parte da tensão entre as veleidades profundas e a consonância ao meio, caracterizando um diálogo mais ou menos vivo entre criador e público. 1

Como vimos o leitor é responsável, na maioria das vezes, por a correspondência e por esse diálogo entre ambos, já que Ŗo público é condição para o autor conhecer a si próprio, pois a revelação da obra é a manifestação do leitor. Sem o público, não haveria ponto de referência para o autor, cujo esforço se perderia caso não lhe correspondesse uma resposta, que é definição dele próprioŗ.2 No entanto, é preciso ressaltar a importância do desenvolvimento da imprensa e do jornal que alcançou um grande público e este lhe deu toda notoriedade nos séculos XIX e XX. No Brasil do século XIX, a leitura também se transformou, pois a Ŗchegada triunfal do romance e a popularização do livro não colocaram em oposição esses dois tipos de leitura. Ao contrário, elas conviveram por um longo tempo lado a lado, estreitando os vínculos entre a oralidade e a palavra impressaŗ. 3 Esse processo de transformação da leitura percorre todo o país e, na Belém do GrãoPará, as primeiras mudanças vão se intensificando e se solidificando, quando chega na cidade, vinda de Lisboa, em 18214, a tão sonhada tipografia, de onde saiu, em 1822, o primeiro número do jornal impresso, O Paraense. A tipografia, que além de ser responsável pela impressão do periódico, imprimia também expedientes do governo e pequenos trabalhos, noticiava ainda a chegada ou a partida dos filhos de famílias burguesas, que estudavam na Europa. Pesquisas recentes5 confirmam que havia várias tipografias na Província do GrãoPará até 1850, cerca de dezoito delas, assim como, de editores e livreiros, além de impressões de diversos jornais e revistas. Citamos aqui alguns periódicos importantes que influenciaram a vida de pessoas com assuntos sobre política, religião e notícias do país, na Belém do Império: O Estado do Pará, O treze de Maio e o Diário de Notícias. Além desses jornais que são caracterizados por ter Ŗvida longaŗ, a cidade teve também, durante o governo revolucionário da Cabanagem, dois 1

Idem, Ibidem. p. 83,84. Grifos do autor. Idem, Ibidem. p.85,86. 3 EL FAR. Alessandra. O livro e a leitura no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, s/d. p. 29 4 Essa tipografia foi trazida para o Grão-Pará sob a influência e a parceria do grupo de intelectuais, formados por Felipe Patroni, Domingos Simões da Cunha, José Batista Silva e Daniel Garção Melo. 5 Mendonça, Simone Cristina. Os tipógrafos e seus parceiros: a produção de livros na Província do Pará na primeira metade do século XIX. Apresentação oral no I Colóquio de Literatura e Recepção Crítica. Belém, 22 de junho de 2010. 2


133 periódicos mais efêmeros, o Paquete do Governo, em 1835 e o Publicador Oficial Paraense, em 18361. Diante do crescimento de casas tipográficas e de modificações no suporte de textos, os avanços sociais, culturais e tecnológicos vão chegando às províncias do Brasil. A Belém oitocentista, nesse momento, desenvolve uma atividade econômica que está voltada para a extração e a comercialização da borracha, que, sem dúvida, foi responsável pelo progresso econômico do Norte. Nesse período, conhecido como Belle Époque, os investimentos vão girar em torno da área urbana que sofre mudanças externas como o processo de calçamento das ruas e avenidas, com os paralelepípedos, com a construção de casarões em estilo europeu, e mudanças, sobretudo, no que diz respeito à formação intelectual, com o surgimento de instituições escolares. É nesse contexto de crescimento cultural, que cresce a importância dos livros, jornais, periódicos e outros materiais impressos, no cotidiano das pessoas, porém, para atrair um público cada vez mais exigente, era preciso criar estratégias para seduzi-lo e foi com esse objetivo que a coluna Folhetim2 passou a garantir o sucesso de venda de jornais. Essa estratégia, como já nos referimos chega ao Brasil e em suas províncias. Em Belém do oitocentos, no periódico Diário de Notícias, de 1881 até o final de 1884, por exemplo, as tiragens chegavam aos 2.000 (dois mil) exemplares. Com a inclusão das novas narrativas em prosa de ficção a partir de 1885, ainda no mesmo ano houve um aumento de vendas para 3.000 (três mil) exemplares, e em setembro de 1886 o número de tiragens sobe para 5.000 (cinco mil), mais que dobrando a tiragem do ano anterior. De propriedade do Sr. João Campbell, que era, além de proprietário, redator chefe, o Diário de Notícias começou a circular em Belém no ano de 1880 e teve seu fim em 1897. Era um jornal que possuía um formato grande, ou seja, quatro páginas, divididas em seis e/ou oito colunas. Algumas seções eram freqüentes como: Diário de Notícias, Annuncios, Solicitados, Variedade, Folhetim, Commercio; e outras seções, não eram tão freqüentes como: Litteratura, Communicado, Leilões, Avisos Marítimos3 Posteriormente foram criados outros espaços para a circulação da prosa de ficção como as seções Variedade e Miscelânea, ambas responsáveis, também, pela 1

Para obter informações sobre os anos e nomes dos jornais e periódicos na Belém do século XIX consultar, ROCQUE, Carlos. História geral de Belém e do Grão-Pará. Atualização de texto. Antonio José Soares. Belém: Distribel, 2001 2 No século XIX, no ano de 1836, nasceu na França, Ŗconcebido por Émile Girardin, que percebeu, na época de consolidação da burguesia, o interesse em democratizar o jornal, a chamada grande presse, e não mais privilegiar só os que podiam pagar por caras assinaturas... o feuilleton, ou rodapé, tradicionalmente de tom e assunto mais leves que o resto do jornal, muito cerceado pela censuraŗ. MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p.30-31. 3 Atualmente, o jornal é encontrado em formato original ou em microfilme, no setor de microfilmagem da Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves (FCPTN).


134 divulgação do romance-folhetim que atraiu tantos leitores e lucros.

2. O ROMANCE-FOLHETIM NO DIÁRIO DE NOTÍCIAS

Diante de casos que envolvem leitura, leitores e as narrativas de ficção, num determinado suporte material de textos, em nosso caso Ŕ o jornal Ŕ é preciso que se faça alguns questionamentos em relação ao objeto de pesquisa: como ocorreu a circulação do romance-folhetim no periódico paraense Diário de Notícias, no período de 1881 a 1889? De que forma, no Pará, no período e no periódico já citado, aconteceu a procura e/ou interesse pelos jornais, motivados pelo novo chamariz que foram os romances-folhetins? De acordo com o levantamento já realizado sobre a seção Folhetim do jornal Diário de Notícias, montamos um quadro 1 dos romances-folhetins já encontrados nessa folha diária,com o início e o término de cada publicação, mas ressaltamos que a pesquisa se encontra em andamento e, além disso, ainda não houve a seleção dos textos literários, tampouco a análise dos conteúdos dos mesmos. Com o reduzido corpus de romances-folhetins encontrados até o momento, notamos no quadro a presença e a preferência por autores estrangeiros. AUTOR Julio Verne

Julio Verne

Autor Fortuné du Boiscobey

Fortuné du Boiscobey

1

TÍTULO A Estrella do Sul Sub-título: O paiz dos Diamantes Início: [continúa] 1 Titulo: A Estrella do Sul Sub-título: - III IV Ŕ vandegaartHopje Término: [continúa] 10 Titulo Os dramas da Policia Primeira parte: O crime. Início, capitulo: IV Traducção: Palermo Faria[continúa] 27 Os dramas da Policia Primeira parte: O crime. Término, capitulo: XI Traducção: Palermo Faria [continúa] 106

DATA/ANO 08 de maio 1885

Nº JORNAL 102

COLUNA Folhetim 1,2,3,4,5,6

P. p.2

09 de junho 1885

128

Folhetim 1,2,3,4,5,6

p.2

Data/ano 01 de setembro 1885

Nº 197

coluna Folhetim 1,2,3,4,5,6

página p.2

10 de fevereiro 1886

31

Folhetim 1,2,3,4,5,6

p.2

Mantivemos a ortografia vigente do século XIX.


135 Fortuné du Boisgobey

Fortuné du Boisgobey

Autor E. Zola

E. Zola

Autor Edouard Gourdon Edouard Gourdon

Autor Julio Verne

Julio Verne

Autor Edouard Gourdon Edouard Gourdon

Autor Alexandre Dumas Filho

Alexandre Dumas Filho

Título: Os dramas da Policia Segunda parte – O criminoso Início, cap. I - n. 107 Traducção: Palermo Faria [continúa] Título: Os dramas da Policia Segunda parte – O criminoso Término, EPÍLOGO - n. 205 (não saiu nº) Traducção: Palermo Faria [fim] Titulo Título:A festa de Coqueville Início, cap. IV - n. 10 Título:A festa de Coqueville Término, cap. IV – conclusão - n. 12 Titulo Título: LUIZA Início, Número: 01 Trad.no Diario Título: LUIZA Término, cap. V Número: 19 Trad.no Diario Titulo A Estrella do Sul Sub-título: O paiz dos Diamantes Início: [continúa] 1 Titulo: A Estrella do Sul Sub-título: - III IV – vandegaartHopje Término: [continúa] 10 Titulo Título: LUIZA Início, Número: 01 Trad.no Diario Título: LUIZA Cap. X Número: 34 FIM Trad.do Diario Titulo Título: SOPHIA PRINTEMS Número: 01 (Versão do Diario) Título: SOPHIA PRINTEMS Cap. XXIX

11 de fevereiro 1886

32

Folhetim 1,2,3,4,5,6

p.2

17 de agosto 1886

185

Folhetim 1,2,3,4,5,6

p.3

Data/ano 01 de janeiro 1886

Nº 01

coluna Folhetim 1,2,3,4,5,6

página p. 2

06 de janeiro 1886

04

Folhetim 1,2,3,4,5,6

p. 2

Data/ano 01 de setembro 1886 30 de setembro 1886

Nº 198

coluna Folhetim 1,2,3,4,5,6

página p. 2

219

Folhetim 2,3,4,5,6

p. 2

Data/ano 08 de maio 1885

Nº 102

coluna Folhetim 1,2,3,4,5,6

página p.2

09 de junho 1885

128

Folhetim 1,2,3,4,5,6

p.2

Data/ano 01 de setembro 1886 22 de outubro 1886

Nº 198

coluna Folhetim 1,2,3,4,5,6

página p. 2

240

Folhetim 1,2,3,4,5,6,7

p.2

Data/ano 3 de novembro 1886

Nº 249

coluna Folhetim 1,2,3,45,6,7,8

página p.2

08 de fevereiro 1887

30

Folhetim 2,3,4,5,6,7

p.2


136

Autor Georges Ohnet

Georges Ohnet

Número: 59 saiu 57 (Versão do Diario) FIM Titulo Título: LISE FLEURON Cap: I Traducção de Visconti Coaracy Nº 1 Título: LISE FLEURON Cap: IV Traducção de Visconti Coaracy Nº 23 saiu:22

Data/ano 09 de fevereiro 1887

Nº 31

coluna Folhetim 1,2,3,4,5,6,7,8

página p.2

12 de março 1887

57

Folhetim 2,3,4,5,6,7

p.2

Diante desses dados, constatamos a presença maciça de produções francesas entre as publicações e reconhecemos a propagação do romance-folhetim na Belém oitocentista, como ocorreu em outras capitais brasileiras, fato que vem motivando diversas pesquisas em Instituições de ensino superior de todo o país1.

REFERÊNCIAS CANDIDO, Antonio. O escritor e o público. In: Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006. 201 p. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. Obras escolhidas. V.1. 253 p. ______________. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989. Obras escolhidas. V.3. 271 p. EL FAR. Alessandra. O livro e a leitura no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, s/d. LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. São Paulo: Ática, 1999. 373 p. LYONS, Martyn. Os novos leitores no século XIX: mulheres, crianças, operários. In: História da Leitura no Mundo Ocidental. Vol.2 São Paulo: Ática, 1999. LUSTOSA, Isabel. O nascimento da imprensa brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. 71 p. MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 478 p. ROCQUE, Carlos. História geral de Belém e do Grão-Pará. Atualização de texto. Antonio José Soares. Belém: Distribel, 2001. 301p. SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1983. 501 p. TINHORÃO, José Ramos. Os romances em folhetins no Brasil: 1830 à atualidade. São 1

Cito aqui o Projeto Lendo o Pará: ŖA publicação de romances-folhetins nos jornais de Belém do Pará na segunda metade do século XIX (1850 a 1880)ŗ (CNPq/UFPA). Coordenado pela Profa. Dra. Germana Maria Araújo Sales. Além de outros pesquisadores em Belém, PA, cito Profa. Dra. Valéria Augusti e Profa. Simone Cristina Mendonça. Na Universidade de Brasília temos a Profa. Dra. Tania Rebelo Costa Serra. Na Universidade Federal da Paraíba, o projeto Ŗjornais e folhetins literários da Paraíba no século XIXŗ, desenvolvido pela Profa. Dra. Socorro de Fátima Pacífico Barbosa


137 Paulo: Duas Cidades, 1994. 99 p. WATT, Ian. A ascensão do romance. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 278 p. ZILBERMAN, Regina. Fim do livro, fim dos leitores? São Paulo: SENAC, 2001.131p.

HIBRIDISMO DE GÊNEROS NOS CONTOS DA ESCRITORA MARIA LÚCIA MEDEIROS Lídia Carla Holanda ALCÂNTARA (UFPA) Orientador(a): Prof.ª Dr.ª Lilia Silvestre CHAVES (UFPA) RESUMO: A ideia do presente trabalho partiu do estudo dos contos de Maria Lúcia Medeiros, uma das mais notáveis escritoras da Literatura Paraense. Mais precisamente, partiu do estudo de três contos: ŖMiss Dorisŗ, ŖMentiras e verdades no mesmo chãoŗ e ŖIřm in the mood for loveŗ. Partimos da premissa de que Maria Lúcia Medeiros é uma escritora de uma época em que os traços que caracterizam os gêneros literários venceram limites e regras: seus contos são textos multifacetados, escritos em uma espécie de prosa poético-lírica e prosa lírico-dramática. O foco do trabalho é, portanto, a investigação dos gêneros literários, sua evolução enquanto conceito teórico desde os primeiros estudos dos textos literários - desde Platão, Aristóteles, Horácio, Victor Hugo - até os do contexto histórico contemporâneo como Genette, Northrop Frye, Emil Staiger - e, principalmente, seu hibridismo e sua transformação nos textos da escritora paraense. Então, partindo da hipótese de que os textos de Maria Lúcia Medeiros são híbridos quanto à presença dos gêneros clássicos, este estudo pretende identificar esses gêneros no conto em questão, conceituá-los e analisá-los (em particular e em sua situação de Ŗmestiçagemŗ, para usar uma palavra de ordem literáriocultural). Vale ressaltar que, apesar de já permear a teoria da literatura há muitas décadas, o assunto em questão, os gêneros, não pode ser considerado finalizado. Por ainda haver muita discussão acerca do tema, faz-se pertinente desenvolver um estudo sobre eles, na obra de uma escritora paraense de valor inestimável: Maria Lúcia Medeiros. PALAVRAS-CHAVE: Gêneros Literários; Maria Lúcia Medeiros; Hibridismo; ABSTRACT: The idea of the present work came from the study of three short-stories written by Maria Lúcia Medeiros, which is one of the most notable writers of Parářs Literature. More precisely, this article came from the study of three short-stories: ŖMiss Dorisŗ, ŖMentiras e verdades no mesmo chãoŗ and ŖIřm in the mood for loveŗ. We consider that Maria Lúcia Medeiros is a writer of a time in which the literary genres have overcome limits and rules: her short-stories have multiple faces, they are written in what we can call poetic-lyric prose and lyric-dramatic prose. The focus of this paper is, therefore, the investigation of the literary genres, their evolution as theoretical concept since the first studies of the of the literary texts Ŕ since Plato, Aristotle, Horatio and Victor Hugo Ŕ until the ones of the contemporary context Ŕ such as Genette, Northrop Frye, Emil Staiger Ŕ and specially the hybridism and transformation of those genres in Maria Lúciařs texts. So, considering that the writerřs texts are hybrid as for the presence of classical genres, this study intents to identify those genres in the short stories mentioned before, to study their concept and analyze them (in particular and in their Ŗmixŗ situation). Itřs important to remember that even though that is a discussion which is in Literature for so many decades, the genres cannot be considered a finished subject. There is still a lot of discussion around this theme, so it is pertinent to develop a study about


138 the literary genres, especially in the work of a writer from Pará who has such valuable texts: Maria Lúcia Medeiros. KEY-WORDS: Literary genres; hybridism; Maria Lúcia Medeiros.

1. INTRODUÇÃO Ao ler o título deste trabalho, O hibridismo de gêneros nos contos de Maria Lúcia Medeiros, pode o leitor se perguntar, em primeiro lugar, o que ainda se tem a dizer sobre gêneros. Trata-se aqui, evidentemente, dos gêneros literários no sentido (em princípio) de um agrupamento de formas literárias que têm função de ordenar e classificar a literatura por tipos de organização e estruturas literárias, não por época e/ou lugar, como já disseram Wellek e Warren. Realmente, esse assunto parece ter sido tão repetido pelos estudiosos da literatura, que pode ser considerada inútil a retomada de uma discussão tão antiga, que remonta a Platão e a Aristóteles. No entanto, o assunto continua a fascinar e a intrigar teóricos e estudiosos ao longo dos séculos, até os dias atuais, nesta primeira década do século XXI. Mas, por quê? Longe de ser um tema simples, a discussão sobre os gêneros da literatura parece nunca ter um desfecho, parece nunca encontrar sua conclusão. As teorias que os envolvem, sempre mudando, tornando-se, muitas vezes, polêmicas, parecem buscar mais e mais discussão e aplicações, nunca estagnadas, visto que o objeto de seu estudo vive em constante transformação. Gêneros literários (e o hibridismo desses gêneros), portanto, são o ponto de partida teórico para o desenvolvimento deste trabalho. Pretende-se, aqui, discutir as possíveis relações entre a poesia, o teatro e a prosa, tendo como foco os contos (as narrativas curtas; formas breves) da escritora paraense Maria Lúcia Medeiros. Para isso se fará o estudo dessa espécie de transformação da linguagem nesses contos Ŕ que faz passar da referencialidade objetiva Ŕ do conto narrativo tradicional Ŕ para a caracterização de narrativa poética. Essa transformação, essa hibridização ilustra (e será por sua vez ilustrada) a leitura e a análise da forma literária em questão: o conto. No que diz respeito aos contos escolhidos, fala-se em três: ŖMiss Dorisŗ, ŖMentiras e verdades no mesmo chãoŗ e ŖIřm in the mood for Loveŗ, por serem os que talvez melhor ilustrem a prosa lírica-dramática da escritora. A dissertação de mestrado que deu origem a este artigo é dividida em três capítulos: O primeiro, intitulado ŖMaria Lúcia Medeiros: vivência e criação poéticaŗ, o qual trata da contista paraense, de sua vida, de suas publicações e apresenta um pouco do que já foi dito e estudado sobre ela. Uma espécie de breve biografia da escritora, abrangendo sua obra e sua


139 fortuna crítica. O segundo capítulo, chamado de ŖOs gêneros literários ao longo do tempoŗ, apresenta um histórico dos gêneros literários. O objetivo deste capítulo é situar o leitor na discussão dos gêneros literários que, apesar de antiga, constitui um assunto abrangente e ainda bastante polêmico e discutido. Já no terceiro capítulo, intitulado ŖAs análises dos contos: três abordagensŗ, pretende-se identificar de que maneira se dá o hibridismo dos gêneros em três contos da escritora Maria Lúcia Medeiros, enquanto propomos uma análise interpretativa dos contos escolhidos. O capítulo é subdividido em três partes, uma para cada conto. Serão apresentados e analisados os contos ŖMiss Dorisŗ, do livro Horizonte Silencioso, ŖMentiras e verdades no mesmo chãoŗ, de Quarto de Hora, e ŖIřm in the mood for loveŗ, de Céu Caótico. Neste artigo, procuramos mostrar um pouco dessa pesquisa, que se encontra em fase de construção.

2. MARIA LÚCIA MEDEIROS: VIVÊNCIA E CRIAÇÃO POÉTICA

Natural de Bragança, Pará, Maria Lúcia Fernandes de Medeiros, mais conhecida por seus amigos e familiares como Lucinha, nasceu em 15 de fevereiro de 1942. Ao vir para Belém, ainda criança, aos doze anos de idade, passou a estudar no colégio Gentil Bittencourt. Apaixonada por livros, prestou o vestibular e foi aprovada para o curso de Licenciatura em Letras, na Universidade Federal do Pará, em 1967, o qual concluiria em 1970. Concluiu especialização em Teoria Literária na Universidade Federal do Pará, em 1978 e, logo depois, passou a fazer parte do quadro de professores da mesma universidade pela qual se graduou. A contista começou a aparecer em 1984, quando Fanny Abramovich organiza Ritos de passagem da nossa infância e adolescência, e Maria Lúcia Medeiros publica nessa antologia seu conto ŖCorpo inteiroŗ, em duas partes. Esse foi só o início. Depois disso, a editora Roswitha Kempf, de São Paulo, em 1988, publicou o primeiro livro de contos da escritora paraense, intitulado Zeus ou a menina e os óculos. Em 1990, a editora paraense Cejup, que mais tarde, em 1994, publicaria Quarto de hora, lançou o segundo livro de contos de Maria Lúcia Medeiros, Velas. Por quem?. Esse último foi depois republicado em edição especial, na Coleção Nossos Livros, pelo jornal A Província do Pará, em 1997. Em 1994, dois de seus contos foram traduzidos para outras linguas: ŖA pedra, a claridadeŗ, para o francês, por Michel Riaudel, e ŖCorpo Inteiroŗ, para o alemão, por Ute Hermmans. Além disso, participou da Feira de Livros de Frankfurt, com leitura de conto próprio, ŖCorpo Inteiroŗ, em mesa formada por várias outras figuras da literatura brasileira,


140 como Ligia Fagundes Telles, Caio Fernando Abreu, Márcio Sousa e Ivan Angelo. Ainda em 1994, a cineasta Flávia Alfinito adaptou para as telas o conto ŖChuvas e trovoadasŗ, integrante da coletânea Zeus ou a menina e os óculos. Do conto é feito um curtametragem que se pode dizer bastante fiel ao texto original. Em 2000, a Boitempo Editorial publicou o livro Horizonte Silencioso, a quarta obra de Maria Lúcia Medeiros. Em 2003, ganhou uma antologia de seus contos, da Editora Amazônia, na coleção Pará Didática. Pouco depois de ŖLucinhaŗ falecer, em 2005, foi lançado Céu Caótico também pela Secretaria de Cultura do Estado do Pará, com prefácio de Amarilis Tupiassú. Em 2002, pouco antes do lançamento da antologia, a Secretaria de Cultura do Estado do Pará (SECULT) publicou A ficção de Maria Lúcia Medeiros: leituras. Organizada por Amarilis Tupiassú, amiga de Maria Lúcia (e também professora, escritora e crítica literária), essa coletânea de críticas e análises da obra da contista paraense Ŕ que traz também fotos da contista Ŕ expande os horizontes do leitor quanto à obra da escritora que veio de Bragança. Hoje, com a internet, o que se pode encontrar sobre a talentosa escritora paraense é vasto. Desde uma página da famosa enciclopédia virtual Wikipédia, até comentários e divulgação de seus textos em diversos blogs (como o blog Elaphar) e revistas virtuais (como O Caixote).

3. OS GÊNEROS LITERÁRIOS AO LONGO DA HISTÓRIA

Atualmente, é comum entrarmos em uma livraria e encontrarmos as obras divididas de acordo com o seu Ŗgêneroŗ: existem prateleiras destinadas à ficção científica, outras destinadas ao romance, algumas à poesia, uma seção exclusiva para o suspense e, comumente, grandes prateleiras dedicadas aos best-sellers e aos livros de auto-ajuda. Esse seria, digamos, o contato cotidiano que o leitor comum tem com os conhecidos gêneros literários clássicos, acrescidos de muitos gêneros Ŗnovosŗ. Contudo, nos estudos literários, não há Ŕ e provavelmente não haverá Ŕ um conceito rígido e inquestionável que abarque essa questão. Há, sim, tentativas realizadas ao longo da história que certamente contribuíram, e continuam a contribuir, com as vastas e sempre novas possibilidades da criação artística. O primeiro registro que se tem sobre o assunto está no Livro III d‘A República de Platão e é, em geral, considerado o marco inicial da teoria dos gêneros literários. Assim como Platão, seu discípulo Aristóteles, apesar de não ter mencionado a palavra Ŗgênerosŗ, falou sobre o


141 assunto. Diferente de seu mestre, contudo, o Estagirita, em sua Poética, fez referência a Ŗespécies de poesiaŗ. Ainda na Antiguidade, Horácio, em sua Epistola ad Pisones (conhecida também como Ars poética), faz uma série de reflexões sobre a criação poética. Horácio parece basear-se nos conceitos de Aristóteles, complementando-os, apesar de o escritor romano não se prender a preceitos rígidos, não possuindo a sistematicidade do filósofo grego. Na época do neoclassicismo europeu, combinando os preceitos aristotélisticos e horacianos, os teóricos do Renascimento os estudaram como verdades absolutas. Desde então Ŕ ao menos até o Romantismo Ŕ, os gêneros da literatura eram vistos como não variáveis, não mutáveis, e definidos por regras igualmente imutáveis. Dentre essas regras, vigorava principalmente a de Ŗunidade de tomŗ, a qual defendia a pureza dos gêneros, isto é, a sua distinção e não a sua mistura. Os gêneros mistos, como a tragicomédia, não seriam válidos. Na segunda metade do século XVIII, o movimento pré-romântico alemão Sturm und Drang, evidenciou e ressaltou a individualidade artística, além de quebrar com os preceitos clássicos da literatura, rejeitando a teoria clássica dos gêneros. Após o movimento alemão, muitos românticos se manifestaram, em geral partilhando os mesmos preceitos, mas nem sempre concordando por completo. Talvez o texto mais marcante contra a concepção clássica dos gêneros seja o prefácio de Cromwell, de 1827, de Victor Hugo, que defende a mistura dos gêneros literários. O escritor francês nos mostra que, se o belo e o feio coexistem, lado a lado, na vida, porque não podem conviver na poesia? Por que o grotesco é sempre posto à margem da literatura, como se não existisse? O autor de Cromwell tenta responder a essas perguntas, afirmando que feio e belo convivem harmoniosamente na natureza, na vida e em todas as criações. Tudo é uma grande mistura. Não poderia, então, ser diferente com os textos literários: segundo ele, o trágico e o cômico, o lírico e o épico coexistem nas obras. Com o passar do tempo, surgiram diversas teorias, como a do francês Brunetière (18491906), que tentou desenvolver uma teoria dos gêneros literários como algo pertencente à biologia; ou a de Benedetto Croce (1928) que é taxativo ao afirmar que poesia e arte são formas de expressão, intuição, e não podem ser classificadas de acordo com o conhecimento lógico; ou, ainda, a de Northrop Frye (1957) que parte do pressuposto de que os gêneros podem ser diferenciados de acordo com um radical de apresentação. O fato é que talvez nenhuma das teorias surgidas seja tão inovadora Ŕ no sentido de propor uma categorização dos gêneros Ŕ quanto a proposta de Emil Staiger (1997, p. 140), em seu Conceitos Fundamentais da Poética: Ŗqualquer obra poética participa de todos os


142 gênerosŗ. O teórico defende que cada gênero literário possui certas características que o determinam, certos fenômenos de estilo, ou ainda, uma essência que o torna peculiar e único. Cada texto possui traços, ou fenômenos estilísticos, predominantemente de um dos gêneros, o que o fará ser classificado em um deles. No entanto, isso não impede que a obra partilhe da essência, das características dos outros gêneros, o que o tornará um texto hibrido, confirmando o que já dizia Victor Hugo. Também lingüistas como Käte Hamburger e Roman Jakobson falaram sobre o assunto, enriquecendo as teorias já existentes. Chegamos, pois, a uma época em que os padrões foram quebrados. Não podemos separar cuidadosamente em cubículos (se é que um dia isso foi possível) cada gênero e impedir que se misturem, até mesmo porque isso não faz mais sentido. Não podemos, ainda, deixar de lado a interpretação individual de cada leitor, visto que o significado da obra pode ser construído na interseção leitor e obra. O que se pode é estudar e compreender a trajetória dos gêneros literários, para, a partir da concepção de que hoje as fronteiras porosas dos textos permitem cada vez mais o hibridismo dos gêneros, juntamente com sua experiência enquanto leitor e diante de cada texto, em particular, tentar entender como esse conceito mais que milenar manifesta-se nas obras concretas dessa convenção a que se chama de literatura.

4. A ANÁLISE DOS CONTOS

No capítulo de análise, como se trata aqui de contos, faz-se pertinente falar um pouco sobre essa modalidade narrativa, mostrando alguns conceitos já definidos por alguns teóricos. Nádia Gotlib (2006, p. 55) fala, por exemplo, que Ŗo conto seria um modo moderno de narrar, caracterizado por seu teor fragmentário, de ruptura com o princípio da continuidade lógica, tentando consagrar este instante temporárioŗ. Massaud Moisés (2004, p. 88) também dá sua opinião, dizendo que Ŗo conto é, do prisma dramático, univalente: contém um só drama, um só conflito, uma só unidade dramática, uma só história, uma só ação, enfim, uma única célula dramáticaŗ. Há muitos outros conceitos, mas parece unânime o fato de que, além de ser um texto em prosa, o conto é uma narrativa breve, concisa. Não apenas no que diz respeito a sua extensão, mas a sua densidade e unidade dramática, número de personagens e pouco aprofundamento da ação. Como uma foto, o conto flagra um instante, um momento. E afinal, como é o modo de narrar da escritora Maria Lúcia Medeiros? Dentre tantos outros focos, este capítulo pretende também investigar este questionamento.


143 Será abordado aqui uma pequena parte da análise do conto ŖMiss Dorisŗ, o primeiro conto da coletânea Horizonte silencioso, de Maria Lúcia Medeiros. Como na dissertação de mestrado, a partir de agora, será utilizada a sigla MD para se referir a ŖMiss Dorisŗ nas citações do conto em questão. ŖMiss Dorisŗ é um texto em prosa, mais precisamente um conto, que pode ser considerado um dos subgêneros da prosa. A ação, como na maioria dos contos, é voltada para o final e para um personagem em particular, o jardineiro, que é o protagonista e também o narrador. A trama é breve e densa, plena de expectativas. O personagem principal e narrador Ŕ que não é nomeado Ŕ possui esposa e filho, que são apenas mencionados (o que mostra a estranheza do desprendimento do marido e pai). O foco maior destina-se à nova profissão do homem e ao seu rápido envolvimento com o jardim, em uma nova vida desligada da família. Ele fala rapidamente de quando a família vai embora, o que lhe trouxe Ŗuma sensação boaŗ: De fato, não se pode negar que ŖMiss Dorisŗ se trata de um texto em prosa, que possui um fio narrativo, enredo e personagens. Tais características apontam para o fato de que o conto da escritora paraense partilha características do antigo gênero épico, atual gênero narrativo. No entanto, já não estamos mais na época em que se defendia a pureza dos gêneros literários, quando não seria aceito o fato de reconhecer que um texto poderia possuir características de mais de um estilo, conforme apontado pelos românticos e por tantos outros teóricos. Ainda no século XIX, Baudelaire tinha composto seus Petits poèmes en prose. A definição do que seria, realmente, Ŗpoema em prosaŗ é amplamente discutida, mas dificilmente há um acordo sobre isso. Nádia Gotlib se manifesta sobre o assunto ao dizer que [...] o poema em prosa afasta-se da épica e aproxima-se da lírica: mesmo que ele conte uma estória, impossível recontá-la sem que se perca sua força centrada no poético, por meio, entre outros recursos, das imagens e das suas múltiplas sugestões (GOTLIB, 2006, p.17).

Mário Faustino também fala sobre o assunto: Toda obra literária, portanto, parece-me flutuar sempre entre esses dois extremos de prosa e de poesia, muitas havendo que se encontram de tal maneira equidistantes dos dois extremos que não há como chamá-las Ŗprosaŗ ou Ŗpoesiaŗ, daí surgindo as modalidades intermediárias do Verso (em um dos sentidos ingleses da palavra verse) e dos Ŗpoemas em prosaŗ (FAUSTINO, 1976, p. 61).

O tema é amplo e Aristóteles já havia mencionado, em sua Poética, que nem todo texto escrito em verso pode ser considerado poesia. Se a afirmação de Aristóteles é verdadeira, o


144 contrário também é válido: nem tudo escrito em prosa é totalmente prosaico. Roman Jakobson (2007), por exemplo, define Ŗpoesiaŗ a partir do que caracteriza como funções da linguagem. ŖPoesiaŗ seria, assim, o texto em que a função poética predominasse. Por conta disso, um texto escrito em forma de prosa pode ser considerado poético se sua função principal for poética. A tal texto pode-se dar o nome de prosa poética ou poesia em prosa. Isso porque é prosa em sua forma, mas poesia em sua função e em suas principais características. Não é possível afirmar que o conto ŖMiss Dorisŗ seja prosa apenas em sua forma, pois, como já vimos, possui características de narração (e no fundo todos os textos não seriam narrativas?). Mas também não é possível afirmar que seja um texto desprovido de características poéticas, pois as possui em grande escala, incluindo as imagens, a plasticidade lírica marcada em vários trechos: Era tudo branco, ou melhor, era tudo branco o que eu via, uma luz que se alastrava pelo jardim, uma névoa que me fazia ver tudo longe e silencioso, se eu olhava na direção da casa. (MD, p. 20)

Os sentimentos do jardineiro diluem-se em névoa, como as pinceladas dos pintores impressionistas. Maria Lúcia Medeiros mistura, como Monet, as cores da sua paleta com as impressões do momento vivido pelo narrador-personagem. A sensação de perda escurece as cores do seu mundo Ŕ o jardim Ŕ, turva-se a visão, o próprio tato torna-se escuro. Na sequência temporal, a luz continua a diluir os contornos da casa e a influenciar as impressões experimentadas pelo jardineiro: Quando amanheceu o dia seguinte, quando os relógios começaram a bater as horas e o sol a jogar seus raios rutilantes esbraseando as superfícies e incendiando os contornos, o palacete resplandeceu (MD, p. 20-21).

E, ao mesmo tempo, as imagens surgem nitidamente e marcam, mais uma vez, o tom lírico do conto. A névoa, os tons escuros, os raios do sol Ŗesbraseando as superfícies e incendiando os contornosŗ e o resplandecer do palacete são metáforas e representações para o que denotativamente ocorria. Para a poesia (incluídas a poesia em prosa e a prosa poética), a referência à pintura, seguida por muito tempo, desde o Ut pictura poesis de Horácio, volta a se fortalecer, ideia que foi reforçada por Frye, ao dizer que muitos poemas líricos possuem imagens visuais, quase pinturas. A arte da palavra, pelo uso das imagens, em descrições e narrativas, liga-se muitas vezes às cores e formas do modelo picturial. A musicalidade, uma das principais características poéticas, também aparece em grande escala no conto. A repetição do fonema / f /, por exemplo, além de imprimir musicalidade ao


145 texto, remete-nos ao som das folhas ao vento, o que une, como disse Staiger, o sentido das palavras à sua melodia: Ŗfazer nascer flor ou folhagem que fosseŗ (MD, p. 12). O ritmo é um dos principais elementos a abolir a fronteira que separa prosa e poesia, prosaico e poético (FREYERMUTH, 2010). 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Procuramos mostrar aqui apenas um recorte da pesquisa que faz parte da dissertação de mestrado intitulada O hibridismo de gêneros nos contos de Maria Lúcia Medeiros. A escolha é, pois, mostrar como se encontram entrelaçados, em um texto em prosa, elementos genéricos diversos. Uma vez que em nossa época os gêneros transgridem as regras, o foco é analisar os três contos já mencionados de uma maneira a mostrar como um texto em prosa pode, muitas vezes, tomar forma de um texto poético.

REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Arte Poética. São Paulo: Martin Claret, 2007. CROCE, Benedetto. Breviário de Estética / Aesthetica in nuce. São Paulo: Editora Ática, 1977. FAUSTINO, Mário. Poesia e Experiência. São Paulo: Perspectiva, 1976. GOTLIB, Nádia. Teoria do Conto. São Paulo: Ática, 2006. HUGO, Victor. Préface de Cromwell. Paris: Larousse, 2001. MEDEIROS, Maria. Horizonte Silencioso. São Paulo: Boitempo Editorial, 2000. MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São Paulo: Cultrix, 2004. PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2009. STAIGER, Emil. Conceitos Fundamentais da Poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

LETRAMENTO INDIGENA: ENTRE O DISCURSO DO RCNEI E AS PRATICAS DE LETRAMENTO DA ESCOLA INDIGENA DA COMUNIDADE TIRIYÓ

Lúcia Maria Silva RODRIGUES (UFPA) Orientador(a): Prof.ª Dr.ª Carmem Cardoso RODRIGUES (UFPA) RESUMO: O contato durante a colonização entre brancos, negros e índios nas terras brasileiras proporcionou varias contribuições dos povos indígenas ao povo brasileiro, vejamos: ensinaram as técnicas de sobrevivência na floresta; contribuíram como mão de obra nas expansões agrícolas e extrativistas; enriqueceram o português brasileiro com muitas expressões, palavras e conceitos das línguas indígenas; ensinaram a manusear as ervas medicinais; influenciaram a culinária brasileira, dentre outros. Na atualidade muitos grupos indígenas protegem as riquezas naturais de floresta e fauna existentes em suas terras, os


146 nativos lutam aguerridamente para manter a biodiversidade de seu território longe de usineiros, madeireiros, pseudo pesquisadores e de projetos de exploração do próprio Governo Federal. O presente estudo tem por corpus de analise os índios Tiriyó que habitam a região da Serra do Tumucumaque (fronteira com o Suriname e Guiana Inglesa) os quais tem seu dialeto especifico: Tiriyó, advindo da matriz Carib. Considerando, portanto, as questões apresentadas e tendo consciência da importância dessa etnia para a formação do povo brasileiro, o trabalho tem por matriz analisar as praticas de letramento escolar da escola localizada na comunidade Tiriyó e confrontá-las com as orientações para o desenvolvimento da escrita presente no Referencial Curricular Nacional para as e Escolas Indígenas Ŕ RCNEI para mostrar a aproximação e/ou distanciamento entre a proposta do documento e a pratica da sala de aula dos professores da comunidade Tiriyó. PALAVRAS-CHAVE: Letramento indígena. Língua Tiryió. RCNEI. ABSTRACT: Contact during colonization among whites, blacks and Indians in the Brazilian land provided many contributions of indigenous peoples to the Brazilian people, let's see, taught survival techniques in the forest; contributed to labor in the agricultural and mining expansions; enriched with Brazilian Portuguese many expressions, words and concepts of indigenous languages, taught to handle the herbs; influenced Brazilian cuisine, among others. Nowadays many indigenous groups protect the natural wealth of flora and fauna existing in their lands, the natives are fighting fiercely to maintain the biodiversity of its territory far from mill owners, loggers, researchers and pseudo exploration projects of the Federal Government. The present study is to analyze the corpus of Tiriyó Indians who inhabit the mountain region of Tumucumaque (border with Guyana and Suriname) which has its specific dialect: Tiriyó, arising out of the matrix Carib. Therefore, considering the issues presented and being aware of the importance of ethnicity to the Brazilian people, the work is to analyze the array of literacy practices of the school community school located in Tiriyó and confront them with the guidelines for the development of writing present in the National Curriculum for Schools and Indigenous - RCNEI to show the approach and/or distance between the proposed document and the practice of classroom teachers Tiriyó community. KEYWORDS: Indigenous Literacy. Language Tiryió. RCNEI.

Quando, nas terras brasileiras os europeus colonizadores aportaram aproximadamente 1.300 línguas nativas eram faladas. A maior nação da época Ŗque compreende algumas dessas nações de Índios (CARDIM, 1980, p. 101) e dominava toda a costa litorânea era a dos Tupinambá¹ como atesta Pinto: Os Tupinambá constituíam uma das mais importantes tribos primitivas do Brasil nos séculos XVI e XVII. Localizando-se geograficamente por quase toda a extensão da costa oriental americana e interior do Brasil, a família tupinambá também era mais numerosa nesses séculos, a ela se filiando por parentesco, quase todos os aborígenes do litoral brasileiro (PINTO, 1979, XVIII apud MENDONÇA, 2002, p. 25)


147 Dessa riqueza étnica, cultural e linguistica, após o processo de colonização resistem mais 220 povos indígenas e, segundo Joana Fernandes (1993, p.42) 170 línguas nativas. Esses números confirmam que a unificação política e cultural do território brasileiro ocorreu através de métodos demasiados violentos, autoritários e implacáveis configurando-se numa ação etnocêntrica e num verdadeiro massacre étnico e lingüístico, segundo Darcy Ribeiro (1995) p.19 Abre-se com esse encontro um tempo novo, em que nenhuma inocência abrandaria sequer a sanha com que os invasores se lançavam sobre o gentio, prontos a subjugá-los pela honra de Deus e pela prosperidade crista. Só hoje, na esfera intelectual, repensando esse desencontro, se pode alcançar seu real significado. (RIBEIRO, 2006, p 40)

O contato durante a colonização entre brancos, negros e índios em terras brasileiras proporcionou, segundo Darcy Ribeiro, 1995, p.19, o surgimento de uma nova nação, diferenciada; ao mesmo tempo de suas origens e do modelo europeu idealizado. Nação que conseguiu ressignificar suas matizes e criar uma identidade tão peculiar e sincrética que não pode mais ser considerado um povo indígena, negro, ou luso, mas sim um novo povo: o povo brasileiro, que, até hoje, como afirma o citado autor está em fazimento. Tupinambá é grafado no singular segundo norma estabelecida pela Associação Brasileira de Antropologia e se será grafado segundo a norma ortográfica padrão quando for usado como adjetivo. Podemos destacar varias contribuições dos povos indígenas ao povo brasileiro, vejamos: ensinaram as técnicas de sobrevivência na floresta; contribuíram como mão de obra nas expansões agrícolas e extrativistas; enriqueceram o português brasileiro com muitas expressões, palavras e conceitos das línguas indígenas; ensinaram a manusear as ervas medicinais; influenciaram a culinária brasileira que incorporou a mandioca, farinha e tapioca tipicamente indígena; influenciaram também o costume brasileiro, dentre outros. Atualmente, muitos grupos indígenas protegem as riquezas naturais de floresta e fauna existentes em suas terras. Os nativos lutam aguerridamente para manterem a biodiversidade de seu território longe de usineiros, madeireiros, pseudo pesquisadores e de projetos de exploração do próprio Governo Federal. Um exemplo disso foi a oposição ferrenha dos índios Caiapó à construção da usina de Belo Monte em suas terras, noticiado em grande escala nos meios de comunicação de massa. A cultura tradicional de uma comunidade tenta expressar sua identidade


148 cultural de diversas formas como, por exemplo, a língua, festas e mitos, técnicas artesanais, relações sociais e rituais. Tudo isso forma um patrimônio cultural especifico de cada comunidade. Dessa forma podemos enxergar o Patrimonio Cultural de um povo como verdadeiro valor de sua cultura (UNESCO, 2003). Esse patrimônio precisa, portanto, ser bem preserva do, pois é tão valioso, já que carrega as informações relacionadas como um povo em particular quanto frágil, já que pode ser perdido facilmente. SANTOS, 2008, p. 256)

O presente estudo tem por corpus de analise os índios Tiriyó que habitam a região da Serra do Tumucumaque. Fronteira com o Suriname e Guiana Inglesa os quais tem seu dialeto específico advindo da matriz Carib. O grande diferencial da cultura Tiriyó toma como pontos relevantes o

trabalho na

lavoura, onde a mulher Tiriyó trabalha na capina; na colheita de frutos e de mel; no plantio da mandioca assumindo essa função e carregando todo o peso em suas costas. Durante sete dias ela se dedica a preparação da Sakura ( bebida tradicional ) e do Wi ( beiju tradicional ) guardando muito bem, pois para elas servirá como alimento em qualquer hora e em qualquer lugar que estejam. Na caça, na roça, na pesca, para eles, o beiju é uma alimentação sagrada, faz parte da comunhão entre as famílias. Possuíam sua festa tradicional em outubro, mas por influencia dos missionários mudou para dezembro, é chamada de ŖFesta da Fartura e da Partilhaŗ para a qual levam um pouco de cada coisa conseguida com seu trabalho, como: frutas, jacarés, jabutis, etc. Comemoram com muita alegria e abundância dançando e cantando ao redor das caças e das frutas bebendo Sakura.. O homem oferece a bebida à mulher e a mulher oferece ao homem até vomitarem, pois nem um nem outro pode recusar a bebida sagrada. Bebem até vomitar depois vão tomar banho no rio e depois continuam a beber novamente celebrando a vida e a fartura da mãe natureza. O casamento era feito de forma tradicional na pratica da poligamia e da poliandria (apenas um caso registrado), prática esta que foi retirada da comunidade por influência católica e protestante que não aceitam essas duas práticas. A traição é muito rara em um relacionamento, pois quando não dá certo a mulher é dada ao outro homem, mas com prévio acordo entre o cacique. Quanto à questão da virgindade, na primeira menstruação a menina fica reclusa na oca e somente a mãe é que pode levar alimento a ela , da segunda menstruação menina já está preparada para casar ou fazer sexo. Mas desde muito pequenas já estão prometidas em casamento. O pai e a mãe tem um papel fundamental na cultura Tiriyó em que, o pai cuida do filho e a mãe cuida da filha seguindo a tradição oral aprendem fazendo.


149 O pai prepara o catarizinho (cestinho feito de fibra natural) e a criança fica observando, se ela não conseguir compreender como se faz, tem que desfazer tudo e começar novamente, sempre com o auxílio do pai e este não a repreende, apenas ensina. Não existe o termo trabalho no vocabulário Tiriyó, pois pra eles trabalho é lazer. Caçam, pescam, derrubam árvores, fazem roçado perto do rio e quando se cansam vão tomar banho e assar os peixes, comer, brincar ou colher frutos próximo a roça. Trabalham apenas para ganhar o Karakuri (dinheiro) apenas para comprar algo muito necessário. O alimento é comum pra todos, tanto na roça quanto na casa. Não há necessidade de pedir, especialmente as crianças, porque tudo que tem é comum a todos, o estranho não tem direito a essa partilha porque introduziram o termo Ŗlevarŗ ou Ŗroubarŗ que soa como uma ofensa à sua honra e de sua família. Esses termos não fazem parte da cultura Tiriyó e por esse motivo é que são confundidos erroneamente, como um povo rude e ignorante, pois não partilham suas coisas com estranhos. O interesse em pesquisar essa etnia além dos motivos históricos e culturais, também é motivado por aspectos subjetivos e particulares, posto do contato mantido com religiosos católicos da Congregação Missionária de Jesus Crucificado os quais desenvolveram trabalhos a mais de 40 anos com essa etnia, bem como o contato direto com membros dessa comunidade indígena quando de visita ao Suriname, aos quais fora exposto o interesse de realizar referida pesquisa e que foi bem aceito por eles. Além do interesse subjetivo, o trabalho se pauta ainda pelo conhecimento adquirido quando proporcionou um leque de possibilidades de conhecimentos teóricos a cerca de a alfabetização e letramento. Uma das primeiras ocorrências do termo Letramento foi em 1986 no livro O Mundo da Escrita: uma perspectiva psicolinguistica de Mary Kato. Mas foi em1988, segundo Magda Soares que esse termo ganha estatuto, quando Leda Tfouni distingue alfabetização de letramento no capitulo introdutório de seu livro Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso. A partir desse momento o termo letramento passa a ser usado mais frequentemente no léxico dos estudos Educacionais e dos Estudos Linguísticos. Observando a realidade a nossa volta, percebe-se facilmente que muitas mudanças acontecem no meio tecnológico, cientifico, nas estruturas sociais e no próprio relacionamento interpessoal. Isso traz a necessidade de que a prática da escrita e da leitura ocorra todo o tempo e nos mais diferentes espaços, a fim de acompanhar essas transformações, responder as novas exigências e habilitar o homem a esse novo momento. Assim o termo Ŗletramento surge porque representa uma mudança histórica das praticas sociais: novas demandas sociais do uso


150 da leitura e da escrita exigiram uma nova palavra para designá-lasŗ (SOARES, 2006, p.21) Letramento é, pois o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um individuo como consequência de ter-se apropriado da escrita (SOARES, 2006, P. 18)

Considerando, portanto, as questões apresentadas e tendo consciência da importância dessa etnia para a formação do povo brasileiro, focaliza-se o presente estudo nas praticas de letramento da comunidade indígena Tiriyó buscando confrontá-las com as propostas do Referencial Curricular Nacional para as e Escolas Indígenas Ŕ RCNEI. Diante da citada problemática das disparidades e antagonismos da sociedade nacional, definimos os seguintes questionamentos: Qual a situação educacional indígena na comunidade Tiriyó? O que os envolvidos no processo escolar entendem por educação escolar indígena? Sua compreensão sobre o assunto converge ou diverge do RCNEI? Quais as dificuldades e conquistas educacionais alcançadas por esse grupo? Tais questionamentos norteiam o desenvolvimento do presente estudo que ainda se encontra em fase inicial e no decorrer do mesmo serão detalhados, bem como trarão a lume muitas outras questões que esclarecerão a nós brasileiros duvidas que possivelmente tenhamos com relação a nossos ancestrais diretos, bem como sobre os descendentes que com todo o processo de dizimação impetrado a eles , ainda sobrevivem para nos ensinar. REFERÊNCIAS BRASIL. Lei Darcy Ribeiro Ŕ Lei de Diretrizes e Bases da Educação. 3 ed. Brasília, Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2006. CARDIM, Fernão. Tratados da Terra e Gente do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia Ŕ Editora da Universidade de São Paulo, 1980. FERNANDES, Joana. Índio: Esse nosso desconhecido. Cuiabá: Editora Universitária, 1993. LETSHSCHERT, Frei Bento. Dicionário Português Tiriyó. MEC/MARI-NHII/USP. Brasília, 1998. MINISTERIO DA EDUCAÇÃO, SECRETARIA DE EDUCAÇÃO CONTINUADA, ALFABETIZAÇÃO E DIVERSIDADE. Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas. Brasília: MEC/SECAD, 2005. PINTO, Estevão. Prefácio do Tradutor. In: MARTINS, Wilma. Memória de Nós: O discurso possível e o silencio Tupinambá nos relatos de viagem do século XVI. (Tese de doutorado). Pernambuco: Recife, 2002. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. 2 ed. 3 reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. __________________. O povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. 2 ed. 6 reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. SOARES, M. Letramento: Um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica 2006.


151 SEVERINO, Antonio Joaquim. Metodologia do Trabalho Científico. São Paulo: Cortez, 2000.

Luciane Chedid Melo BORGES (UFPA) Orientador(a): Prof. Dr. Abdelhak RAZKY (UFPA) RESUMO: Este trabalho apresenta a proposta de elaboração de um glossário ilustrado da Meliponicultura, a criação de abelhas indígenas sem ferrão, a partir da descrição da linguagem de especialidade presente em textos que circulam no âmbito desse domínio de atividade. Como aporte teórico, lança-se mão da Socioterminologia proposta por François Gaudin, que rompe com a concepção tradicional da Teoria Geral da Terminologia (TGT) ao considerar seu objeto de estudo em uma dimensão social, tendo como foco uma perspectiva variacionista da língua. Ao se ocupar do estudo do termo em seu contexto real de uso, a Socioterminologia propicia o desenvolvimento de trabalhos que resgatam e restituem às terminologias descritas o aspecto social e a riqueza das línguas. A escolha da Meliponicultura como temática justificase pelo fato de esta atividade estar em plena expansão, não só no Brasil, mas em todo o mundo, e, sobretudo, pela projeção socioeconômica que ela representa para o Estado do Pará, especialmente por seu alinhamento com os conceitos de diversificação e uso sustentado da terra da Amazônia. Acredita-se que a organização de um produto socioterminológico sobre a Meliponicultura e sua disponibilização à sociedade representa, antes de tudo, a importante função da pesquisa terminológica de organizar e disseminar o conhecimento, visando favorecer a comunicação entre os interessados por essa atividade, entre eles os meliponicultores, pesquisadores, docentes e estudantes. PALAVRAS-CHAVE: Socioterminologia, Glossário, Meliponicultura.

ABSTRACT: This studyřs main objective consists of elaborating an illustrated glossary of Meliponiculture ŕ the beekeeping of stingless bees ŕ for the description of the specialized language actually used in texts produced within this area of activity. The theoretical support for this study is found in the Socioterminology proposed by Francois Gaudin, which challenges the General Theory of Terminology (GTT) tradition in favor of considering its object of study within a social dimension by focusing on a variationist perspective of language. By taking terms in their real context of usage into account, Socioterminology allows studies to be carried out so that they are able to rescue and restore the social aspect and the richness of languages for the terminologies described. The choice for the theme Meliponiculture is justified by the fact that this activity is booming, not only in Brazil but all over the world and particularly because of the socioeconomic projection that it represents to the State of Pará, by its alignment with the concepts of diversification and sustainable usage of land in the Amazon. It is believed that the organization of a socioterminological product about Meliponiculture as well as the process of making it available to society represent, above all, the important role of terminology research in organizing and disseminating knowledge, in order to facilitate the communication among those interested in this activity, including beekeepers, researchers, professors and students. KEYWORDS: Socioterminology, Glossary, Meliponiculture.


152 INTRODUÇÃO

Este trabalho apresenta a proposta de elaboração do Glossário Socioterminológico da Meliponicultura, a criação de abelhas indígenas sem ferrão, cujo objeto de estudo é o tratamento socioterminológico da linguagem de especialidade da Meliponicultura, presente em textos produzidos em registro escrito por pessoas ligadas a essa atividade. Entende-se como glossário o inventário terminológico, de caráter seletivo, que tem como finalidade registrar e definir termos de domínios científicos, técnicos ou culturais, independentemente do suporte material em que se apresenta (FAULSTICH, 1990). A organização de um Glossário Socioterminológico da Meliponicultura e sua disponibilização à sociedade, além de contribuir para os estudos de natureza socioterminológica desenvolvidos no Estado do Pará, no âmbito do Projeto Atlas Geosociolinguístico do Pará (Alipa)1, representa uma importante função da pesquisa terminológica: a organização e disseminação do conhecimento. Concebido à luz da Socioterminologia, este trabalho visa à investigação, coleta, descrição, análise e documentação da linguagem de especialidade da Meliponicultura em um repertório especializado, que irá resultar na apresentação de termos pertinentes a essa área, levando-se em consideração o aspecto variacionista da língua e a utilização dos termos em seu real contexto de uso. Ao se ocupar do estudo do termo em situação interacional, a Socioterminologia propicia o desenvolvimento de trabalhos que resgatam e restituem o aspecto social e a riqueza das línguas. A escolha da Meliponicultura como temática justifica-se pelo fato de esta atividade estar em plena expansão, não só no Brasil, mas em todo o mundo, e, sobretudo, pela projeção socioeconômica que ela representa para o Estado do Pará, especialmente por seu alinhamento com os conceitos de diversificação e uso sustentado da terra na Amazônia.

1. APRESENTAÇÃO DO DOMÍNIO

1.1 AS ABELHAS INDÍGENAS SEM FERRÃO Também conhecidas como meliponíneos ou abelhas sociais nativas, as abelhas 1

Coordenado pelo Prof. Dr. Abdelhak Razky, o Projeto Alipa tem como finalidade realizar o mapeamento de variações fonéticas e lexicais do português falado no Estado do Pará, a partir da observação da diversidade linguística que ocorre nessa região, nas dimensões geográfica, social e temporal.


153 indígenas sem ferrão se diferenciam da maioria das espécies conhecidas, as quais geralmente possuem hábitos solitários. Fonseca (2009) ressalta que: as abelhas nativas sem ferrão vivem em sociedades muito bem organizadas onde existe uma rainha, responsável pela reprodução, operárias que se ocupam das outras tarefas do ninho, cuidado especializado da prole e uma sobreposição de gerações que pode permitir a uma mesma colônia viver por mais de 50 anos.

1.1.1 DISTRIBUIÇÃO GEOGRÁFICA

Distribuídas em todo o mundo, há cerca de 400 espécies de abelhas sem ferrão, com tamanhos, cores e ninhos muito diferentes. O Brasil é o país mais rico em espécies de meliponíneos. Já foram descritos no território brasileiro 27 gêneros e 192 espécies (SILVEIRA et al., 2002 apud CASTRO, 2005). De acordo com Londoño (2001), a Meliponicultura se faz presente no País nas regiões: Nordeste, nos estados do Ceará (Serra de Baturité), Pernambuco (Recife e Paulista), Rio Grande do Norte (Jardim do Seridó, Mossoró e Redonda), Paraíba (Patos) e Bahia (Lençóis, Vale do Capão, Conceição de Almeida, São Felipe, Salvador e Valença); Sudeste, nos estados de São Paulo (São Simão, Guarulhos, Cunha, Ribeirão Preto e São Paulo), Rio de Janeiro (Niterói) e Minas Gerais (Viçosa); Sul, no Paraná (Prudentópolis) e em Santa Catarina (Videira, Chapecó, Florianópolis, Criciúma); Centro-Oeste, em Goiás (Fazenda Jatiara), e na Região Norte, no Amazonas (Boa Vista dos Ramos) e no Pará (Belterra).

1.2 A CRIAÇÃO RACIONAL DE ABELHAS INDÍGENAS SEM FERRÃO E SUA REPRESENTATIVIDADE NA REGIÃO AMAZÔNICA Se o Brasil é o país mais rico em abelhas sem ferrão, é na Região Amazônica que ocorre a maior diversidade de espécies. De acordo com Venturieri (2003, p. 3), apenas no Estado do Pará, já foram identificadas cientificamente 70 espécies diferentes, mas nem todas produzem mel indicado ao consumo humano ou em quantidade suficiente para comercialização. A Meliponicultura, hoje, está em plena expansão na Amazônia Brasileira, sobretudo porque esta região possui um ecossistema com características muito favoráveis ao desenvolvimento dessa atividade, entre elas: clima quente; flora rica em espécies fornecedoras de mel, pólen e resina; floração mais distribuída ao longo do ano e, principalmente, um


154 grande mercado com boa cotação para o mel (VENTURIERI, 2008, p. 17). No Nordeste Paraense, as espécies mais comuns, segundo informações do pesquisador Giorgio Venturieri1, são: a Uruçu-amarela (Melipona flavolineata), espécie encontrada em base de troncos de árvores; a Uruçu-cinzenta (Melipona fasciculata), abundante no mangue, produz mel de excelente qualidade e em boa quantidade, e a Jataí (Tetragonisca angustula), facilmente encontrada porque consegue construir seu ninho em diversos lugares, como dentro de muros e paredes de casas. Vale ressaltar que o mel da abelha Jataí é um dos mais apreciados entre os méis de todas as abelhas sem ferrão. A Meliponicultura de abelhas nativas da Amazônia é caracterizada pela produção de um mel verdadeiramente orgânico, com sabor e aroma diferenciados e apresenta outra importante característica, de ordem social: apesar de ser uma atividade especializada e demandar conhecimentos sobre a biologia e o comportamento das abelhas, pode ser executada por mulheres, jovens e idosos, por não exigir força física e dedicação demorada ao manejo. Conforme ressalta Venturieri, Raiol e Pereira (2003, p. 2),

os meliponíneos são abelhas dóceis, de fácil manejo e necessitam de pouco investimento para a sua criação. É uma atividade que pode ser integrada a plantios florestais, de fruteiras e de culturas de ciclo curto, podendo contribuir, através da polinização, com o aumento da produção agrícola e regeneração da vegetação natural.

Trata-se, portanto, de uma atividade sustentável de positivo retorno econômico e ecológico, que ainda pode ser integrada a plantios florestais e agrícolas, de forma a contribuir para os importantes trabalhos de reflorestamento e para o aumento qualitativo e quantitativo da produção agrícola. Isto porque, além da produção de mel, as abelhas indígenas sem ferrão desenvolvem papel significativo na polinização de culturas agrícolas e de diversas espécies florestais nativas, sendo consideradas por muitos estudiosos como importantes polinizadores efetivos.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Na elaboração deste Glossário Socioterminológico da Meliponicultura, como o próprio nome indica, serão considerados, sobretudo, os pressupostos advindos da Socioterminologia, por entender-se que qualquer trabalho terminológico não pode desconsiderar o aspecto

1

VENTURIERI, Giorgio Cristino. Comunicação pessoal. Belém, PA, jun. 2009.


155 variacionista da língua em seu contexto real de uso. Considera-se importante que o repertório proposto abarque a terminologia utilizada nos diversos meios profissionais que essa área envolve. Trata-se da necessidade de a análise dos dados linguísticos em Terminologia considerar os mais variados fatores sociais, pois parte-se do pressuposto de que não se pode tomar a língua como um fenômeno isolado, sem relação com o mundo extralinguístico e, sobretudo, com seus usuários. Conforme coloca Biderman (2006, p. 35),

Ao dar nomes às entidades perceptíveis e apreendidas no universo cognoscível, o homem as classifica simultaneamente. Assim, a nomeação da realidade pode ser considerada como a etapa primeira no percurso científico do espírito humano de conhecimento do universo. Ao identificar semelhanças e, inversamente, discriminar os traços distintivos que individualizam estes referentes em entidades distintas, o homem foi estruturando o conhecimento do mundo que o cerca, dando nomes (palavras e termos) a essas entidades discriminadas. É esse processo de nomeação que gerou e gera o léxico das línguas naturais.

De acordo com Faulstich (1995, p. 2), desde que surgiu, no âmbito dos estudos terminológicos, a denominação Socioterminologia passou a ser defendida por vários linguistas, sobretudo pelo fato de eles reconhecerem que as terminologias estão sujeitas à variação. Nesse momento, a Socioterminologia deixou, então, de ser vista como método analítico aplicado e passou a adquirir um status de disciplina de caráter teórico. Na evolução dessas ideias e para contribuir para o desenvolvimento das pesquisas de caráter teórico e prático acerca do termo e suas variantes, a Socioterminologia angariou uma metodologia de pesquisa, cuja síntese é apresentada por Faulstich (1995, p. 2-3):

Socioterminologia, como prática do trabalho terminológico, fundamenta-se na análise das condições de circulação do termo no funcionamento da linguagem. Socioterminologia, como disciplina descritiva, estuda o termo sob a perspectiva lingüística na interação social. Assim sendo, a pesquisa socioterminólogica deve ter como auxiliar: 1) os princípios da sociolingüística, tais como os critérios de variação lingüística dos termos no meio social e a perspectiva de mudança; 2) os princípios de etnografia: as comunicações entre membros da sociedade capazes de gerar conceitos interacionais de um mesmo termo ou de gerar termos diferentes para um mesmo conceito.

Ainda para Faulstich (2006, p. 29),

A socioterminologia é, portanto, um ramo da terminologia que se propõe a refinar o conhecimento dos discursos especializados, científicos e técnicos, a auxiliar na planificação lingüística e a oferecer recursos sobre as circunstâncias da elaboração desses discursos ao explorar as ligações entre a terminologia e a sociedade.


156

Percebe-se que, do ponto de vista teórico, a Socioterminologia vai se ocupar do estudo do termo em situação de interação social. Já numa perspectiva prática, ela vai analisar o funcionamento dos termos e suas condições de circulação na linguagem especializada. Dessa forma, entende-se que uma pesquisa socioterminológica precisa considerar que os termos, tanto no meio linguístico quanto no social, estão sujeitos ao fenômeno da variação e que o uso da língua, nas suas diversas relações comunicacionais, pode fazer surgir variantes linguísticas.

3 METODOLOGIA

Este trabalho seguiu quatro etapas principais em seu processo metodológico, as quais envolveram a organização do corpus, a definição do mapa conceitual, a utilização de ferramentas de extração e tratamento automático de dados e a construção do glossário propriamente dito.

3.1 A ORGANIZAÇÃO DO CORPUS

Esta primeira etapa do processo metodológico envolve a seleção dos textos em registro escrito, a compilação de corpora eletrônicos e a organização do banco de dados. Nesse processo, parte-se do pressuposto de que um corpus deva ser significativo e representativo. No entanto, considera-se, aqui, o fato de que a pesquisa não deve visar à construção de um corpus exaustivo, tendo em vista que, em uma pesquisa dessa natureza, não há exaustividade verdadeira, uma vez que a produção de textos de especialidade, assim como a de textos em geral, é um processo dinâmico no qual o empréstimo e a criação de palavras ocorre constantemente. O corpus compilado para esta pesquisa, denominado MELIP para fins de organização e armazenamento, somou 195 textos e 1.005.948 palavras. De acordo com Berber-Sardinha (2004, p. 26), ele pode ser considerado um corpus médio ou médio-grande1. O processo de organização do corpus MELIP passou por diferentes momentos. Num primeiro momento, optou-se pela classificação dos textos em Ŗcientíficosŗ e Ŗnão científicosŗ, classificação esta que não satisfez os interesses do trabalho por ser muito ampla e, por isso, 1

Berber-Sardinha (2004, p. 26) propõe a seguinte classificação para os corpora: com menos de 80 mil palavras, um corpus é considerado pequeno; com 80 a 250 mil, pequeno-médio; com 250 mil a 1 milhão, médio; com 1 milhão a 10 milhões, médio-grande, e, finalmente, com 10 milhões ou mais, um corpus grande.


157 precisou ser revista. Tentou-se, portanto, num segundo momento, uma classificação dos textos de acordo com o gênero textual no qual se enquadravam. Assim, foram identificados três gêneros principais para os textos coletados: didático, informativo e técnico-científico. No entanto, no processo de distribuição dos textos de acordo com seu respectivo gênero, alguns entraves surgiram, como, por exemplo, o enquadramento de um mesmo texto em dois gêneros diferentes. Diante desse entrave, optou-se por não rotular os textos de acordo com seu gênero, mas apenas identificá-los conforme sua tipologia. Dessa forma, os textos do corpus MELIP foram classificados como: artigos científicos, artigos de divulgação, artigos escritos por meliponicultores, apostilas, cartilhas, livros, boletins informativos, apresentações de slides, textos publicados em sites na internet, trabalhos apresentados em congressos, dissertações e teses.

3.2 A DEFINIÇÃO DO MAPA CONCEITUAL

A criação de um esquema que estabeleça a hierarquia dos termos de acordo com seus respectivos campos conceituais é de fundamental importância para o trabalho terminológico. Esses esquemas constituem procedimento importante para a identificação, delimitação e segmentação dos termos que irão compor o produto terminológico que se pretende elaborar. Como a Meliponicultura é uma prática que se insere no campo da Agricultura, buscou-se o auxílio de três importantes Thesaurus da área para a definição de seu mapa conceitual, são eles: o Thesagro (2006), o Agrovoc (2009) e o Eurovoc (2009). A pesquisa realizada nos referidos Thesaurus propiciou o entendimento de que os termos que dizem respeito à biologia da abelha sem ferrão não podem ser inseridos no campo da Meliponicultura, que, por sua vez, está subordinada ao campo mais amplo da Agricultura. Identificou-se, portanto, que, de acordo com esses Thesaurus, o termo <Agricultura> não poderia estar inserido no campo da <Biologia>, pois ambos estão hierarquicamente nivelados, e o termo que faz a ponte entre eles é o termo <Abelha>.

3.3 A EXTRAÇÃO DOS CANDIDATOS A TERMOS

Com o corpus devidamente organizado, iniciou-se a geração de listas de palavras para análise, identificação e extração dos candidatos a termos com a utilização da ferramenta


158 Wordlist do WordSmith Tools1. Com as listas de palavras prontas, iniciou-se a análise e seleção dos candidatos a termos. Cada lista de palavras foi transformada em uma tabela de forma que pudesse ser trabalhada no programa Microsoft Excell, que oferece recursos avançados para visualização e organização dos dados. Somente após uma cuidadosa análise de cada uma dessas listas é que poderão ser identificadas aquelas palavras que podem vir a ser unidades terminológicas (UTs) da área de domínio da Meliponicultura. 3.4 A CONSTRUÇÃO DO GLOSSÁRIO ELETRÔNICO Pretende-se construir o glossário proposto neste trabalho com o auxílio do software LexiquePro2, de forma que todas as informações que seriam inseridas em uma ficha terminológica alimentem o banco de dados organizado nesse software e, a partir desse banco de dados, é que será realizada a edição final dos verbetes. No plano da macroestrutura, os termos serão apresentados em ordem alfabética e, sempre que possível, serão incluídas ilustrações (fotos, desenhos, gráficos ou mesmo vídeos, como no caso do glossário eletrônico). A partir das denominações dos conceitos relacionados à Meliponicultura, os termos serão agrupados de acordo com seus respectivos campos semânticos. A microestrutura dos dados contidos nos verbetes do glossário será apresentada de acordo com o que propõe Faulstich (1990), com algumas adaptações:

entrada + categoria gramatical + campo semântico + definição + contexto + fonte ± (nota) ± (variante) ± (sigla ou acrônimo) ± remissiva CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concebemos o Glossário Socioterminológico da Meliponicultura com o intuito de registrar o conhecimento técnico-científico sobre a criação de abelhas indígenas sem ferrão em uma obra terminológica que favoreça a comunicação entre os interessados por essa atividade, entre eles os meliponicultores, pesquisadores, docentes e estudantes. O objetivo que este trabalho pretende cumprir é descrever esse domínio de especialidade da forma mais 1

SCOTT, Mike. WordSmith Tools. Versão 5. Disponível em: <http://www.lexically.net/wordsmith/>. Acesso em: jun. 2009. 2 SIL International. Lexique Pro. Versão 3.3.1. SIL IVB/Mali. Disponível em: <http://www.lexiquepro.com/download.htm>. Acesso em: jun. 2009.


159 simples possível, buscando-se evitar contradições em sua estrutura interna e possíveis equívocos, o que tem sido feito com o auxílio de especialistas da área, consultores desta pesquisa, e de ferramentas computacionais que propiciam agilidade e precisão ao processo de extração e organização das unidades terminológicas. Trabalhos desenvolvidos à luz da Socioterminologia com o intuito de elaborar produtos terminológicos apresentam a potencialidade das linguagens de especialidade e propiciam a importante disseminação do conhecimento de área específicas. Por isso destaca-se, nestas considerações, o importante papel da Socioterminologia, que resgata e restitui à Terminologia o aspecto social e a riqueza das línguas. Ao se ocupar do estudo do termo em situação interacional, a Socioterminologia propicia o desenvolvimento de trabalhos que consideram o aspecto variacionista da língua, abandonando a atitude prescritivista que marca o início do desenvolvimento da Terminologia em prol de uma atitude mais descritivista e funcionalista da língua.

REFERÊNCIAS

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FONSECA, Vera Lucia Imperatriz. As abelhas sociais sem ferrão. Disponível em: <http://www.ib.usp.br/beelife/>. Acesso em: 19 set. 2009.


160 LONDOÑO, Juan Manuel Rosso. Criação de meliponíneos no Brasil. 2001 (Apresentação). Disponível em: <http://www.webbee.org.br/meliponicultura/criacao_meliponineos.pdf>. Acesso em: 19 set. 2009.

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ATIVIDADES DE COMPREENSÃO ESCRITA EM MANUAIS DE PLE UTILIZADOS EM BELÉM-PA Luciana Kinoshita da SILVA (UFPA) Orientador(a): Prof. Dr. José Carlos Chaves CUNHA (UFPA) RESUMO: Esta é uma pesquisa referente a uma dissertação de mestrado em fase inicial de desenvolvimento. Trata-se de um trabalho que pretende investigar as características das atividades de compreensão textual nos manuais utilizados em alguns cursos avançados de Português como Língua Estrangeira (PLE) de Belém-Pa. Considerar-se-á também como essas atividades são desenvolvidas pelo professor em sala de aula. Quatro diferentes materiais de quatro instituições diversas serão investigados, Amazon Valley Academy (AVA), Universidade Federal do Pará (UFPA), Mórmons e SIT-Amazon. Com essa investigação, verificar-se-á o que os materiais didáticos existentes têm proposto para alcançar o objetivo de tornar esses alunos leitores proficientes e, quando for o caso, o que ainda é preciso fazer para que se possa alcançá-los. O estudo em questão basear-se-á em pesquisa bibliográfica e de campo, a qual se realizará no curso de PLE das quatro instituições mencionadas. Serão objetos de estudo os manuais utilizados com as turmas de nível avançado de PLE para adultos de cada uma. Farão parte da população-amostra professores que estiverem ministrando aula para essa(s) turma(s) de cada uma das instituições no primeiro semestre de 2011. A pesquisa bibliográfica será baseada em autores como Alliende & Condemarín (2005), Elias & Koch (2007), Farrell (2003), Henk, Moore, Marinak, & Tomasetti (2000), Marcuschi (2008), Nuttall (2005) e Taylor (1953), entre outros. Na pesquisa de campo serão utilizados dados de três fontes: análise dos manuais, teste Cloze aplicado aos alunos e observação de aulas de leitura usando os manuais. Ao final da pesquisa, objetiva-se não somente obter um panorama de como são as atividades de compreensão escrita nos manuais utilizados e como elas são


161 desenvolvidas em sala de aula, mas também sugerir adaptações para ambos: aulas e materiais. PALAVRAS-CHAVE: Compreensão escrita, manual didático, português língua estrangeira.

PRIMEIRAS PALAVRAS

O tema a ser estudado são as características das atividades de compreensão textual nos manuais utilizados em alguns cursos avançados de Português como Língua Estrangeira 1 (PLE) de Belém-Pa, além de como essas atividades são desenvolvidas pelo professor em sala de aula. Serão investigados quatro diferentes materiais de quatro instituições diversas, Amazon Valley Academy (AVA), Universidade Federal do Pará (UFPA), Mórmons e SITAmazon2. Entendo que a habilidade de compreensão escrita na LE é imprescindível para alunos das quatro instituições investigadas. Em geral, todos eles necessitam ler em português não apenas para participar ativamente da sociedade em que agora vivem, mas também para atividades específicas. A importância da leitura para aqueles que frequentam os cursos do AVA e dos Mórmons deve-se à necessidade de trabalhar com textos bíblicos na LE junto às comunidades com as quais trabalham. Já os alunos da UFPA precisam compreender textos escritos não apenas para passar nos exames do Celpe-Bras3, mas também para ler textos acadêmicos em LE na área em que pretendem estudar na universidade. Quem participa do programa da SIT-Amazon utilizará a compreensão escrita para não limitar o referencial teórico do seu projeto de pesquisa apenas a textos escritos em sua língua materna. Percebe-se que os alunos precisam ler diferentes textos em LE por diversas razões e 1

Será utilizada a nomenclatura PLE para designar o português ensinado no Brasil em situação de imersão cultural, pois Cuq (2003, p. 150) diz que qualquer língua que não é materna é LE; o que determina o grau de Ŗestrangeiridadeŗ do idioma é a distância material ou geográfica, a cultural e/ou a linguística. Já L2 é uma língua dominante (usada na escola e nas relações oficiais) em uma região/país em relação a uma L1/LM falada por uma comunidade da região/país (idem, p. 108 e 109). O português seria L2 para uma comunidade indígena que vive no Brasil. 2 A SIT (School for International Training) é uma instituição de ensino superior estadunidense que desenvolve semestralmente programas de intercâmbio cultural em 47 países. Possui três programas diferentes no Brasil, sendo um deles em Belém-PA, voltado para jovens estudantes de universidades dos Estados Unidos que vêm para a Amazônia participar de um programa de intercâmbio sobre Manejo Ambiental Amazônico e Ecologia Humana, com duração média de três meses e meio, e créditos equivalentes a um semestre universitário. O programa culmina com a apresentação de um projeto de pesquisa independente desenvolvido por cada aluno sobre manejo ambiental e/ou ecologia humana. 3 O Celpe-Bras é o Certificado de Proficiência em Língua Portuguesa para Estrangeiros, desenvolvido e outorgado pelo Ministério da Educação (MEC) do Brasil. O Celpe-Bras é o único certificado de proficiência em português como língua estrangeira reconhecido oficialmente pelo governo brasileiro. No Brasil, é exigido pelas universidades para ingresso em cursos de graduação e em programas de pós-graduação, bem como para validação de diplomas de profissionais estrangeiros que pretendem trabalhar no país. (MEC, 2006, p. 3)


162 em várias situações. Daí a necessidade de usar em sala de aula manuais didáticos suficientemente adequados para tal e que desenvolvam estratégias necessárias suprir as necessidades dos alunos fora do contexto escolar. Com essa investigação, será então possível constatar o quanto os materiais existentes já fazem para alcançar esses objetivos, o que ainda precisa ser feito, além de como fazê-lo.

DESENROLANDO AS IDEIAS

A grande maioria dos trabalhos acadêmicos que analisa materiais didáticos usados em cursos de línguas estrangeiras é relativa a outros idiomas, geralmente, inglês ou francês. Daí a importância acadêmica de investigar os manuais de PLE que não são apenas utilizados, mas também produzidos na Amazônia, como é o caso da SIT-Amazon, onde cada professora produz e, semestralmente, reelabora seu próprio manual, com base em suas percepções e sugestões de alunos e das outras professoras. Já a relevância social está atrelada ao fato de que, a partir do momento em que alunos de qualquer uma das instituições aqui investigadas sentem-se seguros para ler em português, maior e melhor acesso eles terão a textos produzidos no Brasil e por brasileiros, o que incentivaria não apenas o comércio e a consulta do que é aqui produzido, mas também a divulgação desses trabalhos no exterior quando os alunos voltarem a seus países de origem. Afinal, leitores costumam recomendar o que já leram e gostaram. Por isso é tão importante que as atividades de leitura do manual didático que orienta as aulas frequentadas por (futuros) leitores de uma LE realmente os levem a serem capazes de o fazerem com proficiência. Com essa investigação será possível construir um panorama de como são trabalhadas as atividades de compreensão escrita nos manuais utilizados e de como elas são desenvolvidas em sala de aula e, assim, alcançar o objetivo de contribuir para o ensino/aprendizagem de PLE. Para tanto, será necessário investigar características dos manuais utilizados (concepções de língua que veiculam, linguagem, textos selecionados, atividades propostas...), além de descobrir o nível de competência leitora dos alunos desses cursos e investigar metodologia(s) e técnica(s) que perpassam as aulas de leitura. Ao fim da pesquisa, se for o caso, serão propostas adaptações tanto para os manuais, quanto para o trabalho sala de aula. Levantamos três hipóteses de trabalho. A primeira delas é a possibilidade de metodologia(s) e técnica(s) utilizadas pelos professores nas aulas de leitura são sejam compatíveis com a(s) propostas dos manuais que utilizam. A segunda é a probabilidade de


163 que, apesar de já estarem em um curso de nível avançado de PLE, a maioria dos alunos ainda não tenha competência leitora equivalente à de um leitor proficiente na LE. A terceira e última está atrelada ao fato que é possível que as características do manual e a forma como ele é utilizado pelo professor não sejam eficientes para desenvolver as estratégias de leitura que faltam aos alunos para melhorar a sua competência leitora. Como já mencionado anteriormente, esse estudo basear-se-á em pesquisa bibliográfica e de campo, a ser realizada no curso de PLE das quatro instituições já mencionadas. A escolha dessas instituições justifica-se por atenderem público de faixa etária (adultos) e nível linguístico-cultural (avançado) semelhantes. Serão objetos de estudo os manuais didáticos utilizados por essas instituições com as suas turmas de nível avançado de PLE para adultos. Farão parte da população-amostra professores1 que estiverem ministrando aula para essa(s) turma(s) de cada uma das instituições investigadas no primeiro semestre de 2011. A pesquisa bibliográfica será baseada nos autores que constam nas referências deste projeto entre outros. Na pesquisa de campo, serão utilizados dados de três fontes diversas: Análise dos manuais; Teste Cloze aplicado aos alunos; Observação de aulas de leitura usando os manuais. Nos quatro manuais serão investigados: a(s) concepção(ões) de leitura que os perpassam, os aspectos tipológicos dos gêneros textuais, os fatores de legibilidade do texto e as atividades de leitura. A(s) concepção(ões) de leitura que perpassa(m) os livros analisados será/serão classificada(s) em três grupos, de acordo com a proposta de Nuttall (2005, p. 2). Para essa autora, é possível clarificar a concepção de leitura utilizada caso a ideia central dessa habilidade possa ser relacionada com palavras do grupo Ŗaŗ (decodificar, decifrar, identificar etc), Ŗbŗ (articular, falar, pronunciar etc) ou Ŗcŗ (entender, responder, significar etc). Já os aspectos tipológicos dos gêneros textuais trabalhados em cada material serão analisados a partir da proposta de Dolz, Noverraz e Schnewly (2004, p. 121), que dividem os gêneros com base nos domínios sociais de comunicação a que pertencem e nas capacidades de linguagem dominantes a cada um. Os domínios podem ser: cultura literária ficcional, documentação e memorização de ações humanas, discussão de problemas sociais controversos, transmissão e construção de saberes, e instruções e prescrições. Já as capacidades são divididas em: narrar, relatar, argumentar, expor e descrever ações. 1

Não há ainda como mensurar o número de professores participantes da pesquisa já que essa quantidade dependerá do número de turmas de nível avançado de PLE de cada instituição no período de investigação.


164 Também será observada a legibilidade dos textos que, para Alliend & Condemarín (2005), pode ser dividida em aspectos materiais, fatores linguísticos e fatores de conteúdo. Entre os aspectos materiais que podem comprometer a compreensão, há o tamanho e clareza das letras, a cor e a textura do papel, o comprimento das linhas, a fonte, a variedade tipográfica, o tamanho dos parágrafos etc. São exemplos de fatores linguísticos o léxico, estruturas sintáticas complexas (abundância de elementos subordinados), orações supersimplificadas (ausência de nexos para indicar relações de causa/efeito, espaço e tempo), ausência de sinais de pontuação ou uso inadequado desses sinais. Já os fatores de conteúdo são determinados pela complexidade e variedade dos conteúdos, taxonomias textuais e os códigos do texto.

As atividades de leitura propostas serão analisadas de acordo com os critérios elaborados por Marcuschi (2008, p. 271-2). Segundo esse autor, as perguntas das atividades de compreensão dos livros didáticos de Língua Portuguesa são de nove diferentes tipos; a cor do cavalo branco de Napoleão, cópias, objetivas, inferenciais, globais, subjetivas, vale-tudo, impossíveis e metalinguísticas. O teste Cloze será aplicado a todos os alunos que estiverem cursando o nível avançado de PLE nas quatro instituições. Este procedimento, segundo Taylor (1953), consiste em acrescentar vocábulos suprimidos do texto. Normalmente, uma a cada cinco palavras é omitida. De acordo com a pontuação obtida no teste, o leitor pode ser classificado em três níveis; instrucional, frustração ou independente. A análise dos dados produzidos também dá ao pesquisador a possibilidade de descobrir as estratégias de leitura que o leitor precisou valer-se para recuperar cada vocábulo. Também serão observadas aulas de leitura no nível avançado de PLE nas quatro instituições. As observações terão como base o Reading Lesson Observation Framework 1 (RLOF), desenvolvido pela Marquette University inicialmente para ser aplicado em diversas escolas públicas de Ensino Fundamental do centro-sul da Pennsylvania, nos Estados Unidos, mas, como enfatizado pelos próprios autores do projeto (William Henk, Jesse Moore, Barbara Marinak & Barry Tomasetti, 2000), ele é adaptável para outros contextos de ensino. O RLOF consiste em uma lista de sete componentes maiores, a saber: clima da sala de aula, pré-leitura, leitura guiada, pós-leitura, instruções para habilidade e estratégia, materiais e atividades da aula, e prática do professor, sendo que cada um desses grandes componentes inclui uma série de critérios para avaliar vários aspectos do componente principal, 1

Em tradução literal, modelo de observação de aula de leitura.


165 contabilizando um total de sessenta itens. Veja os principais: O componente clima da sala de aula lida com os aspectos físicos do local, como acesso do aluno a materiais autênticos, possibilidade desse aluno estar inserido em interação social, existência de práticas que promovam significativamente letramento etc. Já a pré-leitura inclui aspectos como o encorajamento de fazer previsões, ativar conhecimento prévio, estimular o interesse, instrução de vocabulário, identificação do gênero e proposta de leitura, clarificar os objetivos da aula, fazer ajustes instrucionais necessários etc. A fase da leitura guiada precisa focar nas previsões, questionamentos, fluência, modelo e monitoramento do professor, estudo de estratégias metacognitivas, reconhecimento da estrutura textual etc. No momento da pós-leitura, os itens avaliados consistem em confirmar previsões, recontar, julgamentos críticos, aplicação do vocabulário novo, escrita de uma extensão da leitura, o contínuo monitoramento da compreensão do aluno pelo professor etc. As instruções para habilidade e estratégia centram nas explicações e modelos do professor, no ensino explícito, na contextualização das habilidades, uso de estratégias de leitura, entre outros. Associam-se aos componentes de materiais e atividades da aula considerações sobre a habilidade e diversidade das necessidades de aprendizado, autenticidade dos textos e atividades propostas, a natureza e relevância do trabalho, modos de leitura utilizados, diversão, resposta pessoal, interação professor aluno etc. Já a prática do professor foca no sentido, na execução de técnicas recomendadas, na flexibilidade para com o grupo, na sensitividade para a diversidade, no engajamento do aluno, na avaliação, no senso de falha, alinhamento curricular etc.

O COMEÇO DO FIM

Ao final da pesquisa de campo, espera-se ter dados a respeito das características de cada manual (análise dos manuais), do nível de proficiência leitora dos alunos de cada instituição (teste cloze) e de como cada professor utiliza o manual em aulas de leitura (observação de aulas). Esses dados serão comparados entre si para que seja possível descobrir quais características desses manuais podem estar interferindo: na legibilidade dos textos, no nível de competência leitora desses alunos e nas metodologia(s) e técnica(s) que perpassam as aulas de leitura com esses materiais, para somente então, partindo das necessidades dos


166 alunos, sugerir possíveis adaptações não apenas nas atividades de compreensão escrita dos manuais, mas também na(s) forma(s) em que são utilizados pelos professores. REFERÊNCIAS ALLIENDE, Felipe & CONDEMARÍN, Mabel. A leitura: teoria, avaliação e desenvolvimento. Porto Alegre ; Artmed, 2005. ALMEIDA FILHO, José Carlos Paes de (org). Parâmetros atuais para o ensino de português como língua estrangeira. Campinas; Pontes, 1997. ALMEIDA FILHO, José Carlos Paes de. & LOMBELLO, Leonor Cantareio (orgs). O ensino de português para estrangeiros: pressupostos para planejamento de cursos e elaboração de materiais. Campinas; Pontes, 1997. CAVALCANTI, Marilda do Couto. Interação leitor-texto: aspectos de interpretação pragmática. 13. ed. Campinas: Unicamp, 1989. CONSELHO DA EUROPA (trad. ROSÁRIO, M. J. P. DO & SOARES, N. V.). Quadro europeu comum de referência para as línguas: aprendizagem, ensino, avaliação. Porto; Edições SA, 2001. COSTA, Wanderly, FREITAG, Bárbara & MOTTA, Valéria. O livro didático em questão. 3ª ed. São Paulo; Cortez, 1997. CORACINI, Maria José (org). Interpretação, autoria e legitimação do livro didático. 1ª ed. Campinas; Pontes, 1999. CORACINI, Maria José (org). O jogo discursivo na aula de leitura: língua materna e língua estrangeira. Campinas: Pontes, 1995. CUNHA, Maria Jandyra & SANTOS, Percília (orgs). Ensino e pesquisa em português para estrangeiros. Brasília; Edunb, 1999. CUQ, Jean-Pierre (coord). ASDIFLE: dictionnaire de didactique du français langue étrangere et seconde. Paris; CLE International, 2003. DOLZ, Joaquim, NOVERRAZ, Michèle & SCHNEUWLY, Bernard. Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In DOLZ, J. & SCHNEUWLY, B. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas; Mercado de Letras, p. 95-128, 2004. ELIAS, Vanda Maria & KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Ler e compreender os sentidos do texto. 2ª ed. São Paulo: Contexto; 2007. FARRELL, Thomas. Planejamento de atividades de leitura para aulas de idiomas. Portfólio SBS 6. São Paulo; SBS, 2003. HENK, William A., MOORE, Jesse C., MARINAK, Barbara A. & TOMASETTI, Barry W. A reading lesson observation framework for elementary teachers, principals, and literacy supervisors. Pennsylvania; e-Publications@Marquette; Marquette University, 2000. (in http://epublications.marquette.edu/edu fac/14) KLEIMAN, Ângela B. Leitura: ensino e pesquisa. 2ª ed. Campinas: Pontes, 2004. _______________. Oficina de leitura: teoria e prática. 10ª ed. Campinas: Pontes, 2004. _______________. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. 11ª ed. Campinas: Pontes, 2008. KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. O texto e a construção dos sentidos. 7ª ed. São Paulo: Contexto, 2003. _________________________. Desvendando os segredos do texto. 6ª Ed. São Paulo Cortez, 2009. LOPES, Luiz Paulo da Moita. Oficina de lingüística aplicada: a natureza social e educacional dos processos de ensino/aprendizagem de línguas. Campinas, Mercado das Letras, 2001. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise e compreensão escrita. 2ª ed. São


167 Paulo: Parábola, 2008. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Manual do candidato do exame CELPE-Bras 2006. Brasília, 2006. NUTTALL, Christine. Teaching reading skills in a foreign language. Oxford; Macmillan, 2005. SILVA, Luciana Kinoshita da. (monografia de especialização). Tipo de perguntas das atividades de compreensão de textos escritos dos manuais didáticos de português pós-PNLD: uma perspectiva da linguística textual sobre os manuais utilizados por escolas de Belém do Pará. Belém; UEPA, jun 2009. SILVA, Luciana Kinoshita da. (monografia de especialização). (Re)elaboração(ões) de um manual de PLE para o contexto amazônico: traçando caminhos para próximos desafios. Belém; UFPA, jun 2009. SILVEIRA, Regina C. P. da (org). Português língua estrangeira: perspectivas. São Paulo; Cortez, 1998. TAYLOR, William. Cloze procedure: a new tool for meassuring readability. Journalism Quartely, 3, 1953.

ESTUDO FONOLÓGICO DA LÍNGUA WAIWAI (CARIBE): AS VOGAIS ORAIS

Mara Sílvia Jucá ACÁCIO (UFPA) Orientador(a): Prof.ª Dr.ª Carmen Lúcia Reis RODRIGUES (UFPA)

RESUMO: Neste artigo pretendemos expor alguns aspectos preliminares sobre as vogais orais da língua waiwai, uma das línguas da família Caribe, falada pelos habitantes da Terra Indígena Nhamundá/Mapuera, localizada na fronteira do Estado do Pará com o Estado do Amazonas. Esta amostra faz parte um estudo mais apurado, em andamento, cujo objetivo é documentar, descrever e analisar os demais aspectos fonológicos da língua indígena em questão, para fins científicos e aplicados. Este estudo justifica-se pela observação de que até o momento não se tem notícia de estudos detalhados atuais sobre a fonologia e outros aspectos gramaticais da língua waiwai. Os únicos trabalhos dos quais se tem conhecimento sobre a fonologia desse povo indígena são os de Neill W. Hawkins, datados de 1952. Por esse motivo, no final do estudo procuraremos estabelecer, mais especificamente, o sistema fonéticofonológico da língua. A metodologia utilizada parte de uma abordagem descritiva, definindo, classificando e interpretando, sincronicamente, a estrutura fonológica da língua em estudo, na sua modalidade oral. O trabalho de investigação do corpus baseia-se na análise sistemática dos dados, identificando e analisando os segmentos vocálicos e consonantais, objetos de estudo da fonética e da fonologia, dando conta de como esta língua organiza seus sons. Para a investigação, descrição e análise desses sons, consideraremos obras de autores estruturalistas e funcionalistas. PALAVRAS-CHAVE: fonologia, waiwai, caribe ABSTRACT: This article attempts to outline some preliminary aspects of the vowels of the language waiwai, a Caribbean family of languages, spoken by inhabitants of the Indigenous Land Nhamundá / Mapuera, located on the border of Pará to the State of Amazonas. This sample is part of a more refined study in progress whose goal is to document, describe and


168 analyze the remaining phonological aspects of indigenous language in question, for scientific and applied. This study is justified by the observation that so far there is no news for current detailed studies on other aspects of phonology and grammar of the language waiwai. The only work of which has knowledge about the phonology of indigenous people are those of Neill W. Hawkins, dated 1952. Therefore, at the end of the study will seek to establish more specifically the phonological-phonetic system of language. The methodology part of a descriptive approach, defining, classifying and interpreting, synchronously the phonological structure of language study in its oral form. The research corpus is based on systematic analysis of data, identifying and analyzing the consonant and vowel segments, objects of study of phonetics and phonology, giving an account of how that language organizes its sounds. For the investigation, description and analysis of these sounds, it will take into account works by structuralist and functionalist. KEY WORDS: phonology, waiwai, caribbean INTRODUÇÃO O povo indígena waiwai está estabelecido na Terra Indígena Nhamundá/Mapuera, localizada aproximadamente a 1.100 km de Belém, às proximidades do

Município de

Oriximiná, no oeste do Estado do Pará. Segundo Henrique (1998), chefe do posto da Fundação Nacional do Indio-FUNAI, na aldeia Mapuera,

o acesso

aéreo

Belém/Santarém/Oriximiná/Mapuera é

feito

em

aproximadamente três horas; já o acesso fluvial Belém/Santarém/Oriximiná/PortoTrombetas/ Cachoeira Porteira/Mapuera é feito em aproximadamente nove dias.

A T.I. Nhamundá/

Mapuera é formada por diversas etnias, incluindo, além dos waiwai, os índios xereu, waptxana, tirió, hixkariana, tikyana, katuena, kaxuyana e mawayana. As fontes de informações de estudos sobre os waiwai, segundo Zea (2006)1 podem ser divididas fazendo as seguintes distinções: obras ou relatos de historiadores, viajantes ou missionários, textos de linguística, livros, teses, artigos acadêmicos, documentos e relatórios da Funai, Funasa e MEC. A antropóloga anota que após a instalação da Missão Evangélica entre os waiwai, os missionários acabaram assumindo um papel de mediadores e tradutores para diversos pesquisadores e viajantes que realizaram suas pesquisas de campo e viagens, especialmente nos anos 1950; dentre estes destacam-se: Robert Hawkins que escreveu lições sobre a língua para outros missionários e traduziu a Bíblia; Neill Hawkins2 que, em 1952, escreveu artigo sobre a fonologia desta língua; os arqueólogos Betty Meggers e Charles Evans (cf. EVANS e MEGGERS 1955, 1960, 1964, 1979, MEGGERS 1971); o botânico inglês 1

Evelyn Schuler Zea - Antropóloga, pesquisadora do NHII (Núcleo de História Indígena e do Indigenismo) /USP. Acrescido de informações dadas por Catherine V. Howard e Carlos Machado Dias Jr., outubro, 2006, In: http://pib.socioambiental.org/pt/povo/waiwai/ 2 HAWKINS, W. Neill. A fonologia da língua Uáiuái. Boletim da Faculdade de Filosofia-Ciências e Letras/USP, São Paulo, v.157, n.25, p. 49, 1952.


169 Nicholas Guppy (1954, 1958); o viajante polonês Arkady Fiedler (1968) e os antropólogos dinamarqueses Niels Fock e Jens Yde (1954-55 e 58). Estas expedições resultaram na publicação de uma monografia importante sobre a religião e sociedade waiwai (FOCK, 1963) e de um amplo estudo da cultura material waiwai (YDE, 1965); Ruben Caixeta fez pesquisa de campo nos anos de 1991 e 1994, em Mapuera (Pará), para o seu doutorado na Université de Paris e foi o antropólogo coordenador do relatório de identificação e delimitação da Terra Indígena Trombetas/Mapuera (cf. CAIXETA DE QUEIROZ 1999, 2004). Outros pesquisadores que também estiveram entre os waiwai foram Jorge Manuel Costa e Souza, que realizou pesquisa de campo em 1997, no Jatapuzinho; (cf. COSTA E SOUZA 1998); Stephanie Weparu, que realizou pesquisas de campo de 1997-2002 e Carlos Machado Dias Junior, que realizou pesquisas de campo entre 1997 e 2004, em diferentes comunidades waiwai em Roraima, Pará e Amazonas (cf. DIAS JUNIOR 2000, 2006 apud ZEA, 2006). Até o início dos anos 2000, havia várias outras línguas da família Caribe ou da família Arawak também faladas nessas comunidades, cada uma por parentelas de outros índios que se inter-casaram com os waiwai ou que migraram em massa para conviver com esse povo durante a fase de sua centralização em grandes aldeias entre 1950 e 1980, de acordo com Zea (2006), ainda conforme essa autora:

(...) A partir da década de 1990, algumas comunidades waiwai (como por exemplo, a de Mapuera), grandes demais para sustentar a população devido à escassez de recursos, começaram a passar por uma fase de descentralização. Desde então, muitos dos povos que moravam entre os Waiwai estão voltando para suas áreas originárias e fundando novas aldeias onde a sua própria língua é dominante. Esse é o caso dos hixkaryana, karapayana, katuena e xerew. (ZEA, 2006/socioambiental.org)

Tais processos de centralização e descentralização ajudam a esclarecer porque a língua waiwai se transformou em língua franca na região, sendo esta predominantemente falada nas Assembléias gerais da região, que começaram a ser organizadas a partir de 2003. 1. METODOLOGIA DE PESQUISA

O corpus para esta pesquisa foi constituído por cerca de 1.600 dados, entre palavras e frases, coletados por meio de gravações e transcrições fonéticas, a partir de uma lista de palavras, previamente organizada com verbos e substantivos. A coleta desse material foi feita com seis informantes, falantes nativos da língua, todos do sexo masculino, na faixa etária entre 20 e 30 anos, alunos do Curso de Formação de professores em nível médio, da


170 Secretaria de Educação e Cultura do Pará Ŕ SEDUC. Na primeira etapa da pesquisa, trabalhamos na coleta de dados com gravações em gravador digital e por meio de transcrições fonéticas, conforme o Alfabeto Fonético Internacional- IPA. Logo após essa etapa, efetuou-se a organização dos dados, digitalizando o material coletado, por meio do programa PRAAT (software utilizado para análise e síntese da fala, desenvolvido por linguistas do Instituto de Ciências Fonéticas, da Universidade de Amsterdã, de modo a conseguir manipular os sons para submetê-los a diversos tipos de análise). Num outro momento, partiu-se para identificação de sons e fonemas vocálicos orais, a partir da observação sobre a existência de pares mínimos e análogos Ŕ etapa da pesquisa que será apresentada neste trabalho. Cabe aqui informar que esse trabalho está digitado em Windows 2003/2007, e contém caracteres especiais digitados pelo ASAP SILDoulos. Da investigação de como se organiza a cadeia sonora da fala na língua waiwai, estabeleceu-se um quadro de sons vocálicos orais e outro de fonemas vocálicos orais da língua, de acordo com a teoria de análise fonológica apresentada por autores estruturalistas e funcionalistas que seguem a abordagem fonêmica proposta por Trubetzkoy, Martinet, Jakobson, Sapir e Pike, e aplicada e desenvolvida por muitos linguistas, como por exemplo, Cagliari (2002)1. Para esse autor:

(...) A análise fonética baseia-se nos processos de percepção e de produção dos sons. A análise fonológica baseia-se no valor dos sons dentro de uma língua, isto é, na função lingüística que eles desempenham nos sistemas de sons das línguas. Enquanto a Fonética descreve o que acontece quando um falante fala, a Fonologia almeja a descrição da organização sistemática global dos sons da língua desse falante. (CAGLIARI, 2002:18) A descrição dos segmentos vocálicos segue os parâmetros articulatórios relevantes na descrição dos segmentos vocálicos, apresentados por Cristófaro Silva (2003)2, a saber: (...) Na produção de um segmento vocálico a passagem da corrente de ar não é interrompida na linha central e, portanto não há obstrução ou fricção no trato vocal. Segmentos vocálicos são descritos levando-se em consideração os seguintes aspectos: posição da língua em termos de altura; posição da língua em termos anterior/posterior; arredondamento ou não dos lábios. (CRISTÓFARO SILVA, 2003:66) Ao longo da investigação têm-se adotado uma postura sincrônica com relação a alguns 1 2

CAGLIARI, Luiz Carlos. Análise fonológica. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras, 2002. SILVA, T. C. Fonética e fonologia do português. São Paulo: Contexto, 2003.


171 aspectos da fonologia da língua waiwai, por acreditar-se, de acordo com Kehdi (2007)1, que o conhecimento dos mecanismos de funcionamento de um idioma no seu Ŗaqui e agoraŗ deve anteceder as explicações de caráter histórico, indiscutivelmente, necessárias e esclarecedoras. O prévio conhecimento sincrônico ajuda a entender determinados fatos da mudança de uma língua e sobre este aspecto Câmara Jr. (2002)2, anota que Ŗ(...) a descrição ou sincronia é o estudo do mecanismo pelo qual uma dada Língua funciona num dado momento, como meio de comunicação entre seus falantes, e na análise da estrutura, ou configuração formal, que nesse momento a caracteriza. Assim, quando se trabalha de forma descritiva e sincrônica, trabalha-se com a referência do momento atualŗ. (CÂMARA JR., 2002) Contudo, o trabalho de investigação do corpus que apresentaremos a partir daqui ainda não está terminado, sendo necessário ainda confirmar algumas hipóteses de análise junto aos informantes. 2. DESCRIÇÃO FONÉTICA E FONOLÓGICA DOS SONS VOCÁLICOS Neste item trataremos da descrição fonética e fonológica dos sons vocálicos orais da língua e dos ambientes em que eles ocorrem, a fim de se estabelecer o conjunto de vogais orais, em waiwai, e suas respectivas realizações fonéticas. 2.1 SONS VOCÁLICOS ORAIS Os sons vocálicos orais encontrados na língua waiwai foram os seguintes:

Alta Média fechada Média aberta

Baixa

Anterior Central Posterior   

   

Quadro 1 Ŕ Inventário dos sons vocálicos orais em waiwai

Esses nove segmentos vocálicos foram analisados em pares conforme suas semelhanças fonéticas e seus ambientes de ocorrência, a fim de se identificar a oposição entre os mesmos. 1 2

KEHDI, Valter. Morfemas do português. Série princípios. 7ª Ed. São Paulo: Ática, 2007. CÂMARA JR. J. M. Estrutura da Língua portuguesa. 35ª Ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.


172 O resultado dessa primeira análise apresenta-se a seguir. 2.2 OPOSIÇÕES ENTRE VOGAIS ORAIS Estão em oposição Ŕ conforme os pares de palavras apresentados abaixo Ŕ e, por esta razão, devem ser considerados fonemas distintos, os seguintes segmentos vocálicos:

1a. 2a. 3a. 4a. 5a.

[i] alta anterior não-arredondada [] Řovoř [] Řcorujař [] Řanzolř [] Řfarinhař [] Řempurrarř

[] alta central não-arredondada 1b. [] Řpenař, Řcabeloř 2b. [] Řpulmãoř 3b. [] Řhomemř

6a. 7a. 8a. 9a.

[] alta anterior não-arredondada [] Řfumaçař [] Řcútiař [] Řcicatrizarř [] Řpiumř

[] média anterior não- arredondada [] Řaldeiař, Řlugarř [] Řmolhadoř [] Řcozidoř [] Řcupimř

4b. [] 5b. []

6b. 7b. 8b. 9b.

‘eu’ ‘pingar’

[] alta central não-arredondada 10a. [] Řroçař 11a. [] Řpulgař 12a. [] Řmorroř 13a. [] Řeuř 14a. [] Řpênisř

[] alta posterior arredondada 10b. [] Řcarne salgadař

[e] média anterior não- arredondada 15a. [] Řferidař

[] média anterior não- arredondada 15b. [] Řtrazerř 16b. [] Řaldeiař, Řlugarř 17b. [] Řnossa pinturař 18b. [] Řfritař (ordem) 19b. [] Řmandiocař

16a. []

17a. [] 18a. [] 19a. []

20a. 21a. 22a. 23a. 24a.

‘pegar’

Řpintadoř ‘assustar’ ‘morcego’

[] média posterior arredondada [] Řmacaco pregoř [] Řamigoř [] Řbancoř [] Řpiolhoř [] Řacompanharř

11b. [] 12b. [] 13b. [] 14b. []

20b. 21b. 22b. 23b. 24b.

‘urinar’ ‘pedra’ ‘quati’ ‘pica-pau’

[] média posterior arredondada [] Řtrazerř [] Řsograř, Řsogroř [] Řbraçoř, Řasař, igarapé [] Řmeu denteř [] Řverdadeiroř


173

[] alta posterior arredondada 25a. [] Řaçaíř 26a. [] Řnegroř 27a. [] Řsolř 28a. [] Řpreguiça realř [] alta posterior arredondada 29a. [] Řvestirř 30a. [] Řagulhař 31a. [] Řantař 32a. [] Řfarinhař 33a. [] Řsalivař

[] média anterior não- arredondada 34a. [] Řmuitosř 35a. [] Řprocurar aquiř 36a. [] Řolhoř 37a. [] Řtestař 38a. [] Řmandiocař

25b. 26b. 27b. 28b.

[] média posterior arredondada [] Řbancoř [] Řmacacoř [] Řcabař [] Řpiolhoř

[] média posterior arredondada 29b. [] Řenrolarř 30b. [] Řveadoř 31b. [] 32b. [] 33b. []

34b. 35b. 36b. 37b. 38b.

‘gavião real’ ‘eu’ ‘junto’

[] baixa central não-arredondada [] Řinajář [] Řcomprarř [] Řcurtoř [] Řsobrinhař [] Řarara amarelař

Nessa análise preliminar, observamos a existência de oito fonemas vocálicos orais na língua Waiwai, a saber: //. Essas vogais correspondem a nove sons vocálicos orais1, visto que os sons [] e [] são alofones de um mesmo fonema: , pois as vogais [] e [] ocorrem como variantes livres, quando estão em sílaba átona final, como se observa nos exemplos a seguir: [] ~ []

[] ~ [] [] ~ [] [] ~ [] [] ~ []

Řborboletař Řparte do peitoř Řanimal bravoř Řariranhař

No entanto, em sílaba tônica ocorre sempre //: [] Řcurtoř, [] Řinajář, [mkae] Řatrásř.

1

É importante ressaltar que este é um estudo preliminar, sendo assim, alguns aspectos sobre as vogais orais ainda estão sendo investigados, como por exemplo, a existência ou não de oposição entre as vogais orais médias fechadas e médias abertas.


174 2.3 FONEMAS VOCÁLICOS ORAIS Os fonemas vocálicos orais identificados na língua waiwai foram os seguintes: vogal alta anterior não-arredondada //, vogal alta central não-arredondada //, vogal alta posterior arredondada //, vogal média fechada anterior não-arredondada //, vogal média aberta anterior não-arredondada //, vogal média fechada posterior arredondada //, vogal média aberta posterior arredondada // e vogal baixa central não-arredondada //, conforme quadro a seguir:

ANTERIORES NÃOARREDONDADAS ALTA MÉDIA FECHADA MÉDIA ABERTA

  

CENTRAIS NÃOARREDONDADAS

  

BAIXA

POSTERIORES ARREDONDADAS

   

Quadro 2 Ŕ Inventário dos fonemas vocálicos orais em waiwai

Em ambientes análogos observou-se que os fonemas vocálicos orais da língua waiwai  realizam-se no início, no meio e no fim de palavras, conforme detalharemos a seguir.

2.3.1 Vogais Anteriores 2.3.1.1 Vogal alta anterior não-arredondada O fonema vocálico // pode ocorrer em sílabas iniciais, seguido dos seguintes sons consonantais: fricativo glotal surdo [], africado palatal surdo [ʧ ], fricativo pós-alveolar surdo [], aproximante bilabial sonoro [], aproximante palatal sonoro [], como ilustram os exemplos, a seguir: [] [] [] [] []

Řantigamenteř (tempo em que Deus fez os homens) Řbeirař Řgostarř Řfumaçař Řqueixo dele (a)ř


175 O fonema vocálico alto anterior não-arredondado ocorre também, em sílabas mediais, em ambiente consonantal, como nos exemplos a seguir: [] [] [] [] []

Řinajář Řmuitosř Řurubuř Řanzolř Řperiquitoř

Em sílabas finais, o fonema alto anterior não-arredondado ocorre ainda antecedido por consoante, como nos exemplos a seguir: Řcorujař Řcachorroř Řarraiař Řfarinhař Řempurrarř

[] [] [] [] []

2.3.1.2 Vogal média fechada anterior não-arredondada Em sílabas iniciais, o fonema vocálico // pode ocorrer seguido das consoantes oclusiva alveolar surda [t], tepe [], fricativa glotal surda [], aproximante bilabial sonora [] e aproximante palatal sonora [], como ilustram os exemplos a seguir: [] [] [] [] []

Řsalivař Řferidař Řpegarř Řburacoř Řenterrarř

O fonema vocálico médio anterior não-arredondado ocorre também, em sílabas mediais, em ambiente consonantal: [] [] [] [] [w]

Řsem se mexerř Řapagarř (fogo) Řeu vou pegarř Řneblinař Řpauř, Řárvoreř

Esse fonema ocorre também, em sílabas finais, precedido por consoante, conforme as palavras abaixo: [] []

Řboiarř Řovo


176 Řpálidoř Řescuroř Řpauř, Řárvoreř Řmolhadoř

[] [] [w] []

2.3.1.3 Vogal média aberta anterior não- arredondada O fonema // ocorre em sílabas iniciais, seguido de consoante ou de outros fonemas vocálicos, como o próprio fonema //, tornando-se, nesse caso, um fonema dobrado: Řalimentarř, Řcomidař Řbarbař Řburacoř Řtrazerř Řvaginař

[] [] [] [] []

Esse fonema ocorre em sílabas mediais, em ambiente consonantal nasal ou oral: [] [] [] [] []

Řtocarř (instrumento) Řmuitosř Řverř Řfritař (ordem) Řnossa pinturař

Em sílabas finais, o fonema // ocorre depois de consoantes orais ou nasais, como ilustram os exemplos a seguir: [] [] [] [] []

Řbravoř (alerta quando o animal está perto) Řfogo baixoř (apagando) Řgrossoř Řbeijúř Řmandiocař

2.3.2 Vogais Centrais 2.3.2.1 Vogal alta central não-arredondada O fonema vocálico // ocorre na língua waiwai, em sílabas iniciais, seguido pelas consoantes fricativa glotal surda [], aproximante bilabial sonora [], ou ainda pelo fonema vocálico //, caracterizando fonema dobrado, conforme exemplos abaixo: [] [] []

Řpéř, Řsapatoř Řpuxarř Řdescansarř


177 [] []

Řpenař, Řcabeloř Řmorroř

Em sílabas mediais o fonema vocálico // ocorre em ambiente consonantal, como nos exemplos que seguem: [] [] [] [] []

Řpeixeř Řcabeçař Řpintadoř Řpálidoř Řpulgař

O fonema vocálico //, em sílabas finais, ocorre em ambiente consonantal oral ou nasal: [] [] [] [] []

Řdenteř Řmorroř Řcorř Řabreř (ordem) Řeuř

2.3.2.2 Vogal baixa central não-arredondada Em sílabas iniciais, o fonema vocálico // ocorre em ambiente consonantal oral ou nasal, como exemplificamos a seguir: [] [] [] [] []

Řabertoř Řanelř Řcutiař Řbraçoř, Řasař, igarapé Řfurarř

Em sílabas mediais, o fonema vocálico // ocorre em ambiente consonantal diverso, como ilustram alguns exemplos: [] [] [] [] []

Řbraçoř, Řasař, Řpedaço de algoř Řfritař (ordem) Řbaratař Řinajář Řsobrinhař

Em sílabas finais, esse fonema ocorre precedido de consoantes orais ou nasais, como nos seguintes exemplos: []

Řratoř


178 [] [] [] []

Řariranhař Řvoarř Řcurtoř Řnão-índioř

2.3.3 Vogais Posteriores 2.3.3.1 Vogal alta posterior arredondada Esse fonema vocálico ocorre em sílabas iniciais, na língua waiwai, seguido de vogal ou de consoante oral ou nasal: [] [] [] [] 1 []

Řrelâmpagoř Řerroř Řfarinhař Řtimbóř Řpreguiça realř

O fonema alto posterior arredondado // ocorre em sílabas mediais contíguo à vogal /u/, ou ainda entre consoantes, como nos exemplos a seguir: [] [] [] [] []

Řagulhař Řapontarř Řbeijúř Řnegroř Řcabeçař

Em sílabas finais, esse fonema ocorre em ambiente consonantal oral ou nasal: [] [] [] [] []

Řsalgadoř Řmelř Řtornozeloř Řnegroř Řbaratař

2.3.3.2 Vogal média fechada posterior arredondada Em sílabas iniciais, o fonema vocálico // pode ocorrer seguido das consoantes nasal bilabial sonora [m], aproximante bilabial sonora [] e da aproximante palatal sonora [], como ilustram os seguintes exemplos: [] 1

Řfilhoř

Note-se que, nesse exemplo, ocorre a nasalização da vogal /u/, provocada pela consoante nasal.


179 [] [] [] []

Řatrásř Řpiolhoř Řamigoř Řmorarř

Em sílabas mediais, o fonema vocálico // ocorre em ambiente consonantal nasal, como nos exemplos a seguir: [] [] [] [] []

Řantigamenteř (tempo em que Deus fez os homens) Řpiolhoř Řverdadeiroř Řborrachudoř Řpajéř

O fonema vocálico //, em sílabas finais, ocorre precedido de consoantes orais ou nasais, como nos exemplos a seguir: [] [] [] [] []

Řmacaco pregoř Řantigamenteř (tempo em que Deus fez os homens) Řverdadeř Řbancoř Řpajéř

2.3.3.3 Vogal média aberta posterior arredondada Na língua waiwai, o fonema vocálico //, em sílabas iniciais, ocorre em ambiente consonantal e vocálico oral ou nasal: [] [] [] [] []

Řmingauř, Řlíquido quenteř Řmaridoř Řmeu denteř Řsograř, Řsogroř Řeuř

Em sílabas mediais, o fonema vocálico // ocorre em ambiente consonantal oral ou nasal, como nos seguintes exemplos: [] [] [j] [] []

Řleite do peitoř, Řmamař Řmeu nomeř Řmeu braçoř Řenrolarř Řgavião realř

Em sílabas finais, o fonema vocálico // também ocorre em ambiente consonantal oral ou nasal:


180 [] [] [] [] []

Řjuntoř Řontemř Řdele ou delař Řaldeiař, Řlugarř Řverdadeiroř

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo objetivou apresentar, preliminarmente, a descrição fonetico-fonológica dos sons vocálicos orais da língua waiwai. Num primeiro momento, procuramos identificar esses sons, bem como os ambientes em que ocorrem, a fim de se proceder à análise contrastiva dos segmentos sonoros em questão Ŕ por meio da investigação de pares mínimos e análogos Ŕ, para que desse modo, pudéssemos apresentar uma tabela de sons orais e outra de fonemas orais da língua em estudo. Portanto, a metodologia pautou-se na análise fonológica segmental que prioriza a descrição dos traços articulatórios dos fones depreendidos e identificação das unidades fonológicas, em que oposições funcionais foram detectadas. Como foi frizado inicialmente, esta é apenas uma análise preliminar das vogais orais desta língua. Com o aprofundamento do estudo fonológico da língua indígena waiwai, pretendemos tratar dos demais aspectos das vogais e das consoantes desta língua, como forma de contribuição aos estudos fonológicos sobre a língua waiwai em seu estado atual, visto que as únicas pesquisas sobre a fonologia dessa língua datam dos anos 50, com os estudos de Neill Hawkins.

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181 CÂMARA JR. J. M. Estrutura da Língua portuguesa. 35ª Ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2002. HENRIQUE, Márcio Couto. Relatório de viagem ao Posto Indígena Mapuera. Belém, FUNAI, 1998, mimeo. KEHDI, Valter. Morfemas do português. Série princípios. 7ª Ed. São Paulo: Ática, 2007. SILVA, T. C. Fonética e fonologia do português. São Paulo: Contexto, 2003. POVOS INDÍGENAS DO BRASIL. ZEA, Evelyn Schuler - Antropóloga, pesquisadora do NHII (Núcleo de História Indígena e do Indigenismo)/USP. Acrescido de informações dadas por Catherine V. Howard e Carlos Machado Dias Jr. Outubro, 2006, In: http://pib.socioambiental.org/pt/povo/waiwai/, capturado em Agosto/2010.

SILENCIOSAS NARRATIVAS EM IMAGEM-TEMPO: JOÃO GILBERTO NOLL, ESVAZIAMENTO DISCURSIVO E CINEMA MODERNO – CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES Marcelo Pereira BRASIL (UFPA) Orientador(a): Prof. Dr. Luis Heleno Montoril Del CASTILO (UFPA) RESUMO: Este trabalho consiste em considerações preliminares para uma aproximação do conceito de imagem-tempo, do filósofo Gilles Deleuze, com a narrativa literária do escritor brasileiro João Gilberto Noll, no tocante a aspectos narrativos e à tendência ao esvaziamento discursivo. Neste texto introdutório, focamos nossa atenção sobre o romance Hotel Atlântico do escritor gaúcho. O conceito foi engendrado pelo filósofo francês, no bojo de sua filosofia diferencial, para pensar o cinema moderno, que se perfaz num regime de imagens que rompe com a narratividade clássica, com a percepção baseada no esquema sensório-motor. Nesta pesquisa, após uma apresentação do conceito de imagem-tempo, procedemos a uma abordagem de pontos significativos da obra ficcional de Noll, ensaiando, sob a noção de imagem-tempo e de silêncio, enquanto tendência moderna ao esvaziamento discursivo no campo das artes, uma relação entre cinema e literatura no que concerne basicamente à produção de imagens numa determinada forma narrativa, bem como às implicações dessas formas para o pensamento. PALAVRAS-CHAVE: João Gilberto Noll, Literatura e Cinema Modernos, Imagem-Tempo.

ABSTRACT: This work is a primary consideration for an approximation between the timeimage concept, of philosopher Gilles Deleuze, and the novel Hotel Atlântico, of writer João Gilberto Noll. The concept was devised by the French philosopher, during its differential philosophy, to think the modern cinema, which makes a system images that breaks with the classical way to narrate a history. In this introductory text, first of all, we make a brief presentation of the concept of time-image. After that, we make an approach of romance Hotel Atlântico, rehearsing, under the concept of time-image, a relationship between cinema and literature basically on the production of images in a particular way narrative and its implications for the thought. KEY-WORDS: João Gilberto, Modern Literature and Cinema, Time-Image.


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Quer percebamos claramente ou não, o caráter de coisa organizada da obra literária torna-se um fator que nos deixa mais capazes de ordenar a nossa própria mente e sentimentos; e, em conseqüência, mais capazes de organizar a visão que temos do mundo. (Antonio Candido)1

O presente estudo se constitui em considerações preliminares no intuito de promover uma aproximação entre Literatura e Cinema no que diz respeito à organização formal narrativa baseada na produção de imagens. O ponto de encontro para a reflexão que desenvolvemos aqui é o conceito imagem-tempo, engendrado pelo filósofo francês Gilles Deleuze para pensar o cinema. Para pensarmos o romance Hotel Atlântico, do escritor brasileiro João Gilberto Noll, propomos uma porta de entrada para o conceito, ensaiando uma convergência entre as duas modalidades artísticas quanto à forma narrativa e a suas implicações para o pensamento. O pensamento deleuziano como referencial para refletir sobre o romance Hotel Atlântico, de João Gilberto Noll, se faz pertinente pela próxima relação que as narrativas deste literato guardam com as cinematográficas modernas, principalmente no que se liga à profusão de imagens, de tendência contemporânea, que privilegia a concatenação fragmentária de imagens ambíguas em sequencias abertas, em detrimento ao direcionamento totalizante de narrativas lineares convencionais. Pela natureza introdutória de nosso trabalho, interessa-nos principalmente a imagem-tempo como decorrente da crise da imagem-ação, tendo em vista o regime de imagens que surge a partir da crise desta imagem, que marca a crise de toda a imagem-movimento. Situamo-nos nessa zona-limite, no rompimento com a narrativa clássica.

UMA INTRODUÇÃO À IMAGEM-TEMPO

Em sua obra, Deleuze não privilegia filosofia ou não-filosofia, mas antes afirma ciência, arte e filosofia como modos de pensar. O que importa, então, é tornar, por esses novos meios, possível o pensamento.2 Nessa perspectiva, vejamos como o autor apresenta o que seria a função intrínseca da arte, a da ciência e a da filosofia, nas relações de ecos, de ressonâncias que se estabelecem no encontro entre elas: 1 2

CANDIDO, 2004, p. 5 (grifo nosso). VASCONCELLOS, 2005, p. 1218.


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O que me interessa são as relações entre as artes, a ciência e a filosofia. Não há nenhum privilégio de uma destas disciplinas em relação a outra. Cada uma delas é criadora. O verdadeiro objeto da ciência é criar funções, o verdadeiro objeto da arte é criar agregados sensíveis e o objeto da filosofia, criar conceitos.1

A tarefa da filosofia, para Deleuze, é criar conceitos a incidirem na reversão da imagem dogmática do pensamento, que seria a da filosofia representacional. É importante entender que, para o filósofo, pensar não decorre pura e simplesmente de uma possibilidade natural. Faz-se necessária a criação de uma nova imagem do pensamento, que é viabilizada pela relação entre as forças externas que obrigam o pensamento a sair de sua imobilidade, provocando encontros, intercessões2. Para que o pensamento seja viabilizado, saia de sua imobilidade, é necessária a relação, o encontro com intercessores. A ciência e a arte são os principais intercessores extra-filosóficos de Deleuze; podem, por si, pensar questões, formular problemas. É na relação com um desses intercessores, o cinema, que o filósofo engendra o conceito que nos interessa aqui, a imagem-tempo. Deleuze aproxima cinema e filosofia, porque vê naquele um grande potencial para propor problemas. O cinema é então visto como um instrumento filosófico, funciona como um instrumento que questiona, indaga o espectador, cala as respostas e faz falar novos problemas. A relação entre arte e filosofia se dá por meio da problematização possibilitada pela elaboração formal. A arte é capaz de traçar novos e inéditos circuitos cerebrais. Para Deleuze, todas as formas de criação artística dizem respeito a uma questão cerebral, aos circuitos cerebrais que constituem o pensamento: É sempre uma questão cerebral: o cérebro é a face oculta de todos os circuitos, que podem fazer triunfar os reflexos condicionados mais rudimentares, tanto quanto dar uma oportunidade a traçados mais criativos, a ligações menos prováveis.3

Cabe à arte, o papel de instaurar no cérebro novos caminhos, novos circuitos. Toda arte é uma proposição formal, isto é, propõe-se enquanto forma Ŕ o que não significa dizer que seja apenas forma, mas que tenha o papel de propor novas formas para as diversas questões que explora a partir dos infinitos elementos de que advém; e a arte moderna está inelutavelmente ligada ao novo, à novidade. O contato com essa organização formal, não-

1

DELEUZE, 1992, p. 154. VASCONCELLOS: 2005, p. 1220. 3 DELEUZE, 1992, p. 79. 2


184 convecional, diferente, tem o poder de provocar o pensamento, pois exige uma percepção atenta; então, o novo pensamento, provocado pelos intercessores, Ŗtraça ao vivo no cérebro sulcos desconhecidos, torce-o, dobra-o, fende-oŗ.1 O recorrer da filosofia aos intercessores artísticos Ŕ que são trabalhos de elaboração formal por excelência Ŕ para possibilitar uma nova imagem do pensamento se justifica em função da abertura de novos caminhos para o pensamento, da configuração de novos circuitos cerebrais. A filosofia atua aí como criadora de conceitos, organizando esse novo pensamento; Ŗ[n]ovas conexões, novas passagens, novas sinapses, é o que a filosofia mobiliza ao criar conceitos (...)ŗ.2 O cinema interessa a Deleuze principalmente pelas possibilidades que explora do movimento e do tempo, com algum privilégio aos filmes de encadeamentos que desafiam a lógica pré-estabelecida pela sedimentação de uma linguagem racional. Essa configuração constitui o novo regime de imagens, imagem-tempo, que é o regime do cinema moderno. Esse desafio à lógica pré-estabelecida deve provocar o espectador, provocar seu pensamento a sair da imobilidade, a atingir novas formas de perceber o mundo:

O que me interessa no cinema é que a tela pode ser aí um cérebro, como no cinema de Resnais ou de Syberberg. O cinema não procede apenas por procedimentos feitos de cortes racionais, mas por reencadeamentos sobre cortes irracionais: não é a mesma imagem do pensamento. O que havia de interessante nos clips do início era a impressão que alguns davam de operar através dessas conexões e hiatos que já não eram os da vigília, mas tampouco os do sonho e nem mesmo do pensamento. Por um instante eles roçaram algo próprio do pensamento. É tudo o que quero dizer: pelos seus desenvolvimentos, bifurcações e mutações, uma imagem secreta do pensamento inspira a necessidade constante de criar novos conceitos (...).3

A imagem-tempo diz respeito a um regime de imagens promovido pela perda da lógica da percepção sensório-motora, que é pautada na relação causa-efeito, no corpo da narrativa. Interessa-nos aqui, em especial, esse conceito como decorrente da crise da imagem-ação.É a partir dessa crise que surge o novo regime de imagens, em rompimento com a narrativa clássica, e desencadeia-se uma série de implicações significativas decorrentes dos novos modos de narrar. Este conceito é estabelecido em contraste com a imagem-movimento, que constitui o cinema clássico. Temos, assim, de um lado, o cinema clássico e a imagemmovimento e, do outro, o cinema moderno e a imagem-tempo. Deleuze identifica no período posterior à Segunda Guerra Mundial condições para que 1

DELEUZE, 1992, p. 186. Idem, 1992, p. 186. 3 Idem, 1992, p. 187. 2


185 se consolide estética e filosoficamente o novo regime de imagens, no que viria a se chamar de Neo-Realismo italiano. Os personagens de Roma, Cidade Aberta,1 de 1945, do cineasta italiano Roberto Rossellini, vagam a esmo pelas ruas da capital da Itália, destruídas pela guerra. Eles não sabem reagir à percepção que têm das coisas. Encontram-se na crise da imagem-ação, um dos avatares da imagem-movimento. Estão diante do que Deleuze chama de situações ópticas e sonoras puras, que são situações intensas demais, às quais não podem ou não sabem como reagir. A imagem-movimento, que está relacionada ao cinema clássico, é pautada na percepção sensório-motora, pois se dá à percepção do movimento. A imagem-tempo, ligada ao cinema chamado de moderno pelo filósofo, é pautada numa percepção do tempo, que se liberta do condicionamento do movimento e se impõe por novos signos, como os optsignos e os sonsignos, os quais estão ligados às situações ópticas e sonoras puras. O tempo no cinema clássico decorre do movimento; no moderno, a percepção do tempo não é mais indireta. O tempo não está mais subordinado ao movimento, à percepção sensório-motora. ŖUm cinema de vidente substitui a açãoŗ2. O tempo, livre, se constrói de modo alinear, ele se repete, se impõe em planos-sequência, se bifurca, emerge como possibilidade, trabalha com as potências do falso, Ŗoscila entre pontas de presentes e lençóis de passadoŗ 3, que se misturam. Estas imagens reclamam atenção, reflexão, descrevem mais do que contam, constituem não mais apenas uma narrativa, mas também um ensaio visual4. É nessa intenção de não fazer julgamentos dos objetos capturados pela câmera Ŕ a qual já compromete suficientemente o artista, que não tem como se ausentar totalmente daquilo que captura Ŕ que cineastas como Jean-Luc Godard e Michelangelo Antonioni propõem seus estilos, suas aberturas, chamam o espectador a participar da cena, a pensarem-na, viverem-na como experiência. Se a narração é, por assim dizer, uma concatenação de ações numa determinada linha temporal e significativa, que no cinema se apresenta conjugada predominantemente no presente (e na literatura, predominantemente, no passado), com a crise dessa organização, 1

ROSSELLINI. Roma, Cittá Aperta, 1945. DELEUZE, 2007, p. 19. 3 LA SALVIA, 2006, p. 85. A idéia da oscilação entre pontas de presentes e lençóis do passado diz respeito à imagem-cristal, que aqui não abordamos diretamente. Essa imagem, da imagem-tempo, tem a ver com um jogo de espelhos, com uma coexistência de planos temporais embaralhados entre memória e percepção, entre o virtual e o atual. 4 Para a ideia do filme enquanto ensaio, sugiro como imprescindível o excelente texto de Arlindo Machado: O Filme-Ensaio. Trabalho apresentado no Núcleo de Comunicação Audiovisual, XXVI Congresso Anual em Ciência da Comunicação, Belo Horizonte/MG, 02 a 06 de setembro de 2003. Comunicação, Belo Horizonte/MG, 02 a 06 de setembro de 2003. Disponível em: www.intermidias.com. 2


186 ficamos diante de uma narrativa que rompe com uma constituição clássica de concatenação das ações baseada em ações e reações que se sucedem numa relação racional de contiguidade, o que se faz por meio da montagem. Se o prolongamento sensório-motor não interessa mais a esse cinema que nasceria com a imagem-tempo, é preciso encontrar novos estilos que proponham novos prolongamentos narrativos, outras concatenações. Eis que aparecem, então, as situações ópticas e sonoras puras, que surgem de uma libertação do prolongamento clássico. Essas situações extravasam as possibilidades de reação à percepção. São constituídas de imagens em relações ambíguas. Os personagens ficam diante de imagens com as quais não sabem como lidar, diante das quais não é mais possível reagir sob um encadeamento puramente lógico. A estes personagens é dado a ver e ouvir muito mais do que a reagir. Substitui-se a montagem, princípio do cinema clássico, pela mostragem. Essa é a crise da imagem-ação, que é a imagem evidente do cinema clássico, da imagem-movimento, é a imagem que carrega consigo o enredo baseado na ação, e na sua montagem. Sendo o surgimento de um novo modo de narrar que focamos aqui, eis uma questão crucial: perceber a emergência de novos problemas, decorrentes da crise da imagem-ação da narrativa clássica. Podemos apresentar de modo esquemático essa distinção que Gilles Deleuze faz do cinema clássico (baseado no regime da imagem-movimento) para o moderno (baseado no regime da imagem-tempo) no seguinte diagrama 1: REGIMES DE IMAGEM CINEMA CLÁSSICO IMAGEM-MOVIMENTO

CINEMA MODERNO IMAGEM-TEMPO

Prolongamento sensório-motor Montagem, narrativa Reconhecimento motor Tempo subordinado ao movimento Narrativa linear, lógica, totalizante

Situações ópticas e sonoras puras, intensas Mostragem, descrição Reconhecimento atento Tempo direto Narrativa fragmentária, Ŗilógicaŗ, ambígua

O novo regime de imagens, o do cinema moderno, expõe-se, enquanto forma, como o lugar do pensamento, com o qual se relaciona de duas formas: do e para. Ele é, ao mesmo tempo, uma nova imagem do pensamento e um propositor de novas questões para o pensamento, o que força o pensamento do espectador a sair de sua imobilidade e experimentar novos ângulos do real, novas perspectivas. Daí Deleuze ver esse cinema diferencial como um instrumento filosófico. A nova organização formal submete o espectador a diferentes modos 1

Essa mostragem preliminar da divisão é básica, e tem fins exclusivamente didáticos, uma vez que (i) não comporta todas os elementos e nuanças trabalhados pelo autor e (ii) não leva em consideração a coincidência dos dois regimes de imagem em um mesmo filme. Assim, esses regimes não são, necessariamente, opostos, mas se diferenciam, basicamente, pelas diferentes problematizações que instauram e pelas diferentes soluções que propõem para os problemas.


187 de perceber a narrativa. Temos, de um lado, o reconhecimento motor, que prolonga as imagens num movimento que compõe um todo coeso e coerente e, de outro, o reconhecimento atento, que retoma e bifurca as imagens num todo fragmentado 1. Este novo cinema se perfaz na produção de imagens ambíguas que compõem narrativas descontínuas, fragmentadas, soltas. A nova estruturação da narrativa, no regime da imagem-tempo, precisa encontrar outras formas de ligar as partes para fugir dos modos de conexão predeterminadas, baseados na relação de causa e efeito, nos princípios da montagem, que subordinam as imagens a uma associação de fundo discursivo ou mesmo ideológico. No compasso dessa busca, fundam-se novos estilos para propor diferentes prolongamentos narrativos. Sendo os estilos, para Deleuze, modos com os quais os autores operam diferentes relações entre as imagens, é preciso, na exploração da problemática em que se criam e desenvolvem os estilos, buscar novas saídas, novas formas de conceber o mundo em imagens.

HOTEL ATLÂNTICO E CINEMA MODERNO

Hotel Atlântico, romance de 1989, é um dos trabalhos mais conhecidos de Noll. Seu enredo é de difícil sintetização Ŕ e a consciência disso já é um dado neste trabalho, um bom ponto a partir do qual podemos começar. O livro traz a história de uma viagem. Um homem, cujo nome desconhecemos e por meio de quem temos acesso à história, contada em primeira pessoa, parte numa viagem sem destino certo; a história é a própria viagem. Acompanhamos seu relato do translado que, mais ou menos aleatório, acaba compreendendo do Rio de Janeiro ao Rio Grande do Sul. Nesse percurso, o protagonista, um ator desempregado que vive do dinheiro de um carro vendido, em fuga de algo não passível de determinação, incorre num alucinante desfilar de imagens, que se apresentam em montagem fragmentada, Ŗfalhaŗ. Em meio a cortes bruscos na narrativa, de organização incidental, o narrador parcial nos dá a ver a história a partir de seu relato fugidio, de seus lapsos de memória e consciência. Nesse percurso, em que perambula por vários lugares, conhece superficialmente algumas pessoas e se aproxima várias vezes da morte, parece envelhecer com desmedida velocidade, tem a perna direita amputada, fica surdo, cego e desvanece. Seu corpo vai se deteriorando, até o fim: o de sua viagem, o do livro e, por assim dizer, o do próprio narrador. O romance tem uma das aberturas mais emblemáticas da literatura do escritor gaúcho. A 1

LA SALVIA, 2006, p. 45.


188 cena que dá início à história se passa em um hotel. Em poucas linhas (cinco parágrafos mínimos), o leitor é capturado pela atmosfera intrigante que a cena instaura. Introduz-se uma tensão que parece indicar um destino perigoso, cheio de mistérios, possivelmente trágico. Pedimos licença para mostrar a tal cena de abertura:

Subi as escadas de um pequeno hotel na Nossa Senhora de Copacabana, quase esquina da Miguel Lemos. Enquanto subia ouvi vozes nervosas, o choro de alguém. De repente apareceram no topo da escada muitas pessoas, sobretudo homens com pinta de policiais, alguns PMs, e começaram a descer trazendo um banheirão de carregar cadáver . Lá dentro havia um corpo coberto por lençol estampado. Fiquei parado num dos degraus, pregado à parede. Uma mulher com os cabelos pintados muito louros descia a escada chorando. Ela apresentava o tique de repuxar a boca em direção ao olho direito. Me senti arrependido de ter entrado naquele hotel. Mas recuar me pareceu ali uma covardia a mais que eu teria de carregar pela viagem. E então fui em frente1.

A partir desse trecho introdutório, o leitor é rapidamente conduzido a uma atmosfera de suspense, de intrigas. Parecemos estar diante de uma cena de filme noir, ou de literatura policial. As expressões Ŗpinta de policiaisŗ e Ŗbanheirão de carregar cadáverŗ, bem como os elementos Ŗvozes nervosasŗ, Ŗchoro de alguémŗ e Ŗcorpo cobertoŗ, nos remetem diretamente a essas narrativas de suspense, a um clima de mistério. A linguagem seca imprime uma leitura rápida, dura, tensa. Se nos demoramos, é pela força das imagens. A descrição rápida da mulher que desce as escadas nos impõe antes de qualquer coisa sua presença, uma imagem. A mulher nos é apresentada pelo choro ao descer as escadas, pelos cabelos exageradamente louros e pelo tique que apresenta. O tique não apresenta aparentemente nenhuma função significativa na construção da cena. O choro se dá provavelmente pela situação de morte, os cabelos Ŗmuito lourosŗ nos sugerem vulgaridade na personagem; mas e o tique? Qual seria sua função ali? Diante da indeterminação da função significativa do tique, a imagem da mulher loura descendo as escadas a chorar se projeta como imagem estranha. A imagem se impõe como superfície impenetrável, como imagem em si, e não como representação de algo, sendo, assim, mais ou menos autônoma. O que vem à memória do narrador é o tique, que, justamente por não ter uma função descritiva facilmente inteligível, impõe-se com a força de uma imagem que indaga seu espectador. O protagonista se sente arrependimento diante da cena do corpo descendo as escadas como num fúnebre

1

NOLL, 2004, p. 9.


189 prenúncio de coisa má, de morte, mas não segue seus instintos primeiros de sair dali por não querer carregar consigo Ŗuma covardia a maisŗ pela viagem. A contagem de uma covardia Ŗa maisŗ, que seria fugir dos perigosos mistérios prenunciados no hotel, remete-nos a um de fora. Não sabemos qual(is) foi(ram) a(s) outra(s) covardia(s) que o personagem carrega consigo. A tensão dramática de motivos desconhecidos já se vem agitando nele antes de seu relato começar. Não conseguimos então determinar o porquê da viagem. O que sabemos é que o saldo de um possível motivo para a viagem-fuga é a própria errância de significação vazia, um vagar sem rumo preciso nem compromisso moral de qualquer espécie. Seu caminho é uma rede de imagens, fragmentos. Os textos do escritor exibem uma exuberante tessitura de imagens de influência cinematográfica, e, nesse perambular, guardam forte proximidade com o cinema neo-realista e com os filmes de Michelangelo Antonioni. O romance de viagens, a balada ou o Ŗroadmovieŗ sempre são gêneros com os quais dialoga Noll. Seus personagens, impossibilitados de maiores ligações com as coisas, percorrendo espaços quaisquer, marcham para um fim que só é determinado mesmo pela ação do tempo, numa superação do tempo como decorrente do movimento. A tarefa de Noll parece a de Roberto Rossellini, Michelangelo Antonioni, Guns Van Sant e Lucrecia Martel: dar a ver os fatos, mostrá-los numa tentativa de insenção de causas, procedendo assim um afrouxamento das ligações entre cada cena. Essa tarefa de mostrar sem indicar faz-se de difícil execução. Estes artistas sabem que a construção dos objetos se dá pela linguagem. Numa tentativa de negação da linguagem enquanto forma constituída, o que assistimos, ou lemos, acaba sendo também ao artista tentando esconder em sua Ŗanti-linguagemŗ os elementos sígnicos de que não pode se livrar. Ainda quando o personagem diz ter Ŗvistoŗ, pela movimentação da rodoviária, que havia chegado a hora da viagem, não temos como saber o porquê de sua viagem, se é que existe um. Ele compara essa visão à constatação do corpo paciente que assiste ao primeiro procedimento do anestesista para uma cirurgia. O corpo é dado assim como paciente da relação; ele assiste ao procedimento e sabe que haverá uma cirurgia e uma anestesia para ela, mas nem por isso parece compreender intimamente o porquê da cirurgia. A viagem fica sendo então uma incursão material anestesiada. As relações entre as coisas só pode ser frouxas; há toda uma relação internamente entre órgãos, e entre o corpo e a intervenção cirúrgica, mas sua apreensão é impossibilitada pela anestesia. Assim, ficamos apenas com o fenômeno da viagem, com a experiência de um paciente. O narrador executa a paradoxal tarefa de nos contar sua história, ou de sua viagem, e de


190 ao mesmo tempo não contar sua história... Entre o que sabe e o que não sabe sobre si, esconde informações que parece ter, mas não querer confiar a ninguém, como seu nome, sua cidade de origem, seu verdadeiro (ex-)emprego, mente sobre seu estado civil. O protagonista declara driblar a curiosidade humana; ao perceber o grito que soltou no hotel, teme que venham bater a sua porta para lhe questionar 1. No início, ao lhe perguntarem sobre a sua bagagem, o personagem inventa uma desculpa pra justificar a ausência: ŖA bagagem eu deixei guardada no Galeão Ŕ foi a explicação que me saiuŗ. A desculpa aí é posta para ocultar o fato que fez desse homem um viajante sem bagagem, dado a não revelar seu passado. Sendo assim, o leitor não pode confiar completamente nas informações que o protagonista vai deixando pelo caminho. Não sabemos até que ponto o protagonista sabe das coisas e não quer revelar, mas sabemos que isso se confunde com o que não pode ou não consegue Ŗtraduzirŗ de sua percepção. As informações estão jogadas no plano das possibilidades. Estamos diante das potências do falso da imagem-tempo. A narrativa de Noll pode ser vista então como uma proposição de problemas, sobretudo concernentes à percepção do mundo que tem o protagonista, e que, por meio dele, temos nós.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Sobre Hotel Atlântico, podemos falar de uma narrativa que ensaia o rompimento com a narratividade, como a chamar atenção para sua própria constituição de linguagem nos limites do que é passível de apreensão e expressão. A literatura de Noll se recusa a agenciar os fragmentos que a compõem. É como se o narrador não pudesse ser objetivo em seu relato porque sua percepção é falha, as imagens se insujeitam a reformulação, elas se impõem com sua força peliculada, impenetráveis. A única ligação entre as partes é a presença do narrador, que assiste ao mundo em fragmentos, sem sentido definido. É como se o personagem não tivesse a função de contar uma história, mas de mostrá-las. Essa mostragem promove uma abertura que provoca por vezes o impasse da personagem, que se entrega a todo tipo de aventuras no caminho, não conseguindo decidir pelos rumos. Essa ausência de rumos e o impasse produzem fissuras na narrativa, que, por sua vez, provocam no leitor o estranhamento, que pede a percepção atenta das imagens, agora jogadas no turbilhão do regime da imagem-tempo. O espectador precisa alinhavar em uma mesma colcha as imagens a que assiste. O pensamento é impelido a dar um sentido, alguma coerência à viagem 1

NOLL, 2004, p. 14.


191 experimentada. Em direção ao fim do livro, seu corpo vai ficando cada vez mais inadequado para a viagem, no que se aproxima de Sebastião, o enfermeiro. A amputação da perna direita marca a perda de sua livre locomoção, ao que se somam rápida e inexplicadamente a surdez, a cegueira e o desvanecimento final. No romance de Noll, o leitor, espectador das imagens apresentadas, depara-se com a difícil

tarefa

de

fazer

produzir

sentido

no

amontoado

de

imagens

colocadas

fragmentariamente diante de um narrador que não parece ter a função de contar uma história, mas sim de mostrá-la. O personagem-narrador apenas apresenta o leitor às imagens de sua história, e os deixa a dialogar, o leitor e as imagens.

REFERÊNCIAS CANDIDO, Antonio. O Direito à Literatura. In: Vários Escritos. 4 ed. São Paulo: Duas Cidades; Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004, p. 169-191. DELEUZE, Gilles. Cinema I: A Imagem-Movimento (1983). São Paulo: Brasiliense, 1985. DELEUZE, Gilles. Cinema II: A Imagem-Tempo (1985). São Paulo: Brasiliense, 2007. DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. LA SALVIA, André Luis. Introdução ao estudo dos regimes de imagem nos livros Cinema de Gilles Deleuze. Campinas, São Paulo, 2006. Dissertação de Mestrado em Filosofia, Universidade Estadual de Campinas, p. 41-69. NOLL, João Gilberto. Hotel Atlântico. São Paulo: Francis, 2004. VASCONCELOS, Jorge. A Filosofia e seus Intercessores: Deleuze e a Não-Filosofia. Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 93, p. 1217-1227, Set./Dez. 2005. Disponível em: http://www.cedes.unicamp.br. Acesso em: 28/09/2009.

VARIAÇÃO DAS VOGAIS MÉDIAS PRETÔNICAS NO PORTUGUÊS DA AMAZÔNIA Marcelo Pires DIAS (UFPA) Orientador(a): Prof.ª Dr.ª Marilúcia Barros de OLIVEIRA (UFPA) RESUMO: A presente pesquisa tem por objetivo descrever o comportamento das vogais médias pretônicas anteriores e posteriores com base na língua falada de informantes de seis capitais da região Norte do Brasil (Belém-PA, Manaus-AM, Rio Branco-AC, Macapá-AP, Porto Velho-RR e Boa Vista-RO) a partir dos questionários fonético-fonológicos (QFF) pertencentes ao Atlas Linguístico do Brasil (Alib). De acordo com Câmara Jr (1970) temos no português brasileiro sete vogais em posição tônica, cinco em posição pretônica e três em posição postônica final, o que configura uma redução vocálica, ocasionada pela neutralização, ou seja, perda de contraste. Foram transcritos a partir do uso do Transcriber™ 908 dados de manutenção das médias, abaixamento e alteamento, em seguida processados com o uso do programa de regras variáveis Goldvarb X™, que forneceu os percentuais e pesos relativos úteis para a análise e reflexão linguística variacionista. Os grupos de fatores elencados que


192 podem explicar o comportamento das médias pretônicas foram os seguintes: natureza fonética do segmento consonantal; natureza da vogal tônica; distância entre a vogal tônica e pretônica (escala 1 para distância de uma sílaba até distância 3 para distância de três sílabas; natureza morfológica do item lexical (substantivo, adjetivo, advérbio ou verbo) e tipo de sílaba (leve ou pesada), além dos grupos de fatores sociais faixa etária, escolaridade, sexo/gênero e procedência. A pesquisa se justifica pela importância de se descrever a variedade do português brasileiro falado na Amazônia brasileira e contribuir para descrição linguística do português brasileiro. PALAVRAS-CHAVE: Vogais; fonologia; variação. RESUME: Cette recherche vise à décrire le comportement du milieu voyelles atones avant et après sur la base de la langue parlée des informateurs dans six capitales d'État dans le Nord du Brésil (Belém-PA, Manaus-AM, Rio Branco-AC, Macapá-AP, Porto Velho-RR et Boa VistaRO) à partir de questionnaires phonétique-phonologique appartenant à l'Atlas linguistique du Brésil (Alib). Selon Câmara Jr (1970) ont sept voyelles en portugais brésilien en position fondamentale, cinq en position de repos Poston et trois dans la position finale, qui est une réduction de la voyelle, causée par la neutralisation, ou de la perte de contraste. Été transcrit à partir du transcriber 908 utiliser les données d'entretien de la moyenne, plus bas et accroît ensuite traitées avec l'utilisation des variables du programme règles Goldvarb, qui a fourni les pourcentages et les poids relatifs utile pour l'analyse et la réflexion variacionist. Les groupes énumérés facteurs qui peuvent expliquer le comportement de moyennes ont été atones: nature phonétique du segment consonantique, la nature de la voyelle tonique; distance entre la tonique et voyelle non accentuée (à l'échelle de la distance jusqu'à une distance de 3 à distance de trois syllabes et morphologiques nature syllabique de l'élément lexical (nom, adjectif, adverbe ou verbe) et le type de syllabe (léger ou lourd), ainsi que les groupes de facteurs sociaux, âge, éducation, sexe/genre et l'origine. La recherche est justifiée par l'importance de pour décrire la variété de portugais brésilien parlée en Amazonie brésilienne et de contribuer à la description linguistique du portugais brésilien. MOTS-CLÉS: voyelles; phonologie; variation INTRODUÇÃO A presente pesquisa tem por objetivo descrever o comportamento das vogais médias pretônicas anteriores e posteriores com base na língua falada de informantes de seis capitais1 da região Norte do Brasil (Belém-PA, Manaus-AM, Rio Branco-AC, Macapá-AP, Porto Velho-RR e Boa Vista-RO) a partir dos questionários fonético-fonológicos (QFF) pertencentes ao Projeto Atlas Linguístico do Brasil (Alib). Após a descrição das vogais médias pretônicas será realizada a análise com base na teoria fonológica da geometria de traços, ou fonologia não-linear (Clements & Hume, 1989, 1995) que pode indicar quais traços e quais processos fonológicos ocorrem nessa pauta e posteriormente explicar os casos de alçamento, abaixamento e manutenção das médias na posição pretônica. Abaixo temos o 1

A capital do estado do Tocantins (TO) não foi incluída na pesquisa, pelo fato da mesma não ser um dos pontos de coleta do projeto ALIB


193 quadro total de vogais, seguido pelas representações triangulares das vogais tônicas e pretônicas proposta por Câmara Jr (1970):

Figura 1: Quadro Geral de Vogais

Figura 2: Quadro de Vogais em posição tônica. (Câmara Jr, 1970).

Figura 3: Quadro de Vogais em posição pretônica. (Câmara Jr, 1970).

O comportamento das vogais médias no Português Brasileiro já possui uma larga bibliografia consolidada e foi tratado inicialmente pelo linguísta Câmara Jr (1970) que em seu clássico volume ŖEstrutura da Língua Portuguesaŗ apresentou o sistema de vogais triangular, onde se tem sete vogais em posição tônica, cinco em posição pretônica, quatro vogais em posição postônica não-final e três em posição postônica final. Segundo Câmara Jr (Idem) em posição pretônica o quadro de cinco vogais pode sofrer mudança considerável em virtude de dois fenômenos: 1) Harmonia vocálica e 2) Neutralização. O primeiro fenômeno comum no Português brasileiro se refere ao nivelamento da vogal média pretônica, quando a tônica é alta, como em /coruja/ que após sofrer harmonia vocálica se realiza como /curuja/. O segundo fenômeno, chamado de neutralização consiste na neutralização das vogais médias em virtude


194 da perda de contraste das vogais nessa posição. Embora Câmara Jr. tenha observado de modo exemplar a situação instável do quadro de vogais pretônicas, não houve tempo para que o mesmo pudesse desenvolver esse estudo, tarefa que foi herdada pelos linguístas posteriores, dentre os quais podemos destacar Bisol (1980) que realizou um dos principais trabalhos de descrição de vogais nessa posição com base no dialeto da região Sul do Brasil, com dados de fala espontânea originários do Projeto Variação Linguística na Região Sul (VARSUL). Na região Norte do Brasil podemos destacar os seguintes trabalhos: Vieira (1983) que realizou o primeiro estudo de caracterização e descrição das vogais médias pretônicas no estado do Pará. Ao estudar o português falado nas microrregiões do Médio-Amazonas paraense e na região do Tapajós, especificamente nos municípios de Santarém (PA), Alenquer (PA), Óbidos (PA), Oriximiná (PA) e Itaituba (PA), a partir de gravações de 201 informantes via questionário, foi constatado que o ―fenômeno de passagem de /o/ para [u] é característico de toda a área pesquisada, onde se observa uma quase substituição de /o/ pelo [u] em todas posições, quer tônica como átona‖ (Idem, p. 64). Além do trabalho de Vieira (Idem) podemos destacar alguns trabalhos que tratam de vogais médias, como Nina (1991) que tratou das vogais médias no município de Belém (PA), dez anos depois Freitas (2001) que realizou investigação no município de Bragança (PA). Trabalhos mais recentes como o de Dias et al (2007, 2009), Araújo & Rodrigues (2007) e Campos (2008) contribuíram para a descrição do português falado na Amazônia paraense e servirão de ponto de partida para a pesquisa aqui iniciada. 1. METODOLOGIA A partir dos questionários fonético-fonológicos dos 48 informantes estratificados socialmente em faixa etária (18 a 31 e 50 a 65) e escolaridade (Ensino fundamental e Ensino Superior) foi realizada a transcrição dos itens lexicais com o uso do programa Transcriber™ que auxilia na transcrição e inserção de marcadores no arquivo sonoro. Os itens lexicais selecionados para presente investigação são os seguintes: (1) terreno (2) televisão (3) gordura (4) cebola (5) bonito (6) montar (7) remando (8) seguro (9) colegas (10)borracha (11) pernambucano (12) soldado (13) mentira (14) procissão (15) pecado (16) perdão (17) pescoço (18) joelho (19) ferida (20) perfume (21) presente (22) sorriso (23) dormindo (24) perdida (25) perguntar


195 Não foram considerados os itens lexicais com onset vazio na sílaba alvo, como escola, que se realiza /iscola/ e ditongos, pois nesses casos a presença de alteamento é categórica, como foi demonstrado em Bisol (1981), Dias et al (2007,2009) dentre outros, portanto, foram considerados os padrões silábicos CVC e CV, para que fosse possível identificar quais fatores segmentais podem contribuir para a manutenção das médias ou possíveis alteamentos ou abaixamentos. Para identificar as vogais médias foi criado um padrão para identificação das mesmas: sinal positivo (+) para indicar que a vogal média pretônica sofreu alçamento (Ex.: +/bunitu/); o sinal negativo (-) para indicar manutenção da vogal média (Ex.: -/bonitu/) e o sinal asterisco (*) para indicar abaixamento (Ex.: /). Esse tipo de marcação foi útil na etapa de codificação de dados de entrada para utilização do programa de regras variáveis GoldVarb X. Após a transcrição dos dados será realizada a codificação dos dados com base em arquivo de especificação criado previamente, contento grupos de fatores linguísticos e sociais que podem ou não explicar os fenômenos variáveis que ocorrem na pauta pretônica. De posse do corpus formado para a investigação, procedeu-se primeiramente a uma transcrição e triagem de dados dos relatos de experiências coletados na pesquisa de campo. Em seguida será realizada uma análise quantitativa, a partir do programa GoldVarb X, com base no modelo laboviano, com o objetivo de se obter percentuais e pesos relativos dos grupos de fatores (que podem ou não explicar a variável dependente). A análise variacionista, aqui tomada pretende evidenciar quais são os fatores linguísticos e extralinguísticos que podem explicar a realização da variável dependente. Após a criação do arquivo de células, será gerado o arquivo regras variáveis que nos diz quais os fatores favorecedores e/ou desfavorecedores, assim como, os pesos relativos que medem o efeito comparativo de cada fator em relação à variável dependente e os percentuais, que mostram o número de ocorrências dos casos da variante focalizada, que são úteis para a reflexão linguística. Inicialmente foram elencados os seguintes grupos de fatores: natureza fonética do segmento consonantal; natureza da vogal tônica; distância entre a vogal tônica e pretônica (escala 1 para distância de uma sílaba até distância 3 para distância de três sílabas; natureza morfológica do item lexical (substantivo, adjetivo, advérbio ou verbo) e tipo de sílaba (leve ou pesada), além dos grupos de fatores sociais faixa etária, escolaridade, sexo/gênero e procedência.


196 2. RESULTADOS ESPERADOS E ATIVIDADES EM ANDAMENTO No momento o trabalho de transcrição dos dados está em andamento, assim como a criação do arquivo de especificação contendo as hipóteses. Para a construção do mesmo, além de fatores sociais, como faixa etária, escolaridade e procedência teremos grupos de fatores linguísticos, com especial destaque para os grupos de fatores relativos a aspectos fonéticofonológicos, mas especificamente com base na Fonologia Não-Linear ou Fonologia de Geometria de Traços proposta por Clements & Hume (1989,1995) que nos fornecerá os traços desencadeadores de fenômenos como o alteamento, neutralização, harmonia vocálica e abaixamento. Com o aporte teórico da Geometria e Traços de Clements & Hume (Idem) será possível estabelecer quais traços ou qual traço é responsável por desencadear os processos fonológicos presentes no quadro pretônico. A principal hipótese é a que o traço referente a altura ou traço Advanced Tonge Root (ATR) seja o responsável pela ocorrência ou não da elevação das médias, assim como a neutralização onde ocorre a perda de contraste entre os traços +ATR e ATR. É importante salientar que há possibilidade de termos comportamento diferentes entre as vogais pretônicas anteriores e posteriores, já que muitos estudos apontam as vogais posteriores como mais sensíveis aos diferentes fenômenos que incidem nessa pauta. Na representação abaixo podemos observar a disposição dos traços referentes as vogais e consoantes levados em consideração na análise sob a ótica da fonologia da geometria de traços:

Figura 4: Quadro relativo as vogais (à esquerda) e as consoantes (à direita).


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CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalho tratou das vogais médias pretônicas nas capitais da Região Norte com o objetivo de realizar uma descrição variacionista quantitativa e posteriormente a análise sob o viés da Fonologia de Geometria de Traços que poderá nos fornecer evidências e explicações a respeito dos processos fonológicos presentes nessa pauta. A importância do tema e a relevância da discussão sobre a constituição do quadro vocálico do Português Brasileiro justificam a presente pesquisa, além de contribuir mostrando a realidade dos falares da região Amazônica de modo a completar o mosaico de estudos de variação fonológica já desenvolvidos nas regiões Centro-sul e Nordeste e aqueles em pleno desenvolvimento nas regiões Norte e Nordeste. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BATTISTI, Elisa & VIEIRA, Maria José Blaskovsky. O sistema vocálico do Português. In: BISOL, Leda, (org.). Introdução a estudos de fonologia do português brasileiro. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. pp. 165-201. BISOL, Leda. Harmonização Vocálica: uma regra variável. Tese de Doutorado em Linguística e Filologia. Rio de Janeiro: UFRJ, 1981. CAMPOS, Benedita Maria do Socorro Pinto. Descrição sociolinguística das vogais médias pretônicas no português falado no Município de Mocajuba-(PA).. Dissertação (Mestrado em Letras), Universidade Federal do Pará, Belém, 2008. CAMARA JR, Joaquim Mattoso. Estrutura da Língua Portuguesa. 24 ed. Petrópolis: Vozes, 1970. CLEMENTS, G. N. On the Representation of Vowel Height. Cornell University, 1989. CLEMENTS, George N. & HUME, E.V. The internal organization of speech sounds. In. GOLDSMITH. J.A. (ed.) The handbook of phonological theory. Cambridge, Mass./Oxford: Blackwell, 1995. p.245-306. DIAS, Marcelo Pires et al. ŖO Alteamento das Vogais Pré-tônicas no português falado na área rural do Município de Breves (PA): uma abordagem variacionistaŗ, Revista Virtual de Estudos da Linguagem – ReVEL. V. 2, n. 6, agosto de 2007. FREITAS, Simone Negrão de. As vogais Médias Pretônicas no Falar da Cidade de Bragança. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Pará, Belém, 2001. LABOV, Willian. Padrões Sociolinguístico. Trad: Marcos Bagno. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. NINA, Terezinha de Jesus de Carvalho. Aspectos da Variação Fonético-Fonologica na fala de Belém. Tese de Doutorado em Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras UFRJ, 1991. p.216. RODRIGUES, Doriedson do Socorro; ARAÚJO, Marivana. As vogais médias pretônicas /e/ e /o/ no português falado no Município de Cametá/Ne do Pará a harmonização vocálica numa abordagem variacionista. Cadernos de Pesquisas em Linguística (PUCRS), 2007. VIEIRA, Maria de Nazaré. Aspectos do Falar Paraense: Fonética, fonologia, semântica. Belém: UFPA-PROPESP, 1983.


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O HERÓI NA RECEPÇÃO CRÍTICA DE GRANDE SERTÃO: VEREDAS

Márcia Denise Assunção da ROCHA (UFPA) Orientador(a): Prof. Dr. Sílvio Augusto HOLANDA (UFPA) RESUMO: O presente projeto constitui-se em uma leitura fincada nos moldes estéticorecepcionais do romance Grande sertão: veredas, do consagrado escritor mineiro Guimarães Rosa (1908-1967). Após um estudo histórico-artístico das categorias de heróis apresentadas pela crítica, tais como na epopéia (herói épico), na tragédia (herói trágico) e no romance (herói romanesco), incluindo a categoria de herói formulada por Georg Lukács: o herói demoníaco, apresentaremos um exame diferenciado da figura da persona baseado no modelo jaussiano, que, por sua vez, será utilizado para consideração da recepção crítica sobre a personagem na obra rosiana, sobretudo a partir de 1956. Para tanto, a análise volta-se para um estudo analítico-crítico de alguns autores principais, como Antonio Candido, Benedito Nunes e Cavalcanti Proença, e para a produção crítica mais recente, tais como as assinaladas em teses e dissertações, com a finalidade de compreender e explicitar a importância da reconstrução do horizonte de expectativa a partir da tríade hermenêutica que permite ao leitor participar da gênese do objeto estético, expandindo seu contexto e significações. PALAVRAS-CHAVE: Grande sertão: veredas, herói, recepção crítica. ABSTRACT: The present project consists of a deep reading based in the aesthetic molds of the novel Grande sertão: veredas, by the acclaimed writer Guimarães Rosa (1908-1967). After an art-historical study of the types of heroes presented by critics such as in the epic (epic hero), tragedy (tragic hero) and romance (romantic hero), including the hero category formulated by Georg Lukács: the demoniacal hero, we present a differentiated examination of the figure of the persona based on jaussian model, which in turn will be used for consideration of the critics reception of the character in the author's work, especially since 1956. For that reason, the analysis turns to a critical study of some major authors such as Antonio Candido, Benedito Nunes and Cavalcanti Proença, and the latest critical production, such as those highlighted in thesis and dissertations, with the aim of understanding and explaining the importance of reconstruction of the horizon of expectation from the hermeneutic triad, that allows the reader to participate in the genesis of the aesthetic object, expanding its context and meaning. KEY-WORDS: Grande sertão: veredas, hero, critical reception. ŖSertão: êstes seus vazios. O senhor vá. Alguma coisa, ainda encontra.ŗ (GS:V, 1956, p. 22)


199 As palavras do jagunço Riobaldo soam como um convite irresistível para enveredar-nos por vias complexas na travessia do livro em que ele habita. Tal livro constitui-se em uma das obras de maior impacto na literatura brasileira, obra em que pode encontrar-se Ŗtudo para quem souber ler, [pois] nela tudo é forte e belo, impecavelmente realizadoŗ (CANDIDO, 1964, p.21), a obra multidimensional de João Guimarães Rosa: Grande sertão: veredas. Nesta travessia arriscada, muitos são os perigos, uma vez que é necessário dar-se conta de que Ŗa arte de Rosa é terrivelmente difícilŗ (RAMOS, 1988, p.45) não só pela linguagem experimentalista que revolucionou uma época, mas principalmente pelo fato de que conjugado à esta linguagem está a magia e o mistério da própria vida, pois se Ŗo sertão está em toda parteŗ, onde houver humanidade haverá a travessia, mas para empreendê-la é vital reconhecer que neste mundo-sertão, (ler)Ŗviver é muito perigosoŗ, já que Ŗo sertão é o terreno da eternidade, [...] onde o homem é o eu que ainda não encontrou um tuŗ. (BRAITH, 1982, p.104) Se o texto íngreme inicial consegue atrair e envolver o leitor de forma Ŗmágica e irresistívelŗ (BRAITH, 182, p.100) ao adentrar nos meados de seus espaços é porque o sertão está muito além dos limites geográficos impostos. O sertão aparece, então, Ŗcomo uma forma de aprendizagem sobre a vida, sobre a existência [...] do homemŗ (BRAITH, 1982, p.160). Deveras, a riqueza estilística do texto ficcional atrelada à apurada sensibilidade de Rosa ao lidar com as palavras acabaram por constituir um estilo único e profundo, que foge ao Ŗlugar comumŗ e conduz o leitor a um reino-sertão onde formas de vida rústicas fundem fato e fantasia em dimensão universal. Nesse ínterim, observamos que a experiência do texto converge com a experiência do mundo, a experiência da própria vida Ŕ fator este que torna a obra, apesar de dificultosa, fascinante para o leitor e o ouvinte, de forma que, apesar de já se terem passado 54 anos de sua escrita, a interpretação de Grande sertão: veredas continua em aberto constituindo um desafio constante para seus leitores, nesta travessia sem fim. Segundo a Estética da recepção — vertente da teoria literária que vem a tona como proposta defendida pelo alemão Hans Robert Jauss (1921-1997), em 1967 — o leitor é o principal agente do processo interpretativo e valorativo de uma obra, uma vez que é ele quem materializa seus processos de significação, ao mesmo tempo em que faz a mediação entre o horizonte de expectativa do passado e a concepção de mundo atual. É desta interação o crítico Leo Gilson Ribeiro (1982) nos fala em relação à obra de Rosa: Se o leitor aceita o desafio inicial do esforço para penetrar neste


200 maravilhoso reino [...] que Guimarães Rosa criou [...] ele vislumbrará um reino vasto, majestoso, que o acompanhará para sempre. (BRATH apud RIBEIRO, 1982, p.104)

Esta colaboração hermenêutica ativa do leitor revela-se instrumento fundamental acerca da composição da narrativa de Guimarães Rosa, considerando que, segundo os postulados jaussianos, o processo de significação da obra é dependente do leitor/receptor, que por sua vez aceita a provocação do texto e assim, muito poderá revelar, pois poderá Ŗreencontrar na realidade concreta e rude, elementos simbólicos.ŗ (GERSEN, 1982, p.351) Adentrando neste vasto reino, que é a obra de Rosa, esta pesquisa aporta sobre o seguinte tema: O herói na recepção crítica de Grande sertão: veredas. Dessa maneira, este trabalho se volta para o estudo da recepção crítica incidente sobre a categoria estética da personagem, mais especificamente da figura do herói Riobaldo, desta narrativa que se lança para o infinito: Grande sertão: veredas. Sendo este o mote da pesquisa, é mister ressaltar seus objetivos específicos. São eles: (1) Analisar a figura do herói apresentada pela crítica: Na epopéia (herói épico), na tragédia (herói trágico), no romance (herói romanesco), incluindo a categoria de herói formulada por Georg Lukács: o herói demoníaco; (2) Discutir o conceito de personagem, considerando os postulados da Estética da Recepção e (3) Examinar como a recepção crítica da obra rosiana compreendeu a categoria do herói em Grande sertão: veredas, sobretudo a partir de 1956. Assim, este trabalho diferencia-se pelo exame, sob a perspectiva hermenêutica de Jauss, da contribuição crítica-teórica realizado à narrativa rosiana, sobretudo da figura da personagem a partir de sua publicação até 2010, visando contribuir para a ampliação de estudos sobre a obra rosiana, proporcionado, desta forma, uma Ŗfusão de horizontesŗ (1994, p. 37).

1. UMA INVESTIGAÇÃO HISTÓRICO-ARTÍSTICA DA FIGURA DO HERÓI O herói é o centro do mundo (Joseph Campbell)

Independentemente do tempo, da etnia, da língua ou da religião, pessoas do mundo inteiro sentem-se atraídas à narrativa. Dentre um de seus elementos que exercem o maior poder de atração, encontra-se o herói. A respeito deste elemento, é interessante considerarmos os comentários feitos por Flávio Kothe, Joseph Campbell e Arnald Rosenfeld. Flávio Kothe (1985, p. 7) afirma que Ŗo herói é a dominante que ilumina estrategicamenteŗ a narrativa e


201 que Ŗrastrear o percurso e a tipologia do herói é procurar as pegadas do sistema social no sistema das obrasŗ. Por sua vez, Anatol Rosenfeld (2002, p. 31) defende a ideia de que Ŗa personagem realmente constitui a ficçãoŗ e Joseph Campbell (1949, p. 46) assevera: ŖO herói é o centro do mundoŗ. Uma vez que os episódios de vida da personagem se entrelaçam num espaço e num tempo determinado, isso gera uma identificação com o leitor, que por sua vez, sente-se fascinado por ele. Sobre este fascínio, Lutz Müller, em sua obra Todos nascemos para ser heróis, comenta como a figura da pessoa heróica sempre Fascinou os homens de todas as culturas e de todas as épocas como nenhum outro tema. [...] ele representa as grandes esperanças e os profundos anseios da humanidade. O herói nos fascina tanto porque pura e simplesmente ele personifica o desejo e a figura ideal do ser humano. [...] Reencontramo-nos nos seus medos e sofrimentos, nos seus combates, vitórias e derrotas, na sua luta pela sobrevivência. (MÜLLER, 1987, p. 106)

Mediante a importância deste elemento na narrativa, fizemos um estudo das categorias de heróis apresentadas pela crítica, buscando rastrear o percurso e a tipologia do herói. Sem dúvida, pensar a questão da personagem significa, necessariamente, percorrer alguns caminhos trilhados pela crítica no sentido de definir seu objeto e buscar o instrumental adequado a análise e a fundamentação dos juízos acerca desse objeto. Se no painel do mundo épico, o herói está atrelado ao seu destino que lhe é dado como dádiva dos deuses, e ele cumpre seu destino porque isso representa cumprir o destino de sua própria nação ( a representatividade do herói épico fica evidente na epopéia por excelência da literatura ocidental, a Ilíada), na tragédia, embora ainda permeie um lócus mítico, há o rompimento com a predeterminação dos deuses. O herói trágico, por sua vez, tenta libertar-se das amarras do fatum, destino imposto pelos deuses, e dirigir sua própria vida. Mas Ŗo herói trágico é um carvalho em que caem os decisivos raios do destinoŗ (KOETHE, 1985, p. 13-14) e ele não consegue desenlaçar-se do seu destino e como exemplo, temos a tragédia Édipo rei, de Sófocles. Ironicamente, é na tentativa de fugir de seu destino que Édipo o cumpre. No painel do mundo moderno, deparamo-nos com o herói romanesco. Sobre a estrutura do romance e com um olhar diferenciado sobre o herói desse tipo de estrutura, no inverno de 1914, um jovem estudioso publicou um ensaio denominado A teoria do romance. Este foi Georg Lukács. O método por ele adotado foi um produto típico das ciências do espírito e nesta obra, Lukács observa que o romance se caracteriza por uma ruptura entre o herói e o mundo.


202 Na Teoria do romance, Lukács formulou uma tipologia romanesca fulcrada na ação do personagem, de forma que a ação de cada herói vai estar vinculada ao seu grau de inadequação com o mundo. Desta forma, ele distingue três categorias de heróis romanescos: o herói do idealismo abstrato, do romantismo da desilusão e do romance de educação. O herói problemático do idealismo abstrato, também denominado herói demoníaco, simultaneamente em comunhão e oposição com o mundo, uma vez que o herói romanesco se confronta não apenas com seus demônios interiores, mas também os da sociedade, sociedade esta em que o homem tem mais perguntas que respostas. Quanto ao deslumbramento demoníaco desta categoria de herói, nota-se em Riobaldo, personagem de Grande sertão que: O demonismo do estreitamento da alma é o demonismo do idealismo abstrato. É a mentalidade que tem de tomar o caminho reto e direto para a realização do ideal; que, em deslumbramento demoníaco, esquece toda a distância entre ideal e ideia, entre psique e alma; que, com a crença mais autêntica e inabalável, deduz do dever-ser da ideia a sua existência necessária e enxerga a falta de correspondência da realidade a essa exigência a priori como o resultado de um feitiço nela operado por maus demônios, feitiço que pode ser exorcizado e redimido pela descoberta da palavra mágica ou pela batalha intrépida contra os poderes sobrenaturais. (LUKÁCS, 2000, p.100) ŖO Diabo existe e não existe?ŗ (GS:V, 1056, p.112). Este parece ser o maior conflito de

Riobaldo, espécie de feitiço que só Ŗpode ser exorcizado e redimido pela [...] batalha intrépida contra os poderes sobrenaturaisŗ, ou seja, pelo Pacto que lhe permitirá vencer o Hermógenes. É esta mentalidade que relança a narrativa numa dimensão mítica, a sombra de um pacto com o Maligno (figura que remonta ao medieval e popular Diabo, Lúcifer) que pode ou não ter existido e, cuja imagem-mor está na epígrafe da obra: ŖO Diabo na rua, no meio do redemunhoŗ, que ressurge em várias partes dentro do texto. Em meio a tais concepções modernas sobre o estatuto da persona, também destaca-se o estudo de Northrop Frye (1912-1991). Com sua obra Anatomia da crítica (considerado o livro mais importante da renovação crítica moderna) Frye mostra que as ficções podem ser classificadas pela força de ação do herói mediante a audiência, que pode ser maior do que a nossa, menor ou mais ou menos a mesma. Ele faz uso de cinco classificações, que são: (1) Se superior em condição tanto aos outros homens como ao meio desses outros homens, o herói é um ser divino, e a estória dobre ele será um mito, no sentido comum de uma estória sobre um deus; (2) Se superior em grau aos outros homens e seu meio, o herói é o típico herói da estória romanesca, cujas ações são maravilhosas, mas que em si mesmo é identificado como um ser humano. Aqui passamos do mito para a lenda e seus derivados; (3) Se superior em


203 grau aos outros homens, mas não ao seu meio natural o herói é um líder. Esse é o herói do modo imitativo elevado da maior parte da epopéia e da tragédia; (4) Não sendo superior aos outros homens e seu meio, o herói é um de nós: reagimos a um senso de sua humanidade comum. Isso nos dá o herói do modo imitativo baixo, da maior parte da comédia e da ficção realística e (5) Se for inferior em poder ou inteligência a nós mesmos, de modo que temos a sensação de olhar de cima uma cena de escravidão, malogro ou absurdez, o herói pertence ao modo irônico. Em contrapartida as definições de Frye, segundo Hans Robert Jauss, a recepção de uma obra ativa a produção de significados que não dependem dos sentidos constituídos no contexto original do texto literário. Em seu texto A história da literatura como provocação à teoria literária (1994, p. 25), ele afirma que Ŗa história da literatura ―é um processo de recepção e produção estética que se realiza na atualização dos textos literários por parte do leitor que os recebe, do escritor, que se faz novamente produtor, e do crítico, que sobre eles refleteŗ. Assim, só podemos definir a tipologia de uma personagem se levarmos em conta o sistema de referências sobre a literatura, constituído historicamente, do público leitor. Jauss contesta, com seus modelos estéticos recepcionais, o estudo das personagens de Northrop Frye, baseado no grau de ação do herói mediante a audiência. Ele assevera: ŖA escala de personagens ou aspectos do herói de Northrop Frye deve ser corrigida, pois esta já não é uma questão de formas de expressão ou apresentação, mas de modos de recepção.ŗ (JAUSS, 1974, p. 283). Assim, Jauss identifica a importância de não se levar em consideração as diversas formas que o herói foi apresentado no curso da história social, mas sim os vários níveis de recepção em que o espectador, o ouvinte ou o leitor, em períodos anteriores ou ainda hoje, pode se identificar com o herói. Esta pesquisa se diferencia, portanto, por procurar desenvolver um exame do herói na obra rosiana, mas sobretudo, à luz dos moldes estético-recepcionais, fundamentando-nos na Estética da Recepção de Hans Robert Hauss.

2. A CRÍTICA DIANTE DO UNIVERSO ROSIANO QUE SE LANÇA PARA O INFINITO ŖPara todo grande crítico, as criaturas no mundo da ficção têm a mesma realidade que as criaturas de carne e osso têm para os romancistas, e é através daquelas que se chega, muitas vezes, à compreensão destas.ŗ (José Geraldo Nogueira Moutinho)


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Com Guimarães Rosa é que realmente nossa literatura começa a transcender. Suas estórias são contos de fadas adultos. (Franklin de Oliveira)

Percorrendo a vereda hermenêutica que nossa pesquisa tomou, fica evidente que esta não é mais uma observação analítica sobre a narrativa de Rosa, mas trata-se de um exame interpretativo, sob a perspectiva recepcional de Jauss, das contribuições teóricometodológicas trazidas pela crítica literária ao elemento estético do herói no romance Grande sertão: veredas. Com seu romance metafísico de traços corrosivos, Guimarães Rosa revolucionou a estética regionalista da época e gerou impacto em múltiplas visões por parte da crítica. Sabese que a recepção crítica de Grande sertão: veredas encontrou dificuldades para a compreensão deste romance, sobretudo das personagens. O crítico Affonso Ávila (2000, p. 95), por exemplo, revela o despreparo da crítica literária no momento da publicação da obra, destacando a dificuldade Ŗdesse romance alentado, difícil e desconcertante para as acanhadas dimensões [de até então] da nossa literatura.ŗ Entretanto, atualmente, diversos são os escopos a receber e ampliar o universo interpretativo da narrativa rosiana. Nesta seara de críticos, fulguram nomes como os de Antonio Candido, Cavalcanti Proença e Benedito Nunes, bem como de intelectuais acadêmicos com uma produção crítica mais recente, tais como as assinaladas nas teses e dissertações divulgadas no meio digital. O horizonte de expectativas do leitor, como Ŗa condição de toda possibilidade de experiênciaŗ (JAUSS, 1982, 25) é fator que faz com que a compreensão de uma obra literária não se encerre, mas se reinicie, sempre que houver por parte do leitor o desejo de travessia . Nota-se assim, por este viés interpretativo, que o pólo de recepção do leitor desempenha um papel dinâmico e reflexivo no processo de significação da obra, como aquele que torna uma obra vívida e dinâmica historicamente, pois sem seu destinatário ela permaneceria reclusa ao seu aspecto material. Quanto a este caráter aberto e plural do processo receptivo, Jauss explica-nos que a obra literária é Ŗcomo uma partitura voltada para a ressonância sempre renovada da leitura, libertando o texto da matéria das palavras e conferindo-lhe existência atual (1994, p. 25). Sim, é o leitor, bem como o crítico, por meio de sua atividade imaginante e atribuidora de sentidos, que poderá atualizar e atribuir diversas (re)significações ao texto.


205 O Ŗconfronto de expectativasŗ que se verá nesta pesquisa, conduz a concordância com as palavras do crítico paraense Benedito Nunes (1956, p. 172): ŖPara Guimarães Rosa, não há de um lado o mundo e, de outro, o homem que atravessa. Além de viajante, o homem é a viagem ― objeto e sujeito da travessia, em cujo processo o homem se faz.ŗ Neste universo-sertão de leitura e múltiplas interpretações, observamos que Ŗsertão está em tôda a parteŗ (GS:V, 1956, p. 10) e Ŗdentro da genteŗ (GS:V, 1956, p. 305), de modo que como afirma o crítico Flávio Chaves (1983, p. 456), Ŗfecha-se a estória, mas não a personagem.ŗ Desse modo, a obra pode conduzir o leitor às diferentes esferas de identificação apresentadas por Jauss. Entretanto, dentre os cinco níveis de identificação entre o personagem e leitor/público explicitadas por Hans Robert Jauss, em seu texto ŖNíveis de identificação entre o herói e o públicoŗ, pode-se destacar sumariamente que Riobaldo conduz o leitor a uma identificação catártica (quarta modalidade de identificação). Nesta, temos o limiar da autonomia do espectador. Ocorre um envolvimento emocional do espectador na medida em que ele assume um nível de reflexão crítica sobre o que é apresentado. A perturbação emocional gera uma libertação interior, que é a Ŗiluminação da leituraŗ. De fato, Ŗas dificuldades apresentadas [no texto] são complexas como a alma humanaŗ (BRAITH, 1988, p.104). Quem poderá apreender seu significado total? A vereda que abrimos aqui é apenas uma das muitas leituras que se apresentam diante da multiplicidade de vozes e discursos acerca da obra de Rosa. Nossa voz liga-se agora a de tantos outros estudiosos e críticos, que como nós, reconhecem: Não há ponto final nesta travessia do Grande sertão, pois ŖSertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente êle volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera; digo.ŗ (GS:V, 1956, p.252) De fato, a obra multidimensional de Rosa revela-se como um clássico e enquadra-se nas seguintes definições de Calvino: ŖUm livro que se configura como equivalente do universoŗ e uma obra que, apesar de provocar incessantemente Ŗuma nuvem de discursos críticos sobre si, [...] continuamente a repele para longeŗ. (CALVINO, 2005, p.12-13) Portanto, nem a teoria e nem as críticas literárias como chave para compreensão são capazes de abarcar o significado total desta obra. Ela sempre gerará interpretações diferenciadas. ŖMeditativa dos destinos do homem, [ela] tende para o absolutoŗ e para o infinito. (JOSEF, 1988, p.196). Na travessia do leitor de Grande sertão, ocorre a transcendência vital de uma


206 personagem que extrapola os limites da própria obra. Deveras, a personagem viverá sempre que houver, da parte do leitor a correspondente adesão e a mesma sede de descoberta na travessia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ÁVILA, Affonso. Grande sertão: autenticidade e invenção. In: Cartas de Aluvião: do pensar e do ser em Minas. 2. ed. Rio de Janeiro: Graphia, 2001. BRAIT, Beth. Guimarães Rosa. São Paulo: Abril Educação, 1982. CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. Trad. Adail Ubiraiara Sobral. São Paulo: Cultrix, 1949. CANDIDO, A.; ROSENFELD, A.; PRADO, Décio de A.; PAULO E. S. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1987. CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade: Estudos de Teoria e História literária. 8.ed. São Paulo. T. A. Queiroz, 2002. CANDIDO, Antonio. Tese e antítese. São Paulo: Nacional, 1964. FORSTER, E. M. Aspectos do romance. Trad. Maria Helena Martins. Porto Alegre: Globo, 1969. FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. Trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Cultrix, 1973. GERSEN, Bernardo. ŖVeredas no Grande sertão.ŗ In: COUTINHO, Eduardo F. (Org.). Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988. p. 350-359. JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994. JAUSS, Hans Robert. Por uma hermenêutica literária. Trad. Maurice Jacob. Paris: Gallimard, 1982. JAUSS, Hans Robert. Levels of Identification of Hero and Audience. In: New Literary History: Changing Views of Character. Munich: The Johns Hopkins University Press, 1974. v. 5. p. 283-317. JOZEF, Bella. ŖO Romance brasileiro e o Ibero-americano na atualidade.ŗ In: COUTINHO, Eduardo F. (Org.). Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988. p.187-197. KOTHE, Flávio René. O herói. São Paulo: Ática, 1985. LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas cidades; 34, 2000. MOUTINHO, José Geraldo Nogueira. A fonte e a forma. Rio de Janeiro: Imago, 1977. MÜLLER, Lutz. O Herói: Todos nascemos para ser heróis. Trad. Erlon José Paschoal. São Paulo: Cultrix, 1987. NUNES, Benedito. O dorso do tigre. São Paulo: 34, 2009. OLIVEIRA, Franklin de. A dança das letras: antologia crítica. Rio de Janeiro: Topbooks, 1991. OLIVEIRA, Franklin. Guimarães Rosa. In : A Literatura no Brasil. Org. Afrânio Coutinho Rio de Janeiro : J. Olympio, 1986. PROENÇA, Manuel Cavalcanti. Trilhas no grande sertão. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação do Ministério da Educação e Cultura. RAMOS, Maria Luiza. ŖAnálise estrutural de Primeiras estóriasŗ. In: COUTINHO, Eduardo F. (Org.). Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988. ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1956.


207

O (INTER)CULTURAL EM LIVROS DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS PARA ESTRANGEIROS1 Marcos dos Reis BATISTA (UFPA/FAPESPA) Orientador(a): Prof. Dr. José Carlos Chaves da CUNHA (UFPA) RESUMO: Este trabalho tem como objetivo observar, descrever e analisar os aspectos (inter)culturais em livros didáticos (LDs) de português para estrangeiros a fim de contribuir para o desenvolvimento de procedimentos didáticos-metodológicos suscetíveis de otimizar a aprendizagem da língua portuguesa. O estudo não tem a finalidade de fazer uma análise exaustiva dos aspectos (inter)culturais presentes. Foram analisados cinco livros didáticos de ensino do português para estrangeiros produzidos no Brasil. A metodologia utilizada é a análise de livros didáticos usando os parâmetros culturais propostos por Byram (1993) e reeditados por Moura (2005) e os princípios interculturais propostos por Kramsch (1993) e citados por Oliveira Santos (2004). Os dados foram analisados tanto qualitativa como quantitativamente. Com relação à análise qualitativa, os referenciais (inter)culturais foram identificados e analisados tendo por base a adequação a uma abordagem de ensino que leve em conta a formação do aprendente em uma dimensão (inter)cultural. Existem várias atividades que podem levar os alunos a desenvolverem uma competência (inter)cultural. Com relação à análise quantitativa, existe certo desequilíbrio entre os livros didáticos, enquanto uns possuem considerável frequência de atividade com enfoque cultural, outros possuem fraca frequência. Conclui-se que os elementos (inter)culturais podem enriquecer o processo de ensino-aprendizagem de uma língua estrangeira Ŕ neste caso do português do Brasil Ŕ e colaborar para que o aprendente amplie sua percepção da realidade cultural de origem e estrangeira. Quanto mais diversificadas e relevantes forem as atividades em manuais de PLE, mais instrumentos os professores e alunos poderão ter a sua disposição para desenvolver a dimensão (inter)cultural no processo de ensino-aprendizagem.

PALAVRAS-CHAVE: interculturalidade; aprendizagem de línguas; cultura.

português

língua

estrangeira;

ensino-

ZUSAMMENFASSUNG: Diese Arbeit hat zum Ziel, die (inter)kulturellen Aspekte in brasilianischen Lehrwerken des Faches Portugiesisch als Fremdsprache zu betrachten, zu beschreiben und zu analysieren, um letztlich dazu beizutragen, methodisch-didaktische Verfahren zu entwickeln, welche das Erlernen der portugiesischen Sprache verbessern. Diese Arbeit hat nicht zum Ziel, eine erschöpfende Analyse (inter)kultureller Aspekte zu bieten. Fünf Lehrwerkefür Portugiesisch als Fremdsprache, die in Brasilien erschienen sind, wurden untersucht. Methodisch stützt sich die Arbeit auf die Lehrwerkanalyse unter Verwendung der kulturellen Parameter, wie sie von Byram (1993 apud Moura, 2005) vorgeschlagen wurden, 1

Este trabalho tem apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Pará por meio de concessão de Bolsa de Mestrado (Edital 020/2008) sob título ŖA abordagem (inter)cultural em manuais para o ensino do português língua estrangeiraŗ.


208 und der (inter)kulturellen Prinzipien, wie sie von Kramsch (1993 apud Oliveira Santos, 2004) beschrieben wurden. Das Datenmaterial wurde sowohl quantitativ als auch qualitativ untersucht. In qualitativer Hinsicht wurden die interkulturellen Zusammenhänge herausgearbeitet und analysiert, wobei eine Herangehensweise an der Unterricht zugrunde gelegt wurde, die den Bildungsstand des Lerners in (inter)kultureller Perspektive berücksichtigt. Es gibt viele Aktivitäten, die bei den Lernen (inter)kulturelle Kompetenze fördern, auch wenn einige davon verbessert werden könnten. Mit Blick auf die quantitative Analyse ist ein gewisses Ungleichgewicht zwischen den Lehrwerken festzustellen. Während einige etliche kulturell ausgerichtete Aktivitäten aufweisen, sind diese in anderen kaum anzutreffen. Wir kommen zu dem Schluss, dass die (inter)kulturellen Elemente den Lernprozess einer Fremdsprache Ŕ in diesem Fall das brasilianische Portugiesisch Ŕ bereichern können und dazu beitragen, dass der Lerner sowohl für seine eingene Kultur als auch für eine fremde sensibilisiert wird. Je grösser die Vielfalt und je grösser der Raum, den derartige Übunge in Lehrwerken für Portugiesisch als Fremdsprache einnehmen, desto mehr Möglichkeiten haben Lehrer wie Lerner, die (inter) kulturelle Dimension im Lehr- und Lernprozess zu entwickeln. Die Arbeit möchte so einen Beitrag zur Diskussion um die (inter)kulturelle Bildung im Fremdsprachenunterricht liefern. SCHLAGWÖRTER: Interkultur; brasilianisch Portuguiesisch für Ausländer; Interkultur; Fremdsprachendidaktik; Kultur. INTRODUÇÃO

Este trabalho busca observar, descrever e analisar os aspectos (inter)culturais presentes em manuais de PLE a fim de sugerir procedimentos didático-metodológicos suscetíveis de otimizar a aprendizagem do português para estrangeiros e materiais referentes à cultura amazônica. Buscamos por meio de esta pesquisa responder as seguintes questões: 1) Qual(is) cultura(s) está(estão) presente(s) nas atividades dos livros didáticos (LDs) analisados de Português para estrangeiros? 2) As atividades dos LDs analisados de Português para estrangeiros (PE) exploram a cultura por meio de estereótipos? 3) De que forma os aspectos culturais porventura não abordados ou distorcidos nas atividades dos LDs analisados de PE poderiam ser incluídos? 4) É verificável nos MDs aspectos interculturais? Em caso positivo, de que maneira os aspectos interculturais são tratados nas atividades dos LDs analisados de PE? 5) De que forma os aspectos interculturais porventura não abordados ou distorcidos nas atividades dos LDs analisados de PE que poderiam ser incluídos? Este trabalho não visa o julgamento do LD de PE. Nem mesmo a indicação de um material didático (MD) ideal para este fim. Trata-se de uma pesquisa que busca verificar como o (inter)cultural é tratado nos LDs selecionados. Esta contribuição está organizada do seguinte: em primeiro plano apresentamos a Metodologia da pesquisa, depois os critérios de escolha do corpus e procedimentos de análise


209 seguidos do desenvolvimento da análise e, por fim, dissertamos sobre os resultados da análise, além da apresentação das considerações finais que retomam amplamente este trabalho. 1. METODOLOGIA Esta pesquisa tem enfoque qualitativo, uma vez que na análise dos LDs fez-se necessário interpretá-los. Ela também tem caráter quantitativo, pois durante a análise dos LDs recorremos a uma contagem numérica. Estes últimos foram interpretados ao final do procedimento de análise, retomando com isso, seu caráter qualitativo. Para a concretização deste procedemos da seguinte forma: primeiro, realizamos uma pesquisa junto às livrarias locais e virtuais em busca de LDs de PE. Segundo, definimos os critérios de escolha dos livros. Terceiro, avaliamos os materiais conforme os critérios estabelecidos. Quarto, decidimos por analisar apenas os cinco primeiros livros classificados segundo critérios definidos. Após estas quatro fases, começamos a análise de cada livro escolhido em ordem alfabética. A análise dos LDs é a metodologia empregada na pesquisa. A perspectiva utilizada é o enfoque de referenciais do inter e cultural presentes nos LDs. Com o objetivo de possibilitar uma análise mais minuciosa desses elementos ou aspectos (inter)culturais utilizamos os parâmetros de análise cultural (ver anexo 5) propostos por Byram (1993 apud MOURA, 2005) e de análise intercultural (ver anexo 7) propostos por Kramsch (1993 apud OLIVEIRA SANTOS, 2004). 2. CRITÉRIOS DE ESCOLHA DO CORPUS E PROCEDIMENTO DE ANÁLISE O corpus de análise da pesquisa é composto por LDs de PLE. Julgamos necessários ao escolher materiais para análise os seguintes critérios: 1) Ser publicado por uma editora brasileira; 2) Ser utilizado em cursos de PE na UFPA (PEC-G e Cursos Livres de Línguas Estrangeiras); 3) Ser utilizado em escolas de idiomas; 4) Ter sido publicado nos últimos 15 anos; 5) Ter sido publicado no biênio dessa pesquisa (2008/2009); 6) Ser uma publicação de ensino da língua portuguesa corrente no Brasil; 7) Ter boa disponibilidade em livrarias locais e virtuais; 8) Ser publicado para público adulto (vetado manuais para adolescentes); 9) Ser publicado para público em níveis básico e intermediário (vetado manuais de nível avançado); 10) Ser publicado para o público em geral (descartamos manuais de linguagem específica, como manuais para grupos linguísticos específicos, turismo, comércio, negócios, etc.). Os cinco LDs escolhidos para análise são Novo Avenida Brasil 1, Novo Avenida Brasil


210 21, Bem-Vindo! A Língua portuguesa no mundo da comunicação2, Muito prazer – fale o português do Brasil e Terra Brasil. São livros utilizados em muitos cursos de PLE no Brasil e no exterior. 3. DESENVOLVIMENTO DA ANÁLISE Desenvolvemos a presente pesquisa seguindo os procedimentos descritos abaixo: O primeiro bloco de filtros da proposta de Byram foi aplicado em todas as atividades do livro-texto do manual Novo Avenida Brasil. Após essa etapa passamos para o segundo bloco e assim sucessivamente. Depois concluímos a aplicação de todos os filtros dos aspectos culturais, aplicamos os filtros baseados nos princípios apresentados por Kramsch e editados por Oliveira Santos (2004) quanto aos aspectos interculturais; Após a conclusão da análise do primeiro livro-texto por meio dos filtros em ambos aspectos Ŕ inter e cultural Ŕ passamos a analisar o segundo livro-texto, dessa vez do manual Novo Avenida Brasil 2; O procedimento realizado no primeiro livro-texto [Novo Avenida Brasil 1] foi realizado também nos demais livros-texto que compõe nossa análise. Para a análise geral de cada livro-texto, apresentada no final da análise de todos os filtros considerou os aspectos (inter)culturais descritos previamente; Apresentamos a análise dos aspectos em destaque nesta pesquisa por livro-texto analisado no capítulo de análise de dados. No final de cada análise, apresentamos também uma contagem numérica de frequência a cada aspecto analisado; Após o término das análises, elaboramos as considerações finais sobre os resultados da pesquisa.

4. RESULTADOS DA ANÁLISE Com base nas análises realizadas guiadas pelas grades de avaliação em uma perspectiva (inter)cultural, consideramos que:

1)Todos os LDs analisados apresentam

enfoque cultural (atividades, texto, etc.) em suas propostas, ainda que de maneira não satisfatórias em alguns casos. Por isso, a primeira hipótese é confirmada; 2) A cultura amazônica não possui expressão de maneira que podemos considerá-la frequente no MD. A 1

O livro Novo Avenida Brasil 3 não foi escolhido para análise. Pois neste período a editora não o havia publicado. 2 O Curso PLE/PEC-G utiliza o manual Novo Avenida Brasil 1 para o primeiro nível e o manual Bem-Vindo! A Língua portuguesa no mundo da comunicação é utilizado como anexo dos exercícios e das atividades extras.


211 região é apenas citada em alguns textos/atividades dos LDs. Com isso, refutamos a segunda hipótese que afirma que os aspectos culturais da Amazônia não estão presentes nesses manuais. Eles estão presentes, mesmo que em uma frequência ilusória. Para termos uma ideia quantitativa desta situação, em um universo de 479 páginas encontradas com enfoques culturais, apenas 0,83% trataram da região. Passamos a tratar quanto às questões-problemas: Questão-problema 1: Qual(is) cultura(s) está(estão) presente(s) nas atividades dos LDs analisados de PE? Os aspectos interculturais são abordados ainda de maneira tímida nos MDs, além de haver categorias pouco ou não exploradas. Questão-problema 2: As atividades dos LDs analisados de PE exploram a cultura por meio de estereótipos? Os livros Muito Prazer e Terra Brasil não apresentaram atividades com foco em estereótipos, os demais tiveram certa parcela de exposição deste construto. Levando em conta que algumas dessas cristalizações ou generalizações de fato ocorrem e são praticadas no país, consideramos interessante que os aprendentes, por meio dos próprios livros, sejam informados de que se trata de estereotipagem, e sejam levados a tirar suas próprias conclusões a este respeito. Questão-problema 3: De que forma os aspectos culturais porventura não abordados ou distorcidos nas atividades dos LDs analisados de PE poderiam ser incluídos? Retomando a análise realizada anteriormente, podemos notar que há casos em que os comentários por nós feitos ultrapassam o Ŗencontrar categoriasŗ, indicando distorções e abrindo caminho para possíveis trabalhos que possam somar ao que já foi produzido no manual. Apresentamos a seguir alguns comentários a respeito de aspectos que poderiam ser aprimorados. Algumas informações podem estar ou vir a se tornarem desatualizadas. São aquelas referentes ao sistema financeiro, à situação política contemporânea, a determinadas informações geográficas etc. Verificamos aspectos que, apesar de terem sido citados nos livros e comentados em nossa análise, são apresentados de forma descontextualizada como os ritos de passagem, as profissões emergentes no Brasil e regras sociais etc. Tal situação confirma o que já foi exposto por Oliveira Santos (2004, p. 177): os materiais didáticos para o ensino de LE/L2, de maneira geral, não


212 incentivam as relações interculturais, uma vez que os conteúdos culturais veiculados quase sempre representam aspectos estanques da cultura da língua-alvo, expostos através de amostras descontextualizadas, que servem apenas para Řpraticarř os aspectos formais da língua.

Para que se possa considerar proveitoso atividades (inter)culturais

por parte do

aprendente, é fator fundamental que os aspectos da cultura da língua-alvo abordados estejam inseridos em situações que lhes permitam fazer inferências sobre eles. Outro ponto a ser destacado é o fato de verificarmos aspectos que podem provocar questionamentos por parte dos usuários do LD e levá-los a situações de constrangimento. É importante lembrar que o aluno estrangeiro de Português tem Ŕ em muitos casos Ŕ a urgente necessidade de interagir adequadamente com nativos, sobretudo quando o país estranho se tornou sua morada. Por outro lado, é Ŗutópicoŗ esperarmos que o LD Ŕ ou até mesmo a ação docente Ŕ isente o aprendente de equívocos. O maior responsável pela inserção do aluno em uma nova língua-cultura é ele mesmo. Algumas características do português utilizado no Brasil, intimamente relacionadas à cultura brasileira, como uso de gestos, expressão facial, entonação, não são tratadas ou mencionadas. É certo que muitas delas não constituem algo facilmente representável em materiais impressos; necessitariam de uma exploração mais Ŗrealŗ na prática diária ou por meio do uso de gêneros (entrevistas, contos, etc.) e suportes (vídeos, revistas, etc.). Questão-problema 4: Os manuais apresentam aspectos interculturais? Em caso positivo, de que maneira eles são tratados nas atividades dos LDs analisados de PE? Os aspectos interculturais aparecem nos LDs. Ainda de maneira elementar, estes aspectos são geralmente apresentados por meio do que chamamos de pontes entre-culturas, ou seja, por meio de textos que evidenciam características da cultura brasileira, os LDs solicitam ao aprendente que apresente a sua cultura traçando um paralelo entre elas [a estrangeira e da língua materna]. Poderia ser interessante um número maior de atividades que expusesse o aluno diante da língua-cultura-alvo e é desejável que propostas de interação em torno do que pode ser Ŗdiferenteŗ da língua e da cultura do aluno sejam trabalhadas no processo de ensinoaprendizagem, além de trabalhos de investigação que o colocasse diante de diferentes faces da cultura da língua-alvo para entender o modo de vida dos falantes do idioma que está sendo estudado. Questão-problema 5: De que forma os aspectos interculturais porventura não abordados ou distorcidos nas atividades dos LDs analisados de PE poderiam ser incluídos no processo de ensino-aprendizagem?


213 Conforme os princípios de uma educação linguageira que se pretende intercultural, ambas as culturas [de partida e de chegada] devem ser consideradas no processo de EALE. O objetivo central deste é a apropriação de outra língua-cultura. Mas o aprendente traz suas características de falante estrangeiro, ou seja, ele não é um ser vazio, traz consigo suas experiências e conhecimento. Valorizar sua cultura e construir o saber diante da língua-cultura estrangeira é um dos fundamentos da interculturalidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta última parte apresentamos as considerações finais desta investigação a seguir: Concluímos que os elementos (inter)culturais podem enriquecer o processo de ensinoaprendizagem de uma língua estrangeira e colaboram para que o aprendente amplie sua percepção da realidade cultural de origem e estrangeira. Quanto mais diversificada e relevante forem as atividades em manuais de PLE, mais instrumentos os professores e alunos poderão ter disponíveis para desenvolver a construção de uma dimensão (inter)cultural. Outro aspecto relevante que não podemos deixar de tratar é da importância que o professor tem neste âmbito intercultural. O docente sensibilizado com questões linguísticolinguageiro-cultural tende a colaborar consubstancialmente com a inserção do aprendente na língua-cultura estrangeira, evitando-o de desenvolver uma visão pré-concebida da cultura estrangeira. Esta pesquisa não tem o propósito de esgotar o assunto e as pesquisas sobre a presença e a relevância de elementos (inter)culturais em manuais de PLE. Ressaltamos a importância e a necessidade de outras investigações sobre o tema para que possam trazer mais contribuições e elucidações para os estudos no campo do Ensino-Aprendizagem de Línguas. Outros trabalhos, por exemplo, que utilizem outros critérios, outros parâmetros de análise e investigações que analisem outros materiais didáticos. REFERÊNCIAS ALMEIDA, M. A. de; DELLřISOLA, R. L. P. Terra Brasil – curso de língua e cultura. Belo BROWN, H. D. Teaching by principles: an interactive approach to language pedagogy. Nova Jersey: Prentice Hall, 2001. BROWN, H. D. Principles of language learning and teaching. Nova Jersey: Prentice Hall, 1994. Horizonte: Editora UFMG, 2008. BYRAM, M.; FLEMING, M. Tradução de José Ramón Parrando e Maureen Dolan. Perspectivas Interculturales en el Aprendizaje de Idiomas. Madrid: Edinumen, 2001. BYRAM, Michael. Teaching culture and language: towards an integrated model. In:


214 Mediating Languages and cultures. BUTTJES, D.; BYRAM, M. (Orgs.). Philadelphia: Multilingual Matters LTD, 1999. KRAMSCH, C. The cultural discourse of foreign language textbooks. In: SINGERMAN, A. (Ed.). Toward a new integration of language and culture.Middlebury, VT: Northeast Conference on the Teaching of Foreign Languages, 1988. p. 63-88. KRAMSCH, C. Context and culture in language teaching. Oxford: Oxford University Press, 1993. KRAMSH, C. Language and Culture. Oxford: Oxford University Press, 1998. LIMA, E. E. O. et all. Novo Avenida Brasil 1 – livro do aluno. São Paulo: Editora E.P.U., 2008. LIMA, E. E. O. et all. Novo Avenida Brasil 2 – livro do aluno. São Paulo: Editora E.P.U., 2009. MOURA, R. P. de. O lugar da cultura em livros didáticos de português como segunda língua. Dissertação (Mestrado em Lingüística Aplicada) Ŕ Universidade de Brasília, Brasília, 2005. OLIVEIRA SANTOS, E. M. Abordagem comunicativa intercultural (ACIN): uma proposta para ensinar e aprender língua no diálogo de culturas. Tese (Doutorado em Lingüística Aplicada) Ŕ Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, SP, 2004. PONCE, M. H.; BURIM, S. A.; FLORISSI, S. BEM-VINDO! A Língua portuguesa no mundo da comunicação – livro do aluno. São Paulo: SBS Editora, 2004. PONCE, M. H.; BURIM, S. A.; FLORISSI, S. BEM-VINDO! A Língua portuguesa no mundo da comunicação – livro do professor. São Paulo: SBS Editora, 2004. RAMOS, V. L.; FERNANDES, G. R. R.; FERREIRA, T. de L. S. B. Muito prazer – fale o português do Brasil. São Paulo: DISAL Editora, 2008.


215 ANEXOS Anexo 1 – Oferta de manuais de PE MANUAL 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14.

EDITORA

Português Via Brasil Diálogo Brasil Falando... Lendo... Escrevendo... Português BEM-VINDO – a língua portuguesa no mundo da comunicação Tudo bem! Aprendendo Português do Brasil Fala Brasil Passagens Sempre amigos Muito Prazer – fale o português do Brasil Terra Brasil – curso de língua e cultura Português para falantes de árabe Novo Avenida Brasil Panorama Brasil

EPU EPU EPU SBS SBS Pontes Editores Pontes Editores Pontes Editores Pontes Editores DISAL Editora da UFMG Almádena Editora EPU Galvão

Anexo 2 – Classificação geral dos manuais avaliados MANUAL 1. 2.

3. 4.

NÚMERO DE CRITÉRIOS PREENCHIDOS 10 08

Novo Avenida Brasil BEM-VINDO – a língua portuguesa no mundo da comunicação Muito Prazer – fale o português do Brasil Terra Brasil – curso de língua e cultura Aprendendo Português do Brasil Fala Brasil Passagens Falando... Lendo... Escrevendo... Português Sempre amigos Diálogo Brasil Português Via Brasil Tudo bem! Português para falantes de árabe Panorama Brasil

06 05

Vetados por serem de níveis intermediário e avançado e para grupos linguísticos específicos

Anexo 3 – LDs selecionados para análise LIVRO DIDÁTICO (LD)

EDITORA

1. Bem-VINDO – a língua portuguesa no mundo da comunicação 2. Muito Prazer – fale o português do Brasil 3. Novo Avenida Brasil 1

SBS

4. Novo Avenida Brasil 2

EPU

5. Terra Brasil – curso de língua e cultura

Editora da UFMG

DISAL EPU

MATERIAL DIDÁTICO A SER ANALISADO Livro do aluno Volume único Livro do aluno 1 (livro-texto + livro de exercícios) Livro do aluno 2 (livro-texto + livro de exercícios) Volume único


216

Anexo 4 – análise cultural: seus aspectos e suas características ASPECTOS Identidade social e grupos sociais

Interação social

Crença e comportamento

Instituições políticas e sociais Socialização e ciclo de vida História nacional

Geografia nacional

Estereótipos nacional

e

identidade

CARACTERÍSTICAS Esta categoria refere-se a classes sociais, identidade regional e minorias étnicas e foi classificada, conforme Moura (2005), em quatro subitens, que são: problemas sociais, classes sociais, identidade regional e minorias étnicas. Esta categoria se refere aos diferentes níveis de formalidade empregados nas diversas situações cotidianas. Tendo como filtros os níveis de linguagem, as variações linguísticas diversas e as interações em geral. Esta categoria relaciona-se às crenças morais e religiosas, bem como a rotinas diárias. Ela está dividida em quatro subitens, que são: crenças morais, crenças religiosas, rotinas diárias e comportamento. Esta categoria diz respeito a informações sobre instituições federais, serviço social, saúde, justiça, ordem e governos locais. Esta categoria tem como filtros de análise os seguintes tópicos: família, escola, trabalho e ritos de passagem. Esta categoria relaciona-se a eventos históricos e contemporâneos vistos como marcos da identidade nacional. Ela está subdividida em: eventos históricos, política e manifestações populares. Esta categoria se refere a informações sobre fatores geográficos vistos como significantes pelos membros de determinada comunidade. Possui cinco subitens, que são: turismo, localidades, clima, diversidade geográfica e economia. Esta categoria trata do que é “típico” e de símbolos de estereótipos nacionais. Seus subitens são: estereótipos, culinária, folclore, vestuário, expressão artística, esporte e lazer, trânsito e outras informações, estando nesta última alguns aspectos gerais, mais simples, porém não menos importantes.

Anexo 5 – análise cultural: seus aspectos e filtros ASPECTOS Identidade social e grupos sociais Interação social Crença e comportamento Instituições políticas e sociais Socialização e ciclo de vida História nacional Geografia nacional Estereótipos e identidade nacional

FILTROS Problemas sociais; Classes sociais; Identidade regional Minorias étnicas Níveis de linguagem; Variações linguísticas diversas; Interação em geral Crenças morais; Crenças religiosas; Rotinas diárias; Comportamento em geral Instituições políticas; Instituições privadas; Saúde; Justiça; Ordem Família; Escola; Trabalho; Ritos de passagem Eventos históricos; Política; Manifestação popular Turismo; Localidades; Clima; Diversidade geográfica; Economia Estereótipos; Culinária; Folclore; Vestuário; Expressão artística; Esporte e lazer; Trânsito; Outras informações


217 Anexo 6 – análise intercultural: seus princípios e suas características PRINCÍPIOS Estabelecimento de uma interculturalidade’

‘esfera

de

Ensino da cultura como um processo interpessoal

Ensino da cultura como diferença

Possibilidade de no processo de aprendizagem intercultural se considerar as fronteiras disciplinares

CARACTERÍSTICAS Este princípio pressupõe o fato que uma relação entre as formas linguísticas e a organização social não é dada a priori, mas deve ser construída (KRAMSCH, 1993, apud OLIVEIRA SANTOS, 2004). Este princípio pressupõe que os significados emergem por meio da interação social, do contato social entre os integrantes do processo de aprendizagem. Torna-se necessário substituir a apresentação/prescrição de aspectos culturais e comportamentos por um processo que implica em um entendimento da estrangeiridade (IDEM). Este princípio pressupõe a necessidade de fazer alusão aos movimentos de valorização das diferenças e dos questionamentos quanto às identidades nacionais. Olhar a diferença não como problema, mas como um mosaico de aspectos positivos para a aprendizagem (IDEM). “Este princípio pressupõe a necessidade de incentivar a ampliação do campo de referência de professores de línguas para leituras em outras áreas que possam colaborar com a prática docente, como a literatura, a sociolinguística e a etnografia, por exemplo” (IDEM).

Anexo 7 – análise intercultural: seus princípios e filtros PRINCÍPIOS Estabelecimento de uma interculturalidade’

‘esfera

de

Ensino da cultura como um processo interpessoal

Ensino da cultura como diferença

Possibilidade de no processo de aprendizagem intercultural se considerar as fronteiras disciplinares

Outras informações

FILTROS Trabalho de desconstrução do estereótipo Diferenças entre os hábitos ou aspectos da cultura do aprendente e da cultura da língua-alvo Propostas de atividades quanto aos hábitos diários entre as diferentes línguas Atividades de reflexão quanto à cultura do aprendente Atividades de reflexão quanto ao conhecimento que o aprendente tem da cultura estrangeira Construção de possíveis modelos culturais da cultura de chegada [a estrangeira] como da cultura de partida [a do aprendente] Desconstrução de estereótipos de ambas as culturas [chegada e partida] Apresentação das diferenças sem discurso de valor Apresentação da formação histórica e geográfica que molda a atual sociedade da língua-alvo Atividade que incentive o aprendente a traçar paralelos entre os países onde a língua-alvo é utilizada Apresentação dos papéis desenvolvidos por cada gênero em cada cultura estudada Apresentação da cultura por meio de pensadores e escritores Apresentação da cultura por meio de pensadores escritores da língua-alvo que possam ter alguma influência na cultura de partida Informações sobre as disciplinas de estudos dos aprendentes diante dos aspectos da cultura de chegada


218 O LIVRO DIDÁTICO COMO FOMENTADOR DA AUTONOMIA NA APRENDIZAGEM DA LÍNGUA INGLESA Maria Amélia Carvalho FONSECA (UFPA) Orientador(a): Prof.ª Dr.ª Walkyria Magno e SILVA (UFPA) RESUMO: Ainda que nos últimos anos tenha havido uma proliferação de materiais em língua estrangeira à disposição do aluno, o livro didático (LD) permanece como ferramenta fundamental nas salas de aula de cursos livres de inglês. Assim, pretendemos com nossa pesquisa de mestrado, que se encontra em andamento, analisar um LD e desenvolver instrumentos práticos para utilizá-lo de forma a fomentar a autonomia na aprendizagem do aluno. Na fundamentação teórica, pesquisamos sobre a utilização do livro no ensino de língua estrangeira, conceitos de autonomia e características de atividades que podem fomentar a autonomia. Posteriormente, buscamos identificar as atividades de um LD de ensino de inglês como língua estrangeira que poderiam ou não promover a autonomia e aquelas que poderiam ser adaptadas e/ou substituídas para esse fim. Passamos, então, a elaboração e/ou adaptação de algumas atividades objetivando fomentar a autonomia e as aplicamos em sala de aula. Dentre os instrumentos de coleta de dados usamos a observação, com utilização de notas de campo, listas de verificação das atividades do LD e questionários. PALAVRAS-CHAVE: aprendizagem de inglês como LE, livro didático, autonomia. ABSTRACT: Despite having a great variety of foreign language materials available to students lately, the textbook remains as an important tool in English language courses. Thus, with our ongoing research, we intend to analyze a textbook and try to develop practical instruments to be used in a way that they are able to foster students´ learning autonomy. In the literature review we researched about the use of the textbook in foreign language teaching, autonomy concepts and characteristics of activities that could foster autonomy. After that, we tried to identify the activities in an English textbook that could foster students´ autonomy or not and those that could be adapted or substituted in order to do so. Next, we prepared or adapted some activities aiming at fostering autonomy and the students did them in class. To collect data we used observation with teacher´s notes, activities checklists and questionnaires. KEY-WORDS: learning English as a foreign language, textbook, autonomy.

1. INTRODUÇÃO

Pode-se observar que o perfil e as necessidades do aluno de língua estrangeira têm mudado consideravelmente no decorrer dos últimos anos. Uma das razões dessa mudança é o avanço tecnológico em um espaço curto de tempo. Hoje, o aluno possui uma maior variedade de informações das quais pode lançar mão para efetivar a sua aprendizagem levando-o a tornar-se mais exigente quanto ao material utilizado em sala de aula, portanto, o material de ensino não pode ser o mesmo de alguns anos atrás. Embora facilmente se perceba uma considerável evolução nos materiais didáticos, o


219 principal componente utilizado em cursos livres de inglês continua sendo o livro didático (LD). Ao examinar livros didáticos voltados para o ensino de inglês que se encontram hoje no mercado, pode-se perceber que o LD realmente evoluiu. Atualmente o LD não vem acompanhado apenas pelo livro de exercícios como único auxiliar para o aluno, mas oferece também vários outros recursos que favorecem tanto os alunos como os professores, por exemplo: CDs de áudio, DVDs, sites na internet, softwares para testes, livros de atividades extras etc. Alguns materiais apresentam tantos recursos que se deve decidir qual deles será utilizado para atender as necessidades dos alunos. Mesmo assim, ainda hoje o LD é considerado como um componente fundamental dentre os materiais didáticos, pois é ele o principal ponto de contato com o aluno. Esse material didático pode ser considerado como uma grande vantagem da instituição que o adota e serve como fator motivador e influenciador na escolha do aluno por uma determinada instituição de ensino. O LD se torna, então, um elo entre o aluno, o professor e a instituição de ensino. A problemática que desencadeou esta pesquisa foi gerada ao observar, durante a nossa carreira docente, como a maioria dos alunos adultos, com os quais tivemos a oportunidade de nos relacionar, cultiva uma enorme dependência do professor e, consequentemente, demonstra grande passividade em relação à sua aprendizagem. Assim, percebemos a importância de desenvolver um trabalho cuja diretriz propõe abordagens de ensino que podem estimular comportamentos mais autônomos no processo de aprendizagem, especificamente em alunos adultos, a partir da utilização do LD. Deste modo, decidimos realizar uma pesquisa tendo como objetivo analisar um LD em uso no curso para adultos de um curso livre de inglês, observando as atividades propostas de modo a identificar aquelas que poderão fomentar ou não a autonomia na aprendizagem do aluno, bem como oferecer alternativas que contribuam para que o aluno possa atingir uma aprendizagem mais autônoma. 2. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS Para o nosso embasamento teórico pesquisamos sobre a análise e a utilização do LD no ensino de inglês, sobre conceitos de autonomia abordando aquilo que se relaciona ao aluno autônomo, o papel do professor na autonomização do aluno e sobre atividades que podem promover a autonomia. Pesquisamos, então, vários teóricos como Skierso (1991), Cotteral (1992), Dickinson (1994), Cunningsworth (1995), Little (1999), Cloud et al (2000), Scharle e Szabó (2000), Wallace (2000), Benson (2001), Harmer (2001, 2007), Nunan (2001), Richards


220 (2002), Magno e Silva (2004, 2006, 2008, 2009), Brown (2007), dentre outros.

2.1 O LIVRO DIDÁTICO

Não temos dúvidas de que o material didático desempenha um papel muito importante no processo de ensino e aprendizagem. Para Brown (2007, 188) ŖA forma mais óbvia e mais comum de material de apoio para o ensino de línguas provém de livros didáticosŗ1. O LD é o tipo de material de ensino que exerce grande influência em professores e alunos ao longo de um curso de inglês, pois frequentemente se constitui na espinha dorsal desse curso. Scrivener (1998) recomenda como ponto de partida para a utilização do livro verificar se ele é usável ou não uma vez que os alunos esperam que o professor o utilize. No entanto, existem controvérsias entre os teóricos sobre a utilidade do LD. Dentre as inúmeras vantagens em se utilizar livros didáticos, Cunningsworth (1995), Graves (2000), Harmer (2001) e Richards (2002) mencionam algumas delas, quais sejam: são visualmente atraentes; fornecem um programa de ensino; contribuem para a consistência do programa e a padronização do ensino; oferecem modelos e subsídios eficazes da língua; fornecem atividades para a prática comunicativa e a interação; servem como estímulo e ideias para atividades; podem servir como recurso para a aprendizagem autônoma e como base para avaliação; oferecem apoio ao professor que economiza tempo ao utilizá-lo; servem para treinar professores; servem de referência para os alunos, os alunos se sentem mais seguros e podem perceber o seu progresso; são eficientes. Por outro lado, os mesmos autores referem-se a algumas limitações impostas pelos livros didáticos, como por exemplo: pode não haver adequação do conteúdo com o nível e a necessidade do aluno; pode faltar equilíbrio das atividades; pode haver imposição de conteúdos e estilos de aprendizagem; pode apresentar tópicos inadequados culturalmente; pode conter um foco maior em um ou mais aspectos da língua; tornam-se desatualizados; podem apresentar cronograma não realista e haver inflexibilidade do formato das unidades; pode não ser utilizado adequadamente pelo professor; pode conter linguagem não autêntica; e, muitas vezes o preço não é acessível ao aluno. Autores como Skierso (1991) in CELCE-MURCIA (1991), Wallace (1991, 2000), Cunningsworth (1995), Cloud at al (2000), Nunan (2001), Harmer (2007) e Brown (2007) 1

ŖThe most obvious and most common form of material support for language instruction comes through textbooksŗ (BROWN 2007, p.188).


221 recomendam o estabelecimento de critérios para serem usados ao se avaliar um LD. Entendemos que estabelecer critérios objetivando avaliar livros didáticos traz múltiplos benefícios, não somente para alunos e professores como também para a instituição de ensino na qual o livro é utilizado. Assim, Wallace (2000) aponta a importância que a finalidade exerce no processo de avaliação do LD e recomenda que antes de iniciar a avaliação deve-se ter uma ideia das qualidades que fazem um bom livro ou um livro ruim. Partindo dessa ideia, as qualidades podem tornar-se critérios. Segundo Scrivener (1998), os professores não precisam ser Ŗescravosŗ do LD, pois podem adaptar e variar as atividades se desejarem. Os professores devem utilizar o LD como um recurso e não como a essência do curso e não devem ter no livro um substituto de sua própria prática em sala de aula. De acordo com Nunan (2001), os materiais usados devem fomentar a aprendizagem independente fazendo com que os alunos sejam mais conscientes do processo de aprendizagem. Os materiais devem ser sugestivos em vez de definitivos. Devem refletir o mundo exterior e o contexto sociocultural no qual será usado. Para desenvolver uma relação especial com o processo e o conteúdo da aprendizagem, o professor, o aluno e o material utilizado estão intimamente relacionados.

2.2 AUTONOMIA Segundo Little (1999, p. 45) Ŗem sua essência, autonomia é uma capacidade - de distanciamento, reflexão crítica, tomada de decisões e ações independentes. Pressupõe, mas também requer, o desenvolvimento de uma relação especial com o processo e o conteúdo da aprendizagemŗ. Ao se referir ao ensino/aprendizagem de línguas, Magno e Silva (2008, p.294) reconhece que Ŗa autonomia do aprendente é uma capacidade a ser incentivada nos diferentes contextos de aprendizagem de língua estrangeiraŗ. A autora enfatiza que Ŗembora não se possa ensinar a alguém a ser autônomo, se pode criar condições para que os aprendentes aprendam a sê-loŗ. Partilhando da visão de Holec (1981, p.3) quando declara que autonomia não é Ŗalgo inato, mas pode ser adquirida tanto naturalmente quanto por meio de aprendizado formal, de modo sistemático, deliberadoŗ, Magno e Silva (2008) destaca a importância do professor no processo de autonomização do aprendente. Ao deixar de lado alguns de seus papéis tradicionais e assumir outros papéis, o professor provoca, então, novos


222 comportamentos em seus alunos. Assim, as iniciativas adotadas pelo professor, certamente irão auxiliar o aluno a trilhar o caminho da autonomia. No entanto, o empenho do professor para que o processo ensino/aprendizagem se realize de forma eficaz não garante que isso aconteça sem o real envolvimento do aprendente. Harmer (2001, p.335) observa que: ŖPor melhor que seja um professor, os alunos nunca aprenderão uma língua Ŕ ou qualquer outra coisa Ŕ a não ser que eles se proponham a aprender tanto fora como durante as aulas. Isto porque o estudo de uma língua é muito complexo e variado para haver tempo suficiente para os alunos aprenderem tudo que necessitam em uma sala de aulaŗ1.

Ao se referirem à responsabilidade do aprendente em relação à sua aprendizagem, Scharle e Szabó (2000, p. 3) apontam algumas características para reconhecer aprendentes responsáveis: Ŗ[…] são aqueles que aceitam a ideia de que seus esforços são cruciais para o progresso do aprendizado e se comportam como tal; [...] desejam cooperar com o professor e com os demais membros do grupo para o benefício de todos e [...] podem até apresentar sugestões de como melhorar uma atividade; e, [...] conscientemente monitoram o seu próprio progresso e se esforçam para utilizar oportunidades disponíveis visando o seu benefício, inclusive atividades de sala de aula e para serem feitas em casa2.

Scharle e Szabó (2000) entendem responsabilidade como estar no controle de algo e assumir as consequências de seus atos e acrescentam que o sucesso da aprendizagem depende tanto do professor como do aluno adotando uma atitude responsável. As autoras ressaltam que responsabilidade e autonomia requerem intenso envolvimento e estão mutuamente relacionadas. Scharle e Szabó (2000), então, mencionam três fases nas quais ocorrem o processo de desenvolvimento da responsabilidade e da autonomização do aprendente: a primeira é a da conscientização, na qual o aprendente torna-se consciente da importância de sua contribuição para o seu aprendizado; na segunda deverá acontecer uma mudança de atitude, quando o aprendente adotará uma nova postura tornando-se responsável pelo seu aprendizado; e, a terceira é a fase de transferência de responsabilidades, quando o aprendente

1

However good a teacher may be, students will never learn a language – or anything else - unless they aim to learn outside as well as during class time. This is because language is too complex and varied for there to be enough time for students to learn all they need to in a classroom (HARMER, 2001, p.335). 2 [...] as learners who accept the Idea that their own efforts are crucial to progress in learning, and behave accordingly; [...] they are willing to cooperate with the teacher and others in the learning group for everyone‘s benefit,[…] they may even come up with suggestions on how to improve an activity; […] they consciously monitor their own progress, and make an effort to use available opportunities to their benefit, including classroom activities and homework (SCHARLE; SZABÓ, 2000, p. 3).


223 assumirá alguns papéis que até então eram somente realizados pelo professor e irá apreciar a liberdade que acompanha o crescimento de sua responsabilidade. Reconhecendo as fases mencionadas por Scharle e Szabó (2000), Magno e Silva (2004, p. 101-102) refere que Ŗprofessores e alunos podem ultrapassar juntos as três fases em direção à obtenção da autonomia [...] criando assim múltiplas oportunidades de aprendizado. A este processo, que pode ser implementado em cada aula, sugere-se o nome de saber de crescimento exponencialŗ. Não se pode inferir que professores e alunos possuam habilidades fomentadoras de autonomia naturalmente, no entanto entende-se que ambos possam ser auxiliados para que isso seja possível. Assim, professores e alunos estarão caminhando juntos para alcançar a conscientização que nada mais é do que o reconhecimento da autonomia como um componente importante no aprendizado; a mudança de atitude que irá ocasionar o desenvolvimento das habilidades e a busca por estratégias mais eficientes de aprendizagem; e, a transferência de responsabilidades que irá esclarecer os diferentes papéis para se atingir a autonomia deslocando paulatinamente a responsabilidade da aprendizagem para o aluno. Magno e Silva (2009, p. 57), então, declara que ŖUm processo de ensino e aprendizagem que seja bem sucedido deve levar o aprendente a poder prosseguir autonomamente no seu aprendizado, uma vez que ninguém pode perpetuar seu papel como aluno. Daí se depreende que a autonomia na aprendizagem é um objetivo desejável para todosŗ.

Deste modo, consideramos de grande relevância a responsabilidade do aluno para que alcance a sua autonomia e o papel do professor na autonomização do aluno.

2.3 ATIVIDADES Segundo Brown (2007, p. 180) o termo atividade Ŗ[...] pode referir-se a virtualmente qualquer coisa que os aprendentes fazem em sala de aula. Mais especificamente, quando nos referimos a uma atividade de sala de aula, geralmente nos referimos a um conjunto razoavelmente unificado de comportamentos dos alunos, limitado no tempo, precedido por alguma direção do professor, com um objetivo particular. Atividades incluem representações [role-plays] 1, repetições [drills], jogos, revisões feitas por colegas [peer editing], exercícios de preenchimento de lacunas e muito maisŗ2 1

Representações [Role-plays]: cada membro de um grupo desempenha um papel diferente e com um objetivo específico durante a atividade. 2 […] may refer to virtually anything that learners do in the classroom. More specifically, when we refer to a


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Comumente, no ensino de línguas as atividades utilizadas em sala de aula atendem a uma ou mais habilidades que se deseja desenvolver. Entre elas, podemos citar: habilidade de produção oral, de compreensão oral, de produção escrita e de compreensão escrita. Deve-se, porém, enfatizar que dois fatores importantes irão determinar qual ou quais habilidades serão privilegiadas, ou mesmo se o ensino será baseado na integração equilibrada das habilidades mencionadas, quais sejam, o contexto no qual o ensino de uma língua se realiza e o objetivo que se deseja alcançar. Assim, as atividades deverão ser utilizadas de forma a atingir os objetivos propostos. Ao referir-se às três fases nas quais ocorrem o processo de desenvolvimento da responsabilidade e da autonomização do aprendente mencionadas anteriormente neste trabalho, Scharle e Szabó (2000) identificam os tipos de atividades que devem ser utilizadas em cada uma dessas fases. Assim, na fase da conscientização as atividades são mais estruturadas e mais controladas pelo professor, pois nesse estágio o aprendente ainda não está ciente da sua responsabilidade e precisa de uma maior orientação do professor. As atividades objetivam levar o aluno a perceber novas formas de pensar sobre o seu aprendizado. Na fase da mudança de atitude muitas atividades são menos estruturadas e devem permitir maior iniciativa por parte dos alunos. Essas atividades baseiam-se no fato de que os alunos já possuem um maior grau de responsabilidade e estão cientes das habilidades ou atitudes que eles irão praticar. Caso o professor perceba que os alunos ainda não possuem responsabilidade e conscientização suficientes, deverá trabalhar mais a fase anterior. As atividades dessa fase podem ser usadas várias vezes. As atividades da fase da transferência de responsabilidades são mais livremente estruturadas, e os alunos têm mais liberdade ao realizá-las e decidir sobre elas. O grau de envolvimento irá depender da capacidade dos alunos e da opinião do professor em relação ao ensino. Essa transferência de responsabilidades pode levar o professor a modificar a sua percepção e a sua prática em sala de aula, no entanto o professor deve considerar quais papéis ou atividades o fazem sentir confiante ao transferi-los para os alunos.

classroom activity, we usually refer to a reasonably unified set of student behaviors, limited in time, preceded by some direction from the teacher, with a particular objective. Activities include role plays, drills, games, peerediting, small-group information-gap exercises, and much more (BROWN, 2007, p.180).


225 3. A METODOLOGIA

A metodologia proposta por esta pesquisa é calcada nos pressupostos da pesquisa-ação. Wallace (2000, p. 15 Ŕ 16) entende que pesquisa-ação Ŗquase sempre surge de um problema ou questão específicos provenientes de nossa prática profissional. É, portanto, muito focalizada no problema em sua abordagem e muito prática em seus resultadosŗ 1. O autor acrescenta que pesquisa-ação Ŗenvolve a coleta e a análise de dados relacionados a algum aspecto de nossa prática profissional. Isto é feito para que possamos refletir sobre aquilo que descobrimos e aplicá-lo em nossa ação profissionalŗ 2 (p.16). Optamos por esse tipo de pesquisa por considerá-lo o mais apropriado para a investigação realizada que foi conduzida em sala de aula tendo em vista a melhoria de uma situação atual e teve como sujeitos da pesquisa os próprios alunos de uma turma do curso de inglês para adultos. O contexto da investigação é um curso livre de línguas. Como instrumentos de coleta de dados usamos a observação, com utilização de notas de campo, listas de verificação das atividades do LD e questionários.

4. PERCORRENDO O CAMINHO DOS DADOS

Para que fosse possível traçar um perfil mais realista dos alunos e com o intuito de obter informações que proporcionassem um maior conhecimento sobre os sujeitos da pesquisa e sobre a relação deles com o processo de aprendizagem, um questionário foi aplicado em sala de aula e respondido pelos alunos. Deste modo, observamos que o aluno pesquisado traz consigo uma carga grande de frustração quanto ao seu aprendizado da língua alvo, pois iniciaram o estudo da língua em outras ocasiões, não concluíram o curso e consequentemente não alcançaram o aprendizado no nível almejado, por isso iniciaram mais uma vez um curso de inglês. No entanto, o aluno espera que fatores externos o motivem, isto é, espera ser motivado para aprender e com isso dar continuidade ao curso em vez de motivar-se. A seguir, recorrendo à teoria proposta por Scharle e Szabó (2000) fizemos um estudo

1

…nearly always arises from some specific problem or issue arising out of our professional practice. It is therefore very problem-focused in its approach and very practical in its intended outcomes (Wallace, 2000, p. 15). 2 […] involves the collection and analysis of data related to some aspect of our professional practice. This is done so that we can reflect on what we have discovered and apply to it to our professional action (WALLACE, 2000, p. 16).


226 para nos auxiliar no reconhecimento de atividades que poderiam contribuir para fomentar a autonomia do aprendente no decorrer das três fases. Esse estudo nos permitiu elaborar algumas perguntas norteadoras para alcançarmos esse fim e nos levou, então, a investigar quais atividades apresentadas pelo LD e descritas pelo manual do professor (MP) poderiam ser reconhecidas como atividades capazes de fomentar a autonomia em quaisquer das três fases. A partir desse estudo, elaboramos algumas atividades com o intuito de promover a autonomia do aluno baseadas em adaptações ou substituições das atividades do LD utilizado pelos alunos. Buscamos instituir pelo menos uma atividade com essa característica que atenda a cada habilidade linguística trabalhada. Assim, as atividades foram realizadas em sala de aula. Uma ficha de auto-avaliação (checklist) foi preparada com o objetivo de levar o aluno a refletir e expressar a suas impressões sobre essas atividades e utilizada após cada uma dessas atividades. O caderno de notas foi utilizado pelo professor-pesquisador durante e após o término da aplicação dos instrumentos usados para o reconhecimento dos alunos e objetivou também registrar aspectos importantes referentes às atividades realizadas em sala de aula. No término do semestre um questionário final será aplicado com o objetivo de avaliar se as atividades realizadas realmente contribuíram para fomentar a autonomia dos alunos e se os alunos se sentiram mais autônomos após esse estudo. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Sabemos que a ferramenta mais próxima do aluno, que ele possui de mais concreto e que está sempre disponível para uso imediato no aprendizado de línguas é o LD. Várias outras ferramentas também são utilizadas no contexto atual, no entanto, é ao LD que o aluno recorre quando sente a necessidade de revisar, reforçar ou fixar o que foi estudado em sala de aula ou até mesmo se antecipar para que possa participar mais efetivamente das aulas. O estudo feito sobre o LD nos permitiu um melhor entendimento sobre as atividades oferecidas pelo livro e a forma como são propostas pelo MP. A partir daí buscarmos opções para auxiliar o aluno a ser mais autônomo. Embora ainda não nos seja possível, neste momento, obter conclusões sobre a pesquisa, podemos assegurar que os autores consultados e os temas abordados no referencial teórico nos proporcionaram um grande embasamento para procedermos a coleta e a análise dos dados. Como a pesquisa ainda está em andamento, os dados estão sendo analisados para identificar se, na percepção do aluno aliada a observação do professor, a forma de apresentar as atividades do LD possibilita ao aluno tornar-se mais autônomo.


227 REFERÊNCIAS BENSON, Phil. Teaching and Researching Autonomy in Language Learning. Harlow, England: Longman, 2001. BROWN, H. Douglas. Teaching by Principles: An Interactive Approach to Language Pedagogy. 3 ed. New York: Longman, 2007. CLOUD, Nancy et al., Dual Language Instruction: A Handbook for Enriched Education. Boston, MA: Heinle & Heinle, 2000. COTTERALL, Sarah. Developing a course strategy for learner autonomy. In WALLACE, Michael J. Action Research for Language Teachers. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2000. P. 172 - 180 CUNNINGSWORTH, Alan. Choosing Your Coursebook. Oxford, UK: Heinemann, 1995. DICKINSON, Leslie. Learner autonomy: what, why and how? In: LEFFA, Vilson J. (Ed). Autonomy in Language Learning. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1994. P.2-12. HARMER, Jeremy. How to Teach English. New Edition. Harlow, England: Longman, 2007. _____. The Practice of English Language Teaching. 3 ed. Harlow, England: Longman, 2001. HOLEC, Henri. Autonomy and foreign language learning. Oxford: Pergamon Press, 1981. LITTLE, David. Autonomy: Definitions, Issues and Problems. Dublin: Authentik, 1999. MAGNO E SILVA, Walkyria. Livros didáticos: fomentadores ou inibidores da autonomização? In: DIAS, Reinildes; CRISTÓVÃO, Vera Lúcia Lopes (Org). O Livro Didático de Língua Estrangeira Ŕ Múltiplas Perspectivas. Campinas: Mercado das Letras, 2009. P. 57-78. _____. Autonomia no Aprendizado de LE: É Preciso um Novo Tipo de Professor? In: GIL, Glória; ABRAHÃO, Maria Helena. Educação de Professores de Línguas. Os desafios do formador. Campinas: Pontes, 2008. P. 293-301. _____. Autonomia e Saber Exponencial no Ensino e Aprendizagem de Línguas. In: VII Jornada de Estudos Lingüísticos e Literários. 2004. Caderno de Resumos. Belém: UFPA, 2004. P.101-102. NUNAN, David. The Learner-Centred Curriculum: A study in second language teaching. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2001. RICHARDS, Jack C. The role of textbooks in a language program. New Routes, p.26 - 30, DISAL. April 2002. SCHARLE, Ágota; SZABÓ, Anita. Learner Autonomy. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2000. SCRIVENER, Jim. Learning Teaching: a guidebook for English learning teachers. Oxford, UK: Macmillan Heinemann, 1998. SKIERSO, Alexandra. Textbook Selection and Evaluation. In: CELCE-MURCIA, Marianne. (editor). Teaching English as a Second or Foreign Language. 2 ed. New York: Newbury House, 1991. P. 432 - 453 WALLACE, Michael. J. Action Research for Language Teachers. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2000. _____.Training Foreign Language Teachers: A Reflective Approach. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1991.


228 O PROFESSOR E O PROCESSO MOTIVACIONAL NA APRENDIZAGEM DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS Maria Clara Vianna Sá e MATOS (UFPA) Orientador(a): Prof.ª Dr.ª Walkyria Magno e SILVA (UFPA) RESUMO: Pretende-se com este trabalho avançar na compreensão da motivação na aprendizagem de língua estrangeira (LE) e entender a respeito das atribuições de um professor motivador. Para realizá-lo, investigou-se sobre o a definição de motivação, sobre sua importância na sala de aula de (LE) e sobre o papel do professor para favorecê-la. Foram adotadas as seguintes perspectivas teóricas: a motivação é um fator crucial para que bons resultados na aprendizagem sejam alcançados (USHIODA, 1996; DÖRNYEI, 2001b; TAIPA; FITA, 2003; PINK, 2010); a motivação necessária para o estudo de LE é diferente da motivação requerida para outros tipos de aprendizagem (GARDNER, 2001); a motivação é dinâmica e perpassa por fases que envolvem sua geração, manutenção, proteção e avaliação da aprendizagem ocorrida (DÖRNYEI, 2000); o professor tem um papel importante para incentivar motivação (USHIODA,1996; BURDEN, 2000; DÖRNYEI, 2001a; TAIPA; FITA, 2003). Por meio de abordagem predominantemente qualitativa, está sendo investigado o que pensam a esse respeito os professores de inglês da Faculdade de Letras Estrangeiras Modernas (FALEM), da Universidade Federal do Pará (UFPa), sujeitos desta pesquisa. Seus pontos de vista, relatados nas narrativas que escreveram, já foram sistematizados e analisados. Em breve o mesmo será feito com os dados coletados por meio de questionários e entrevistas semiestruturadas para que se possa dar andamento ao propósito deste trabalho. PALAVRAS-CHAVES: motivação, ensino-aprendizagem, língua estrangeira. ABSTRACT: The goal of this work is to understand more about motivation in foreign language (FL) learning and the role that teachers play as to benefit it. In order to develop this work, research was done on the definition of motivation; its importance to FL teaching environment and on what could be the role for teachers as motivators. The perspectives selected to guide it were: motivation is needed for everything we do and it is crucial for learning a FL (USHIODA 1996, DÖRNYEI, 2001; TAIPA; FITA 2003, PINK, 2010); the motivation for learning a FL is different from the motivation needed for other types of study (GARDNER, 2001); motivation is dynamic and temporal and because of this it has phases that involve its generating, maintenance and protection and the evaluation of past learning situations (DÖRNYEI, 2000); the teacher has an important role as to enable motivation to benefit learning (USHIODA,1996; BURDEN, 2000; DÖRNYEI, 2001a; TAIPA; FITA, 2003). The research participants were all teachers from an undergraduate university course (FALEM / UFPa). A qualitative approach was used to register their points of view. At this moment the data collected from narratives were systemized and analyzed. Furthermore, the same will be done to the data collected from the application of a questionnaire and a semistructured interview as to fulfill the goal of this work. KEY-WORDS: Motivation, learning and teaching, foreign language. Este estudo foi motivado pelas seguintes constatações: a motivação é necessária para que o ensino e aprendizagem de LE sejam bem sucedidos (USHIODA, 2001; DÖRNYEI, 2001b; TAIPA; FITA, 2003; PINK, 2010); a motivação é dinâmica e temporal e envolve fases


229 que são energizadas por influências motivacionais distintas (DÖRNYEI, 2000) e o professor pode contribuir para incentivar a motivação positiva dos alunos (USHIODA, 1996; BURDEN, 2000; DÖRNYEI, 2001a; TAIPA; FITA, 2003). Desse modo, acredito que faz-se importante avançar na compreensão da motivação para que se saiba como lidar melhor com o construto. O objetivo geral deste trabalho é compreender melhor a importância da motivação na aprendizagem de LE e as atribuições do professor para favorecê-la. Seus objetivos específicos são verificar o que professores de LE de um curso de graduação em Letras entendem sobre motivação e como (ou se) esses professores a inserem na sala de aula. Assim, as perguntas de pesquisa são: O que os sujeitos da pesquisa compreendem da motivação na aprendizagem? Como percebem a influência do professor de LE diante do processo motivacional? Como (ou se) intervêm para alcançar a motivação pretendida? Para respondê-las se investigou a definição de motivação, seus aspectos mais relevantes e as atribuições do professor para favorecê-la. No que concerne a definição e características de motivação, percebeu-se que é um construto complexo por ser abstrato, sujeito às diferenças individuais de cada um, a comportamentos conscientes e inconscientes e à manipulação por diversas áreas de estudo (DÖRNYEI, 2001b). Se observada ao longo do tempo, seu entendimento também não se descomplica (principalmente para os professores). Foi a partir do final da década de 1990 que algumas pesquisas apontam para a motivação como um fator dinâmica e temporal, mas que também é controlável na sala de aula (USHIODA, 1996; DÖRNYEI, 2000). É essa a concepção de motivação que se adota para desenvolver este trabalho. Então, é a definição de Dörnyei (2000) a mais apropriada para norteá-lo: a motivação pode ser definida como um estado alerta cumulativo dinamicamente mutante em um indivíduo que começa, direciona, coordena, amplifica, termina e avalia os processos cognitivos e motores por meio dos quais vontades e desejos iniciais são selecionados, priorizados, operacionalizados e desempenhados (com ou sem sucesso)1 (p.7)

Sobre a importância da motivação na aprendizagem de LE, entendeu-se que isso se deve às especificidades dessa atividade: ela acontece a longo prazo, ela envolve questões relacionadas à auto-estima do aluno e a sua disposição para integrar-se a um mundo diferente do seu e para agregar novos valores e cultura (BURDEN, 2000; GARDNER, 2001). Por conta 1

Motivation can be defined as the dynamically changing culmulative arousal in a person that initiates, amplifies, terminates and evaluates the cognitive and motor processes whereby initial wishes and desires are selected, prioritized, operationalised, and ( successfully or unsuccessfully) acted out.


230 disso, justifica-se olhá-la de modo diferenciado e, sobretudo, entendê-la como um processo e não um produto (USHIODA, 1996; DÖRNYEI, 2000). Nessa perspectiva, passam a ser o centro das atenções as atitudes conscientes dos sujeitos em sala de aula para favorecer a aprendizagem e os acontecimentos associados a essa ação. A partir desse entendimento, percebe-se que a motivação na aprendizagem não ocorre isolada, pois há vários fatores motivacionais agindo para energizá-la (CAMPOS, 2010; DÖRNYEI, 2001b). O professor é mencionado como influente tanto na motivação positiva quanto na motivação negativa dos alunos e, portanto, merece destaque (BURDEN, 2000; DÖRNYEI, 2000; CAMPOS, 2010). A partir de então, verificou-se como esse ator, interessado em beneficiar a aprendizagem, pode contribuir para gerar, manter e proteger motivação. Para tanto, ao meu ver, destacam-se dois caminhos. No primeiro, defendido por Ushioda (1996), o professor deve tratar de incentivar o uso da LE. Quanto mais se usá-la, mas motivado o aluno poderá se sentir. É esse uso que também possibilitará ao aluno regular sua aprendizagem, perceber melhor seu desempenho e ajustá-lo. Segundo a autora, cabe ao professor conhecer o pensamento motivacional do aluno e fazê-lo interpretar seus sucessos e fracasso de maneira positiva. Isso também pode ajudá-lo a perceber como ele mesmo pode lidar com sua motivação intrínseca e com sua capacidade de se automotivar. No segundo caminho, defendido por Dörnyei (2001a), o professor pode contribuir para incentivar motivação por meio do ensino e aprendizagem de estratégias motivacionais, Ŗtécnicas que promovem um comportamento do indivíduo baseado no alcance de um objetivoŗ (p.28). Ele sugere estratégias para todos os momentos de seu modelo processual de motivação na aprendizagem de LE: a fase pré- acional, a fase acional e a fase pós-acional. Na fase pré-acional, antes da aprendizagem começar, o professor deve tratar das condições básicas para a geração da motivação. Estratégias motivacionais devem ser dirigidas para incentivar empatia pela LE, para que os alunos cultivem necessidades instrumentais e de integração e ao estabelecimento de objetivos viáveis. Na fase acional, durante a aprendizagem, o professor trata da manutenção e proteção da motivação. Para isso, ele pode reforçar a importância da aprendizagem, ensinar estratégias de estudo, manter a curiosidade despertada, fazer o aluno sentir-se ouvido, dar retorno adequado, estimular a autonomia do aluno e sua motivação intrínseca e favorecer um ambiente acolhedor à aprendizagem de LE. Na fase pós-acional, quando uma etapa de aprendizagem se encerra, pode ser tarefa do


231 professor encorajar a auto-avaliação positiva do aluno. Isso deve contribuir para que ele possa traçar planos futuros para a sua aprendizagem ao invés de interrompê-la por interpretar seus fracassos apenas negativamente. Para o autor, aprender a lidar com a motivação dos alunos deve ser um componente-chave do currículo dos cursos de formação de professores. Considerando-se as possibilidades sugeridas pelos dois autores para a atuação de um professor motivador (que para mim não são excludentes), passou-se a investigar o que os sujeitos da pesquisa entendem da motivação na aprendizagem de LE e como (ou se) a inserem em sua sala de aula. Até o presente momento coletou-se dados por meio do desenvolvimento de narrativas escritas pelos sujeitos da pesquisa. O tema dessas narrativas foi: Como ex-aluno e atual professor (a) de língua estrangeira, escreva uma narrativa de aprendizagem de inglês tendo como foco a motivação. Após os dados das narrativas serem sistematizados e analisados à luz da teoria selecionada, compreendeu-se que: Enquanto alunos, a maioria dos narradores chegou à sala de aula de inglês motivado intrinsecamente. Mas houve alguns casos contrários. Neles, a influência do professor contou para gerar motivação positiva. Aliás, a maioria dos narradores mencionou, de forma recorrente, que sentiram durante sua aprendizagem a influência de seus professores na sua motivação positiva e na sua motivação negativa também. Enquanto professores, a maioria dos narradores relatou tomar algumas iniciativas para lidar com a motivação em seus alunos no início das aulas (grifo meu). Algumas de suas sugestões constam entre as estratégias motivacionais mencionadas por Dörnyei (2001a), por exemplo, falar sobre os objetivos do curso, ouvir os objetivos dos alunos, estimular o uso de material autêntico e elaborar atividades que tenham um propósito real aos alunos. Enquanto professores, três dos doze narradores contaram que, cientes da desmotivação de alunos na fase inicial do curso (grifo meu), agiram para modificar esse estado ao inserir seus interesses pessoais ao programa de aula, ao elogiar cada pequena conquista e ao mostrarse parceiro do aluno ao compreender suas dificuldades para estarem na sala de aula. Enquanto professores, nenhum dos narradores anunciou abertamente ações para manter e proteger a motivação ativada durante a aprendizagem. Poucas foram as intervenções sugeridas, do ponto de vista motivacional, para a fase pós-acional. Nenhum deles anunciou a possibilidade de explorar o pensamento motivacional dos


232 alunos, conforme sugere Ushioda (1996; 2002). Nenhum deles se referiu à tarefa do professor de usar e ensinar aos alunos estratégias motivacionais. Nenhum deles se referiu à tarefa de professor motivador que visa incentivar a motivação intrínseca e a automotivação dos alunos. Foram quase ausentes, entre o que contaram os narradores, esclarecimentos sobre o que entendem de motivação, da sua definição, do entendimento de suas características e das suas implicações à aprendizagem de LE. Nas poucas tentativas de alguns narradores em caracterizar motivação, foram mencionados, uma vez, a motivação intrínseca e extrínseca e, uma vez também, citações de Dörnyei (2000) a respeito do construto, ainda que bastante incompletas quanto ao conjunto de ideias que o autor propõe para entender e lidar com motivação na sala de aula de LE.

Desse modo, já se tem pistas para responder às perguntas de pesquisa e chegar à seguinte conclusão preliminar: enquanto professores de LE, os sujeitos da pesquisa parecem subestimar a importância da motivação e seu papel em favorecê-la, apesar de terem reconhecido, em suas narrativas, a influência de seus professores na sua motivação para aprender inglês. Esse cenário provavelmente é decorrente da falta de conhecimento mais aprofundado a respeito desse tema e sobre como operacionalizar a motivação de forma mais prática. O próximo passo desta pesquisa será confirmar (ou não) essas conclusões por meio da análise de dados provenientes da aplicação de um questionário e da realização de uma entrevista.

De posse dos resultados dos três instrumentos de pesquisa que servirão de

subsídios para responder as perguntas que suscitaram o desenvolvimento deste trabalho, pretende-se elaborar uma conclusão final. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÀFICAS BURDEN, P.R. Powerful Classroom Management Strategies. Thousand Oaks, California: Corwin Press Inc., 2000. DÖRNYEI, Z. Motivation in action: Towards a process-oriented conceptualization of student motivation. British Journal of Educational Psychology. Londres, 70, p. 519-538, 2000. DÖRNYEI, Z. Motivational Strategies in the Language classroom. Cambridge: Cambridge, 2001a. ________. Teaching and Researching Motivation. Harlow, Essex: Pearson Education Limited, 2001b. CAMPOS, D.M.; Psicologia da Aprendizagem. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2010. p. 85190.


233 GARDNER, R. Integrative Motivation and Second language Acquisition. In: DÖRNYEI, Z; SCHMIDT, R. Motivation and second Language Acquisition. United States of America: University of Hawaii Press, 2001. p. 1-20. PINK, D. Motivação 3.0. Rio de Janeiro: Elsevier Editora Ltda., 2010. TAIPA, J. & FITA, E. A motivação em sala de aula. São Paulo: Editora Loyola, 2003. USHIODA, E. Learner autonomy: The role of motivation. Dublin: Authentik, 1996.

MARIA LÚCIA MEDEIROS, NA TRILHA DAS ÁGUAS E DOS TRILHOS

Maria de Fátima Corrêa Amador (UFPA) Orientador(a): Prof.ª Dr.ª Lilia Silvestre Chaves (UFPA)

RESUMO: Este estudo objetiva aproximar a vida e a obra da escritora Maria Lúcia Medeiros, seguindo a nova vertente da crítica literária, a biografia literária. Faz uma breve apresentação da crítica literária, destacando que não se trata do biografismo do século XIX, abordagem feita por Sainte-Beuve, mas de uma nova forma de crítica literária em que se juntam o fato e a ficção. A biografia literária leva em conta tanto a vida quanto a obra do escritor, revelando o quanto uma influencia a outra, ou seja, as influências da vida na criação literária e as da escrita sobre a vida, em um jogo em que novos textos são criados, tornando infindável o exercício da ficção. PALAVRAS-CHAVE: Vida. Obra. Criação e crítica literárias. RESUME: Cette étude vise à rapprocher la vie et lřoeuvre de l'écrivain Maria Lúcia Medeiros, suivant la nouvelle tendance de la critique littéraire, la biographie littéraire. Elle donne un aperçu de la critique littéraire en mettant en évidence quřil ne sřagit pas de la biographie du XIXe siècle, l'approche adoptée par Sainte-Beuve, mais dřune nouvelle forme de critique littéraire dans laquelle on rapproche la réalité de la fiction. La biographie littéraire porte à la fois sur la vie et sur l'œuvre de l'écrivain, en révélant comment lřune agit sur l'autre, cřest-à-dire, les influences de la vie dans la création littéraire et celles de l'écriture sur la vie, dans un jeu dans lequel de nouveaux textes sont créés, en rendant infini lřexercice de la fiction. MOTS-CLÉS: Vie. Œuvres. Création et critique littéraires.

A CRÍTICA LITERÁRIA E SUAS NUANCES Uma das vertentes, hoje, da crítica literária é a biografia literária que se propõe a juntar vida e a obra de certo escritor para compreender e interpretar a obra, como uma ponte que liga o fato (vida) e a ficção (obra). Para isso, traço um breve histórico da crítica literária até chegar ao tema da biografia literária na obra de Maria Lúcia Medeiros. No século XIX, estávamos sobre a influência da teoria do crítico literário Saint-Beuve,


234 para quem a base de interpretação da obra, de acordo com seu método crítico Ŕ que se convencionou chamar de biografismo Ŕ é a ciência moral, pois, segundo ele, não se separa a produção literária do resto do homem e de sua maneira de viver, nem as qualidades pessoais do escritor de sua intenção poética, e ele enfatizava Ŗo intencionalismo do autorŗ, o que mais tarde foi alvo de tantas críticas. Sainte-Beuve dizia que só através da vida do escritor é possível avaliar sua obra. Segundo sua análise crítica, a obra de um escritor é, antes de tudo, reflexo de sua vida, portanto, só pode ser explicada por ela. Esse método se estabelece na busca do intento poético do autor (intencionalismo) e das suas qualidades pessoais (biografismo). Para Sainte-Beuve,1 a verdadeira crítica consistia em estudar cada ser conforme sua natureza, uma espécie de vontade de desvendar a genialidade de um autor e encontrar seu lugar na literatura. Na sua concepção o valor está no eu social, aquele lado que o escritor deixa transparecer em sua vida. Assim, manifesta-se Sainte-Beuve acerca de cada escritor: Cada escritor tem sua palavra de predileção, que volta ao discurso com frequência, traindo, por irreflexão de quem a emprega, um desejo secreto ou uma fraqueza. Notamos que Madame de Staël adora a vida [...]. Um certo grande poeta deixou escapar sem cessar a harmonia e as ondas [...]. A divisa deNodier, que não verifiquei poderia ser Graça, fantasia, multiplicidade; a de Sénancour é seguramente Permanência. Esta expressão resume sua natureza (SAINTE-BEUVE, 1864, apud ROGER, 2002, p. 51).

Contrapõe-se a Sainte-Beuve o ponto de vista de Proust sobre a crítica literária que diz que o eu criador não é o mesmo eu social, e Ŗque um livro é o produto de um outro eu e não daquele que manifestamos nos costumes, na sociedade, nos víciosŗ (PROUST, 1988, p. 5152).2 Se perseguíssemos essa outra maneira de análise crítica, separando vida e obra, estaríamos transpondo quase um século de distância entre Sainte-Beuve e seu mais famoso contestador. De certa maneira, foi criticando o método crítico de Sainte-Beuve que Marcel Proust construiu sua própria poética. Por volta de 1920, um grupo de estudantes russos, sob a tutela do conhecido linguista Roman Jakobson (1896-1982), buscava criar uma Ŗciência literária autônoma a partir das qualidades intrínsecas do material literárioŗ (EIKENBAUM apud BRAIT, 2009, p. 80). Ou

1

A concepção de Sainte-Beuve vai ser retomada um século depois por Jean-Paul Sartre (1905-1980), que acreditava na ligação entre o escritor e sua obra. Para ele a obra era como um compromisso e, assim, as ideias do autor se refletiriam em seus escritos. 2 Marcel Proust, em seu ensaio Contre-Sainte-Beuve (publicado em 1954), foi o primeiro a contestar a visão crítica do escritor francês, e a escola formalista russa, bem como os críticos Curtius e Sptizer, os seguiram neste caminho.


235 seja, o que importava, segundo eles, era o objeto literário. Esses estudos seguiam a direção da Linguística e desenvolveram uma teoria que retomava o texto como base para a crítica literária, em contraposição aos estudos de uma poética que envolvia a história cultural ou a vida social. A inovação do estruturalismo reside no fato de o objeto estudado ser visto como um sistema, o que forma a base dos estudos linguísticos de Saussure. Com relação à análise da obra, não há mais a preocupação com as intenções do autor. Esses estudos retomados por outros teóricos deram vazão a diferentes formas de se ver o objeto literário a partir do texto. Ideias como essas, que construíram a crítica literária através dos tempos, mostram a importância e o papel que têm na história da literatura e da crítica literária. Basta lembrar a trilha dos críticos que às vezes centraram sua leitura no autor, outras vezes, no texto, outras ainda, no leitor, entre eles, Barthes, Bachelard, Jauss. Cada momento que envolve a história da literatura e da teoria e crítica literárias foi único e certamente cumpriu e cumpre seu papel no percurso da arte e da literatura. Neste ponto, retomamos Sainte-Beuve para lembrar o culto que este dedicava ao autor: para ele, não era a obra que deveria ter lugar na literatura, mas a genialidade do autor, enfim o criador, cuja vida deveria ser íntegra, pois a base da crítica era a ciência moral. Destaco que o estudo da biografia literária difere do biografismo do século XIX, ao juntar como objeto de análise a vida e a obra do autor. Por sua vez, Barthes (1984) em A morte do autor (artigo publicado pela primeira vez em 1968) destaca a importância do ato de escrever. Esse ato é que faz o autor e não o contrário. O autor não existe fora, ou antes, da linguagem. ŖConjugado à conferência de Foucault sob o título Qu‘est-ce qu‘au auteur? [O que é um autor], o artigo de Barthes tem o efeito de uma bomba [...] tornando-se de certa forma o credo do pós-estruturalismo francêsŗ (WIKIPEDIA, 2010). Foucault (1992), na conferência (pronunciada em 1969), retoma a discussão sobre o autor, mostrando que não basta atribuir um texto a um indivíduo com poder criador para que se construa a Ŗfunção-autorŗ. Segundo ele, esta se constitui na medida em que estudamos, delimitando, recortando e caracterizando os textos atribuídos a certo autor. Foucault invoca a maneira como um texto é recebido em determinada cultura, o estatuto que lhe é dado. Para ele, o autor a partir de sua concepção deve apagar-se, ou melhor, ser apagado em proveito das formas próprias do discurso, permitindo a descoberta do jogo da função de autor, função que não permanece constante, visto que depende da circulação do discurso.


236 Todos esses estudos levam à relação do autor com o leitor, e, finalmente, à perspectiva de um texto em um determinado horizonte de tempo de que nos fala Jauss. Esse crítico formula um novo conceito de leitor baseado nos horizontes de experiência e de expectativa: ao interagir com o texto, o leitor o recria a partir de suas leituras e das questões que coloca para si mesmo. Ao contrário do formalismo, cuja ótica era o texto e sua literariedade, a estética da recepção traz à superfície a relação do leitor com o texto e sua experiência estética, advinda da relação entre a obra e o leitor. Aqui o que conta não é mais o autor e sua produção, mas o leitor e a recepção que ele tem da obra, quando considera a análise da obra artística. Esse cenário mostra como no decorrer do tempo as teorias críticas sobre a literatura de que falo nos parágrafos iniciais, buscam contribuir para a minha compreensão da criação literária. Conceitos como literariedade, instâncias da crítica, crítica genética, retórica e outras formas de leitura foram surgindo (e, em alguns momentos, sendo abandonados, substituindose uns aos outros), como os estudos imagéticos de Bachelard e essa maneira nova de fazer crítica, e de se chegar a escrever uma biografia (que se quer literária), por meio da interpretação da vida do biografado. Na crítica biográfica, objeto deste estudo, é como se a vida fosse também um texto, que, ao ser vivido, foi Ŗescritoŗ, um texto a ser interpretado, juntamente com os tantos outros textos deixados pelo escritor: os escritos, as anotações, os rabiscos e os borrões e, até mesmo, extratos bancários, as listas de compras; os audiovisuais Ŕ suas fotos, gravações, vídeos, filmes. Procurei, então, traçar a ponte metafórica de que fala Souza (2002), que une o fato e a ficção, tecer a estreita relação entre a criação literária e a vida de Maria Lúcia Medeiros, o quanto uma influenciou a outra, à medida que a escritora foi personagem na sua vida e o quantum dessa vida está na criação de seus personagens. Esse é o modus faciendi da biografia crítica e literária, uma das novas vertentes da crítica literária. Sabemos que as biografias sempre despertaram fascínio em leitores ávidos de conhecerem a intimidade de um pensador, de um escritor famoso, de um ídolo, sobretudo, quando a vida privada por algum fato incomum ou diferente para os padrões sociais da época vem à tona, tal como o suicídio de Silvia Plath aos trinta anos, Van Gogh cortando a própria orelha, a vida tumultuada de Rimbaud. O caminho da biografia literária que relaciona e interpreta obra e autor (ou autora), e nos faz questionar sobre os limites entre a vida e a escrita, sobre a natureza de uma crítica que toma a vida de um escritor para lê-la como a um texto, analisá-la e reescrevê-la. Ora, Ŗa


237 crítica biográfica, por sua natureza compósita, englobando a relação complexa entre obra e autor, possibilita a interpretação da literatura além de seus limites intrínsecos e exclusivos, por meio da construção de pontes metafóricas entre o fato e a ficçãoŗ (SOUZA, 2002, p. 111). Ainda, segundo SOUZA (2002), a biografia literária também tem seu fascínio, pois, ao articular a obra e a vida, recria de forma infinita o Ŗexercício ficcional da literatura, graças à abertura de portas que o transcendemŗ (p. 111). É chegado o momento de olhar mais de perto a trajetória da biografada que vem de uma cidade à beira de um rio. Assim como ela, faremos, também, esse caminho das águas, através dos estudos temáticos sugeridos por Bachelard (1941), em L'eau et les rêves. O crítico nos fala que a imaginação é a faculdade de formar imagens que ultrapassam e que cantam a realidade. Em Maria Lúcia Medeiros (em sua obra), encontraremos pontos que velam e desvelam o real pautado em um mundo imaginário feito de água, mangueiras e tardes quentes.

NA TRILHA DAS ÁGUAS E DOS TRILHOS

Ah, de que silêncio precisamos nos lembrar na vida que passa! (Bachelard)

Maria Lúcia nasceu no interior do Pará, em Bragança, cidade com um rio na frente e um trem que trazia em seus vagões histórias de colonos e de colonizadores, e que, sem dúvida, enriqueceram sua imaginação, cujos limites ultrapassam a vida, iluminando seus textos, falando de sentimentos decerto comuns à humanidade, mas não apartados dessa cosmogonia que neles aparece velada, não-literal, latente. Em suas próprias palavras:

Eu nasci em Bragança, uma cidade simples do interior, com um trem de ferro e um rio na frente. Tive, portanto, uma infância bem brasileira: quintal, primos, frutas, tios, igreja, cinema Olympia (MEDEIROS, 2005, p. 61).

Bragança localiza-se às margens do Rio Caeté, é cortada por rios, mangues e igarapés. Transformada em município no século XVII, ainda hoje preserva algumas construções históricas, como igrejas e casarios, e festas populares como a Marujada. Maria Lúcia Medeiros, que nasceu em um desses casarios, assim descreve sua casa: A casa do Major Simpliciano Fernandes de Medeiros, em Bragança, está situada na Rua 13 de Maio, n.º 622 e faz esquina com a Travessa Cônego Miguel. Trata-se de imóvel construído dentro de um terreno arborizado com


238 as seguintes características: para a Rua 13 de Maio a fachada mostra uma porta de entrada comprida e duas janelas com venezianas de cada lado; para a Travessa Cônego Miguel se abrem outras sete janelas, também com venezianas em cima das quais despontam protetores que compõem esteticamente a fachada e dão estilo a ela. Mais em cima há um outro protetor mais largo e proeminente que faz base à platibanda azulejada e resguarda o telhado de ponta a ponta nas faces que dão para as duas ruas. Sobre a platibanda, cinco pontões esculpidos fecham com chave de ouro essa fachada totalmente recoberta de azulejos do século XIX (projeto para recuperação da casa, MEDEIROS, 2003).

Esse lugar é um convite à imaginação Ŕ casa, quintal, vila de pescadores, o significado da família e da própria casa em um lugar de muitas histórias e mistérios, rico em seu folclore, como a marujada, a igreja as procissões, sobretudo se o morador se revela um ser criativo. Em O Lugar da Ficção (2004), Maria Lúcia relembra-se da menina, com 9 anos, entrando na sala de costura de suas tias, em Bragança, escondendo o sapato molhado que ela propositadamente mergulhara na poça dřágua. Seus personagens, sejam meninos, sejam meninas, são transgressores e quando não o são transfiguram a realidade para vê-la melhor, como a menina do conto Zeus ou a menina e os óculos (1988), em que a menina aos sábados ajuda a mãe no restaurante e dispensa os óculos e a nitidez de algumas formas para ver tudo pelas suas próprias lentes. Ninguém saberia que ela usava óculos de lentes claras e que ela dispensava a nitidez de algumas formas. Que era como se visse tudo pelas suas próprias lentes e mergulhasse assim no cenário agradável com cheiro de sábado, com barulho de sábado, com imagem não muito nítida que ela recobria do jeito que bem entendia e queria, sem medo, sem óculos, ela que os usara sempre desde muito tempo, para ver melhor... (MEDEIROS, 1988, p. 17).

Ainda em O Lugar da Ficção (2004), Maria Lucia diz que um dia revendo seus textos, surpreendeu-se por encontrar neles, de forma clara ou velada o que viveu, sentiu-se Ŗum outroŗ a examinar seus escritos. Essa revelação conduz aos seus contos, em que encontramos crianças a brincar em quintais, a tentar entender mistérios na fala dos adultos. No conto Janelas Verdes (1988), temos uma avó dormindo, enquanto a casa desprega-se do chão e sai voando, deixando no ar um forte cheiro de doce de goiaba. Ouviu-se um leve bater de asas. A casa rangeu um pouco despregando-se do chão. Um vento forte e sibilante curvou os galhos da goiabeira e soprou a casa para a amplidão. Alvoroçadas as estrelas escorregavam pelas frestas das portas e das janelas...(p. 61).

Essa imagem de leveza, de casa aérea revela a poética de sua prosa, os fatos dando asas à ficção, de que nos fala Souza (2002) ao tratar da biografia enquanto crítica literária. Para


239 Bachelard (1998, p. 67), a imagem da casa aérea é valiosa para a imaginação e gosta de ter uma ramificação sensível ao vento. A imagem dessas casas que integram o vento, que aspiram a uma leveza aérea, que abrigam na árvore de seu inverossímil crescimento um ninho prestes a voar, tal imagem pode ser rejeitada por um espírito positivo realista. Mas para uma tese geral da imaginação, ela é valiosa porque tocada, sem que provavelmente o poeta o saiba, pelo apelo dos contrários que dinamizam os arquétipos... A casa bem enraizada gosta de ter uma ramificação sensível ao vento, um sótão que tem barulhos de folhagem.

É desse espaço onde está assentada essa casa, que mereceu tal descrição, que vem a escritora ainda adolescente para estudar na cidade. Esse espaço com tudo o que pode nele caber já faz parte do mundo da escritora, cuja curiosidade a leva a outras descobertas em outro espaço-tempo. Em Belém já cheguei quase adolescente e meus fantasmas viviam sob as mangueiras, nas ruas largas, na arquitetura imponente de uma cidade de 250 mil habitantes que era Belém dos anos 50 (MEDEIROS, 2005, p. 61).

Entre 1956 e 1957, Maria Lucia foi aluna do Colégio Gentil, a jovem estudante conhece uma Belém que já contava com vários cafés e o sempre lembrado por ela Cinema Olympia. A cidade era resultado da grande expansão da época da borracha e do movimento da belle époque. As moças divertiam-se indo ao cinema e depois sentando para conversar no terraço do Grande Hotel. Nos cafés, na década de 50, reuniam-se, também, os intelectuais, conforme contado no site Ŗo Pará nas ondas do rádioŗ. No período de 1950, as manifestações culturais eram marcadas por encontros nos bares e cinemas da cidade. Segundo o geólogo e fundador da Rádio Difusora, Carlos Raimundo, que veio morar em Belém no ano de 1955, para se divertir, as moças assistiam um bom filme no Cinema Olímpia e depois se reuniam no terraço do Grande Hotel, atual Hilton Hotel. O escritor Benedicto Monteiro, observa que outra diversão exclusiva era o cinema, o Grande Hotel e também o Central Hotel, onde se reuniam os intelectuais, como Rui Barata, Francisco de Paulo Mendes, Mário Couto, Abel Leão Figueiredo, entre outros. Eles se reuniam para discutir sobre literatura, teatro e o modelo das boates que existiam no Sul (Disponível em: <www.oparanasondasdoradio.ufpa.br>. Acesso em: 24 jul. 2010).

Desse período, são marcantes para Maria Lucia as sessões do cinema Olympia. Os filmes que não podia ver ao vivo, os via pelas palavras de seu primo Valdir (Saruby), sobre quem fala com muito carinho, dizendo ter tido na infância e adolescência Ŗuma amizade bonita, simples, despojada, sem cobranças, meio lírica (paixão sublimada?), conservada até


240 hoje: meu primo Valdir, para quem quero todo o bem do mundoŗ (ABRAMOVICH, 1985, p. 90). Quando descobri os livros, descobri um outro jeito de viver. Personagens, situações, lugares ajudavam meu aprendizado do mundo. Ler para mim sempre foi uma salvação. Agora, escrever, acho que sempre escrevi. Lembro que muito menina eu me recolhia e escrevia, escrevia para mim (MEDEIROS, 2005, p. 61).

A descoberta de mundos reais e imaginários sobrepuja a vida de Maria Lúcia Medeiros e sua criação literária. Quanto aos personagens, ela os via e os revia para reconhecê-los em seus familiares e assim melhor entender o que se passava em suas relações com eles e com os amigos. Sobre sua escrita, ela encerra os fatos de sua experiência para transmutá-los em obra ficcional. Experiência e ficção são componentes importantes para a biografia literária, como lembra Souza (2002, p. 119): Os fatos da experiência, ao serem interpretados como metáforas e como componentes importantes para a construção de biografias, se integram ao texto ficcional sob a forma de uma representação do vivido.

Nos textos de Maria Lúcia aqui revelados pode-se sentir sua intimidade com a arte da palavra. Sua vida transfigura os seus escritos que têm em si mesmos, e por sua vez, a capacidade de transfigurar a realidade. Realidade que, enquanto viveu, foi enriquecida e transformada pela busca do indizível, do imprevisível, encontrado em toda forma de documentos: cartas, poemas, fotos, fragmentos de textos, álbum de viagens, diário, anotações, bilhetes e pela leitura de livros. Ela mesma revela-se, uma Ŗleitora compulsiva, e sempre que chegava à última página e fechava o livro, baixava leve melancoliaŗ (MEDEIROS, 2004, p. 7). Esse quinhão que junta vida e arte literária que procuro mostrar neste trabalho. O texto que tece a si mesmo, a vida que se escreve. A prosa poética de Maria Lúcia Medeiros, certamente, entrelaça sua vida com seus escritos.

REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 1989. BACHELARD, Gaston. A Poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1998. BARTHES, Roland. Le bruissement de la langue. Paris: Éditions du Seuil, 1984. BARTHES, Roland. O prazer do texto. Tradução de Maria Margarida Barahona. LisboaPortugal: Edições 70, 1988. BERGEZ, Daniel …et al. Ŕ tradução Olinda Maria Rodrigues Prata. Métodos críticos para a análise literária. São Paulo: Martins Fontes, 2006. BRAIT, Beth. Bakhtin e o círculo/Beth Brait (org.). São Paulo: Contexto, 2009.


241 FOUCAULT, Michel. O que é um autor. Tradução António Fernando Cascais e Eduardo Cordeiro. Lisboa: Passagens/Vega, 1992. MEDEIROS, Maria Lúcia Fernandes de. Velas, por quem? Belém: CEJUP, 1991. MEDEIROS, Maria Lúcia Fernandes de. Zeus ou a menina e os óculos (contos). São Paulo: R. Kempf, 1988. MEDEIROS, Maria Lúcia. Antologia de contos. Belém: Editora Amazônia, 2003. MEDEIROS, Maria Lúcia. Céu caótico. Belém: SECULT, 2005. MEDEIROS, Maria Lúcia. Horizonte silencioso. Boi Tempo, 2000. MEDEIROS, Maria Lúcia. O lugar da ficção. Belém: SECULT. 2004. MEDEIROS, Maria Lúcia. Quarto de hora. Belém: CEJUP, 1994. ROGER, Jerôme. A crítica literária. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002. SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2002.

PROPOSTA DE ELABORAÇÃO DO GLOSSÁRIO SOCIOTERMINOLÓGICO DA CARPINTARIA NAVAL EM ABAETETUBA Maria de Jesus Nascimento QUARESMA (UFPA) Orientador(a): Prof. Dr. Abdelhak RAZKY (UFPA)

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo apresentar proposta de um glossário de termos da carpintaria naval, elaborado a partir de um corpus oral coletado em Abaetetuba, cidade do Nordeste do Pará. As orientações teórico-metodológicas estão de acordo com os pressupostos da Terminologia, levando em conta aspectos socioterminológicos dos termos. PALAVRAS-CHAVE: Carpintaria Naval, Socioterminologia, Glossário.

ABSTRACT: This work has as object to present aim of a glossary of terms of the naval carpentry, elaborated from a oral corpus collected in Abaetetuba, city of the northeast region of the state of Para. The theoretical background and methodological procedures are in accordance with the principles of Terminology, taking in consideration the socioterminologic aspects of the terms. KEY-WORDS: Naval Carpentry, Socioterminology, Glossary

INTRODUÇÃO O trabalho que aqui se apresenta é um trabalho em léxico, trataremos dos termos da Carpintaria Naval. Entendemos que o léxico especializado ou termos, não se separam do resto da língua, mas encaixam-se, tornando-se parte integrante dela. Nesta perspectiva, não concebemos a terminologia nem os termos, como um Ŗmundo à parteŗ da realidade linguística de uma língua.


242 Quanto à organização deste texto, primeiramente, discorreremos sobre contribuições importantes das teorias e práticas terminológicas como a Teoria Geral da Terminologia, inspirada por Eugen Wüster (1938) e a perspectiva da Sociolinguística para a Terminologia com François Gaudin (1993). Apresentaremos um breve histórico da atividade que servirá de base, contextualizando-a no lócus da pesquisa e a importância deste trabalho para o desenvolvimento da região. Em seguida, abordaremos a metodologia empregada no desenvolvimento da pesquisa socioterminológica, com seu respectivo embasamento teórico. Concordamos com Faulstich (2001) quando diz que ao elaborar um glossário, não apenas registramos a fala de uma determinada comunidade, também fazemos um inventário terminológico, de caráter seletivo que tem como finalidade registrar e definir termos de domínios científicos, técnicos ou culturais, independentemente do suporte material em que se apresenta. Um dos motivos que justifica este empreendimento é a ausência de propostas de organização e sistematização de vocabulários técnico-especializados relativos à carpintaria naval em Abaetetuba. As pesquisas realizadas em torno dessa atividade tradicional têm se fixado, quase que exclusivamente no campo da Matemática ou da Biologia Vegetal (para identificar as espécies vegetais aplicadas na confecção de embarcações). Dessa forma, justifica-se a nossa proposta em descrever e analisar, através do léxico especializado, o conhecimento proveniente dessa atividade, considerando ser de suma importância para a caracterização lingüística do português falado na Amazônia paraense. Acrescenta-se a esse propósito, a intenção de colocar à disposição um produto terminográfico destinado, não só aos especialistas nas Ciências do Léxico e pesquisadores afins, como também à sociedade em geral e aos interessados em aprofundar seus estudos na terminologia da carpintaria naval.

1. CONSIDERAÇÕES SOBRE SOCIOTERMINOLOGIA

A

TERMINOLOGIA

E

A

A terminologia, por ser um termo de caráter polissêmico, tem sido concebida como disciplina ou campo de estudos teóricos e aplicados, bem como conjunto de termos de uma área específica do conhecimento. A causa dessa diversidade de definições para este termo reside no caráter multifacetado da terminologia com relação a seus fundamentos, seus enfoques e suas aplicações práticas. Sager (1998) observa que o interesse pelos estudos terminológicos já se manifestava


243 entre os primeiros semânticos, mas que somente no século XX a disciplina ganha status de disciplina autônoma. Contudo, Cabré (l995) ressalta que nem todos os estudiosos consideram a independência da Terminologia, nem tampouco como matéria teórica. Para alguns ela é prática vinculada às necessidades sociais e interesses políticos e / ou comerciais; para outros, é uma disciplina cientifica que toma emprestado de outras ciências, uma série de fundamentos teóricos. A disciplina nasceu com a Escola de Viena, fundada por Eugen Wüster 1. Sua base teórica, porém, não se mostrou abrangente, capaz de estudos voltados para uma comunicação efetiva. Mostrou-se prescritiva e adepta da univocidade, princípio pelo qual cada termo deve designar um único conceito e vice-versa, o que não condizia com a realidade lingüística dos domínios de especialidade. Wüster postulava que a perfeita comunicação técnica e científica só seria plenamente alcançada com a normatização das terminologias. Sob seu ponto de vista tal objetivo seria alcançado em decorrência da univocidade obtida pela normatização. Faulstich (1995) defende a idéia de que a Terminologia é passível de variação porque faz parte da língua, porque é heterogênea por natureza e porque é de uso social. Portanto, um mesmo termo pode ser usado em contextos diferentes, bem como termos variantes podem ser usados num mesmo contexto. A teoria wüsteriana, de caráter prescritiva e normativa, recomenda o procedimento onomasiológico de identificação dos termos, segundo o qual, são identificadas as noções ou aspectos conceituais e, a partir daí, buscam-se as formas lexicais como meras etiquetas denominativas desses conteúdos. Por esse motivo, foi necessário buscar novos horizontes na pesquisa terminológica. No quadro de revisão e atualização dos estudos terminológicos é importante referendar a Socioterminologia, teoria oriunda dos princípios sociolingüísticos. Faulstich (l995) observa que a denominação Socioterminologia surgiu com Jean-Claude Boulanger, no início da década de 80, no entanto é com Yves Gambier que começam as primeiras manifestações para que a Terminologia se transformasse em Socioterminologia. Essa nova face da Terminologia tem como principal representante François Gaudin, cujo mérito foi reconhecer a variação dos conceitos e das denominações nos domínios de 1

Suas idéias foram inicialmente discutidas em sua tese de doutorado apresentada à Universidade de Viena sob o título de ŖInternational e Sprachnormung der Technik, besonders in der Elektrotechnikŗ, de 1931. Wüster foi criador e diretor da Escola de Viena que deu prosseguimento posteriores à TGT.


244 especialidade, abrindo espaço para uma pesquisa terminológica descritiva nos vários níveis da língua. Gaudin (1993) postula a variação como eixo central de sua teoria e critica as escolas clássicas por seu caráter reducionista. Na teoria clássica a terminologia não é vista em função do contexto sociocultural, nem tampouco a multidimensionalidade e dinâmica constante do conhecimento especializado, ou seja a dimensão social da terminologia não era considerada.O reconhecimento da variação na linguagem de especialidade contrapõe-se a idéia de que é possível controlar seu uso através da padronização. A partir daí, então a Socioterminologia passou a ser referência teórica em grande parte das pesquisas terminológicas realizadas no Brasil. Essa grande influência, no entanto não acontece sem razão, haja vista que uma teoria descritiva de base lingüístico-social parece ser muito mais adequada ao contexto brasileiro: país monolíngüe com grande variedade dialetal. Nossa visão, a partir dos estudos realizados, é de que a inclusão do fator social em trabalhos terminológicos revela-se de grande importância uma vez que estas línguas apresentam variação léxico-terminológica nos termos a serem observados. Daí surge a necessidade de se estabelecer um método próprio para a sistematização dos termos e suas variantes, que se mostre eficiente para a geração de produtos terminológicos e esteja em consonância com os postulados de uma Terminologia voltada para o social.

2. A CARPINTARIA NAVAL NO MUNICÍPIO DE ABAETETUBA O fato de ter sido palco da carpintaria naval a cidade de Abaetetuba mostra-se singular para uma pesquisa socioterminológica. Essa arte representou um alto grau de importância socioeconômico, não somente para o município, como para todo o Estado do Pará até a década de 80, quando a atividade entrou em declínio. Da interação indígeno-portuguesa, a carpintaria naval sempre se fez presente no município de Abaetetuba. Em razão da necessidade de deslocamento para o exercício de atividades de pescas, os indígenas locais trouxeram ao município, a cultura da construção dos primeiros barcos denominados de cascos, fabricados a partir da escavação de troncos de árvores como as burajubas, já extintas na região. A partir desses primeiros e rústicos barcos os antigos ribeirinhos iniciaram o aprendizado na construção de outros tipos de pequenas embarcações até chegar a construção de grandes barcos nos numerosos e famosos estaleiros de Abaetetuba, que constituíram a chamada Ŗcarpintaria naval de Abaetéŗ cuja fama chegou a ultrapassar as fronteiras do Estado


245 do Pará. Segundo dados coletados, os construtores navais não possuem estudos técnicos e arte de construir barcos desenvolveu-se sem um conhecimento institucionalizado. Os mestresartesãos constroem embarcações sem planta, sem cálculos matemáticos sofisticados, usandose apenas a intuição na fabricação das pequenas às grandes embarcações. A posição estratégica de Abaetetuba propiciou com que se instalassem estaleiros, não só para reparos nas embarcações, mas também para a construção de novas. Com a crise do fim do período da borracha (1911), a cidade se destacou na região pela coragem de seus filhos em navegar com embarcações, construídas pelos mestres/carpinteiros e engenheiros navais da época, para comercializar nos rios Tocantins, Pará e Amazonas, os gêneros do campo, os artefatos de barro das olarias e os produtos dos numerosos engenhos de cana-de-açúcar. A demanda para a construção Naval em Abaetetuba surgiu além da necessidade do deslocamento das pessoas, das atividades de pesca, do transporte de mercadorias como os produtos de roçados, os pescados, os frutos silvestres, dos produtos das olarias e engenhos de cana-de-açúcar da região e do comércio de regatão para as cidades do Baixo Amazonas. Essa demanda para a construção dessas embarcações sustentou durante décadas. A conjugação da técnica de produção dos engenhos e das olarias com a arte/saber da construção das embarcações de pequeno e grande porte possibilitou a façanha de transformar Abaetetuba num dos centros comerciais mais importantes do nordeste amazônico do século XX, ao longo das décadas dos anos 20 aos anos 80. Agregado a isso, o município ainda possui uma bacia hidrográfica com quilômetros de rios navegáveis. Foram as décadas de 1950 e 1960 que a carpintaria naval em Abaetetuba experimentou o seu apogeu, existindo mais de 20 estaleiros para a fabricação dos mais variados tipos de barcos de madeira e tornou-se respeitável pela segurança e estilos dos barcos que tornaram o município uma referência na construção naval.

3. PROCEDIMENTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS Destaca-se neste trabalho como base teórica, a orientação da Socioterminologia, apresentada por Gaudin (1993), combinando com leitura de textos especializados sobre a carpintaria naval. No entanto, estes textos não servirão para a extração de termos, mas tão somente para a complementação de informações sobre a atividade pesquisada. A escolha da abordagem socioterminológica para nortear esta pesquisa, justifica-se por reconhecer que as variações terminológicas nas línguas especializadas são determinadas por


246 fatores sociais acrescentando aos trabalhos terminográficos um perfil sócio-lingüístico.Para Faulstich (l998) a Socioterminologia é uma disciplina que se interessa pelo movimento do termos nas línguas de especialidade. Com base nesse pressuposto, elegemos como objetivos desta pesquisa: 1. Registrar os termos e suas variantes, presentes no discurso oral de profissionais da carpintaria naval. 2. Descrever a linguagem específica utilizada por profissionais dessa atividade. 3. Organizar um glossário dos termos relacionados à carpintaria naval em Abaetetuba. 4. Contribuir com os estudos terminológicos e socioterminológicos desenvolvidos nesse âmbito. O levantamento dos aspectos históricos relacionados à carpintaria naval em Abaetetuba levará em consideração o processo de colonização e povoamento da região até a presença das primeiras famílias portuguesas. Para melhor conhecer a atividade da Carpintaria Naval fizemos nosso primeiro contato com proprietários de estaleiros. A partir daí tivemos então, a possibilidade de prever o mundo da atividade especializada em questão e finalmente retirar o campo semântico que serve como meio a facilitar a compreensão da hierarquia dos termos que serão tratados. O processo que envolve o ciclo da carpintaria naval compreende três pontos principais: carenagem, obras mortas e acabamento, fases a ser detalhadas no decorrer do desenvolvimento da pesquisa. Essas fases compreendem saberes adquiridos através do conhecimento intuitivo, transmitido ao longo do tempo de geração a geração como que por herança. Para efetuar a análise pretendida utilizaremos corpus oral, resultante do discurso de profissionais relacionados com a carpintaria naval. A pesquisa é de campo dado à necessidade de se coletar os dados no ambiente natural em que ocorre o processo de construção de embarcações, no caso estaleiros em Abaetetuba. Para essa pesquisa de campo, utilizar-se-á como técnica a observação, que auxiliará na coleta de dados visuais e dados verbais, sobre os procedimentos técnicos utilizados pelos carpinteiros nas etapas na construção de barcos. Este trabalho, quanto à sua tipologia será classificado como glossárioŗ.1 O trabalho proposto será desenvolvido em três etapas, a saber: pesquisa de campo, constituição do corpus e organização e redação do glossário. Num primeiro momento, será 1

Em geral glossários são repertórios de termos que não têm uma pretensão de exaustividade.


247 realizada uma pesquisa bibliográfica em publicações referentes à Carpintaria Naval, não para retirar termos, mas para maior familiaridade com a atividade. Apresentamos abaixo alguns elementos que caracterizarão o repertório terminológico: a) Quanto ao público-alvo: é destinado à sociedade em geral. b) Quanto à pesquisa de campo: será participante, para coletar termos e conceitos na fala de informantes envolvidos com a Carpintaria Naval em Abaetetuba. A coleta dos dados da língua oral será feita por meio de questionário específico. c) Quanto à seleção dos informantes: serão estratificados socioprofissionalmente, por gênero, faixa etária, nível de instrução e tempo de atuação na atividade. d) Quanto à organização interna do Glossário: Nessa organização, os termos serão considerados de acordo com o tipo de relação hierárquica que possuem: macroestrutura e microestrutura. A macroestrutura é a organização interna que está relacionada às características gerais do repertório. Quanto aos critérios para a organização, os termos do glossário serão apresentados em ordem alfabética e, sempre que possível, serão incluídas ilustrações (fotos, desenhos, gráficos ou mesmo vídeos, no caso de publicação eletrônica) relacionadas aos mesmos. A microestrutura é o conjunto organizado e estruturado dos dados contidos no verbete. Conforme o esquema apresentado por Faulstich (1995), com algumas adaptações, os verbetes se apresentam basicamente da seguinte forma: Verbete = [Entrada + Categoria Gramatical + Campo Semântico + Definição + Contexto + Fonte ± (Nota) ± (Variante) ± (Sigla ou Acrônimo) ± Remissiva1 A entrada é a unidade lingüística, constituída de denominação e conceito que inicia o enunciado terminológico. A categoria gramatical diz respeito à referência morfológica da entrada. O campo semântico corresponde às áreas de domínio e subdomínios em que um termo é inscrito. A definição é a expressão linguística que delineia informações sobre um conceito de uma entrada do repertório. O contexto significa o uso efetivo de termos em enunciados. A fonte refere-se à ocorrência de termos em discurso especializado escrito ou oral. A nota: referência de ordem linguística e enciclopédica apoiada em contextos ou em informações concedidas pelos especialistas. A variante: forma linguística concorrente Ŗpara um mesmo referenteŗ (FAULSTICH, 2001). Sigla e acrônimo: formas em concorrência com unidades sintagmáticas. Remissiva: Ŗrelação conceitual com o significado da entradaŗ (Faulstich, 1995). 1

O sinal diacrítico (+) significa obrigatoriedade e (±) possibilidade de ocorrência.


248 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalho teve como objetivo apresentar uma proposta de elaboração de um glossário socioterminológico dos termos da carpintaria naval,para tanto foi escolhida para a realização da pesquisa a cidade de Abaetetuba, situada no nordeste paraense. Primeiramente caracterizei a Terminologia e a Socioterminologia. Mostrei que a Terminologia está mais voltada para o estudo científico dos conceitos e termos usados na linguagem de especialidade e a Socioterminologia está voltada para uma abordagem que leva em consideração a possibilidade da variação dos termos. Apresentei também considerações acerca dos estudos socioterminológicos propriamente ditos, os quais foram eleitos para nortear esta pesquisa. Assinalei que a Socioterminologia proposta por Gaudin (1993), prioriza o estudo terminológico a partir do uso e do registro social. Dentro da perspectiva de Faulstich (1995) pontuei que esta teoria apresenta aspectos importantes em relação ao comportamento dos termos: a probabilidade dos termos variarem e o fato de a sociedade gerar vários conceitos para um mesmo termo ou termos diferente para um mesmo conceito. Em seguida apresentei a metodologia que será tomada como base, enfatizando o percurso a ser seguido. E por fim, como será realizada a análise conceitual e terminológica dos dados constitutivos do corpus,para então se proceder a organização, estruturação e redação final do glossário. De forma geral, este artigo procurou situar os possíveis consulentes acerca da pesquisa em andamento, com o objetivo de contribuir com o desenvolvimento dos estudos socioterminológicos, além de descrever e analisar uma parte do léxico de especialidade falado na Amazônia paraense. Produziremos, portanto, um glossário com os termos que estão na fala dos socioprofissionais, sobretudo dos trabalhadores rurais, na atividade especializada de carpintaria naval. Assim, a elaboração de um trabalho dessa natureza contribuirá para uma divulgação mais ampla dos conhecimentos sobre o domínio em questão.


249 REFERÊNCIAS ARAGÃO, Maria do Socorro Silva de (coord.). O Léxico das Plantas Medicinais no Nordeste: uma abordagem etnolingüística. Projeto de Pesquisa, Universidade Federal do Ceará, 2008. Disponível em: <http://www.profala.ufc.br/ProjetoPlantasMedicinais.pdf>. Acesso em: 29 ago. 2009. CABRÉ, Maria Teresa. La terminologia hoy: concepciones,tendências y aplicaciones.Ciência da Informação.v.24, n. 3, 1995. CAMARA, Antônio Alves. Ensaios sobre as construções navais indígenas do Brasil. Rio de Janeiro: Tipografia de Leuzinger & Filho, 1888. FAULSTICH, Enilde.Base metodológica para pesquisa em socioterminologia.Brasília, LIV/UNB, 1995. __________________.Principes formels et foncrionnels de la variation em terminologie. In: Terminology. Vol. 5(1), Amsterdam/Philadelphia,John Benjamins Publishing Co.: 1998.p.93103. ____________________ŖAspectos de terminologia geral e terminologia variacionistaŗ. In TradTerm, 7, p. 11-40, 2001. GAUDIN, François. Pour une socioterminologie: dês problèmes pratiques aux pratiques institutionnelles. Rouen: Publications de lřUniversité de Rouen, 1993. KRIEGER, Maria da Graça & FINATTO, Maria José Borcony. Introdução à Terminologia: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2004. SAGER, Juan Carlos. A practical course in terminology processing.Amsterdam. Philadelphia: J.Benjamins, 1998.

TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA NOS CONTOS DE GRIMM Mariana Janaina dos Santos ALVES (Mestranda UFPA) Orientador(a): Prof. Dr. José Guilherme FERNANDES (UFPA)

RESUMO: Ao se estudar o texto literário, sobretudo as narrativas de cunho maravilhoso, observa-se que em grande parte destas narrativas que se dedicam a infância, o texto literário é sempre acompanhado da tradução imagética. Neste sentido, a narrativa constitui em si mesma um objeto estético que pode ser analisado e discutido nos dois âmbitos da tradução: a tradução literária, propriamente dita, e a tradução imagética (semiótica), como apontam os estudos realizados por Arrojo (1993) e Barthes (1968). Na pesquisa empreendida, estão sendo analisados dois contos maravilhosos retirados do acervo Kinder- und Hausmärchen (Contos maravilhosos para as crianças e para o lar) dos Irmãos Grimm: Rapunzel e Os músicos de Bremen, ambos recontados no Brasil por Júlio Emílio Braz e ilustrados por Salmo Dansa. Este estudo pretende apontar a relevância das ilustrações no texto de literatura infantil enquanto elemento constituinte da narrativa ficcional e observar em que sentido as traduções em imagem compensam ou dispensam o texto escrito (DONDIS, 2003). A análise tem como ponto de partida, o estudo literário comparado (entre a tradução escrita e a imagética) e aponta ainda, uma reflexão sobre a tarefa do tradutor (escritor ou ilustrador) na literatura juvenil e o processo de produção do livro traduzido. PALAVRAS-CHAVE: Tradução, Ilustração, Conto maravilhoso.


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INTRODUÇÃO Ao se pesquisar os textos dedicados à infância publicados no Brasil com facilidade se encontrarão aqueles que foram traduzidos, recontados, adaptados, ou mesmo, recriados a partir de um texto que deriva de outra língua. Além das traduções escritas, em geral, os textos destinados ao público infantil também receberam tradução imagética que atuam como recurso visual e relacionam texto-imagem. O recurso da imagem, cada vez mais presente, acompanha as traduções feitas a partir da palavra escrita. No contexto midiático atual utiliza-se em grande parte dos meios comunicativos o aspecto lingüístico e o recurso imagético aliados para produção de sentido. Ou seja, ambos os meios quando reunidos ampliam os modos de leitura favorecendo o leitor. Da mesma forma, os textos que se dedicam ao público infantil vêm recebendo tratamento que incorpora caracteres visuais ao texto escrito, e esta constatação, pode ser verificada em diversas obras traduzidas no Brasil. A percepção da imagem, rápida e eficiente, proporciona ao receptor uma leitura dinâmica durante o contato direto com livro. Porém, esta relação não se constitui de forma limitada. Uma vez que a leitura da imagem independe da leitura da palavra escrita, e ambas constituem-se em universos diferentes, a interação entre elas ocorre no sentido de complementação uma a outra, podendo ainda, individualmente cada universo atuar livremente dentro da narrativa, seja representada pela palavra ou pela imagem. Algumas vezes, a tradução de imagens, configura-se de forma perpendicular em relação à obra literária. Ilustrações, como por exemplo, as de Salmo Dansa (publicadas na coleção as Bruxas de Grimm) traduzem de maneira particular e bastante sugestiva os contos grimminianos. Contudo, para a elaboração deste texto há de se pontuar que não apenas a imagem não se dissocia do texto, como também que a ilustração contribui na apreensão do texto literário. De fato, os aspectos cognitivos envolvidos no ato da leitura do texto imagético igualmente comparecem na leitura do texto escrito, abrangendo a percepção do leitor para as ilustrações e vice-versa. A análise proposta neste artigo está diretamente vinculada à primeira parte da pesquisa empreendida na dissertação de mestrado Tradução Cultural e Intersemiótica nos Contos de Grimm, orientada pelo Profº. Drº. José Guilherme Fernandes, da Universidade Federal do Pará, desde o início do ano de 2010. Neste artigo, propõe-se analisar o reconto Rapunzel publicado em 2003 publicado na coleção citada, As bruxas de Grimm. O conto foi adaptado do acervo Kinder-und Hausmärchen (Contos maravilhosos para as crianças e para o lar) Ŕ


251 dos irmãos e filólogos alemães Jacob e Wilhelm Grimm. OS CONTOS MARAVILHOSOS Os Contos de Grimm, desde longa data, apresentam-se como as narrativas de cunho maravilhoso que se dedicam à infância. Esses contos, ao longo dos anos, receberam sucessivas edições da compilação (primeiramente realizada pelos Irmãos Grimm), e assim foram progressivamente ajustados ao horizonte do novo público receptor. Atualmente, esses contos integram um grande acervo de obras que foram traduzidas por diversos autores. No Brasil, podem-se citar alguns dos mais relevantes como, por exemplo, as traduções de Ana Maria Machado, Maria Heloísa Penteado e Monteiro Lobato. Importa lembrar que estes contos são traduzidos, recontados ou adaptados desde o romantismo até atualidade. Foi neste período, com a ascensão da burguesia, que surgiu a necessidade de se Ŗprepararŗ uma sociedade para o capital e o consumo, portanto conseqüentemente era necessário educar as crianças. A princípio, os primeiros contos que foram compilados pelo Grimm eram provenientes de narrativas orais oriundas da Idade Média. Com as adaptações necessárias ao período romântico, as narrativas transformaram-se em textos que tinham entre seus objetivos orientar e educar as crianças, ou seja, os contos vinculavam-se na maioria das vezes à moral burguesa. Ao longo das adaptações, os contos receberam nuances interpretativas consoantes ao período no qual foram publicadas e, por conseguinte, tiveram vários tipos de recepção. Assim, os contos traduzidos nas mais diversas formas, ao longo de cada tradução receberam elementos específicos que contribuíram diretamente para o conjunto das intenções propostas pelo seu autor/tradutor, e conseqüentemente, seu leitor em potencial.

OS AUTORES E AS NARRATIVAS No âmbito das histórias que foram adaptadas da oralidade para o texto escrito, importa informar que os Irmãos Grimm foram capitais na compilação das narrativas orais. Além deles, outros dois autores importantes traduziram não só Rapunzel, mas também criaram outras versões das narrativas, são eles: Charles Perrault e Hans Christian Handersen. Devido à relevância de tais autores e suas respectivas contribuições no âmbito das traduções e nas adaptações de contos maravilhosos, deve-se indicar neste artigo, alguns dados que referem-se


252 a publicações importantes e o contexto bibliográfico delineado por cada um deles. O primeiro, Charles Perrault nasceu em Paris e fazia parte de uma família burguesa parlamentar. Foi advogado na cidade de Orléans, depois controlador geral da superintendência do rei. Em 1671, ele entrou para Academia Francesa e em 1687 iniciou a disputa entre Antigos e Modernos que, recusava considerar os autores antigos como modelos insuperáveis. Em sua obra, verificam-se elementos que apresentam características oriundas do imaginário medieval lendário e camponês. Perrault retomou em prosa a falsa ingenuidade das histórias transmitidas oralmente apresentando nos contos temas ligados à moralidade e que representavam valores ilustres. O autor também contribuiu para a fundação da Academia de Ciências e a reconstrução da Academia de Pintura da França. Publicou em 1696, A bela adormecida do bosque. No ano seguinte publicou Les Histoires ou Contes du temps passé avec des moralités (As Histórias ou Contos do tempo passado, 1697). Este volume continha os seguintes títulos: La Belle au bois dormant (A Bela adormecida do bosque), Le Petit Chaperon rouge (Chapeuzinho vermelho), La Barbe bleue (A barba azul), Le Maître chat ou le Chat botté (O mestre gato ou o Gato de botas), Les Fées (As fadas), Cendrillon ou la Petite Pantoufle de verre (Cinderela ou A pequena sapatinho de vidro Ŕ grafia utilizada na edição original de 1697, Le Petit Pouce (O pequeno polegar) e Peau d'Âne (Pele de burro) . O segundo, Hans Christian Andersen, de origem dinamarquesa, foi um grande admirador das obras literárias de Ludvig Holberg e William Shakespeare. Em 1822, Hans Christian Andersen publicou seus primeiros textos e seu primeiro sucesso literário foi em 1830 com Um passeio desde o canal de Holmen até a ponta leste da ilha de Amagre. Porém, foi no período de 1832 a 1842 que ele publicou os textos que o consagraram como escritor de contos maravilhosos. Estes contos foram novamente reunidos e publicados em 1845, e nunca se destinaram a crianças. Foram publicados primeiramente em episódios até 1872, e os mais conhecidos até hoje são: Cada um e cada coisa em seu lugar, A pequena sereia, A Princesa e a ervilha, O roxinol, O patinho feio, A branca de neve e A roupa nova do imperador. Estes contos e histórias foram traduzidos em várias línguas e países do mundo, e até os dias de hoje inspiram outras histórias. E, por último, Jacob e Wilhelm Grimm, dois escritores eruditos, nascidos em Hanau, o primeiro em 4 janeiro de 1785, e o segundo em 24 de fevereiro de 1786. Ambos estudaram na universidade de Marbourg, Jacob era filólogo e estudava especificamente a literatura medieval e lingüística, Wilhelm era crítico literário. Em 1830, os irmãos foram estudar na universidade de Göttingen na Alemanha. Wilhelm tornou-se bibliotecário, enquanto que


253 Jacob direcionou seus estudos para a história da literatura e a filosofia. Eles deixaram a universidade por motivos políticos e voltaram para Kassel em 1837. Alguns anos mais tarde, Frédéric-Guillaume IV de Prusse (rei da Prússia) convidou-os para morar em Berlim onde ficaram até 1841. A obra científica maior dos Irmãos Grimm a Deutsche Grammatik (Gramática Alemã, 1819-1837) é considerada como fundadora da filologia alemã. Na segunda edição, de 1822, os irmãos ampliaram os estudos a cerca do som, fato que contribuiu bastante para a reconstrução de línguas mortas. Além disso, escreveram também Über d'en altdeutschen Meistergesang (Poesia dos mestres cantores, em 1811), a Deutsche Mythologie (Mitologia Alemã, em 1835) e ainda a Geschichte der deutschen Sprache (História da língua alemã, 1848). Além dessas, dentre as obras de Wilhelm Grimm encontram-se várias que tem como tema a literatura e as tradições populares alemãs, entre elas; Altdänische Heldenlieder (Antigos cantos heróicos dinamarqueses, de 1811), Die deutschen Heldensage (As lendas heróicas da antiga Alemanha, de 1829), Rolandslied (A canção de Roland, 1838) e Altdeutsche Gespräche (Antigo dialeto alemão, de 1851). Os Irmãos Grimm reuniram também outros títulos a partir de diferentes fontes, e os publicaram em dois volumes bastante conhecidos do Kinder- und Hausmärchen, (Contos maravilhosos para as crianças e para o lar, em 1812-1829). Uma nova edição surgiu em 1857 contendo histórias suplementares que deram origem ao famoso livro intitulado Contos de Grimm. Os irmãos trabalharam juntos também em outras obras, e publicaram em 1852, o primeiro volume do clássico Deutsches Wörterbuch (Dicionário Alemão), que só foi terminado posteriormente por outros eruditos em 1958. Em 1841, Wilhelm tornou-se membro da Academia de Ciências de Berlim, e publicou as seguintes obras; Pele de burro, Pobreza e modéstia vão ao céu, Cinderela, Irmão alegria, Rapunzel, entre outros.

RAPUNZEL E A TRADUÇÃO É importante lembrar que o conto Rapunzel já foi traduzido no Brasil por vários autores. Dentre as publicações mais recentes, encontra-se o reconto publicado em 2003, feito por Júlio Emílio Braz e Salmo Dansa. Esta adaptação, se comparada a outras traduções mais tradicionais, certamente apresenta um aspecto particular em relação às ilustrações que a acompanham. O texto adaptado por Júlio Emílio Braz, autor que já publicou outros livros que não se restringem ao gosto infantil, mas também se dedicam ao público infanto-juvenil e


254 adulto, acompanhado das ilustrações de Salmo Dansa, permitem que a tradução escrita não se restrinja somente ao aspecto verbal do texto, tendo seu significado expandido pela possibilidade da tradução visual. Assim, neste artigo, propõe-se conferir em que sentido, o uso da imagem aliada ao texto escrito constrói o enunciado e a interpretação de um conto maravilhoso. Para se fazer a análise do conto Rapunzel, o referencial teórico a ser considerado como base para o estudo são os conceitos apontados por Sartre (1989), no qual se envolvem a análise do texto escrito e o papel do leitor em função da obra literária, e ainda, as relações que permeiam o processo interpretativo. O texto escrito, assim como o imagético, articulam-se em relação às traduções que receberam de seus adaptadores da mesma maneira que, cada uma dessas adaptações se constroem individualmente. Tanto a obra escrita como a imagem tem como motivo de sua existência sua própria relação com o mundo, e conseqüentemente, a necessidade que o leitor tem em se relacionar com ela é também um motivo da criação artística. Ou seja, ao se produzir uma obra, o próprio processo de criação torna-se essencial em suas medidas e critérios. No conto Rapunzel se encontra além dos aspectos visuais fundamentais para a compreensão do texto escrito, outros fatores que se tornam aliados durante a interpretação. Neste ponto, o objetivo desta análise coincide com a proposta feita por Iser (1983) na qual se afirma que o texto literário só produz seu efeito quando é lido e a leitura encontra-se no centro das reflexões, pois através delas os textos podem ser observados em sua complexidade. Portanto, autor, obra e leitor encontram-se numa relação íntima que ocorre durante a leitura, e que se realiza tanto no âmbito da tradução em imagens quanto na tradução escrita. Ao se retomar a seguinte concepção dada por Sartre (1989, p.35), de que o objeto literário atua como um estranho pião, ou seja, só existe em movimento, percebe-se a necessidade de que a interpretação ocorra durante o tempo que a leitura durar. Nesse sentido, ler a imagem, assim como a escrita é um ato que acontece num âmbito de previsões. A princípio, inicia-se um processo de decodificação de significados. Em seguida, o texto é posto para que ele seja desvendado, bem como os caracteres que compõem a língua na qual ele foi escrito, e posteriormente, os fatores virtuais que compõem os significantes. E, a partir desde ponto, o leitor desses atos interpretativos inicia a construção dos significados produzidos pela recepção desta leitura. O aspecto interpretativo não difere tanto quando ao invés de se referir a um texto


255 escrito, em seu lugar haja uma imagem. As hipóteses que certamente surgirão a partir da leitura direta dos caracteres que compõem a imagem serão confirmadas ou não durante a perspectiva que se cria na análise. Assim, a leitura se dá no plano do horizonte móvel do texto literário. A palavra, assim como a ilustração atua num sentido de função criadora de percepções orientadas pelo imaginário e redimensionadas através do horizonte de expectativa do leitor. No caso específico do qual se ocupa este artigo, pode-se afirmar que desde o início, o sentido da obra literária não está contido somente nas palavras. É importante também lembrar que a problemática em relação à tradução de obras literárias ainda é tema bastante discutido dentre as disciplinas que compõem os estudos literários. Não caberia aqui discutir questões pertinentes ao estudo das traduções em outros aspectos mais expansivos, mas sim apontar elementos que foram ao mesmo tempo traduzidos em palavra e em imagem. Assim, pode-se afirmar que as ilustrações de Rapunzel (2003) feitas com fios de cabelo confirmam o texto escrito, expandindo o horizonte de expectativas do leitor. Como exemplo para esta análise, utilizar-se-á apenas uma ilustração que traduz o tema da proibição latente nas entrelinhas da adaptação de Braz. Na imagem tem-se o confinamento da menina na torre. A significação dada a cada um dos elementos vincula-se diretamente a ação dos personagens e as proibições se aliam de forma particular em cada linguagem dada, seja ela escrita ou ilustrativa. O aprisionamento que a protagonista se encontra confere-se tanto na escrita quanto na ilustração que a acompanha. A imagem propõe concomitantemente à escrita, o confinamento da personagem. A solidão que acompanha Rapunzel é representada no espaço através da forma circular do quarto no alto da torre, aspecto que se valoriza devido o formato colocar em evidência os próprios cabelos da personagem. Além deste ponto, na leitura da linguagem visual proposta por Dondis (2003, p. 58) se afirma que a forma circular em termos estéticos representa a exclusão, o tédio. Ao se observar a ilustração em primeiro plano, pode-se perceber um pequeno círculo feito entorno da protagonista que representa por vez, a reclusão que a Feiticeira condiciona personagem. A ilustração configurada em primeiro plano permite que a imagem se desloque provocando assim certa proximidade entre a imagem e o leitor, a percepção ótica confunde-se devido o material utilizado: o cabelo. 1

IMAGEM 01: Rapunzel aprisionada na torre . p.13.

1

O uso da imagem neste artigo foi autorizada pelo ilustrado Salmo Dansa.


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É relevante dizer que o uso de fios de cabelo caracteriza particularmente o texto imagético, pois segundo Dondis (2003, p.70) ―É possível que uma textura não apresente qualidades táteis, mas apenas óticas (..).‖ Nesse sentido, a ilustração desenvolve o senso de percepção do leitor, pois uma vez colocada num plano virtual próximo, esta facilita a leitura do conto (ao se abrir o livro, de um lado tem-se o texto e do outro, a ilustração), e ainda, permite relacionar o elemento central ligado do conto (os cabelos) ao aspecto escrito. Esse elemento é importante, pois motiva a imagem e causa flexibilidade à forma geométrica posta. A longa cabeleira que se vê na ilustração representa, por ela mesma, a protagonista. O texto convida o leitor a fazer a relação texto-imagem para se compreender o ambiente no qual a protagonista se encontra. As características do espaço podem ser observadas no seguinte trecho: ―A torre muito alta e de aspecto assustador, não tinha escadas nem portas, mas, lá no alto, tinha uma janelinha‖ (BRAZ, 2003, p.12). Da mesma forma como o trecho descrito faz a distinção de um cenário a outro, ou seja, do espaço da torre e da floresta que a cerca, em cada momento da narrativa, a ilustração apresenta um espaço que se configura fechado. Por exemplo, na ilustração, Rapunzel encontra-se no interior da torre, em espaço fechado, recluso, no qual se coloca em evidência a solidão, além de apresentar a personagem de costas impedindo que seu rosto seja revelado ao leitor. Já o ambiente da floresta, por sua vez, apesar de aparentemente indicar espaço aberto, em verdade também ilustra o confinamento, pois a personagem encontra-se no ambiente, abandonada. Os eventos que se sucedem até este ponto da narrativa são ajustados ao conteúdo das


257 ações da personagem e o uso do fio de cabelo para a criação da ilustração também propõem um aspectos importante: o uso da linha que representa em termos visuais o início de qualquer tipo de desenho. Assim, na tradução em imagem feita por Dansa pode-se observar aspectos que podem ser contemplados tanto no aspecto escrito quanto no visual da leitura. De acordo com os estudos de Khéde (1986, p.21), a criança na narrativa, no termo simbólico, representa a inocência, a fragilidade e os processos de iniciação sexual. Ao se analisar a imagem de Rapunzel apresentada na primeira ilustração, observa-se que ela não se trata de uma mulher adulta, mas sim de uma jovem ainda em período de transição entre infância e adolescência, fato que se confirma textualmente no trecho; Rapunzel, com o tempo, transformou-se numa criança linda, a mais linda que o mundo já vira. Temerosa que a jovem, ao chegar aos doze anos, voltasse para os pais ou simplesmente fugisse, a feiticeira a trancou numa torre bem no meio da floresta. (BRAZ, 2003, p.12)

A Rapunzel, de Júlio Emílio Braz aponta entre outros temas ligados à proibição, resquícios que relembram na origem as compilações da Idade média feita pelos Irmãos Grimm. Pode-se citar como exemplo, a violência que a Feiticeira condiciona Rapunzel; primeiramente quando ela é retirada da sua família para o cumprimento de uma promessa, e em segundo plano, a prisão no alto da torre. Mais especificamente, há de se apontar também o processo de iniciação sexual (pois o Príncipe visita a personagem à noite na torre) e o abandono por causa da gravidez, pois a Feiticeira, ao descobrir os encontros amorosos com o Príncipe, abandona Rapunzel grávida de gêmeos na floresta. Portanto, cada uma das traduções (escrita ou imagética) é uma finalidade em si mesma. A obra amplia-se em relação ao seu leitor e existe por si. Um leitor de contos maravilhosos pode escolher a leitura de cada uma delas ou de ambas. As ilustrações podem se tornar objetos a ser interpretados, e cabe ao leitor fazer a escolha. Nesse sentido, é necessário que os estudos a cerca da tradução incorporem também o estudos dos outros elementos que compõem a obra literária, e não simplesmente reduzam-na a traduções limitadas ao texto escrito. Assim, o que o autor escreve dirigi-se aos leitores, que por sua vez são convidados a fazer parte da obra. Não se pode limitar também a capacidade criadora do leitor, pois o desvendamento em si é também um processo de criação. O leitor é um indivíduo autônomo capaz de propor um paradoxo dialético em relação à leitura estimulando a liberdade e a capacidade de criação. O leitor diante da ilustração de Dansa pode ter a ilusão de que numa primeira visão trata-se de uma imagem em terceira dimensão, característica que só se concretiza por conta dos planos em que os elementos foram postos e pelo uso dos fios de cabelo para a criação da


258 imagem. A obra literária, neste caso, não limita a figura representada, pelo contrário o recurso visual aproxima o leitor da narrativa. Vale lembrar que esta tradução visa retomar a leitura do universo que compõem a obra. Cada ilustração recupera uma leitura de seu tradutor. A atividade criadora constitui-se no objeto. Fazer com que o outro perceba o que é essencial não é tarefa fácil, o que deve se propor em verdade é a própria obra como resultante de uma leitura, para que ela possa ser superada, transformada, transcendida. Vale lembrar que tanto a interpretação da obra escrita quanto da imagem perpassa pela percepção do leitor, que a sua vez traduz ao seu modo o que lê de acordo com as experiências adquiridas ao longo de cada leitura. É bem verdade que a compreensão de uma mensagem passa por uma interpretação lingüística, mas não se pode obliterar o fato de que, tal interpretação pode aliar ou não em si sujeitos que compõem o objeto literário quanto ao seu valor estético. Ainda mais, quando se trata de valores diferenciados como a escrita e a imagem. O tradutor se torna um mediador entre o texto e seu leitor articulando a seu modo as traduções que, apesar das diferenças tem como fim essencial o leitor. As ilustrações juntamente com o enunciado permitem que o leitor interprete em níveis diferentes o objeto literário. Em certos contextos, a imagem se deixa interpretar como os nomes, e algumas vezes, apenas sugerem as informações. Nos textos literários, a ilustração mantém estreitas relações com o texto que acompanham. Tais relações são de natureza complexa, pois possuem em sua estrutura conceitos que se reportam a semiótica, a arte, o simbolismo. As relações entre o visual e o verbal num texto podem adquirir formas diferenciadas, se o leitor amplia seu horizonte de leitura na complexidade dada no texto quanto objeto estético. Para finalizar, há de se pontuar que a tradução intersemiótica por ser uma relação intertextual, na qual o centro de interesse é o sentido, percebe-se que este pode se converter em formas materiais diferentes, mas que veiculam conteúdos próximos e que algumas vezes, apontam para o texto de partida do qual surgiram. É importante lembrar também que, na literatura que há várias questões a ser amparadas no que tange ao estudo da tradução, isso sem mencionar as condições históricas e culturais. A tradução escrita ou em imagem ocorre em sistemas diferenciados, primeiro lingüístico, segundo semiótico. Logo, a imagem no texto destaca-se não só pela criatividade do ilustrador, aqui concebido como tradutor de equivalências entre a história que ele conheceu (quanto leitor) e o que o ele produziu. Ambos os universos interpretativos, necessitam de aspectos que liguem o centro da estrutura narrativa e o leitor.


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRAZ, J. Emilio. Rapunzel. Recontado por Júlio Emílio Braz. Ilustrado por Salmo Dansa. São Paulo: FTD, 2003. DONDIS, A. Donis. Sintaxe da linguagem visual. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ISER, Wolfgang. A interação do texto com o leitor. In: LIMA, Luiz Costa (org.). Teoria da literatura em suas fontes. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. v. 2, p. 83-132. KHÉDE, Sonia Salomão. Personagens da literatura infanto-juvenil. São Paulo: Ática, 1986. São Paulo: FTD, 2003. SARTRE, Jean-Paul. Que é a Literatura? Trad. Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Ática, 1989. p. 32-53.

EU POSSO CHAMAR DE TU OU DE VOCÊ ? A VARIAÇÃO DA SEGUNDA PESSOA DO SINGULAR NA FALA DOS BELENENSES Mariane da Cruz da SILVA (UFPA) Orientador(a): Prof.ª Dr.ª Regina Célia Fernandes CRUZ (UFPA/CNPq/CAPES/FULBRIGHT) RESUMO: O projeto tem por objetivo analisar e descrever o uso dos pronomes para a segunda pessoa do singular Ŕ Řtuř e Řvocêř - na variedade do português falada na cidade de Belém (PA). Com base em estudos sociolinguísticos, diversos estudiosos vêm propondo uma verificação do uso destas variantes pronominais em diferentes localidades (Bolivar, 2008; Dias, 2007; Mota, 2008; entre outros), obtendo resultados que indicam que tanto o grau de formalidade ou informalidade interfere na variante escolhida no momento de fala (Dias, 2007; Mota, 2008), como também o da origem do indivíduo pode influenciar este uso (Mota, 2008; Pereira, 2007). Sendo assim, aqui, serão utilizados dados obtidos através de gravações de conversas espontâneas realizadas em locais diversos (casa, lugar público e trabalho) que serão analisados a partir dos pressupostos teórico-metodológicos da Sociolinguística Variacionista (Weinreich, Labov e Herzog 2006 [1968] e Labov 2008 [1972]). Os informantes estarão estratificados por sexo, faixa etária, escolaridade e todos deverão ser nascidos em Belém (PA) ou terem vindo para a cidade com, no máximo, 05 anos de idade. Todos os informantes deverão ser filhos de belenenses. Serão selecionados 48 informantes, sendo 16 para cada grupo etário (15-25 anos, 26-45 anos e de 46 anos de idade em diante), divididos em números iguais para cada sexo. Desta forma, teremos 02 informantes, em cada faixa etária, de cada sexo para cada nível de escolaridade (analfabetos ou com níveis fundamental, médio ou superior completos). Será avaliada a preferência ou não de determinada variante de acordo com a situação na qual o falante se insere. PALAVRAS-CHAVE: Pronomes, Variação, Sociolinguística. ABSTRACT: The project aims to analyze and describe the use of pronouns of singular second person - Řtuř and Řvocêř - in Brazilian Portuguese spoken in city of Belém (PA) based on sociolinguistic studies. Several works have proposed a verification of the use of these pronominal variants in different locations (Bolivar, 2008; Dias, 2007; Mota, 2008; among others), obtaining results which indicate that both the degree of formality or informality interfere with the chosen variant at the moment of speech (Dias, 2007; Mota, 2008), but also the origin of the individual can influence this use (Mota, 2008; Pereira, 2007). So here will be used data obtained from recordings of spontaneous conversations held in various locations


260 (home, public place, work, for example) that will be analyzed from the theoretical and methodological assumptions of Sociolinguistic Variation (Weinreich, Labov and Herzog 2006 [1968]; Labov 2008 [1972]). Informants will be stratified by sex, age, education, and all must be born in Belém (PA) or coming to town with no more than 05 years of age. All informants must be sons of native belenenses. Will be selected 48 informants, 16 in each age group (1525 years, 26-45 years and 46 years old), divided in equal numbers for each sex. Thus, we have 02 respondents in each age group of each sex for each level of schooling (illiterate or with levels of primary, intermediate or higher in full). Preference will be evaluated or not of a variant according to the situation in which the speaker belongs. KEY-WORDS: Pronoums, linguistic variation, morphosyntaxic variavel.

INTRODUÇÃO A variação da língua é um aspecto que não pode ser ignorado em qualquer estudo linguístico que tem como finalidade maior descrever fielmente o funcionamento dos sistemas linguísticos. Assim como a sociolinguística já demonstrou muito bem que a heterogeneidade é inerente à linguagem humana. Callou e Leite (2004: 7) iniciam seu livro Como falam os brasileiros destacando a importância da fala para identificar uma comunidade: É através da linguagem que uma sociedade se comunica e retrata o conhecimento e entendimento de si própria e do mundo que a cerca. É na linguagem que se refletem a identificação e a diferenciação de cada comunidade e também a inserção do indivíduo em diferentes agrupamentos, estratos sociais, faixas etárias, gêneros, graus de escolaridade. A fala tem, assim, um caráter emblemático, que indica se o falante é brasileiro ou português, francês ou italiano, alemão ou holandês, americano ou inglês e, mais ainda, sendo brasileiro, se é nordestino, sulista ou carioca.

O projeto aqui proposto terá como objetivo principal descrever e analisar o comportamento das variantes de segunda pessoa do singular Ŕ Řtuř e Řvocêř - no português falado na cidade de Belém do Pará. Para tanto, verificaremos qual(is) fator(es) linguístico(s) e/ou extralinguístico(s) determina(m) o uso das variantes tu e você no português falado nessa variedade linguística a partir de uma análise quantitativa em que serão analisados dados obtidos através de conversas espontâneas de falantes nativos da variedade em questão. Os falantes serão nativos da região ou poderão ter vindo morar no local com até 05 anos. A hipótese aqui levantada é a de que a variante de maior frequência de ocorrência no português falado na cidade de Belém (PA) é a variante Řtuř. Acredita-se igualmente que é o grau de intimidade entre os falantes que está na base do condicionamento de uso das variantes da 2ª pessoa do singular do português falado na capital do Pará. Sendo assim, a análise da variação dos pronomes de segunda pessoa do singular, aqui proposta, seguirá os princípios da Sociolinguística Variacionista, já que compreendemos que


261 língua e sociedade caminham juntas, uma influenciando a outra no momento de escolha de cada variante dentro de uma determinada língua. 1. VARIAÇÃO PRONOMINAL Segundo Lopes (2007:103), ŖA integração, principalmente no português do Brasil, de você e a gente no quadro de pronomes criou uma série de repercussões gramaticais em diferentes níveis da línguaŗ, desta forma, a variação pronominal observada na fala tem despertado interesse em diversos pesquisadores (MODESTO, 2007; LOPES, 2007; entre outros) que buscam encontrar explicações teóricas para esta variação a partir da observação do fenômeno. Assim, é interessante fazer um estudo sociolinguístico que nos possibilite ter uma visão do real uso dos pronomes na fala dos indivíduos de uma determinada comunidade, para verificar e apontar qual curso a variação está seguindo, já que de acordo com Lopes (2007: 106): O quadro de pronomes, que ainda vigora nas gramáticas, estruturado a partir de três pessoas do discurso (eu/tu/ele) com variação de número (nós/vós/eles), está longe de ter uma coerência interna e de dar conta da realidade concreta do português do Brasil.

As pesquisas têm demonstrado que o uso destas variantes pronominais apresenta-se de formas diferentes. As variantes tu/você, em cada região, tem comportamentos diferenciados. Entre os diversos locais onde já foram estudadas estas variantes, temos: Brasília (DF), onde Dias (2007) verificou que o uso destas variantes indica os diferentes graus de intimidade e de respeito entre os falantes; Belém (PA), onde Soares e Leal (1993) observaram o uso dos pronomes de tratamento dentro do seio familiar e, Porto Alegre (RS), onde Bolivar (2008) analisou a qual pronome de tratamento é dado a preferência no momento em que os atendentes de loja falam com o cliente. O único estudo sobre a variedade linguística falada em Belém (PA) é datado do início da década de 90. Soares e Leal (1993) observaram o uso dos pronomes de tratamento nas relações familiares. A pesquisa foi realizada através de entrevistas (informante e entrevistador) e gravações de conversas espontâneas entre pais e filhos em suas próprias casas. Por questão de uma maior facilidade, os estudos foram feitos com pessoas do próprio local onde trabalham as pesquisadoras, a saber, técnicos e professores da Universidade Federal do Pará e seus filhos. Os resultados das análises apontam a presença das variantes Ŗtuŗ ~ Ŗvocêŗ ~ Ŗsenhorŗ, com um decréscimo no uso desta última forma e um aumento no


262 uso da variante Ŗtuŗ pelos informantes-filhos ao dirigirem-se a seus pais. A variável sexo não foi considerada um fator que influencie na escolha da variante, enquanto a idade e o grupo socioeconômico mostraram-se bastante interessantes. Entre os professores e seus filhos há um maior uso da forma Ŗtuŗ, com ambos utilizando esta variante ao dialogarem com o outro. Já entre os funcionários e seus filhos o que se tem é uma assimetria, pois enquanto os pais utilizam em maior número a forma Ŗtuŗ, os filhos falam com os pais utilizando a forma Ŗo (a) senhor (a)ŗ. A forma Ŗvocêŗ é considerada pelas autoras como uma variante que se opõe ao Ŗtuŗ e que, dentro da família belenense, está ligada à intimidade ou a uma busca por uma maior intimidade, sendo usada apenas por filhos que utilizam a forma Ŗo (a) senhor (a)ŗ. Dias (2007) analisou o uso do pronome de segunda pessoa do singular em algumas áreas da cidade de Brasília (DF), com o enfoque, principalmente, na variante Ŗtuŗ. Para tanto, obteve sua amostra a partir da gravação conversas espontâneas de informantes estratificados por sexo (masculino e feminino) e faixa etária (13 a 19 anos, 20 a 29 anos e mais de 30 anos de idade). Sua análise comprovou que a variante Ŗtuŗ é mais utilizada em situações de brincadeiras, ironias, em tratamentos íntimos e solidários (principalmente nas duas primeiras faixas etárias) e, ainda, em usos mais gerais; é, também, maior entre os mais jovens, sendo indício tanto de uma mudança em curso, como também de gradação etária. Segundo a autora, o uso do Ŗtuŗ é preferível por pessoas menos conservadoras, com estilo de vida mais alternativo. De modo geral, Dias (2007) afirma que o falante, à medida que se insere no mercado de trabalho, utiliza menos a variante Ŗtuŗ. Com relação à variedade do português falada na cidade de Porto Alegre (RS), Bolivar (2008) observou as formas de tratamento utilizadas pelos atendentes de lojas em alguns centros comerciais, ao falarem com seus clientes, com enfoque na forma Ŗvocêŗ. Segundo o autor, os dados principais foram obtidos através de uma pesquisa rápida e anônima. Bolívar (2008) verificou que a forma Ŗvocêŗ é avaliada de maneira positiva pelos vendedores de Porto Alegre (RS), sendo mais legitimada, diferente da forma Ŗtuŗ, que recebe um valor mais negativo e menos legítimo. A forma Ŗvocêŗ também está mais presente, segundo Bolívar (2008), em ambientes com um poder socioeconômico mais alto e é mais utilizada por mulheres. Sendo assim, na capital gaúcha, a variação na forma de tratamento usada em interações entre vendedores e clientes está relacionada aos fatores sexo e socioeconômico dos interactantes. Mota (2008) analisou, na cidade de São João da Ponte (MG), o uso do Ŗtuŗ e do Ŗvocêŗ na fala dos indivíduos do local. A pesquisa foi feita através de entrevistas e testes de produção


263 linguística com informantes de ensino fundamental estratificados por sexo e faixa etária. Os resultados obtidos por Mota (2008) demonstram que apesar da forma Ŗtuŗ ser usada em todas as faixas etárias, é entre os jovens que esta variante prevalece. Sendo assim, como não há indícios de que somente jovens utilizam a forma Ŗtuŗ, estando presente esta variante também entre os falantes de meia idade e idosos, não podemos considerar o uso desta forma uma inovação na cidade em estudo. De acordo com Mota (2008), a escolha da variante Ŗtuŗ ou Ŗvocêŗ depende do grau de intimidade entre os falantes e de qual estilo estes privilegiarão no momento da interação (formal ou informal). Sua análise aponta que em situações de intimidade e informalidade a forma Ŗtuŗ é a mais usada. A autora conclui que fatores sociais estão diretamente ligados à variação pronominal em questão. Um fenômeno bastante verificável nas diversas pesquisas é a escolha do falante pela variante que mais se adapta ao contexto em que está inserido. Pereira (2007: 32) diz que Ŗo uso alternativo de formas linguísticas também não ocorre ocasionalmente, supõe-se, neste caso, a influência de fatores estruturais, sociais e regionais que justifiquem as alternâncias de usoŗ. Tarallo (1985:36) comenta que é a partir da Ŗsistematização do caos linguísticoŗ que se pode perceber a existência de fatores que condicionam a escolha do falante por determinada variante. 2. METODOLOGIA O projeto aqui descrito terá como base teórico-metodológica os estudos da Sociolinguística Variacionista para a obtenção dos resultados esperados. Para a formação do corpus serão coletados dados através de gravações de conversas espontâneas de 48 informantes da cidade de Belém (PA). Esta cidade fica localizada na Região Norte do Brasil, com um território de 1.064,92 km² de acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A partir dos dados encontrados no SIIS (Sistema de Informações de Indicadores Sociais do Estado do Pará Ŕ Abrangência: Belém), retirados de fontes como IBGE, MEC-INEP, a população total da cidade de Belém (PA) estimada em 2009 é de 1.437.604 habitantes, sendo 678.850 do sexo masculino e 758.754 habitantes do sexo feminino. Na área urbana temos 1.428.260 pessoas e, na área rural, 9.344 habitantes, comprovando que a maior parte da população está localizada na área urbana da cidade de Belém (PA). Quanto à faixa etária, os dados apontam que são 18.307 habitantes menores de 01 de idade; 209.303 crianças de 1 a 9 anos; 261.814 pessoas de 10 a 19 anos; 709.850 habitantes com idades entre 20 e 49 anos e,


264 238.330 pessoas acima de 50 anos de idade. Quanto à educação da população belenense, temos que são 1.039.895 pessoas na faixa etária de 10 anos ou mais de idade, sendo 46.008 habitantes com menos de 01 ano de estudo, ou sem nenhuma instrução; de 01 a 08 anos de estudo temos o número de 594.157 pessoas; 302.344 habitantes entre 09 e 11 anos de estudo; 89.798 pessoas com mais de 12 anos de estudo e, 7.588 não determinados. Figura 01 - Localização de Belém no Pará

Fonte: Guia Net1 Selecionaremos, portanto, 48 informantes que apresentem um perfil representativo da população da cidade de Belém do Pará. Por essa razão utilizaremos uma amostra estratificada em escolaridade, sexo e faixa etária, conforme ilustrado na figura 02 abaixo. Figura 02 - Constituição da Amostra a ser utilizada na pesquisa.

1

Consultar http://www.guianet.com.br/pa/index.html.


265

O processo de escolha dos informantes seguirá, portanto, os seguintes critérios: serão escolhidas pessoas nascidas na cidade de Belém (PA), ou que nela tenham vindo morar com no máximo 05 anos de idade, e que não poderão ter se ausentado por muito tempo da cidade em questão. Os informantes serão estratificados por sexo, faixa etária e escolaridade, serão divididos em três faixas etárias (15-25 anos, 26-45 anos e de 46 anos de idade em diante), quanto à escolaridade, serão analfabetos, ou deverão ter ensino fundamental, ensino médio ou ensino superior completos. Para cada requisito serão escolhidos 02 informantes de ambos os sexos. Assim, teremos 16 informantes para cada faixa etária, sendo 08 de cada sexo, como observamos na tabela 01 abaixo retirada de Sousa (2010). As gravações serão feitas em ambientes diversificados, com interlocutores também diversificados, para que tenhamos ocorrências em diferentes contextos. Para a obtenção dos dados das conversas espontâneas, depois de selecionados os informantes, será dado início a coleta de dados, sendo, logo após, transcritas as conversas e separadas as variantes para ser feita a análise. Concluída esta etapa, dar-se-á início à divisão por fatores extralinguísticos (sexo, faixa etária e escolaridade) para, a seguir, serem analisadas as frequências de uso de cada variante dentro de seus determinados fatores isoladamente. Após a obtenção destes resultados, será feito o cruzamento dos fatores extralinguísticos para serem analisados os possíveis condicionadores, ou grupo destes, do uso das variantes na cidade. Podendo assim, verificar e apontar o curso que a variação pronominal de segunda pessoa do singular está seguindo em Belém. Tabela 01 - Amostra estratificada dos 48 informantes de Belém Ŕ urbano (Sousa 2010).


266 Faixa etária

Sexo Masculino (8)

15 a 25 anos (16) Feminino (8)

Masculino (8) 26 a 45 anos (16) Feminino (8)

Masculino (8) Acima de 45 anos (16) Feminino (8)

Escolaridade1 Superior (2) Médio (2) Fundamental (2) Não-escolarizado (2) Superior (2) Médio (2) Fundamental (2) Não-escolarizado (2) Superior (2) Médio (2) Fundamental (2) Não-escolarizado (2) Superior (2) Médio (2) Fundamental (2) Não-escolarizado (2) Superior (2) Médio (2) Fundamental (2) Não-escolarizado (2) Superior (2) Médio (2) Fundamental (2) Não-escolarizado (2) Fonte: Sousa (2010, p.50)

Para a obtenção dos resultados, será utilizado o programa para análise de dados estatísticos ŖRŗ2. Utilizando tais procedimentos metodológicos, pretende-se demonstrar coerentemente como se dá o condicionamento de ocorrências das variantes de segunda pessoa do singular no português falado na capital paraense, ilustradas na figura 03 abaixo. Figura 03 Ŕ A variável linguística e suas variantes.

A variação pronominal na fala é um fato incontestável, apesar de ainda termos nas escolas um ensino voltado para a manutenção das variantes ditas Ŗcorretasŗ. Acreditamos, 1

Todos os informantes possuem o nível de escolaridade completo. Consultar < http://cran.r-project.org/other-docs.html#nenglish > e < http://cran.r-project.org/doc/contrib/Shortrefcard.pdf > 2


267 então, que o presente trabalho faz-se importante para que possamos ter um maior conhecimento do rumo que os pronomes de 2ª pessoa do singular vêm tomando na fala de indivíduos de diversas regiões do país. Somente a partir de pesquisas que demonstrem o real uso das variantes em questão, poderemos identificar os fatores que condicionam ou não a preferência dos falantes por determinada forma, dependendo da situação na qual está inserido, sendo possível, assim, fazer sistematização destas variantes pronominais. CONCLUSÃO O presente projeto de Dissertação tem como objetivo principal a descrição das variantes de segunda pessoa do singular na variedade linguística do português falado em Belém (PA). Trata-se de um estudo de caráter variacionista cuja amostra estratificada socialmente é composta de 48 informantes ao todo. Apenas um estudo anterior sobre o assunto é registrado na literatura, o de Soares e Leal (1993), datado de mais de 10 anos e cuja metodologia não utilizou tratamento variacionista. Portanto o presente projeto de Dissertação, aqui descrito, compreende a primeira tentativa científica de dar conta do fenômeno na variedade linguística da capital paraense. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BOLIVAR, T. M. V. (2008). A forma você em interações comerciais em Porto Alegre, RS. Dissertação de Mestrado em Linguística Ŕ Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2008. CALVET, L.- J. Sociolingüística: uma introdução crítica. Trad. Marcos Marcionilo. 3ª ed. São Paulo: Parábola, 2007. DIAS, E. P. (2007). O uso do tu no português brasiliense falado. Dissertação de Mestrado em Linguística, Brasília, UnB, 2007. IBGE. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1. Acesso em 27/10/2010. LABOV, W. Padrões Sociolingüísticos. Trad. Marcos Bagno, Maria Marta Pereira Scherre, Caroline Rodrigues Cardoso. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. LEITE, Y.; CALLOU, D. Como falam os brasileiros. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. LOPES, C. R. Pronomes pessoais. In: BRANDÃO, S. F.; VIEIRA, S. R. (org.) Ensino de gramática: descrição e uso. São Paulo: Contexto, 2007, pp. 103-119. MODESTO, A. T. T. Formas de tratamento no português brasileiro: a alternância tu/você na cidade de Santos Ŕ SP. Revista Eletrônica de Divulgação Científica em língua Portuguesa, Linguística e Literatura Letra Magna. Ano 04 n.07 Ŕ 2º semestre de 2007. Disponível em : <http://www.letramagna.com/xerxesartigo.pdf>. Acesso em: 30/10/2009. MONTEIRO, J. L. Para compreender Labov. Petrópolis Ŕ RJ: Vozes, 2000. MOTA, M. A. (2008). A variação dos pronomes ‗tu‘ e ‗você‘ no português oral de São João da Ponte (MG). Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008.


268 PEREIRA, M. N. (2007) Atlas Geolingüístico do Litoral Potiguar Ŕ ALiPTG. Vol. I. Tese (Doutorado) Ŕ UFRJ, Rio de Janeiro, 2007. SIIS - Sistema de Informações de Indicadores Sociais do Estado do Pará Ŕ Abrangência: Belém. Disponível em: https://www2.mp.pa.gov.br/sistemas/gcsubsites/upload/53/belem.pdf. Acesso em: 09/11/2010. SOARES, I. C. R.; LEAL, M. G. F. Do senhor ao tu: uma conjugação em mudança. Moara – Revista do Curso de Mestrado, Universidade Federal do Pará, Belém, n.1: 27-64, mar./set., 1993. SOUSA, J. C. C. (2010). A Variação das Vogais Médias Pretônicas no Português Falado na Área Urbana do Município de Belém/PA. Dissertação (Curso de Mestrado em Letras) Ŕ Universidade Federal do Pará, Belém: UFPA, 2010. TARALLO, F. A pesquisa sociolinguística. São Paulo: Ática, 1985. WEINREICH, U.; LABOV, W.; HERZOG, M. I. Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança lingüística. Trad. Marcos Bagno. São Paulo: Parábola, 2006.

A INCORPORAÇÃO DO CONCEITO DE GÊNERO NO DISCURSO DE ESTUDANTES DA GRADUAÇÃO EM LETRAS SOBRE O ENSINOAPRENDIZAGEM DE LÍNGUA PORTUGUESA Nora Monteiro Pinto de ALMEIDA (UFPA) Orientador(a): Prof. Dr. Thomas Massao Fairchild (UFPA) RESUMO: Este trabalho insere-se no âmbito do projeto de pesquisa de Mestrado que atualmente desenvolvo na Universidade Federal do Pará. Seu objetivo é investigar a forma como os estudantes de graduação em Letras incorporam em seu discurso o conceito de gênero por meio da análise de sua produção escrita. Nesse sentido, foi feita a análise do Trabalho de Conclusão de Curso de um aluno concluinte do curso de Letras; nele, o estudante desenvolve sua proposta de trabalho a partir do gênero Charge, para fundamentar sua discussão sobre o uso dos gêneros segundo as teorias e postulados encontrados nos Parâmetros Curriculares Nacionais e nas obras de autores que trazem essa abordagem. PALAVRAS-CHAVE: gêneros, discurso, estudantes de Letras. ABSTRACT: This paper is a data presentation analysis of a research project conducted by me at Federal University of Pará to obtain the master degree. The main goal of this research is to investigate how undergraduate students of language arts use the concept of genre in their speech based in the analysis of their writing production. To achieve this goal I decided to use the genre trabalho de conclusão de curso (an academic genre very used in Brazil as the last evaluation to obtain a graduation degree in any area) of an undergraduate student who conducted a research in genre area utilizing cartoons to support his discussion of the use of the genre according to the theories and assumptions found in the National Curriculum and based in researches of important authors who explore this approach. KEY WORDS: Genres, speech, language artsř students.


269 1. ABORDAGEM TEÓRICA E CONCEITOS-CHAVE

Teoricamente, este trabalho se insere na perspectiva da Análise do Discurso de linha francesa, partindo-se das teorias de Foucault sobre discurso, formação discursiva e Sujeito, e de Dominique Maingueneau, no que se refere à questão do ethos discursivo. Além da teoria dos gêneros, de Bakhtin, utilizada por muitos autores no ensino/aprendizagem de línguas. Nas reflexões de Foucault (2000), vemos o discurso como uma dispersão formada por uma série de elementos que não apresentam necessariamente alguma unidade. Cabe à Análise do Discurso tentar descrever essa Ŗdispersãoŗ, procurando as regularidades que regem as formações discursivas. Para Orlandi (2005), Ŗestas podem ser vistas como regionalizações do interdiscurso, configurações específicas dos discursos em suas relaçõesŗ. Isso, dito de outra forma, significa a ocorrência de uma diversidade de instâncias enunciativas de forma simultânea e que podem concorrer para o controle ou transformação do indivíduo. O sujeito, aí presente, seria formado a partir de uma construção histórica e temporal, a partir dos diferentes lugares sociais que ocupa e, em função dessas posições ocupadas, resultando dos enunciados provenientes de uma multiplicidade de lugares institucionais que trabalham na coerção do seu dizer em diversas situações comunicativas. O Sujeito, entendido por Foucault como inexistente a priori, somente passa a existir quando seu interior é Ŗpreenchidoŗ, condição que se constitui somente por sua prática em sociedade, situada historicamente. Em nosso trabalho, temos o aluno de Letras como sujeito que se inscreve e uma formação discursiva situada sócio-historicamente, nesse sentido, esse aluno tem o seu dizer mobilizado por uma determinada formação discursiva que se filia aos postulados e teóricos sobre a teoria dos gêneros no trabalho em sala de aula, numa perspectiva que se fundamenta na abordagem sóciointeracionista de ensino/aprendizagem de línguas. Dessa forma, as teorias que trazem esse tipo de abordagem seriam entendidas por esse sujeito como as mais adequadas, uma vez que fazem parte da formação discursiva em que ele se inscreve, em detrimento de outras que serão consideradas, também a partir dessa formação discursiva, como tradicionais, menos eficazes, etc. Já ao tratarmos de ethos, temos o discurso que persuade, que busca convencer, na medida em que confere ao seu orador ser digno de fé, de uma confiabilidade atribuída ao seu discurso: o ethos discursivo. Este corresponde a uma previsão sobre o caráter do orador, construída por meio de mecanismos utilizados em seu discurso e capazes de convencer o ouvinte para a adesão do sujeito a um determinado ethos. Maingueneau (2005) entende que


270 essa adesão estaria ligada a uma voz, interpretada a partir de sua instância comunicativa. Essa voz não diria respeito apenas àquilo que é dito, mas à maneira como se diz. Isso implicaria nas escolhas lingüísticas do enunciador: no tom de voz, nas expressões faciais, nos gestos usados e até mesmo na aparência. Esse tom seria capaz de atribuir corporalidade e caráter ao ethos, uma corporalidade que é atribuída ao enunciador a partir do seu modo de dizer. Na criação de uma imagem subjetiva que é chamada, por Maingueneau, de fiador. Aderir ao ethos seria propriar-se dele, incorporá-lo, a maneira pela qual o destinatário seria condicionado pela formação discursiva a tomá-lo como seu também. Em nossa análise, a importância desse conceito se traduz na imagem que o aluno de Letras tenta construir de sí próprio por meio de seu texto escrito. No tom de credibilidade que ele busca quando utiliza palavras e expressões muito usadas nos discursos pedagógicos vigentes, por autores renomados que discutem a teoria dos gêneros e pelos PCN; em escolhas como Ŗpráticas sociais de leitura e escritaŗ, Ŗgêneros enquanto objeto de ensinoŗ, Ŗaluno proficienteŗ, etc. No momento em que Ŗincorporaŗ esses termos à sua escrita, o aluno está se valendo dos mesmos recursos que um orador utiliza para tornar seu discurso digno de fé, de credibilidade perante à platéia. Como o aluno busca parecer-se com os autores que leu para escrever seu trabalho, a transferência se dá no plano da escrita. Na numa adesão que é condicionada por sua inserção em uma determinada formação discursiva, para que, posteriormente, venha a incorporá-la. Entendemos que os conceitos elencados acima nos parecem fundamentais para essa análise, na medida se relacionam à forma como a teoria dos gêneros vem repercutindo na formação do profissional de língua portuguesa durante a sua formação acadêmica e, consequentemente, em sua futura atuação em sala de aula. Finalmente, outro conceito importante em nosso trabalho é a definição de gênero a partir de Bakhtin (1992): Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da língua. Não é de surpreender que o caráter e os modos dessa utilização sejam tão variados como as próprias esferas da atividade humana, o que não contradiz a unidade nacional de uma língua. A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana. O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua ŕ recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais ŕ, mas também, e sobretudo, por sua construção composicional. Estes três elementos (conteúdo temático, estilo e construção composicional)fundem-se


271 indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação. Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso.

O trabalho com os gêneros textuais, definido a partir desse autor, tem sido amplamente difundido e aceito por estudiosos no ensino/aprendizagem de línguas, inclusive em documentos oficiais como os Parâmetros Curriculares Nacionais. Este documento, relacionado às pesquisas nessa área, tem repercutido na formação de professores e na reflexão sobre metodologias de trabalho a partir de objetivos de ensino outros, não mais voltados para o estudo apenas de normas e estruturas da língua, mas para o trabalho a partir do uso dos gêneros em suas funções comunicativas. O desenvolvimento e a valorização dessas teorias, nas duas últimas décadas, além de trazer grandes modificações e pesquisas para o âmbito das relações de ensino-aprendizagem, trouxe também outro paradigma de ensino. Este passou a ser um grande desafio para os profissionais dessa área, que precisam refletir sobre sua atuação a partir desse Ŗmodeloŗ, na medida em que precisarão apresentar um posicionamento sobre sua prática em sala de aula no trabalho com os gêneros. Nesse sentido, nos propomos a estudar a forma como o aluno de Letras, professor em formação inicial, está correlacionando essas teorias estudadas e que dão suporte à sua formação com a produção escrita no trabalho de conclusão de curso. 2. ANÁLISE DA PRODUÇÃO ESCRITA DO ALUNO DE LETRAS Neste artigo, propomo-nos a analisar um trabalho cujo autor discute

séries a partir do gênero Charge. Segundo o autor, seu objetivo está na Ŗampliação da visão crítica dos alunos sobre os fatos políticos, sociais e econômicos do país, utilizando a língua materna de acordo com as necessidades do contexto social para expressar o que pensam ou sentemŗ (p.7). No entanto, é possível perceber na construção do seu texto certa contradição nos argumentos apresentados, ao relacionar os problemas identificados na escola com a teoria dos gêneros, enquanto perspectiva de ensino que justifique essa tomada de posição. Vejamos alguns excertos destacados para análise. (1) ―Por que os estudantes, de modo geral não conseguem dominar adequadamente a Língua de acordo com os vários contextos sociais nas modalidades oral e escrita, conforme objetivam os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino


272 Fundamental? Em resposta e [sic] este questionamento podemos citar indisposição do aluno para estudar, falta de acompanhamento dos pais durante a vida escolar dos filhos, despreparo profissional dos docentes e carência de recursos didáticos.‖ (p.7) (2) ―Pensando nessas deficiências do ensino público é que nos propomos a trabalhar com os gêneros textuais buscando as determinações dos PCN sobre o ensino aprendizagem da língua materna.ŗ (p.7) No primeiro trecho o autor aponta um conjunto de dificuldades que considera contribuírem para a suposta má qualidade do ensino de língua portuguesa. No segundo trecho, retirado da mesma página, atribui a escolha por trabalhar com gêneros ao fato de ter constatado aquelas dificuldades. O que destacamos é que não fica clara a relação entre os problemas elencados pelo autor e o trabalho com os gêneros; na verdade, eles não se justificam. No que o estudo dos gêneros poderia contribuir para a mudança na indisposição dos alunos, na falta de apoio dos pais, no despreparo dos docentes e os recursos didáticos? É interessante perceber como o autor do trabalho utiliza esses problemas, que são de outras ordens, para justificar sua proposta de maneira quase mágica. Além disso, no segundo trecho destacado, o autor do trabalho parece desconhecer a realidade dos alunos da rede particular de ensino, como se os problemas citados afetassem apenas os estudantes da rede pública. Na passagem abaixo o aluno segue afirmando sobre os problemas do ensino que parecem restringir-se à escola pública. Vejamos: (3)―Muito se tem discutido sobre as deficiências do ensino de língua portuguesa e do excesso de desvios cometidos pelo alunos, sobretudo nas escolas públicas. Esses alunos têm poucos contatos com a linguagem culta, pois aquilo que lhes poderia facilitar o acesso a esse registro – os meios de comunicação de massa – estão cheios de estrangeirismos e linguagens que muitas vezes o aluno desconhece. É comum encontrarmos alunos que saem do ensino fundamental com o mesmo conhecimento lingüístico que tinham ao iniciar seus estudos nesse mesmo nível de ensino e, o que é pior, muitos desses alunos saem da escola ―mudos‖, isto é, incapazes de se expressar ou defender seus pontos de vista por meio da linguagem, tanto oral quanto escrita.‖(p.8) Neste excerto, o autor afirma que, linguisticamente, os alunos não apenas não aprenderam nada ao sair da escola, como também não são capazes de se expressar ou argumentar sobre o que desejam. Ao que parece, o discurso de que a escola é o único lugar onde podemos aprender a Ŗlinguagem cultaŗ permanece, já que os estrangeirismos e outras formas de registro são encarados como não adequados. Isso revela uma visão conservadora e de desconhecimento em relação à língua, na medida em que não são levados em conta os


273 estudos sociolingüísticos, apenas uma abordagem normativa da língua. Enfim, o que se está fazendo aqui é defender o ensino normativo, o que contradiz a filiação teórica na qual o autor diz pautar-se ao defender, na página anterior de seu trabalho, a adesão aos PCN. A seguir, temos: (4) ―Não se pode negar que os PCN têm seu valor e vem servindo, pelo menos, para levantar o debate a respeito do ensino de língua portuguesa.‖ (p.11) (5) ―A novidade dos PCN, é só a inclusão dos textos orais no ensino de língua. Diz-se novidade porque não é comum os livros didáticos e os professores enfatizarem a oralidade na sala de aula.‖(p.12) Aqui também há certa contradição, uma vez que o autor assume um posicionamento diferente do que se propõe a defender durante a maior parte do seu trabalho, um olhar mais ligado àquilo que ele mesmo entende por Ŗensino tradicionalŗ. Ao afirmar que os PCN vem servindo Ŗpelo menosŗ para levantar o debate sobre o ensino de língua, ou que ŖA novidade dos PCN, é só a inclusão dos textos oraisŗ o autor demonstra estar ligado a outro ponto de vista. A quebra no ethos do Ŗoradorŗ deste discurso se dá na medida em que pretende mostrarse como um sujeito que conhece as teorias que discute, no entanto, ele não o faz de forma exitosa. Isso, dito de outro modo, reflete o que Maingueneau chama de ethos mostrado e ethos pretendido, uma tentativa mal sucedida de gerar uma imagem positiva por meio de seu discurso. Temos um aluno de deseja mostrar-se adepto aos postulados da teoria dos gêneros, que busca transparecer certo conhecimento e adesão a esses postulados, mas que, no entanto, demonstra pelas contradições de seu discurso, uma imagem diferente da almejada. Esse posicionamento se distingue do que é feito em outros momentos do trabalho, como vimos nos excertos 1 e 2, em que adere ao discurso da teoria dos gêneros, incorporando a posição que é endossada por outros autores. Dando continuidade à análise do trabalho, temos a seguir os excertos 6 e 7. Neles o aluno segue questionando a formação do professor e seus reflexos e sua prática docente: (6)―Quando os professores são profissionais formados há mais tempo, ou provenientes de cursos de qualidade questionável, percebe-se que os conhecimentos teóricos estão defasados. Muitos professores sequer tiveram aula de Lingüística e outros nunca ouviram falar em conceitos como coesão, coerência, textualidade, inferência, operadores argumentativos – somente para citar alguns termos presentes nos PCN. Não se pode esperar, portanto, que esse profissional consiga aplicar tudo o que está nos parâmetros, embora alguns façam verdadeiros milagres, a despeito de sua formação


274 precária.‖ (p.13) (7) ―E assim o professor, que às vezes mal conhece os PCN (porque sua escola não o recebeu ou alguém os escondeu) continua dando ênfase a regras descontextualizadas e sem trabalhar efetivamente com textos.‖(p.14) No excerto (6), o autor desqualifica a formação profissional do professor, apontando para os motivos que justificariam, inclusive, as deficiências em sua formação docente. Tudo isso na tentativa de argumentar sobre a adesão dos gêneros numa perspectiva de Ŗmudançaŗ para um discurso já aceito oficialmente, o de rompimento com Ŗo tradicionalŗ. No entanto, mais uma vez não sabemos de que forma a tomada dos gêneros poderá resolver esses problemas, uma vez que isso não é explicado de maneira propositiva pelo autor, mas simplesmente citado de forma queixosa. Já no excerto (7), temos o prosseguimento do tom de Ŗqueixaŗ, naquilo que mais parece um relato de sua realidade escolar, quando pontua os motivos responsáveis pelos professores, ou ele mesmo, não terem conhecimento dos PCN. Nos excertos (8), (9) e (10) o assunto parece mudar de foco, não se trata mais da questão da teoria dos gêneros, mas do ensino normativo e de seus reflexos no ensino/aprendizagem da língua. (8) ―A imposição da norma culta sobre outras variedades, pura e simplesmente como única forma de comunicação, é uma forma de violência. Nega-se e condena-se a variedade que o aluno domina ao chegar à escola e impõe-se a ele o discurso preconceituoso de que ele não sabe falar.‖(p.8) (9) ―Desse modo, fica claro que a linguagem culta deverá ser, inegavelmente de domínio dos professores, pois a escola é um dos raros locais em que o aluno poderá ouvi-la, exercitá-la e apoderar-se dela, para ser capaz de usá-la nos devidos momentos.‖(p.10) (10) ―A escola deverá motivar o aluno a querer aprender o padrão culto em seu benefício e não forçá-lo a aprender essa variedade sem que tenha consciência de sua importância.‖(p.10) Essa abordagem não estabelece relação com a proposta do aluno, não sustenta sua proposta com base no sóciointeracionismo. Seu discurso é produzido a partir de um fiador, que é incorporado pelo autor para manter-se do mesmo lado do discurso hegemônico, o da tomada dos gêneros. Ele busca uma forma ou espécie de autorização para sustentar aquilo que diz e produzir certos efeitos. Foucault (2000) acredita que esse processo se ancora em técnicas empregadas para dizer o que já está articulado de outra forma no texto primeiro, que não explicita ou configura algo além da justificativa da repetição disfarçada.


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3. ATIVIDADES PROPOSTAS PELO AUTOR DO TCC Após a primeira etapa do trabalho, há uma proposta de ensino a partir do gênero Charge. Nela, o aluno apresenta três série do ensino fundamental. As atividades são descritas como: Ŗprazerosasŗ, Ŗpropiciadoras de interesseŗ e Ŗdiferenciadas em relação ao tradicionalismo das aulas de língua portuguesaŗ. (p. 23) Cada uma tem um tempo estimado em 4 horas/aula. Na primeira, a temática abordada é o cenário político nacional e a corrupção. A atividade propõe que sejam distribuídas, entre os alunos, cópias da charge em que aparecem: um caçador armado em meio à floresta e uma placa com os dizeres ŖAberta a temporada de caçaŗ. A partir da análise da imagem e do texto contidos na charge, o professor solicita que os alunos respondam às seguintes perguntas: a) Qual conhecimento de mundo o aluno deve ter para entender o humor na charge? ; b) Qual o contexto político a que pode ser associada?; c) De que maneira os elementos intensificam a crítica feita?; Como se pode compreender a frase presente na charge? (p.26) Os estudantes são orientados a responderem o questionário feito pelo professor e discutirem entre sí o assunto. Na segunda atividade, a proposta continua voltada para a relação entre os sentidos expressos pela linguagem verbal e não-verbal contidas na charge escolhida e distribuída entre os alunos. Dessa vez temos Lula e Hugo Chaves num abraço entre Ŗamigosŗ, no entanto, ao lado da imagem aparece uma fala do presidente brasileiro pedindo ao líder venezuelano que não se aproxime muito para não Ŗqueimar o seu filmeŗ. Os alunos, agora em duplas, mais uma vez são levados a identificarem os personagens presentes na charge e a responderem outro questionário elaborado pelo professor contendo as seguintes perguntas: a) A que contexto se refere a charge?; b) O que pode representar a frase dita por Lula?; c) O que o autor quis dizer com a charge?; d) Explique em que contexto a frase dita por Lula tem sentido na charge. (p.27) A última atividade proposta procura explorar a intertextualidade entre duas charges. Os alunos mais uma vez recebem as cópias contendo os textos e são orientados a analisarem, discutirem entre si e expor oralmente seu entendimento. Mais uma vez há um questionário pronto, elaborado pelo professor para ser respondido pelos alunos. O professor pede que eles estabeleçam uma relação entre as duas charges e, no final, há uma proposta de produção de um Ŗtexto dissertativo-argumentativo com cerca de 25 linhas sobre o assuntoŗ.


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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Não há diversificação das atividades propostas aos alunos, o que compromete os argumentos anteriormente apresentados pelo autor do trabalho quanto afirma que elas serão ―prazerosas, propiciadoras de interesse e diferenciadas em relação ao tradicionalismo das aulas de língua portuguesaŗ. (p.23) Isso pouco as diferencia das atividades trazidas pelos livros didáticos; numa delas, inclusive, pergunta-se: ŖO que o autor quis dizer com a charge?‖. Essa resposta não poderá ser dada pelo aluno, é inacessível, este apenas poderá levantar hipóteses sobre o que o autor queria dizer. Percebe-se que, à luz das teorias apresentadas anteriormente, o trabalho analisado não organiza suas idéias e argumentos de forma coerente em relação aquilo a que se propõe. Em outras palavras, trata-se de um discurso que encontra-se preso a um ethos pretendido que não se sustenta, quando tenta afirmar que a situação atual da escola é insustentável, mas que isso poderia ser mudado pela adesão a outra perspectiva teórica, a com base no trabalho a partir da teoria dos gêneros. O autor do texto não define precisamente como isso poderá ser feito, nem em que condições. Então, busca nos discursos de outros autores com a mesma perspectiva teórica respaldar-se por meio de parafrasagem.

Reflete uma postura de certo

desconhecimento sobre aquilo que se está discutindo ou defendendo, ao sair de seu próprio discurso a crítica que desconstrói o seu trabalho, uma vez que se trata do trabalho de conclusão de curso de um aluno que, provavelmente, sairá da graduação sem conseguir posicionar-se seguramente a partir de sua própria formação. Nesse artigo, nossa intenção foi discutir a formação recebida pelo futuro profissional do ensino de língua materna diante desse novo paradigma de ensino e suas implicações para o trabalho em sala de aula. Num momento em que o professor dessa disciplina se encontra dividido entre sua prática - entendida pela sociedade como tradicional e responsável por um ensino visto como descontextualizado e normativo - e o discurso desse novo paradigma ao qual esse sujeito se vê inclinado a aderir. REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental.\Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa.\Brasília: MEC/SEF. 1998. FOUCAULT. M. A ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2000.


277 GERALDI, J. W. Da redação à produção de textos. In: GERALDI, J. W.; CITELLI, B. (Coord.) Aprender e ensinar com textos de alunos. vol. 1. 2. ed. São Paulo, 1996. MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Tradução de Sírio Possenti. Curitiba: Criar Edições, 2005. MARCUSCHI, L. A.; SALOMÃO, Maria M. M. Introdução. In: MUSSALIM, F.; BENTES, A. C. (Orgs.). Introdução à Lingüística: fundamentos epistemológicos. Vol. 3. São Paulo: Cortez, 2004. p. 7-26. ORLANDI, E. P. Análise do Discurso: princípios & procedimentos. ed. 6°. São Paulo: Pontes, 2005. SIGNORINI, I., org. Investigando a relação oral/escrito. Campinas, SP:Mercado de Letras, 2001. TEIXEIRA, E. As Três Metodologias: Acadêmica, da Ciência e da Pesquisa. São Paulo: Vozes, 2005.

JORNAL DO PARÁ: O CAMINHO LITERÁRIO ENTRE ESPAÇOS E DIÁLOGOS NA BELÉM OITOCENTISTA Patrícia Carvalho MARTINS (UFPA/CAPES) Orientador(a): Prof.ª Dr.ª Germana Maria Araújo SALES (UFPA/CNPq/FAPESPA/CAPES)

RESUMO: A divulgação de estudos com jornais do século XIX se torna cada vez mais necessária, pois contribui para um melhor entendimento dos processos de produção, circulação e formação da história literária no Brasil. Neste trabalho, objetivamos verificar o espaço reservado à literatura brasileira na imprensa paraense oitocentista. Para tanto, verificamos as publicações nacionais num dos jornais de maior permanência durante o século XIX - o Jornal do Pará (1862-1878). Das publicações nacionais que circularam nesse periódico, metade foi retirada do impresso carioca Jornal das Famílias (1863 Ŕ 1878) Ŕ produzido pela Editora Garnier e dirigido sob a mesma linha conservadora do periódico paraense. A partir da discussão dessa relação e da escolha desses textos de autoria nacional, procuramos debater sobre o destaque à literatura nacional no periódico paraense, num momento em que a publicação de narrativas extensas e estrangeiras estava no auge, e sobre a retirada de parte dos textos do Jornal das Famílias. PALAVRAS-CHAVE: Jornal do Pará; século XIX; diálogos. ABSTRACT: The dissemination of research journals in the nineteenth century becomes increasingly necessary because it contributes to a better understanding of the processes of production, circulation and formation of literary history in Brazil. Here we see the space for Brazilian literature in the nineteenth century press Para. To verify both the national publications of a more permanent newspapers during the nineteen, the Journal of Pará (18621878). National publications that circulated in this journal, half were withdrawn from the printed Journal of the Rio Families - produced and directed by Publisher Garnier under the same conservative line of the journal Para. From the discussion of this relationship and the choice of texts authored national, we discuss the highlight of the national literature in the journal Para, at a time when the publication of large and foreign accounts was at its height, and on some of the texts authored Brazilian have been extracted from the Journal of Families. KEY WORDS: Journal of Para; nineteenth century; dialogues.


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1. O JORNAL DO PARÁ: PERIÓDICO NOTICIOSO, POLÍTICO, COMERCIAL E LITERÁRIO A imprensa periódica se estabeleceu como um elemento fundamental no século XIX para a divulgação de textos literários, além das atividades políticas que desenvolviam. Nessa época, em Belém, PA, a folha diária Jornal do Pará (1862 Ŕ1878) manteve como seu principal oponente na concorrência pelo mercado dos leitores paraenses Ŕ o jornal Liberal do Pará (1869 Ŕ 1889). Os debates entre esses dois periódicos tinham como principal fator a oposição do posicionamento ideológico. A atitude partidária aparecia nas páginas de ambos, desde as acusações e respostas à forma de publicação e escolha das narrativas para impressão. Entretanto, não é esse aspecto que nos interessa, mas analisar a ocorrência de textos literários publicados no Jornal do Pará. Para tanto, delimitamos um recorte e distribuímos os textos publicados em categorias, conforme os seguintes critérios: i) publicações em série ou em uma única edição; ii) autoria identificada e reconhecida; e iii) nacionalidade dos autores. De posse desses dados verificamos as relações existentes entre o Jornal do Pará e o Jornal das Famílias (1863 Ŕ 1878), periódico fluminense veiculado na mesma época. Ao fazer essa comparação, constatamos que alguns textos foram extraídos ou comentados, portanto acrescentou-se aos nossos objetivos analisar as narrativas retiradas do impresso carioca e publicadas no periódico paraense. O Jornal do Pará foi um periódico de grande repercussão na imprensa paraense 1 do século XIX. Publicado entre 1862 a 1878, uma longa duração para a época, foi impresso pela tipografia de Santos & Irmãos2 e o primeiro número do jornal foi publicado em 04 de novembro de 1862 e o último número em 10 de novembro de 1878. Sua produção era diária, exceto às segundas-feiras, dias imediatos aos santificados e de festa nacional. O Jornal do Pará tinha um forte caráter político, contudo, publicava textos sobre diversos assuntos, desde informes, notícias oficiais, anedotas, propagandas, avisos de reuniões e festas, como textos literários, cuja presença era constante. Dessa maneira, os textos eram produzidos nas colunas destinadas à prosa de ficção, 1

O idealizador e fundador do primeiro jornal impresso no norte do Brasil e quinto do país, O Paraense, foi Filipe Alberto Patroni. O Paraense (1822-1823) defendia os fundamentos da Constituição e o corpo político do Reino Unido e combatia o arbítrio da administração militar portuguesa. Foi um periódico que surgiu às vésperas da Independência, praticando um jornalismo liberal, passou a ser identificado como um importante agente da idéia da Independência do Brasil, o que contribuiu para o fim do jornal. 2 A tipografia de Santos & Menor mudou o nome para Santos & Filhos, depois passou a ser chamada de Santos & Irmãos, período em que se iniciaram as publicações do Jornal do Pará.


279 parte importante para a manutenção dos periódicos nos oitocentos, pois a presença dessas narrativas ajudou a manter grande parte da venda desses jornais. Por isso, muitos periódicos reservavam mais de uma secção dedicada aos textos literários, com objetivo de atrair e cativar os leitores. O Jornal do Pará não fugiu a essa regra, publicou constantemente narrativas e possuía seis colunas para a circulação dos textos: Folhetim, Miscellânea, Gazetilha, Transcripção, Litteratura, Variedade. Nessas colunas circularam os mais variados textos, assinados por autores franceses, portugueses e brasileiros. Entre as narrativas citamos o romance Lydia Ŕ A ressurreição (1878), de Charles Nodier; o conto As filhas do céu (1868), e o romance Júlia – Cenas da Atualidade (1869), de F. M. Supíco; o conto Memórias de um bom rapaz – Um dos meus amores (1869), de Ramalho Ortigão; os contos Uma visão (1873), de Aureliano José Lessa; A virtude laureada (1875), de Victoria Colonna; Contos Macahenses: O anjo da solidão (1875), de L. L. Fernandes Pinheiro Jr.; Muitos Anos Depois (1875), de Lara (Machado de Assis); O Thesouro (1877), de Eduardo Ferreira França; A beneficência delicada (1875), de Emilio Augusto Gomil de Penido e Entre Flores (1868), de Cândido Leitão, além do folhetim Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antonio de Almeida. Observando a relação dos 11 autores elencados, os quais foram possíveis a identificação por meio de pesquisa em dicionários bibliográficos, oito eram brasileiros. Mesmo num período em que se dava preferência às traduções e publicações européias, o Jornal do Pará apresentou divulgação de autores brasileiros, em sua maioria. Nelson Werneck Sodré destacou que Ŗos autores brasileiros figuraram bastante nos folhetinsŗ1. É sobre essa produção nacional que nos debruçamos. Dos textos que circularam pelas colunas do Jornal do Pará, são de interesse desse trabalho as narrativas de autoria brasileira e que fizeram parte do Ŗdiálogoŗ entre o Jornal do Pará e o Jornal das Famílias, portanto, dentre essas narrativas, verificamos aquelas que foram retiradas do impresso fluminense. O quatro abaixo demonstra as seis narrativas que foram publicadas nos dois jornais, nas quais três foram identificadas com autoria brasileira. Jornal das Famílias A noviça, por F. (1866) Contos Macahenses: O anjo da solidão, por L.L Fernandes Pinheiro Jr. (1874) Muitos anos depois, por Lara (pseud. De

Jornal do Pará A noviça, do Arquivo Popular (1867) Contos Macahenses: O anjo da solidão, por L.L Fernandes Pinheiro Jr. (1875) Muitos anos depois, por Lara (1875)

1 SODRÉ, Nélson Werneck. História da imprensa no Brasil. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1983, p. 244.


280 Machado de Assis) – (1874) A beneficência delicada, Traduzido por Emilia Augusta Gomide Penido (1874) Ser visto, por T. (1874) A virtude laureada, por Victoria Colonna (1875)

A beneficência delicada, Traduzido por Emilia Augusta Gomide Penido (1875) Ser visto, por T. (1875) A virtude laureada, por Victoria Colonna (1875)

Tabela da relação das prosas que circularam no Jornal das Famílias e no Jornal do Pará

Entre as narrativas expostas na tabela anterior excluímos as duas narrativas sem identificação de autoria, pois não nos permitem dizer se eram publicações de autoria nacional e o texto de Emilia Augusta Gomide Penido que é uma tradução. Portanto, avaliamos que três dessas publicações permitiram a relação entre os dois jornais com pontos ideológicos em comum, mas, distantes entre si. Não sabemos, entretanto, quais os critérios de escolha para a republicação desses textos no Jornal do Pará. O que observamos é que as reproduções se davam, em sua maioria nos anos seguintes à sua publicação no Jornal das Famílias, ou no mesmo ano em que a obra circulava, conforme está disposto na tabela. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS As informações apresentadas reforçam a presença da imprensa paraense nas relações de produção e circulação da literatura nacional e na formação do público leitor paraense oitocentista. Apesar da distância geográfica entre capital do Pará e a cidade do Rio de Janeiro, foi possível verificar um diálogo assíduo e ativo, fato que permitiu a publicação de diversos textos. Este trabalho aponta a existência da circulação literária e da prática de leitura regular no Estado paraense durante o século XIX. 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS _____________. Cultura Letrada: Literatura e Leitura. São Paulo: Editora UNESP, 2006. _______________. Folhetins: uma prática de leitura no século XIX. Disponível em: www.entrelaces.ufc.br/germana.pdf. Acesso em: 24 de abr. 2010. _______________. Revista Familiar: receita para leitura. Disponível em http://www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br/estudos/ensaios/Abralic2008/GERMANA_S ALES.pdf. Acesso em 02 de jun. 2010. ____________________. Estudos Literários em livros, jornais e revistas. Cuiabá-MT: Entrelinhas. ____________________. Frederico Carlos Rhossard: História de um Tipógrafo. Disponível em: www.livroehistoriaeditorial.pro.br/ii_pdf/Izenete_Garcia_Nobre.pdf. Acesso em 10 de jun. 2010. ______________________________. Diccionario Bibliographico Brazileiro. 3 vol. Rio de


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CHICO BUARQUE: METÁFORA E PARÓDIA NO RITMO DO CARNAVAL Paula Cristhiane da Silva OLIVEIRA (UFPA) Orientador(a): Prof.ª Dr.ª Maria do Perpétuo Socorro Galvão SIMÕES (UFPA) RESUMO: O artigo Chico Buarque: metáfora e paródia no ritmo do carnaval analisa a imagem do carnaval dentro da poesia e da musicalidade do repertório de Chico Buarque de Holanda. Busca-se por meio deste projeto verificar a imagem do carnaval como elemento cultural que permeia todas as sociedades: das simples as sofisticadas. Na poética de Chico, a imagem do carnaval é instigante, tanto pelo valor cultural quanto pela possibilidade de estudálo como metáfora ou paródia do real. PALAVRAS-CHAVE: Carnaval, metáfora, Chico Buarque. ABSTRACT: This article Chico Buarque: metáfora e paródia no ritmo do carnaval intends to show the carnival image into the poetry and musicality of Chico Buarque de Holanda songwriter. Through this project the carnival image is seen as a cultural element which is present in all the society since the simple until the more sophisticated societies. In the Chicořs poetry the carnival image calls for investigation because of the cultural worth as well as the possibility to study as a metaphor or like a real parody. INTRODUÇÃO O projeto Chico Buarque: metáfora e paródia no ritmo do carnaval procura desvendar a representatividade da imagem do carnaval dentro da poesia e da musicalidade do repertório de Chico Buarque de Holanda. Em seu repertório o carnaval constitui-se como instrumento de refiguração do real, principalmente no período da ditadura militar, no qual os indivíduos encontravam-se limitados pelas imposições do governo.


283 Com esse propósito, objetiva-se estabelecer as relações íntimas e sistemáticas que caracterizam o carnaval como elemento diferenciador. E é nesse sentido, que se faz necessário desvendar os mistérios que envolvem o carnaval dentro da poética buarqueana, o universo paralelo em que homens e mulheres revestem-se de alegorias e vivem o instante como sendo o último (carpe diem).

O carnaval constitui a linguagem do corpo, da carnalidade, da

sexualidade muito presente na literatura e principalmente em letras de músicas populares repletas de ambiguidades. O CARNAVAL A carnavalização é a possibilidade de construir um mundo utópico, cuja regra é viver o presente (carpem diem). Propõe-se a imagem do carnaval como a representação de um mundo paralelo, que foge as regras convencionais, entretanto, isto não representa a fuga ou a negação de Chico Buarque a realidade que o circunda, ao contrário, esta atitude é um ato de rebeldia, de contravenção aqueles que detinham o poder e impunham sua vontade sobre a população. O carnaval tem uma ampla dimensão na poética de Chico, ele apresenta-se como instrumento de denúncia. Para exemplificar este raciocínio observemos a canção Vai passar, na qual o samba evoca o samba para dar espaço à denúncia, a história do país, a exploração cultural e natural de nossas riquezas. O carnaval não é um tema explícito nas canções de Chico, entretanto, constitui um dos cenários mais correntes em seu repertório. O que propicia uma aproximação entre artista e público, uma vez que o carnaval é a maior festa popular de nossa nação. Segundo Bakhtin a idéia de carnaval foi percebida e manifestou-se de maneira mais sensível nos saturnais romanos, o carnaval da Idade Média preservou as tradições dos saturnais, estas festas continham a idéia de renovação universal, ao contrário, dos demais festejos da época de cunho carnavalesco que não tinham caráter tão pleno. O carnaval era concebido como a fuga provisória da vida real (Cf. BAKHTIN, 2008, p.6). Peter Burke analisa o carnaval como elemento cultural da Idade Moderna, o historiador afirma que o carnaval é a festa das imagens por excellence. Os rituais carnavalescos eram propícios para encenação de peças, no entanto, para que a maioria delas fossem compreendidas era necessário que a platéia conhecesse os rituais carnavalescos (Cf. BURKE, 2010, p. 248). O carnaval está presente na obra musical de Chico Buarque, ele é um compositor de muitas facetas artísticas, sobre essas habilidades Adélia Bezerra de Menezes (2002, p.17)


284 comenta que podem ser reduzidos a uma: [...] toda sua múltipla atividade pode ser reduzida a um denominador comum: compositor, dramaturgo e ficcionista se encontram, derrubando barreiras de gêneros e formas, sob o signo de poeta (grifo meu). Chico Buarque é um artesão da linguagem. As palavras, com ele, adquirem, na sua fluidez, algo de alquímico. Algo de mágico.

Sob o signo de poeta, Chico usa a palavra como instrumento de transformação, a palavra é a materialização do pensamento do artista, que a usa para criar poemas musicalizados, os quais são repletos de ambiguidades, enriquecidos com metáforas e paródias. E é sobre a ótica da metáfora e da paródia que se busca estudar a imagem do carnaval, pretendendo desvendar seus verdadeiros significados e a importância ou relevância deste cenário na poética de Chico. Como afirmou Fernandes (2004, p.273) Ŗnão é possível pensar Chico Buarque apenas como Řmúsico popularř. O grau de elaboração e as imagens permitem identificar suas letras com a poesia, incorporando-as à literatura brasileiraŗ. Nas canções, há riqueza de imagens, dentre elas, o carnaval não é explícito, mas constitui o cenário que suscita muitas discussões: amorosas, políticas, ideológicas, culturais, saudosistas, etc. Sobre a carnavalização da obra de Chico Luciana Eleonora Freitas Calado faz as seguintes considerações: Chico Buarque é um dos compositores brasileiros mais sensíveis as manifestações populares. Muitas das suas composições penetram na natureza do carnaval e no caráter utópico dessa festa popular. Em algumas composições, o significado simbólico do carnaval estende-se para um sentido mais amplo [...] O carnaval, nesse sentido, não se confunde apenas com a festa mais popular do Brasil. Trata-se antes de um Ŗtempo-espaço em que a comunidade liberta todas as suas repressões, assumindo nas máscaras e nos disfarces a sua verdadeira identidade", como acrescenta Sant'Anna. O carnaval ganha, portanto, um significado mais complexo nas composições de Chico, aproximando-se consideravelmente da concepção carnavalesca enquanto categoria bakhtiniana. (apud FERNANDES, 2004 p. 275)

A obra de Chico é permeada de críticas direcionadas ao contexto político e social e para fazê-la, o poeta ilustra suas canções com linguagem conotativa. Tal linguagem conduz o leitor/ouvinte a refletir sobre sua própria situação. Diante disso, percebemos que Chico utiliza metáforas e paródias para construir suas críticas. Entre estes dois recursos existe um eixo muito próximo e a principal diferença entre eles pode ser identificada pelo distanciamento do significado real. É importante salientar que a palavra carnaval denota principalmente duas possibilidades de interpretação: festa popular e bagunça ou desordem. E estes dois sentidos podem ser


285 encontrados na obra de Chico, fazendo-se necessário uma análise mais profunda. Sobre os aspectos negativos que podem ser apreendidos do termo carnaval, Roberto DaMatta faz a seguinte observação: [...] os carnavais são momentos muito mais individualizados, sendo visto como propriedade de todos e como momentos em que a sociedade se descentraliza. Daí o uso do adjetivo Ŗcarnavalŗ para situações de alto desentendimento, quando o bate-boca e a confusão atingem o limite da desordem porque todos falam ao mesmo tempo, sinal de uma descentralização máxima. (1997, p.48)

Além do duplo sentido do carnaval, o ritual carnavalesco carioca é composto por alguns símbolos, os mais marcantes são o malandro e a fantasia. O primeiro, se localiza entre a ordem e a desordem, ele é a representação das contradições da vida, ao mundo ordenado oferece um olhar inovador sobre a vida, é o símbolo do marginal e do anônimo. Já a fantasia, vestimenta alegórica, é um instrumento estético que pode apresentar dupla interpretação: [...] no carnaval a roupagem apropriada é a fantasia, um termo que no português do Brasil tem duplo sentido, pois tanto se refere às ilusões e idealizações da realidade quanto aos costumes usados somente no carnaval [...] as fantasias distinguem e revelam, já que cada um é livre para escolher a fantasia que quiser. [...] fantasia carnavalesca [...] revela muito mais do que oculta, já que uma fantasia, representando um desejo escondido, faz uma síntese entre o fantasiado, os papeis que representa e os que gostaria de desempenhar. (DAMATTA, 1997, p. 61)

Chico canta o carnaval e evoca as personagens marginalizadas (bêbados, poetas delirantes, prostitutas, pivetes, etc.), é um compositor que invoca sua nação, seja para os aspectos sociais, sentimentais, nostálgicos e utópicos. Correlação a estas características Afonso Romano de SantřAnna o define simplesmente como ŖChico: síntese da contradição do momento em que vivemos. Síntese do que se passa na música brasileira atual, síntese do que ocorre inconscientemente na alma do brasileiro hoje: desencanto/esperançaŗ (2004, p. 163). Chico caracteriza-se como um poeta social por mostrar-se preocupado com a causa social. O poeta desnuda a sociedade, evidenciando as mais sórdidas crueldades que há por detrás da superfície civilizada. Chico centraliza o homem como sendo o personagem principal do drama poético/musical.

PARÓDIA E METÁFORA


286 Chico Buarque é considerado por muitos como um compositor elitista, já que suas canções são carregadas de expressões rebuscadas e metaforizadas. Mas não há entre os intelectuais quem não atribua valor político, social, cultural e poético as suas músicas. Tal riqueza de imagens lhe deu o título de poeta popular, por fazer de suas composições poemas ricos em letra e melodia. O recurso da paródia na obra de Chico corrobora para a criação de uma imagem paralela do Brasil. Por meio desta imagem o compositor tem a possibilidade de fazer suas inferências ao meio social. E é a partir da definição de SantřAnna (1995, p.32) que vemos claramente a presença deste elemento na obra do poeta: [...] a paródia é como a lente: exagera os detalhes de tal modo que pode converter uma parte do elemento focado num elemento dominante, invertendo, portanto, a parte pelo todo, como se faz na charge ou na caricatura [...] a paródia é um ato de insubordinação contra o simbólico, uma maneira de decifrar a Esfinge da Mãe Linguagem [...]

Bakhtin ressalta que no período medieval, a paródia tinha outra significação, tinha relação com a degradação. Essa por sua vez objetivava entrar em contato com a vida inferior para dar lugar a um renascimento. Dessa forma, a paródia tem uma concepção ambivalente, é simultaneamente negativa e positiva: [...] a paródia medieval não se parece em nada com a paródia literária puramente formal de nossa época. A paródia moderna também degrada, mas com um caráter exclusivamente negativo, carente de ambivalência regeneradora. Por isso a paródia, como gênero, e as degradações em geral não podiam conservar, na época moderna, evidentemente, sua imensa significação original. (BAKHTIN, 2008, p.19)

A metáfora, outro recurso muito pertinente na obra de Chico é de suma importância para a construção do mundo paralelo, o qual é formado na superfície do samba, utilizando o carnaval como meio ideal para equivaler sentimentos díspares: esperança/desesperança, coragem/medo, ousadia/temor. Esses sentimentos são expostos sutilmente por meio do sentido figurado. Segundo Sardinha (2007, p. 13) a metáfora é considerada a figura mestra, ele também afirma que esta figura de linguagem é um recurso retórico importante e conscientemente utilizado pelos falantes. Nas Palavras de Aristóteles Ŗa metáfora é a transposição do nome de uma coisa para outra [...] por via de analogiaŗ (ARISTOTELES, 19-, P. 274), as metáforas não são completamente subjetivas, há entre os termos uma correspondência de significados. Dessa forma, o sentido recai sobre o intérprete e o sobre o criador. Segundo o filósofo Donald Davidson Ŗcompreender uma metáfora é um esforço tão


287 criativo e tão pouco dirigido por regras quanto fazer uma metáforaŗ (SACKS, 1992, p.35). A partir dos conceitos de paródia e metáfora podemos observar claramente as diferenças entre esses dois recursos linguísticos. Diferença estabelecida nas relações intra e extratextuais que são os desvios maiores e menores do sentido original (SantřAnna, 1995, p.38). A paródia constitui um desvio total e a metáfora, um desvio mínimo. Partindo desta definição podemos analisar a obra de Chico analisando as composições que tem o samba como tema e observar nestas canções que metáfora e paródia se cruzam para formar uma obra maior, cujos propósitos são camuflar, florear, incitar, criticar, mascarar ou simplesmente poetizar as canções. Apesar da diferença entre metáfora e paródia, em algumas composições de Chico é difícil traçarmos os limites que distinguem uma figura da outra. É o que podemos constatar nos versos da canção Apesar de você (1970), em que o letrista ora usa metáfora, ora parodia o período da ditadura militar. Verificamos a maestria do compositor ao parodiar nos versos abaixo o poder do então presidente Médici, Chico é ousado ao desafiá-lo e extremamente sábio nas escolhas das palavras, pois as imagens que utiliza para parodiar este período também produzem um efeito poético: Apesar de você Amanhã há de ser Outro dia Eu pergunto a você Onde vai se esconder Da enorme euforia Como vai proibir Quando o galo insistir Em cantar Água nova brotando E agente se amando Sem parar

Ainda na mesma canção encontramos versos que metaforizam o processo de transformação e mudança na busca de um mundo melhor, tais imagens são produzidas a partir de figuras naturais, mostrando o poder de regeneração da natureza ŖÁgua nova brotandoŗ, ŖO jardim florescerŗ. Os versos acima mostram imagens que metaforizam a capacidade humana de mudança: a água símbolo de vida e o jardim símbolo de beleza, assim o poeta versa sobre as transformações que não são controladas pelos homens, configurando o direito de liberdade dos homens e o controle sobre suas próprias vidas. O uso da metáfora e da parodia colaboram para a construção de um discurso engajado com a causa social, mas que não poderia ser claramente manifestado devido às imposições da


288 ditadura militar. Assim, saber expressar um discurso verdadeiro é adequar-se ao jogo de poder que rege a sociedade (Cf. FOUCAULT, 1999, p.20). O ser humano é por natureza falante, e as palavras podem Ŗespedaçar-se e coisificar-se [...] dizer algo, de certa maneira, para alguém, numa tonalidade ou disposição de ânimo, nisso consiste o fenômeno do discurso em sua estrutura significativaŗ(NUNES, p. 21). Dessa forma, mais importante do que dizer é saber dizer. As personagens mais frequentes da poética de Chico são os marginalizados . É sobre o signo dessas figuras que nosso poeta faz as suas críticas mais ferozes à sociedade, ora direta, ora indiretamente, a respeito destas críticas Adélia B. de Menezes (2002, p.41-50) faz o seguinte comentário: [...] composições de denúncia crítica, e que reivindicavam ameaçadoramente o futuro, com um caráter vingador e apocalíptico, como nas canções de protesto [...] mais do que um Ŗtempo forteŗ do samba, da dança e da alegria, o Carnaval é um rito, que transcende o espaço para ele reservado durante o ano. O Carnaval é um Ŗestado" ser, independentemente da data para ele fixada. Por isso, o poeta pode ter o Ŗseuŗ Carnaval, fora do tempo [...]

Analisando as considerações de Adélia B. Menezes, percebemos quanto o universo carnavalesco pode ser explorado, tanto como temática poética, como pano de fundo para o desenvolvimento das histórias. Sobre as letras das canções é importante observarmos que Ŗuma letra de música, é muitas vezes uma peça de pura ficçãoŗ (WERNECK, p. 100), assim podemos

compreendê-las

como

instrumentos

usados

pelos

compositores

para

transubstancializar seus pensamentos, opiniões, estados de espíritos. O artista é o elo entre a sua obra e o seu público, este último é o destino de toda a sua produção, é sobre ele que o artista age e que procura modificar algo no seu interlocutor. Assim: Ŗ[...] As letras de música popular brasileira são paródia no sentido de semelhante ao canto, pois reconhecem e apropriam-se tanto da tradição cultural elevada, do registro abaixo e do próprio legado da música popular brasileira [...]ŗ (RODRIGUES, 2003, P. 21). As letras de músicas em muitos casos aproximam-se da estética literária, seja pelo conteúdo ou pelas características estéticas. As canções são de domínio popular, são mais facilmente disseminadas e conseguem abranger um público bastante diversificado. A relação entre música e poesia é estudada há muitos anos, porém não será objeto central neste projeto, a respeito dessa relação Antônio Cândido (apud RODRIGES, 2003, p. 109) faz a seguinte observação: ―... Antes de mais nada, houve uma espécie de permuta: a poesia aproximou-se do ritmo, do vocabulário, dos temas da prosa; a prosa de ficção adotou, resolutamente, processos de elaboração da poesiaŗ. Carlos Rennó analisa a relação que há


289 entre poesia literária e poesia de música, segundo o letrista boa parte da poesia apresenta propriedades musicais intrínsecas, e embora apresentem características distintas, verbal e sonora, respectivamente, remontam a origem da poesia (RENNÓ, 2003, p.52). E hoje, é possível identificar traços desta união, em algumas composições poéticas verifica-se a harmonia que há nos versos. E nos versos encontra-se a melodia que compõe os refrões. Esta relação não foi completamente dissolvida ao longo dos séculos, apenas ocorreu um pequeno distanciamento entre os traços que as compõe: [...] a palavra Ŗlíricaŗ, de onde vem a expressão Ŗpoema líricoŗ, significa originalmente certo tipo de composição literária feita para ser cantada fazendo-se acompanhar por instrumentos de corda, de preferência a lira. Durante muito tempo a poesia foi destinada à voz e ao ouvido. Seria necessário esperar pela Idade moderna para que a invenção da imprensa, e com ela o triunfo da escrita, acentuasse a distinção entre música e poesia. (AGUIAR, 1993, p.10)

É inegável que existe uma relação muito próxima entre poesia e música. E entre esses dois elementos o carnaval é um elo, já que esta festa é repleta de alegorias, o que propicia um clima fantasioso carregado por melodias, ritmo, danças e orgias, constituindo o cenário boêmio dos poetas delirantes. É por sua enorme sensibilidade que Chico torna-se um poeta popular de notável talento em lapidar as palavras de tal maneira até atribuir-lhes cores, formas e significados capazes de abranger a causa social, lírica, utópica e saudosista. Sua sensibilidade unida a sua consciência o tornaram um artesão da linguagem apto a colocar no mesmo patamar música e poesia, tornando-as tão próximas que não podem ser apartadas. Isso, também, se reflete nas composições de Chico Buarque de cunho intimista: amores impossíveis, traições, frustrações amorosas. CONSIDERAÇÕES FINAIS É por todas as proposições acima que esta pesquisa sobre a imagem do carnaval na obra de Chico é algo instigante, tanto pelo valor cultural quanto pela possibilidade de estudá-lo como metáfora ou paródia do real. Assim, constitui-se objeto de estudo que merece atenção especial para desvendá-lo. Uma vez que, as músicas populares brasileiras na contemporaneidade têm sido usadas unicamente como entretenimento, constituídas por meio de letras superficiais, que enfatizam a sexualidade, o sentimento passional e o ritmo frenético que ocupam exclusivamente as festas noturnas. Daí a necessidade de se aprofundar na música


290 popular de qualidade artística, sonora e poética como meio de perpetuar a cultura de um povo e de fornecer conteúdo histórico, ideológico e poético capazes de instigar a inteligência humana e de enriquecer culturalmente o homem. Essas qualidades estão presentes nas composições de Chico Buarque, por isso a escolha de seu repertório como objeto de estudo desta pesquisa que visa mostrar a relação da música com o homem e de expor o compromisso político e social que pode assumir, constituindo-se desta forma, como patrimônio cultural de uma nação. Conclui-se afirmando que Chico é sem dúvida uma dos maiores nomes da música popular brasileira e que seu nome será a designação de um poeta social que fez da palavra a arte de tecer versos e prosas que transubstanciam a alma do homem em imagens lingüísticas. Sendo capaz de envolver os sentimentos humanos por poemas cantados que tocam a alma sensível e cantam o amor ao próximo REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGUIAR, Joaquim. A poesia da canção. São Paulo: Editora Scipione, 1993. ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. 15ª Ed. Rio de Janeiro, São Paulo: Ediouro, [19--] BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rebelais. São Paulo: Hucitec. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008 BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna: Europa. São Paulo: Companhia das Letras, 2010 DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e herois: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6ª Ed. Rio de janeiro: Rocco, 1997 FERNANDES, Rinaldo de (org.). Chico Buarque do Brasil: textos sobre as canções, o teatro e a ficção de um artista brasileiro. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1999. MENEZES, Adélia Bezerra. Desenho Mágico: poesia e política em Chico Buarque. 3ª Ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002 NUNES, Benedito. Heidegger: Ser e tempo. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. RODRIGUES, Nelson Antônio Dutra. Os estilos literários e letras de música popular brasileira. São Paulo: Arte & Ciência, 2003. SACKS, Sheldon (org). Da Metáfora. São Paulo: EDUC/Pontes, 1992. SANTřANNA, Afonso Romano de. Música popular e moderna poesia brasileira. 4ª Ed. São Paulo: Editora Landmark, 2004. ________. Paródia, Paráfrase & Cia. 5ª Ed. São Paulo. Editora Ática, 1995. SARDINHA, Tony Berber. Metáfora. São Paulo. Editora Parábola, 2007. WERNECK, Humberto. Chico Buarque: Tantas palavras. 6ª Ed. São Paulo: Companhia das letras, 2006.


291 MANIFESTAÇÕES DA CRISE PÓS-MODERNA EM RUBEM FONSECA: UMA ANÁLISE DA COLETÂNEA DE CONTOS O COBRADOR Rafaele Lima da SILVA (UFPA) Orientador(a): Prof. Dr. José Guilherme dos Santos FERNANDES (UFPA) RESUMO: Na literatura, a chamada fase do pós-modernismo mostra os processos de desumanização e de coisificação dos indivíduos. Estes se tornaram foco de debates graças ao desenvolvimento intensivo da sociedade de massa, diretamente vinculada às influências dos meios de comunicação de massa e ao desenvolvimento da indústria cultural. Rubem Fonseca compôs muitos textos que manifestam as angústias do homem imerso no contexto do consumismo exacerbado. O Cobrador, coletânea de contos publicada em 1979, possui narrativas que permitem o diálogo entre as teorias sociológicas que exaltam os conceitos de meios de comunicação de massa, sociedade do consumo e indústria cultural, objetivo primordial desta pesquisa. A pretensão do presente estudo é compreender as expressões desse período nos dez contos desta obra (Pierrô da Caverna, H. M. S. Cormorant em Paranaguá, O Jogo do Morto, Encontro no Amazonas, A Caminho de Assunção, Mandrake, Livro de Ocorrências, Onze de Maio, Almoço na Serra no Domingo de Carnaval, O Cobrador), focalizando as interferências que a sociedade de massa e a indústria cultural operaram para que as criações literárias passassem a apresentar novas características. O método empregado consiste na análise sociológica dos contos; para a análise dos contos, foram consultados os postulados de estudiosos como Theodor Adorno, David Lyon, Steven Connor, Jean-François Lyotard, Frederic Jameson, Jean Baudrillard, Marshall Berman, entre outros sociólogos que promovem debates sobre as mudanças culturais que o contexto pós-moderno suscita. Concomitantemente, a pesquisa está direcionada para o campo das Teorias da Comunicação e suas relações com a literatura, evidenciando o tema da ascensão da sociedade de massa e a interferência dos meios de comunicação de massa para a configuração das artes e de outras manifestações humanas. É possível estabelecer diálogo entre os contos e as teorias que explicam os processos de massificação da sociedade, seja na violência de alguns, seja na superficialidade de outros. PALAVRAS-CHAVE: Rubem Fonseca, Indústria Cultural, Sociedade de Massa. ABSTRACT: In literature, the phase of postmodernism shows the processes of Ŗdehumanizationŗ and Ŗobjectificationŗ of the people in general. These became the focus of intensive discussions through the development of mass society, directly linked to the influences of mass media and the development of the cultural industry. Rubem Fonseca is one of the greats of literature of this time and wrote many texts that expresses the anguish of a man immersed in the context of excessive consumption. O Cobrador, a collection of short stories published in 1979, bring narratives that provoke the dialogue between sociological theories, which highlight the concepts of mass media, consumer society and the cultural industry, which belongs to the primary objective of this research. The intention of this study is to understand the expressions of this period in the ten stories of this work (Pierrô da Caverna, H. M. S. Cormorant em Paranaguá, O Jogo do Morto, Encontro no Amazonas, A Caminho de Assunção, Mandrake, Livro de Ocorrências, Onze de Maio, Almoço na Serra no Domingo de Carnaval, O Cobrador), focusing on interference that mass society and the cultural industry operated to make the creations of literature assume new characteristics. The method consists of the sociological analysis of the stories, for the analysis of the stories, the same way it is used views of scholars such as Theodor Adorno, David Lyon, Steven Connor, Jean-Francois


292 Lyotard, Frederic Jameson, Jean Baudrillard, Marshall Berman, sociologists and others who promote discussions on cultural changes that the postmodernism context raises. Concurrently, this research is directed to the field of communication theory and its relations with literature, highlighting the theme of the rise of mass society and the interference of the mass media in the fields of arts and other human manifestations. You can establish a dialogue between the stories and theories that explain the processes of mass society, recognizing the primacy of the laws of consumption in the procedures of the people subjected to this condition, whether the violence of some, and the superficiality of others. KEYWORDS: Rubem Fonseca, Cultural Industry, Mass Society.

INTRODUÇÃO Nascido em Juiz de Fora, Minas Gerais, Rubem Fonseca (1925-) é autor de contos e romances de grande expressividade para a produção literária nacional, este literato tem sido reconhecido pela crítica literária como um dos grandes nomes das tendências contemporâneas na literatura brasileira (segundo concepção de Afrânio Coutinho, por exemplo, ao falar das produções literárias que foram desenvolvidas a partir da década de 60 no Brasil), suas obras são inovadoras e quase sempre trazem em si o caos da vida citadina, evidenciando as peculiaridades do espaço urbano. Os contos e romances produzidos por Rubem Fonseca constantemente retratam a banalização da violência e do grotesco, que se apresentam atualmente de modo gratuito e rotineiro, como bem retrata Martínez (2004, p. 13) na introdução à coletânea 64 contos de Rubem Fonseca: ŖA arte dos contos de Fonseca é retesar a corda das palavras para que expressem o vazio do mundo, a antipatia dos indivíduos pela espécie: neles se mata e se destrói por inércia, se trepa por inérciaŗ. Na última fase do Modernismo no Brasil é possível perceber a presença de situações que revelam processo de massificação da sociedade, desumanização e/ou coisificação do homem, com processo contínuo de mecanização da condição humana. O valor da vida é comumente equiparado a qualquer outra mercadoria que possa ser adquirida. Rubem Fonseca apresenta um universo no qual a crueldade e a violência são uma constante, povoado por personagens quase sempre desprovidos de consciência crítica e senso moral, dominados pela exaltação do prazer, em atitudes verdadeiramente dionisíacas. Em suas produções, é possível perceber que esse literato trabalha com os dramas do homem submetido aos ditames do capitalismo selvagem, da lei regida pelo lucro, enfim, das relações de poder exercidas pela aquisição compulsiva de bens. É possível mesmo dizer que frequentemente faz referências à sistemática evidenciada pelas chamadas sociedade de consumo e sociedade de


293 massa. Esse fato não é fortuito e também não é uma particularidade de Rubem Fonseca apenas. O mundo ocidental, após a 2ª Grande Guerra, viveu/vive vigorosamente o determinismo dos veículos de comunicação de massa. Desde a década de 20, o rádio exercia esse papel; mas foi com a televisão, a partir da década de 50, que esse processo se generalizou. Trata-se de um Ŗaparelhoŗ que alimenta nos telespectadores a liberação do impulso e do desejo para a valorização da paixão e do prazer. Faz parte de um contexto no qual o homem Ŗparece ter assumido [...] a ilusória assunção dos signos ideologizados, sobretudo aqueles com que o alimentam os aparelhos de televisãoŗ (PROENÇA FILHO, 1988, p. 35). Este também, sem dúvidas, não é um processo estanque; está envolto pelas discussões que envolvem a pós-modernidade e todo o aparato que vigora com ela. ŖO pós-modernismo promete êxtase, entusiasmo e até emancipação. Este é o mundo da TV, que é parte da cultura de consumo e ao mesmo tempo ajuda a dirigi-laŗ (LYON, 1998, p. 115). A partir dessa discussão, a presente pesquisa objetiva verificar as manifestações da crise pós-moderna nos contos da coletânea O cobrador, de Rubem Fonseca, dando ênfase aos que apresentam claramente as influências dos meios de comunicação de massa nos processos sociais; buscando também observar as relações, por meio dos elementos da narrativa, entre os contos que compõem a obra O cobrador, de Rubem Fonseca; verificar as inter-relações entre o contexto pós-moderno e estas produções de Rubem Fonseca; e, finalmente, estudar a importância de Rubem Fonseca como um representante das tendências contemporâneas, contribuindo para a divulgação das obras desse escritor. MATERIAL E MÉTODOS Esta pesquisa está sendo desenvolvida por meio do entrelaçamento entre as teorias dos estudos literários e algumas visões de sociólogos e teóricos da comunicação que trabalham com conceitos de sociedade de massa e consumo e indústria cultural. Essa relação está sendo possibilitada a partir dos pressupostos vinculados à corrente dos estudos literários ligados à análise sociológica. A análise sociológica da literatura erige como um interessante modelo de estudo, já que Ŗ(...) subordina o seu objeto ao propósito de entendimento dos mecanismos em operação na sociedade, potencialmente capazes de caracterizá-lasŗ (LIMA, 2002, p. 661). Evidentemente, uma pesquisa neste viés não é tão simples de ser efetivada, já que, com ela, corre-se o risco de tornar o texto literário um mero instrumento de análise de uma sociedade, perdendo-se assim


294 o valor estético da obra. Sendo assim, é preciso perceber que (...) a linguagem é uma produção por certo conectada, mas dotada de regras de funcionamento próprio, que são da competência do lingüista. Sobre estas regras gerais se acrescentam regras outras, já não de ordem lingüística, que dizem respeito ao funcionamento dos discursos e dos gêneros. Não levará ao reducionismo sociologizante ou, caso só a primeira ordem seja ressaltada, do reducionismo formalizante (LIMA, 2002, p. 664).

Logo, a análise sociológica é de suma importância para este estudo, uma vez que atuará no sentido de vincular o tecido social que integra o universo construído por Rubem Fonseca, destacando a influência da sociedade de massa nesse processo de construção. Assim, segundo Antônio Cândido (2000, p. 05): a análise crítica, de fato, pretende ir mais fundo, sendo basicamente a procura dos elementos responsáveis pelo aspecto e o significado da obra, unificados para formar um todo indissolúvel, do qual se pode dizer, como Fausto de Macrocosmos, que tudo é tecido num conjunto, cada coisa vive e atua sobre a outra.

A partir da análise dos contos da coletânea O Cobrador (Pierrô da Caverna, H. M. S. Cormorant em Paranaguá, O Jogo do Morto, Encontro no Amazonas, A Caminho de Assunção, Mandrake, Livro de Ocorrências, Onze de Maio, Almoço na Serra no Domingo de Carnaval, O Cobrador), são discutidas questões que envolvem os conceitos de pósmodernidade e suas implicações nas artes, mais especificamente na literatura. Estão sendo utilizados os postulados dos estudiosos Theodor Adorno, David Lyon, Steven Connor, Jean-François Lyotard, Frederic Jameson, Jean Baudrillard, Marshall Berman, entre outros sociólogos que promovem debates sobre as mudanças culturais que o contexto pós-moderno suscita. Concomitantemente, a pesquisa é direcionada para o campo da Teoria da Comunicação e suas relações com a literatura, evidenciando o tema da ascensão da sociedade de massa e a interferência dos meios de comunicação de massa para a configuração das artes e de outras manifestações humanas. Algumas obras também servem de escopo, como as de John B. Thompson, Everardo Rocha, Umberto Eco, Marshall McLuhan, Luiz Beltrão, Ortega y Gasset, Eduardo Portela e outros. Os contos estão sendo analisados com o aparato teórico de Lucien Goldmann, Luiz Costa Lima e Antônio Candido. Para isso, a análise dos elementos da narrativa será o mecanismo adotado e autores como Beth Brait, Carlos Reis, Benedito Nunes, Masaud Moisés, Nádia Battela, Oscar Tacca, Antônio Candido, Antônio Dimas são consultados.


295 Estão também sendo abordadas as discussões de pesquisadores que têm se dedicado às obras de Rubem Fonseca, a exemplo de Afrânio Coutinho, Deonísio da Silva, Maria Lídia Lichtscheid Maretti, Aristóteles Miranda, Hudinilson Urbano e outros.

BREVE DISCUSSÃO Não raro, na obra de Rubem Fonseca é possível verificar diretas associações à televisão, ao rádio, aos jornais e revistas como instrumentos de controle social. Por exemplo, no conto O cobrador: ŖFico na frente da televisão para aumentar o meu ódio. Quando minha cólera está diminuindo e eu perco a vontade de cobrar o que me devem eu sento na frente da televisão e em pouco tempo meu ódio voltaŗ (FONSECA, 2004, p. 275). Ou no conto Pierrô da caverna: ŖSoube que o pai e a mãe de Sofia bebiam muito, era comum, à noite, eles se embriagarem assistindo à televisão, sem perceberem que a filha os observava, com um pouco de pena e muito desprezoŗ (FONSECA, 2004, p. 266). Ou no conto Onze de Maio: ŖEstou deitado no cubículo. Não há meio de desligar a maldita televisão. O aparelho é ligado e desligado por controle remoto, do mesmo lugar de onde a imagem é transmitidaŗ (FONSECA, 2004, p. 333). Em várias passagens das narrativas fonsequianas é possível estabelecer a relação de dominação estreitamente vinculada com a interferência desses meios, que aparentemente são inofensivos, mas que são fundamentais para a manutenção do sistema opressor estabelecido. São construções altamente condizentes à forma como Souza (1995, p. 18) define o atual sujeito das informações veiculadas pela mídia: Em nível empírico, o sujeito da comunicação é o indivíduo, mas reificado enquanto peça de um sistema; no nível teórico, o sujeito da comunicação é a própria ordem do sistema social funcionando, porque indivíduos, idéias, opiniões e instituições são funções mantenedoras do sistema, constituindo um princípio maior que ultrapassa os sujeitos empíricos.

Ainda no conto O cobrador, pode-se perceber um exemplo do comportamento característico das massas diante das exigências do sistema: ŖOdeio dentistas, comerciantes, advogados, industriais, funcionários, médicos, executivos, essa canalha inteira. Todos eles estão me devendo muito (...) Eu não pago mais nada, cansei de pagar!, gritei para ele, agora eu só cobro! Dei um tiro no joelho dele. Devia ter matado aquilo filho-da-putaŗ (FONSECA, 2004, p. 273). A análise sociológica é de suma importância para este estudo, uma vez que atua no


296 sentido de vincular o tecido social que integra o universo construído por Rubem Fonseca, destacando a influência da sociedade de massa nesse processo de construção. Assim, segundo Antônio Cândido (2000, p. 05, grifo nosso): a análise crítica, de fato, pretende ir mais fundo, sendo basicamente a procura dos elementos responsáveis pelo aspecto e o significado da obra, unificados para formar um todo indissolúvel, do qual se pode dizer, como Fausto de Macrocosmos, que tudo é tecido num conjunto, cada coisa vive e atua sobre a outra.

É esse viés dos Estudos Literários que permite a interação entre teorias de Theodor Adorno, por exemplo, e os dramas elucidados pelas tramas narrativas fonsequianas. A exemplo do trecho abaixo, figurativo das preocupações que motivavam o sociólogo: O mundo inteiro passou pelo crivo da indústria cultural. A velha experiência do expectador cinematográfico para quem a rua lá de fora parece a continuação do espetáculo acabado de ver Ŕ pois que este quer precisamente reproduzir de modo exato o mundo perceptivo de todo dia Ŕ tornou-se o critério da produção. Quanto mais denso e integral a duplicação dos objetos empíricos por parte de suas técnicas, tanto mais fácil fazer crer que o mundo de fora é o simples prolongamento daquele que se acaba de ver no cinema (...) A vida, tendencialmente, não deve mais poder se distinguir do filme (ADORNO; HORKHEIMER, 1982, p. 154-165).

Pode-se dizer que há nas obras de Fonseca constante referência ao processo de degradação pelo qual o homem vem se submetendo diante da evolução do consumismo e dos meios de comunicação de massa. Nesses contos, foco de análise do presente estudo, há claras imagens de personagens e situações condizentes com a nova forma de escravidão, característica da pós-modernidade. Na maioria dos contos a serem analisados, há explícita menção à influência dos meios de comunicação de massa de proporções mais avassaladoras: a televisão, o rádio e o cinema. É possível notar uma íntima relação entre a construção de arquétipos de personalidades submissas ao sistema e a incontrolável ação dos meios midiáticos, homogeneizantes. Outros contos dessa coletânea, entretanto, não fazem essa relação de maneira tão clara, mas também apresentam esses tipos dominados pela perversidade do sistema. No geral, todos os contos da obra manifestam as esquizofrênicas relações sociais que o consumismo e as leis do mercado impõem. De uma forma ou de outra, independentemente do lugar onde estejam concentrados esses personagens, os contos inspiram a sensação de que todos estão submersos em um corrupto sistema, em contrariedade à natureza humana, desenvolvendo-lhes uma reação doentia, Ŗcobrandoŗ aquilo que lhes é prometido, mas que nunca lhes será dado.


297 A partir dessa discussão, está sendo desenvolvida a análise dos dez contos da coletânea O Cobrador, dando ênfase às narrativas que apresentam explicitamente o tema das influências da comunicação de massa na formação do caráter desses personagens caracteristicamente pósmodernos. Ademais, pretende-se traçar um perfil do autor com base nos contos dessa coletânea, analisando-se o fio condutor que direciona o percurso dessas dez narrativas. REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. A indústria cultural: o Iluminismo como mistificação de massas. In: COSTA LIMA, Luiz (Org.). Teoria da cultura de massa. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. BELTRÃO, Luíz. Sociedade de Massa: comunicação e literatura. Petrópolis: Vozes, 1972. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 32. ed. São Paulo: Cultrix, 1994. BRAIT, Beth. A personagem. 6. ed. São Paulo: Ática, 1998. CÂNDIDO, Antônio. A personagem do Romance. In: CÂNDIDO, Antônio; et al. A Personagem de ficção. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1974. p. 51. CÂNDIDO, Antônio. Literatura e sociedade: estudo de teoria e história literária. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000. COUTINHO, Afrânio. Introdução à Literatura no Brasil. 17. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. p. 230-311. COUTINHO, Afrânio. O Erotismo na Literatura (O caso Rubem Fonseca). Rio de Janeiro: Cátedra, 1979. DIMAS, Antônio. Espaço e romance. São Paulo: Ática, 1987. (Série Princípios) FIORIN, José Luís. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ática, 2002. FONSECA, Rubem. 64 contos de Rubem Fonseca. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. GOLDMANN, Lucien. A criação cultural na sociedade moderna. Tradução Rolando Roque da Silva. São Paulo: Difusão Européia do livro, 1972. p. 68. HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1989. HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W. Dialética do Esclarecimento: Fragmentos filosóficos. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. LIMA, Luiz Costa. Análise Sociológica da Literatura. In: LIMA, Luiz Costa (Org.). Teoria da Literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. v. 2. LINHARES, Temístocles. História crítica do romance brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia: Universidade de São Paulo, 1987. LIRA, Pedro. Literatura e ideologia. Rio de Janeiro: Vozes, 1979. LYON, David. Pós-modernidade. São Paulo: Paulus, 1998. (Temas da Atualidade). MARETTI, Maria Lídia Lichtscheid. A lógica do mundo marginal na obra de Rubem Fonseca. Universidade Estadual de Campos, 1986. MARTÍNEZ, Tomás Eloy. A sinfonia do Mal. In: FONSECA, Rubem. 64 contos de Rubem Fonseca. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. MIRANDA, Aristóteles. Guilliod de O Cobrador: As Entranhas Sangrentas da Sociedade. Universidade Federal do Pará Belém, 1991. MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1984. 3. v. NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. 2. ed. São Paulo: Ática, 1995. ORTEGA Y GASSET. A rebelião das massas. Rio de Janeiro: Ed. Livro Ibero-americano,


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VARIAÇÃO LEXICAL NA ZONA RURAL DO ESTADO DO PARÁ Regis José da Cunha GUEDES (UFPA) Orientador(a): Prof. Dr.Abdelhak RAZKY (UFPA) RESUMO: Nesta pesquisa, elege-se como objeto de estudo a variação lexical na zona rural do estado do Pará. Pretende-se organizar e mapear dados referentes a doze localidades rurais do estado do Pará, sendo duas localidades de cada uma das seis mesorregiões, quais sejam: Mesorregião do Baixo Amazonas, Mesorregião do Marajó, Mesorregião Metropolitana de Belém, Mesorregião do Nordeste Paraense, Mesorregião do Sudoeste Paraense e Mesorregião do Sudeste Paraense. Para tanto, adotam-se os pressupostos teóricos da Geografia Linguística e da Dialetologia e situa-se esse objeto de estudo entre diversos estudos geolinguísticos já realizados no estado do Pará e no Brasil. O quadro da Geografia Linguística brasileira se expandiu tanto a partir de 1996 com o projeto nacional do Atlas Linguístico do Brasil (AliB), que as pesquisas com atlas regionais, como o ALIPA, têm uma significativa validade científica para o conjunto das pesquisas nacionais no sentido de projetar uma imagem da língua portuguesa no Brasil como um todo. No que diz respeito à área de pesquisa em Geografia Linguística, observa-se a grande carência de tais estudos no estado do Pará. O projeto do Atlas Geo-sociolinguístico do Estado do Pará (ALIPA), coordenado pelo professor Dr. Abdelhak Razky, veio preencher essa lacuna. O presente estudo se constitui de uma proposta de organização e mapeamento de dados coletados por pesquisadores do projeto


299 ALIPA, nas doze localidades pertencentes às mesorregiões supracitadas, e tem como objetivo de estudar a variação lexical que ocorre na fala de informantes das mesmas, seguindo o modelo teórico da Dialetologia e o método Geolinguístico, que observam, analisam e cartografam as variantes linguísticas inter-relacionadas aos fatores sociais. Espera-se que este estudo sirva como fonte de informações para outras pesquisas acerca do português brasileiro falado na zona rural do estado do Pará, bem como, possa ser utilizado no processo de ensinoaprendizagem da língua portuguesa. PALAVRAS-CHAVE: Variação Lexical, Dialetologia, Pará ABSTRACT: In this paper, was elected as an object of study the lexical variation in the rural state of Para is intended to organize and map data for twelve rural localities in the state of Pará, with two locations in each of the six regions: 1) Baixo Amazonas, 2) Marajó, 3) Metropolitana de Belém, 4) Nordeste Paraense, 5) Sudoeste Paraense and 6) Sudeste Paraense. To do so, they take up the theoretical assumptions and other linguistic geography of Dialectology and lies between the object of study geolinguistic several studies already undertaken in the state of Pará and Brazil. The framework of linguistic geography has expanded both in Brazil from 1996 on the national project of the Atlas Linguistico do Brasil (ALiB), which research on regional atlases, as ALIPA have a significant scientific validity for all the national polls in order projecting an image of the Portuguese language in Brazil as a whole. With regard to the search box Geography Linguistics, there is a great lack of such studies in State of Pará Project Atlas Geo-sociolinguístico do Estado do Pará (ALIPA ), coordinated by researcher Abdelhak Razky came fill this gap. This study represents a proposal for organizing and mapping data collected by researchers on the project ALIPA in twelve localities belonging to the region above, and aims to study the lexical variation that occurs in the speech of the same informants, following the model Dialectology and theoretical method geolinguistic, who observe, analyze and map the inter-linguistic variants related to social factors. This study serves as a source of information for further research about the Brazilian Portuguese spoken in the rural area of state of Pará, as well, may be used in the teachinglearning Portuguese. KEYWORDS: Lexical Variation, Dialectology, Pará INTRODUÇÃO Nesta pesquisa, elege-se como objeto de estudo a variação lexical na zona rural do estado do Pará. Pretende-se organizar e mapear os dados coletados por pesquisadores do projeto ALIPA da UFPA em doze localidades rurais do estado do Pará, sendo duas localidades de cada uma das seis Mesorregiões, quais sejam: Faro e Porto de Moz da Mesorregião do Baixo Amazonas, Chaves e Breves da Mesorregião do Marajó, Castanhal e Bujarú da Mesorregião Metropolitana de Belém, Bragança e Cametá da Mesorregião do Nordeste Paraense, Itaituba e Altamira Mesorregião do Sudoeste Paraense e Dom Eliseu e Curionópolis da Mesorregião do Sudeste Paraense. Nesta pesquisa, adotam-se os pressupostos teóricos da Geografia Linguística e da Dialetologia e situa-se esse objeto de estudo entre diversos estudos geolinguísticos já


300 realizados no estado do Pará e no Brasil, citados por Guedes (2007), como: Variação do /s/ pós-vocálico na fala de Belém (CARVALHO, 2000); As vogais médias pré-tônicas no falar da cidade de Bragança (FREITAS, 2001); Manutenção e apagamento do (r) final de vocábulo na fala de Itaituba (OLIVEIRA, 2002); A realização variável dos ditongos /oi/ e /ei/ no português falado em Altamira-PA (LOPES, 2002); Variações dos fonemas palatais lateral e nasal no falar de Marabá-PA (SOARES, 2002); A variação do (r) pós-vocálico em CametáPA: uma abordagem Geo-sociolinguística (LIMA, 2003); Variação lexical e fonética na Ilha do Marajó (MARTINS, 2003); Variação dos ditongos /ei/ e /oi/ no Nordeste do Pará (FARIAS, 2003); Variação lexical no Nordeste Paraense (COSTA, 2004); Variação Lexical em Quatro Municípios da Mesorregião Metropolitana de Belém (GUEDES, 2007); Atlas Prévio dos Falares Baianos Ŕ APFB (ROSSI, 1963); Esboço de um Atlas Lingüístico de Minas Gerais – EALMG (ZÁGARI, 1977); Atlas Lingüístico da Paraíba - ALPb (ARAGÃO, 1984); Atlas Lingüístico de Sergipe (ROSSI 1987); Atlas Lingüístico do Paraná - ALPr (AGUILERA, 1994); Atlas

Lingüístico-Etnográfico da Região Sul do Brasil – ALERS

(KOCH, 2002); Atlas Lingüístico de Sergipe II Ŕ ALSII (CARDOSO, 2002); Atlas Lingüístico Sonoro do Pará – ALISPA 1.1 (RAZKY, 2004) e o Atlas Lingüístico do Amazonas (CRUZ, 2004). Além destes atlas já publicados, ressaltamos outros trabalhos que estão em andamento, como: o Atlas Lingüístico do Acre (LESSA); o Atlas Lingüístico do Maranhão (RAMOS); o Atlas Lingüístico do Ceará (BESSA); dentre outros, dando ênfase ao Atlas Linguístico do Brasil – AliB, este que, segundo Mota e Cardoso (1998), constitui um grande desafio. O quadro da geografia linguística brasileira se expandiu tanto a partir de 1996 com o projeto nacional do Atlas Linguístico do Brasil (AliB), que as pesquisas com atlas regionais têm significativa validade científica para o conjunto das pesquisas nacionais no sentido de projetar uma imagem da língua portuguesa no Brasil como um todo. No que diz respeito à pesquisa em Geografia Linguística, observa-se a grande carência de tais estudos no estado do Pará. O projeto do Atlas Geo-sociolingüístico do Estado do Pará (ALIPA) veio preencher essa lacuna. DIALETOLOGIA E GEOGRAFIA LINGUÍSTICA Os estudos de cunho dialetológico propriamente ditos tiveram início no século XIX, em um momento histórico no qual a individualidade geográfica das regiões ainda estava resguardada pela dificuldade de comunicação entre as comunidades de falantes, pela escassez


301 de meios tecnológicos que propiciassem a comunicação e interação linguística entre localidades distantes. Estes estudos resultaram da preocupação com a conservação e registro de dados lingüísticos. Neste contexto de surgimento da dialetologia ressaltamos a contribuição de George Wenker (1881) que fez um levantamento de dados linguísticos na Alemanha, recobrindo grande parte de seu território, com um total de 44.251 respostas coletadas. Ressaltamos também a contribuição de Gilliéron e Edmont, na recolha sistemática de dados para o Atlas Linguistique de la France (ALF) (1902-1910), destacando-se que o diferencial desta pesquisa foi a aplicação da documentação in loco realizada por Edmont. Destacam-se também na afirmação da dialetologia como uma ciência dois importantes autores, o filólogo italiano Ascoli, cujos estudos permitiram conhecer as transformações por que passaram as línguas em fases anteriores, através de um estudo dos traços linguísticos das línguas vivas, e Antonie Meillet, discípulo de Saussure, que em 1908 publicou Les dialects indo-européens. O objeto de estudo da Dialetologia é constituído pelas variações linguísticas delimitadas num determinado espaço geográfico e em determinados agrupamentos sociais. Segundo Araújo (2007), o campo de estudo da Dialetologia é constituído pelos falares regionais e suas delimitações geográficas, sendo estas caracterizadas por diferenças próprias na fonética, no léxico e na gramática. A Geografia Linguística ou Geolinguística é a parte da Dialetologia que se ocupa em localizar e registrar as variações das línguas. É um método cartográfico desenvolvido pelos dialetólogos, tendo em vista a necessidade de registrar e comparar os resultados das pesquisas em localidades diferentes. Para Carreter (1974, p. 209), a Geografia Linguística é um: (...) método de investigação lingüística, consistindo em situar sobre o mapa da região estudada cada uma das formas com que se expressa um conceito ou alternância. Para cada noção ou alternância se emprega um mapa distinto. O conjunto de mapas constitui um Atlas Lingüístico.

O objetivo dos atlas linguísticos é registrar a particularidade de cada item linguístico que aparece num determinado ponto de um território. Um atlas linguístico fornece uma imagem multidimensional, ele mostra onde e como se dão as variações no espaço físico e social (RAZKY, et al., 2003, p. 117). Com o advento da Sociolinguística Laboviana (1966), a Geolinguística ampliou o seu campo de observação, que até então se restringia ao registro da variação diatópica (espacial), passando a controlar variáveis sociais mais complexas, tais como a variação diastrática (classe


302 social), variação diafásica (escolaridade), variação diagenérica (sexo), variação diageracional (faixa etária), dentre outras, constituindo-se assim, uma nova vertente da Geolinguística denominada de Geo-sociolinguística. OBJETIVO GERAL Organizar e mapear dos dados coletados por pesquisadores do projeto ALIPA nas doze localidades pertencentes às mesorregiões do estado do Pará, com o objetivo de estudar a variação lexical que ocorre na fala de informantes das mesmas, nos campos semânticos do QSL (ALIPA): Flora: arvores e frutos e Fauna. OBJETIVOS ESPECÍFICOS Mapear a variação lexical diatópica (espacial), diagenérica (sexo) e diageracional (faixa etária) que ocorre na fala dos informantes de cada uma das localidades pesquisadas. Confeccionar as cartas lexicais correspondentes aos dados coletados nas referidas localidades. Comparar entre si os resultados obtidos, como a produtividade dos campos semânticos e as relações analógicas estabelecidas com o universo social, econômico, cultural, bem como o espaço geográfico nos quais os informantes estão inseridos. METODOLOGIA Este trabalho segue o modelo teórico da Dialetologia e o método Geolinguístico, que observam, analisam e cartografam as variantes linguísticas inter-relacionadas aos fatores sociais, mais especificamente, segue a linha de pesquisa da Geo-sociolinguística. A identificação e o mapeamento da variação lexical no estado do Pará serão realizados a partir dos dados coletados em dezoito das cinquenta e sete localidades pesquisadas nas seis mesorregiões do Estado do Pará. O mapeamento se dará de acordo com o Método Geolinguístico, abrangendo as seguintes variáveis: variação diatópica, que se refere à disposição espacial das dezoito localidades selecionadas; variação diagenérica, referente ao sexo dos informantes e variação diageracional, relativa à faixa etária dos informantes selecionados. A pesquisa será realizada em três fases: na primeira fase serão feitos o levantamento e revisão bibliográfica necessários ao tratamento do objeto estudo, na segunda fase serão selecionados quarenta e oito informantes no total, sendo quatro de cada uma das doze


303 localidades selecionadas. Os informantes em questão foram submetidos a um Questionário Semântico-lexical (QSL) que apresenta 256 perguntas, distribuídas em 14 campos semânticos. Os dados foram registrados em fitas magnetofônicas, com duração aproximada de sessenta minutos cada. Na terceira e última fase, os dados serão organizamos e sistematizamos em tabelas, conforme os campos semânticos e estruturas sociais e espaciais. Serão transcritos foneticamente segundo o Alfabeto Fonético Internacional Ŕ IPA. E, em seguida, serão mapeados em cartas lexicais. INFORMANTE Serão selecionados quarenta e oito informantes no total, quatro por localidade. Para a Zona Rural, o projeto ALIPA prevê a seleção dos informantes segundo os seguintes critérios: todos deveriam ter escolaridade igual ou inferior à 4ª série do ensino fundamental; um do sexo masculino e um do sexo feminino, entre 18 e 30 anos e um do sexo masculino e um do sexo feminino, entre 40 e 70 anos, para cada uma das localidades. QUESTIONÁRIO SEMÂNTICO-LEXICAL O Questionário Semântico-lexical (QSL) utilizado nesta pesquisa foi elaborado tendo como base a primeira versão do QSL, elaborado para o Atlas Linguístico do Brasil acrescido de itens dos questionários usados para a construção do Atlas Linguístico do Estado de São Paulo e do Estado do Paraná e ainda de outros acrescentados pela equipe do ALIPA. Os informantes entrevistados nas localidades pesquisadas pelo Projeto ALIPA foram submetidos a um Questionário Semântico-lexical (QSL) que apresenta 256 perguntas, distribuídas em 14 campos semânticos, quais sejam: Natureza e acidentes geográficos; Fenômenos atmosféricos; Astros e tempo; Flora; Atividades agro-pastoris; Fauna; Corpo humano; Cultura e convívio; Ciclos da vida; Religiões e crenças; Festas e divertimentos; Habitação; Alimentação e cozinha; e Vestuário. CARTAS LEXICAIS Os dados serão organizados e sistematizados em tabelas, conforme os campos semânticos e estruturas sociais e espaciais, também serão transcritos foneticamente segundo o Alfabeto Fonético Internacional Ŕ IPA, e em seguida os dados serão mapeados em cartas


304 lexicais. O mapa que servirá de modelo para a elaboração das cartas lexicais será fornecido pelo Laboratório de Análises Espaciais do NAEA (UFPA/LAENA), e será alterado, tendo em vista às necessidades de produção das cartas lexicais. As alterações serão realizadas utilizando o software editor de imagens Adobe Photoshop CS4. As cartas lexicais seguirão o modelo da apresentada a baixo, nas quais serão registradas as variantes lexicais e fonéticas (1), as cartas também apresentarão: um número de identificação (2), uma cruz de estratificação social (3) que servirá de base para leitura dos registros sobre o sexo e a faixa etária dos informantes, um quadro com informações sobre as questões do QSL (4), além do mapa do estado do Pará (5) sobre o qual serão registradas as variantes de cada ponto de inquérito.

O mapeamento das variantes lexicais e fonéticas se dará seguindo a metodologia do projeto ALIPA, que foi utilizado por nós por ocasião da feitura do trabalho de conclusão de curso de Letras da UFPA, sobre a variação lexical na mesorregião metropolitana de Belém, no qual foram produzidas cartas como as que seguem:


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Na carta 11, elaborada para questão 64 do QSL (Como se chama aquelas bananas que nascem grudadas?) foram registradas 8 lexias diferentes. Chamamos a atenção para a lexia incunha, registrada no ponto 1 (Santo Antônio do Tauá), segundo Aurélio (1999), esta lexia é de origem tupi, provavelmente é uma variante de i kõe. No Atlas Linguístico do Paraná (AGUILERA, 1994) encontramos o registro da variante Ŗinconha‖ para esta mesma acepção.


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A carta 15, elaborada a partir das respostas para a questão 102 do QSL: E a armadilha para pegar passarinho, com que eles pegam passarinho lá no mato?, apresentou quatro variantes lexicais no total, a lexia arapuca e sua variante irapuca foram as mais recorrentes, apresentando oito registros. Merece especial destaque a lexia ―juçana‖, que Aurélio (1999, p. 1165) registra exatamente nesta acepção: Ŗ[Do tupi.] S. f. Bras. Armadilha ou laço para apanhar passarinhosŗ. Este registro que deixa transparecer a grande influência da língua Tupi no falar dos informantes da zona rural da Mesorregião Metropolitana de Belém. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir do mapeamento dos dados supracitados, pretende-se fornecer um panorama da diversidade lexical na zona rural no estado do Pará, além de possibilitar melhor entendimento dos aspectos históricos e sócio-culturais de cada um dos municípios pesquisados. Além disso, espera-se que este estudo sirva como fonte de informações acerca do português brasileiro falado no estado do Pará, e que por conta disso, possa ser utilizado como subsídio no processo de ensino-aprendizagem da língua portuguesa, visando desmistificar, para alunos de praticamente todos os níveis educacionais, a variação e o preconceito


307 linguístico tão presentes no ensino das línguas atualmente. Espera-se também que as cartas lexicais sirvam como objeto de estudo para historiadores, sociólogos, antropólogos e demais pesquisadores de áreas afins. REFERÊNCIAS ARAÚJO, Joseph Ildefonso de. Dialectologia. Revista Philologus, Ano 13 n° 37, 2007. Disponível em: <http://www.filologia.org.br/vcnlf/anais%20v/civ8_05.htm>. Acesso em: 21 novembro de 2010. CARDOSO, Suzana Alice M. Perspectivas da pesquisa sobre a diversidade linguística no Brasil. In: ATAS DO I CONGRESSO NACIONAL DA ABRALIN. Boletim da ABRALIN. 9.ed. 21 de junho de 1997. Rio de Janeiro, 1997. CARRETER, Fernando Lázaro. Diccionario de términos filológicos. 3. ed. corrigida. Madrid: Gredos, 1974. COSTA, Céliane Souza. Variação lexical no nordeste do Pará. (TCC- Universidade Federal do Pará), 2005. FEITOSA, Adriana da Silva. Variação lexical no sudeste do Pará. (TCC- Universidade Federal do Pará), 2006. GUEDES, Regis José da Cunha. Variação lexical em quatro municípios da mesorregião metropolitana de Belém. (TCC Ŕ Universidade Federal do Pará), 2007. MARTINS, Arlon F. Carvalho. Variação lexical e fonética na Ilha do Marajó. Belém, 2003 (Texto Técnico-Científico). MOTA, Jacyra Andrade; CARDOSO, Suzana Alice Marcelino. Documento 2: projeto atlas linguístico do Brasil. São Paulo: Quarteto, 2006. MOTA, Jacyra Andrade; CARDOSO, Suzana Alice Marcelino. Um desafio: o Atlas Linguístico do Brasil. UFBA, 1998. RAZKY, Abdelhak (org). Estudos geo-sociolingüísticos do Pará. Belém: Grafia, 2003. RAZKY, Abdelhak. Atlas Linguístico Sonoro do Estado do Pará (AliSPA 1.1). Belém: s/ed. 2004. (Programa em CD-ROM).

A REGULAÇÃO E OS INSTRUMENTOS FORMATIVOS NO PROCESSO DE ENSINO/APRENDIZAGEM DE LÍNGUA MATERNA Renata dos Santos LAMEIRA (UFPA) Orientador(a): Prof.ª Dr.ª Myriam Crestian CUNHA (UFPA) INTRODUÇÃO As discussões em torno do ensino/aprendizagem de línguas no que se refere aos seus objetivos/objetos já ocorrem há algum tempo. Podemos dizer que alguns pressupostos teóricos já estão cristalizados, ainda que no nível do discurso. Parece notório aos professores, ainda que não saibam como fazê-lo, que o ensino deve acontecer a partir do texto, pois em uma sociedade complexa como a nossa, a necessidade de produzir textos orais e escritos é imprescindível para uma cidadania plena.


308 A mudança das práticas nas aulas de português exige uma mudança nas práticas avaliativas e nas concepções de ensino/aprendizagem que fundamentam essas práticas, pois é necessário correlacionar os problemas ligados à concepção do que é ensinar e aprender a produzir textos e os problemas ligados a o que é avaliar a produção ou compreensão desses textos. Dessa forma, defendemos aqui a abordagem interacional de ensino/aprendizagem por considerarmos mais adequada ao desenvolvimento das competências de linguagem, uma vez que privilegia as situações de interação. A concepção de linguagem como interação está relacionada aos pressupostos pragmáticos Ŕ a língua como forma de ação Ŕ e, sócio-interacionistas Ŕ a língua como um produto coletivo e histórico e como um fenômeno interativo e dinâmico (SANTANA, 2004). A partir dessa perspectiva o ensino de língua materna busca enfatizar os conhecimentos linguísticos, a apropriação de conhecimentos que possibilitem o desenvolvimento da competência discursiva e o uso da língua nas práticas sociais, pois como afirma Perrenoud (1999) ŖA interação social leva o indivíduo a decidir, a agir, a se posicionar, a participar de um movimento que o ultrapassa, a antecipar, a conduzir estratégias, a preservar seus interessesŗ. Além disso, essa abordagem permite ao aluno se confrontar com suas dificuldades de produção e recepção textual em contextos autênticos. Somado a essa concepção interacional de língua/linguagem compreendemos que os procedimentos da avaliação formativa têm muitas contribuições a oferecer no que se refere ao desenvolvimento de competências linguageiras. Pois nessa modalidade de avaliação, que favorece o processo de aprendizagem, o aluno é convidado a assumir sua aprendizagem de forma mais autônoma, por meio de mecanismos de autoavaliação e de autorregulação, que deverão ser desenvolvidos com o auxílio do professor (CUNHA, 2006). Ao aluno é atribuído um papel ativo, o que é tanto mais importante na aprendizagem da língua uma vez que não há como produzir textos de maneira apropriada sem aprender também a avaliar e regular essa produção. A abordagem interacional de língua/linguagem nos direciona a compreender que nossa sociedade se organiza a partir de gêneros, conforme Bakhtin (2000, p.79) Ŗcada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis (grifo do autor) de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discursoŗ. Assim, a produção de sentidos em uma sociedade está inserida em um repertório de discursos usados na interação com o outro. A noção de gênero é considerada, então, essencial no ensino/aprendizagem de língua, uma vez


309 que permite a abordagem de textos além do linguístico, mas levando em consideração os aspectos sociais e interacionais, tendo a perspectiva de que a língua usada nos textos constitui uma forma de comportamento social (ANTUNES, 2009). Como afirma Motta-Roth (2000, p.503) a contribuição da noção de gêneros textuais para o ensino de linguagem é Ŗchamar atenção para a importância de se vivenciar na escola atividades sociais, das quais a linguagem é parte essencial; atividades essas às quais, muitas vezes, o aluno não terá acesso a não ser pela escolaŗ. É com base na convicção de que o ensino de língua, voltado para o desenvolvimento de competências interacionais, deve fundamentar-se na noção de gêneros que muitos autores (DOLZ et al., 2004, ROJO, 2005, MOTTA-ROTH, 2000) defendem que as atividades de leitura e escrita devem basear-se em gêneros discursivos. Para Dolz et al. (2004, p.75) os gêneros são "megainstrumentos" que Ŗfornecem um suporte para a atividade de comunicação e uma referência para os alunosŗ e é partindo dessas concepções que os autores do grupo de Genebra propuseram o modelo Sequência Didática (SD) que definem como: [...] um conjunto de atividades escolares, de maneira organizada, em torno de um gênero textual oral ou escrito. Esse procedimento tem a finalidade de ajudar o aluno a dominar melhor um gênero de texto, permitindo-lhe escrever ou falar de uma maneira mais adequada numa dada situação de comunicação. (DOLZ et al., 2004, p.97)

O modelo está baseado na premissa de que Ŗcomunicar-se oralmente ou por escrito pode e deve ser ensinado sistematicamenteŗ e os gêneros textuais constituem Ŗo instrumento de mediação de toda estratégia de ensino e o material de trabalho, necessário e inesgotável, para o ensino da textualidadeŗ (DOLZ et al., 2004, p.51). O PROJETO DE PESQUISA A partir das articulações entre a abordagem interacional de ensino/aprendizagem de Língua Materna, avaliação formativa e o procedimento Sequência Didática, tais como propõem Schneuwly & Dolz (2004), alicerçamos nosso projeto de pesquisa. Consideramos que durante a realização de uma Sequência Didática, mais especificamente durante a realização dos módulos, perpassa o processo de regulação da aprendizagem, ou seja, há um conjunto de ações que tem como objetivo adequar os procedimentos e estratégias de ensino às necessidades dos alunos. Tal aspecto é estritamente formativo, na verdade, é o objetivo fundamental da avaliação formativa.


310 A ideia de que a finalidade principal das atividades de avaliação desenvolvidas na sala de aula é o favorecimento do processo de regulação, permitindo aos próprios aprendentes detectar suas dificuldades, e a partir daí, desenvolver estratégias para superá-las torna necessária uma melhor compreensão de como são desenvolvidos os instrumentos formativos, como os aprendentes os utilizam e que efeitos têm na apropriação efetiva de novas habilidades. Sendo assim, o projeto de pesquisa permitirá investigar de que forma os instrumentos formativos, desenvolvidos durante uma Sequência Didática, participam da regulação da aprendizagem. Objetivamos, de modo mais específico, identificar como são construídos os instrumentos formativos; examinar de que forma esses instrumentos são utilizados pelos aprendentes e, finalmente, analisar em que medida eles contribuem para a apropriação efetiva de novas habilidades. A sequência didática desenvolvida em nossa pesquisa estará inserida numa perspectiva maior, na perspectiva da Pedagogia de Projetos, pois consideramos que o projeto comunicativo pressuposto pela Sequência Didática pode estar aliado a uma mobilização mais abrangente, ou seja, inserida num projeto escolar, em que seja possibilitada aos alunos uma co-responsabilidade pelo trabalho e pelas escolhas. Além disso, a Pedagogia de Projetos é uma proposta de intervenção pedagógica que pressupõe uma resignificação dos espaços de aprendizagem de tal forma que eles se voltem para a formação de sujeitos ativos, reflexivos, atuantes e participantes (HERNANDEZ, 1998). Um projeto gera situações de aprendizagem ao mesmo tempo reais e diversificadas, possibilita que os aprendentes decidam, opinem, debatam, construam sua autonomia e seu compromisso social, formando-se como sujeitos culturais. Para o desenvolvimento da pesquisa será utilizada a metodologia da pesquisa-ação, haja vista que uma das principais motivações que influenciaram a constituição desse projeto de pesquisa é a minha prática docente. A pesquisa-ação permitirá conjugar a reflexão de minha prática à ação em favor dela, pois essa metodologia ocorre num processo contínuo entre planejamento de ações, a ação, a observação, o estudo e ação interventiva. Dessa forma, essa metodologia permite a todos os agentes Ŕ professores e alunos Ŕ serem sujeitos mais efetivos na busca pelo conhecimento, pois como afirma Morin apud Portal (2008): O tipo de saber que se procura gerar na pesquisa-ação emergirá da reflexão sobre a prática, já que o professor Ŕ como ator e pesquisador - está inserido em um campo, faz parte dele, e deve caminhar com múltiplos componentes de seu meio porque a priori não sabe o que é pertinente e o que não é em seu


311 projeto de pesquisa.

A pesquisa-ação está inserida nos modos de pesquisa qualitativa, pois não entende os sujeitos envolvidos como meras variáveis, números, agregados estatísticos, quantidades absolutizadas como na perspectiva quantitativa de caráter positivista. Esse tipo de pesquisa, na verdade, tem como principal característica o fato de o pesquisador possuir uma dupla postura: a de observador crítico e de participante ativo, pois, tal pesquisa, exige uma realização concomitante da pesquisa e da ação/intervenção. Segundo Thiollent (2007, p.16) a pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo. Sendo assim, esse modo de pesquisa prevê, portanto, o surgimento de reflexões que atuem na perspectiva da superação de um determinado problema. Seu objetivo primordial é a mudança, a transformação de uma determinada realidade educacional, levando em consideração toda a complexidade que a constitui. A pesquisa-ação deve ser compreendida como uma estratégia para o desenvolvimento de professores e pesquisadores de modo que eles possam utilizar suas pesquisas para aprimorar seu ensino e, consequentemente, a aprendizagem dos alunos (TRIPP, 2005). Como instrumentos de coleta de dados, utilizaremos a observação participante, o diário de campo; gravadores de áudio e vídeo, e a produção inicial que sugere a Sequência Didática proposta por Dolz et al. (2004). A observação participante constitui a observação das atitudes, reações, comentários, ações dos envolvidos. O diário de campo permitirá anotar os eventos ocorridos em sala de aula, além das impressões da pesquisadora desses eventos. Entretanto, como a pesquisa-ação exige uma dupla participação Ŕ agente e pesquisador Ŕ não será possível anotar todos os eventos dada à necessidade de agir como professora, dessa forma, será necessário para uma melhor compreensão dos processos, a gravação em áudio e vídeo. Além disso, a produção inicial da SD permitirá nortear o trabalho docente e construir os módulos da SD. Acreditamos que o desenvolvimento desse projeto de pesquisa permitirá compreender de forma mais ampla o processo de regulação, como são construídos e constituídos os instrumentos formativos nesse processo, bem como a forma que esses instrumentos formativos se tornam agentes na efetivação de saberes.


312 REFERÊNCIAS ANTUNES, Irandé. Língua, Texto e Ensino. Outra escola é possível. São Paulo: Parábola, 2009. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Maria Ermantina Galvão. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. CUNHA, Myriam Crestian Chaves da. Nem só de conceitos vivem as transformações: equívocos em torno da avaliação formativa no ensino/aprendizagem de línguas. Revista Brasileira de Lingüística Aplicada, nº 6, v. 2, 2006. HERNÀNDEZ, F. Transgressão e mudança na educação: os projetos de trabalho. Tradução de Jussara Haubert Rodrigues. Porto Alegre: Artmed, 1998. JOLIBERT, Josette e colaboradores. Formando crianças leitoras. Tradução de Bruno Charles Magne. Porto Alegre: Artmed, 1994. MOTTA-ROTH, Désirée O ensino de produção textual com base em atividades sociais e gêneros textuais in Linguagem em (Dis)curso / Universidade do Sul de Santa Catarina. - v. 1, n. 1 (2000)Tubarão: Ed. Unisul, 2000. Disponível em http://www3.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/0603/0603.pdf PERRENOUD, Philippe. Avaliação: da excelência à regulação das aprendizagens. Tradução de Patrícia Chitoni Ramos. Porto Alegre: Artmed, 1999. PORTAL, Michele Seabra Portal. Contribuição da avaliação formativa para o ensino/aprendizagem da produção escrita em turmas numerosas. Dissertação de Mestrado. Belém: Universidade Federal do Pará, 2008. SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim e colaboradores. Gêneros orais e escritos na escola. Trad. e org. de Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004. SANTANA, Eliete Maria Araújo. A influência do contexto de produção na construção de sentido do texto. Revista FAEEBA – Educação e contemporaneidade, Salvador, v.13,n.21,p.119-127, jan./jun., 2004. THIOLLENT, M. Metodologia da Pesquisa-ação. São Paulo: Cortez, 2007. TRIPP, David. Pesquisa-ação: uma introdução metodológica in Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 3, p. 443-466, set./dez. 2005. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ep/v31n3/a09v31n3.pdf

MEMÓRIA DO POVOADO ÀS MARGENS DO LAGO ARARI Rosa Maria Ramos BENTES (UFPA) Orientador(a): Prof.ª Dr.ª Maria do Socorro SIMÕES (UFPA) RESUMO: Este trabalho de caráter etnográfico faz parte do projeto de pesquisa ŖAs narrativas orais do caboclo do Arariŗ e consiste na documentação de narrativas orais folclóricas Ŕ materialização do conhecimento empírico do homem rústico, no município de Santa Cruz do Arari, situado na ilha de Marajó. Propõe-se análise desta documentação com vistas a tecer o perfil cultural, social, econômico, político e histórico do povoado, delineando as bases norteadoras das temáticas mais recorrentes nas narrativas orais como as histórias relatadas por vaqueiros, fazendeiros, pescadores e comerciantes que utilizam os Ŗcausosŗ, que povoam o imaginário coletivo, para exemplificar metaforicamente as relações do homem com a região das águas.


313 PALAVRAS-CHAVE: Etnografia, imaginário, Arari. ABSTRACT: This work of etnographic character belongs to research ŖAs narrativas orais do caboclo do Arariŗ and consists in the documentation of the oral folcloric narratives as materialization of the empiric knowledge of the common man in Santa Cruz do Arari township in the Marajó Island. This documentation is analysed intending to figure the cultural,social, economic, politic and historic issues and traces the basis of the recurrent thematics in the narratives reported by wranglers,farmers,fishermen and merchants that use the therm known as Řcausosř present into the coletive population to exemplify in a methaphoric way the relations between man and the Řwater regionř KEY WORDS: Ethnography, imaginary, Arari. INTRODUÇÃO

A construção da proposta assenta-se, primeiramente, no levantamento bibliográfico, pela necessidade de se conferir base científico-acadêmica à pesquisa, para fundamentar um perfil do homem em sociedade a partir de enfoques no âmbito social e histórico, além de avaliar a atuação do homem amazônida em seu espaço. O povoado de Santa Cruz do Arari, Estado do Pará, está situado à margem direita do lago Arari, na ilha de Marajó, foi criado em 1961, a partir do desmembramento de parte dos municípios de Ponta de Pedras e de Chaves, originado da Sesmaria Santo Inácio, conferida a Plácido José Pamplona, onde se instalou mais tarde a Fazenda Santa Cruz. Algum tempo depois, deu-se origem ao município de Santa Cruz do Arari, que hoje tem uma população a viver basicamente da pesca e pecuária. De acordo com informações da Sinopse preliminar do Censo Demográfico de 2010, a população do município é de seis mil duzentos e oitenta mil habitantes (IBGE, 2010). Este artigo, que focaliza, em parte, a história de um povoado às margens do Lago Arari tem como principal destaque a coleta de informações (relatos, memória e Ŗcausosŗ) de moradores mais antigos, que guardam, na memória, com notável precisão a história da cidade e a sua relação com o Lago, que é ponto de referência do imaginário popular de cada morador da região das águas. Segundo, GALLO: O caboclo tem a sua cosmologia, não conhece a palavra, porém segura com ciúme o conteúdo: a mosca é gerada do lixo, o jandiá vira sapo, o boto vira gente e o macaco já foi gente. Tem sua idéia do pudor, da moralidade. Todas as crianças sabem disso: é uma cultura herdada com a vida (GALLO.1981,p.89).

Trata-se de um estudo sobre os saberes culturais do homem da região, precisamente da comunidade de Santa Cruz do Arari, que habita a margem direita do lago de mesmo nome, sobre o qual Gallo destaca, de modo bem enfático, algumas situações particulares acerca do


314 imaginário do homem marajoara. Para dar conta de tais situações, o autor recorre ao cotidiano, a crendices, à linguagem e à sabedoria do caboclo rústico, que se utiliza de certos mecanismos para defender a idéia de que a lenda faz parte do imaginário local. Na pesquisa encontram-se elementos que evidenciam algumas práticas do cotidiano dos moradores e suas histórias. Importa observar que as manifestações populares da gente do Arari é uma mistura de lendas indígenas com superstições de origem africana. De espírito brincalhão e anedótico, o morador deste recanto marajoara passa horas inteiras, sobretudo à tarde, divertindo-se, jogando dominó ou baralho e contando estórias de Boto, Boi com poderes sobrenaturais, Bode cheiroso, Cavaleiro misterioso, Mulher que vira Porca, Mulher de Branco, Matinta-Perêra, Ŗcausosŗ de visagens e assombrações, comuns na imaginação de pescadores e vaqueiros que vivem na região. Na maioria das vezes, suas histórias manifestam a presença do poder sobrenatural de criaturas estranhas que aparecem em determinas horas e lugares, mas quase sempre com finalidade de dar um ensinamento moral ou dar ênfase à necessidade de respeito à natureza. Supõe-se que se trata de um recurso para quem não tem conhecimento científico, mas que tem domínio empírico. Tal conhecimento vai passando de geração a geração, a partir da história oral, para preservar a identidade do homem arariense. Na citação, a seguir, Bosi (1994, p.420) fala da verdadeira importância das narrativas orais no processo de preservação de valores culturais de um povo: Será a memória individual mais fiel que a social? Sim, enquanto a percepção original obrigar o sujeito a contar as distorções em certos limites porque ele viu o fenômeno. Mas o quando, o como, entram na órbita de outras motivações. Se a memória grupal pode sofrer os preconceitos e tendências do grupo, sempre é possível um confronto e uma correção dos relatos individuais e a história salva-se de espelhar apenas os interesses e distorções de cada um.

Pode-se, então, afirmar que os saberes culturais refletem a forma de viver e compreender a região, gerando representações sociais e valores que definem a identidade coletiva dos ararienses. Esses saberes culturais são dimensionados no âmbito da história oral, como narrativas de memória, especificamente, no cerne das histórias de vida do homem da região, pescadores, vaqueiros e demais habitantes de Santa Cruz do Arari. Miranda (2005) relata que há ocasiões em que o caboclo está tão convicto da existência de tais figuras, que, para provar o que diz, chega a ponto de afirmar tê-las visto, utilizando-se do chamado Ŗestatuto veriditórioŗ, de que falam Greimas e Courtés, no seu Dicionário de Semiótica (1979, p.485).


315 Para melhor entendimento das circunstâncias e modus vivendi do homem de Arari, o artigo faz referências, a seguir, a alguns aspectos sócio/econômicos da região: ECONOMIA As atividades mais expressivas, na estrutura do município, dizem respeito ao setor primário. A pecuária bubalina e bovina é uma das principais rendas do município. A pesca também representa parte da economia de grande importância, com destaque para as espécies de peixes mais comuns na região, como: apaiari, aracu, jeju, pescada, jandiá, traíra e tamuatá. Ainda vale destacar o comércio como atividade relevante na cidade. COMIDA Entre os pratos tipicamente marajoaras, valem ser citados: carne suína, Ŗfrito do vaqueiroŗ (carne de vitela frita na própria gordura), linguiça, carne de sol, peixe cozido em água e sal, peixe frito, e, às vezes, animais silvestres como camaleão, jacaré, tatu, capivara, muçuã, marreca. Além do consumo de queijo e doce de leite, em quase todos os alimentos há a presença da farinha de mandioca como mistura. OS EVENTOS CULTURAIS Entre os eventos culturais da comunidade santacruzense, destacamos o Círio, festa de Nossa Senhora de Nazaré, padroeira do município. Este evento é festejado anualmente; o cortejo sai da vila de Jenipapo, local onde também há uma Igreja do padroeiro dos pescadores, sob a orientação dos padres desta cidade. Este círio acontece no mês de novembro de cada ano e tal evento tem a duração de oito dias e oito noites. Um outro momento festivo para os moradores (e mais citadino) é o aniversário do município de Santa Cruz do Arari, comemorado no dia 08 de abril. Ainda convém destacar um dos momentos que vem ganhando visibilidade entre o povo do Arari, qual seja o Festival do Tamuatá, que, neste ano, comemorou seu XVI evento. Ressalte-se que, nesse festival, os moradores aproveitam para expor e vender artesanatos, comidas típicas, desenhos, pinturas e bordados, além de promover maratonas de grupos folclóricos com danças típicas da região.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Concluindo o texto, com algumas das muitas indicações da etnografia dos moradores do


316 município de Santa Cruz do Arari Ŕ ilha de Marajó Ŕ, não se pode deixar de ressaltar a importância da memória na história deste povoado que se tem referenciado na tradição oral, de importância reconhecida para os estudos da narrativa oral. Segundo é possível observar, no imaginário, visto sob a ótica da comunidade marajoara, há nítidas características da cultura indígena e africana, manifestas através de uma série de artífices populares, refundidos com a utilização de uma técnica muito bem elaborada pelos moradores mais antigos, que se fazem presentes na memória, na tradição e nos causos relatados numa relação de espécie de simbiose com o lago Arari.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMANAQUE, do Município de Santa Cruz do Arari.1963. BOSI, Ecléa.Memória e sociedade:lembrança de velhos.3.Ed.São Paulo:Cia das Letras,1994. JURANDIR, Dalcidio. Marajó. 3. ed.Belém:CEJUP,1992 GALLO, Giovanni. Marajó A ditadura das águas. 2ªEd. Santa Cruz do Arari: ŗNosso museuŗ,1981. GREIMAS, A. J. & COURTÉS, J. Dicionário de Semiótica. S. Paulo; Cultrix,1979. NETO, Manoel José de Miranda. Marajó desafio da Amazônia. ADUFPA.2005 MIRANDA,Vicente Chermont de.Glossário Paraense ou Coleção de Vocábulos Peculiares à Amazônia e Especialmente à Ilha do Marajó.Universidade FEDERAL DO Pará,1968.

O CONTO ROSIANO EM PRIMEIRAS ESTÓRIAS: UMA LEITURA DE “AS MARGENS DA ALEGRIA”, “OS CIMOS” E “DARANDINA” Rosalina Albuquerque HENRIQUE (UFPA) Orientador(a): Prof. Dr. Sílvio Augusto de Oliveira HOLANDA (UFPA) RESUMO: Este trabalho possui como estudo os contos ŖDarandinaŗ e ŖOs cimosŗ, do livro Primeiras estórias (1962), de João Guimarães Rosa (1908-1967), no qual se discute o tema da alteridade presente nessas narrativas, no que tange ao modo de apreensão do mundo e da vida, seja pela beleza, seja pela loucura, visando também a uma leitura comparativa relacionada à temporalidade em ŖAs margens da alegriaŗ e em ŖOs cimosŗ, cuja semelhança está presente tanto na temática quanto na estrutura narrativa. Sendo assim, este exame se fundamenta na Estética da Recepção, postulada pelo teórico alemão Hans Robert Jauss (1921-1997), o qual, sob a ótica de uma hermenêutica literária, torna o leitor um principal colaborador na constituição do sentido de uma dada produção escrita, em que a experiência estética é conduzida por uma integração entre a herança da tradição histórico-literária e os horizontes interpretativos de quem leu a obra, visto, principalmente, em A história da literatura como provocação à teoria literária (1994). PALAVRAS‐CHAVE: João Guimarães Rosa. Primeiras estórias. Estética da Recepção. ABSTRACT: This work aims analyze of the short-stories ŖMuch adoŗ and ŖTreetopsŗ of the book The third bank of the river and other stories (1962), of João Guimarães Rosa (19081967), in which discuss the theme of alteridade, the way of apprehending the world and life,


317 through the beauty or the madness, and a comparative reading related to temporality between ŖThe thin edge of happinessŗ and ŖTreetopsŗ, whose similarity is present in the theme and in narrative structure. Therefore, this study is based in the Aesthetic of the Reception, formulated by the German theorist Hans Robert Jauss (1921-1997) under a perspective of a literary hermeneutics that becomes the reader a major collaborator in the building of sense of a given written production, and which the aesthetic experience is taken by an integration between the legacy of the literary-historical tradition and the interpretive horizons of those who read the work, seen mainly in A história da literatura como provocação à teoria literária (1994). KEYWORDS: João Guimarães Rosa. Third bank of the river and other stories. Aesthetic of Reception. INTRODUÇÃO Tendo em vista a grande rede de sentidos a visualizar a diversidade de recepções críticas da obra do escritor João Guimarães Rosa (1908-1967), o nosso estudo tem por objetivo desenvolver uma análise dos contos ŖDarandinaŗ, ŖOs cimosŗ e ŖAs margens da alegriaŗ de Primeiras estórias. Esse volume que é o quarto, entre os sete, voltado à prosa, publicado pela José Olympio, em 1962, foi uma nova experiência do escritor: o conto curto, muito diferente de Sagarana, com narrativas longas, e da primeira edição de Grande sertão: veredas, um romance escrito em quinhentas e noventa e quatro páginas. Devemos frisar, porém, que a produção literária desse autor mineiro de uma cultura exemplar destaca-se na literatura brasileira pela sua enorme habilidade em valorizar o mundo do sertanejo por meio da recriação e tradução poética de sua linguagem, que se deve a anos de dedicação aos estudos das Letras, de contatos com os sertanejos, mascates, garimpeiros, praças de polícia, caçadores, vaqueiros, bichos e paisagens mineiras, transcriando-os em ficção universal do homem e seus conflitos. A nossa pesquisa é bibliográfica alicerçada em produções críticas em relação às narrativas rosianas selecionadas, da obra Primeiras estórias, tendo como escopo teórico a Estética da Recepção, sendo assim, por seu turno, a mais adequada para este trabalho. Visamos, para tanto, delinear melhor as especulações que aqui serão tecidas em três momentos, a saber: ŖA experiência estética em Jauss e a hermenêutica literáriaŗ, ŖDa visão epifânica à visão da loucura em três contos de Guimarães Rosaŗ e ŖA crítica literária de Primeiras estórias: leitores enredados pela escrita de Guimarães Rosaŗ. 1 A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA EM JAUSS E A HERMENÊUTICA LITERÁRIA No século XX, Hans Robert Jauss (1921-1997) inaugurava a Estética da Recepção que


318 motivou uma alteração no panorama dos estudos acadêmicos, em especial na Alemanha, ao reconhecer o leitor como um mediador da história da literatura, a qual estava, tradicionalmente, associada à história dos autores, das obras, dos gêneros e dos estilos. Jauss ao eleger a história da literatura como matéria principal de reflexão entrava de chofre na formulação de um novo tipo de história da literatura, centralizada em uma literatura interpretativa perante os seus vários momentos de recepção histórica. Seu interesse reside na maneira como a obra é ou deveria ser recebida, estabelecendo o dialogismo (no sentido de relação) entre texto e leitor, quer dizer, entre efeito e recepção, sem perder de vista a importância sobre o valor e a experiência estética da obra recepcionada e para quem esta é destinada, assumindo de tal modo uma nova postura de leitor Ŗem seu papel genuíno, imprescindível tanto para o conhecimento estético quanto históricoŗ1: a de que a obra literária só existe quando é motivada pelo próprio leitor. Tal atitude é adotada por Guimarães Rosa, ao criar as narrativas de ŖAs margens da alegriaŗ, ŖOs cimosŗ e ŖDarandinaŗ em que o leitor se vê obrigado a pensar de que modo um inesperado acontecimento extraordinário contém a força de tirar o sujeito do seu cotidiano, por exemplo, em ŖDarandinaŗ, o discurso esquizofrênico do protagonista, que muda as atitudes das pessoas que testemunham o seu devaneio, nos leva a questionar como o ser humano se deixa abalar não necessariamente por assuntos renovados, mas pela forma como eles ocorrem. Cabendo aos leitores achar a resposta que o autor nos interpela como faz o personagem Riobaldo, do célebre Grande sertão: veredas, a seu ouvinte: Ŗo senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajudaŗ 2. Assim, favorável ao leitor, por muito tempo nebuloso até a chegada dos estudos jaussianos em que a literatura passou a ser analisada a partir do ponto de vista deste, HansGeorg Gadamer (1900-2002) declara que Ŗ[o] sentido de um texto supera seu autor não ocasionalmente, mas sempre. Por isso a compreensão não é nunca um comportamento somente reprodutivo, mas é, por sua vez, sempre produtivoŗ 3. Ora, isto está vinculado ao horizonte do intérprete tanto o de expectativa estética quanto o de expectativa da experiência, todavia é inexistente o sujeito que ler e outro que vive em sociedade. É somente um sujeito havendo em conjunto o histórico e o social que realiza a dialética consciente na operação em dois horizontes. Fazendo uma reconstrução do horizonte passado 1

JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994, p. 23. 2 ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956, p. 101. 3 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 4. ed. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 444.


319 (da época original que o autor lançou a obra), distanciando-se do presente de seu horizonte próprio para poder encontrar os caminhos que o escritor fez na realização do texto, as suas escolhas e, como também as suas devidas interpretações. Trata-se, entretanto, de afirmar que o trabalho do intérprete não é simplesmente reproduzir o que quer dizer o escritor ao qual ele interpreta, mas sim validar a opinião daquele. Opinião essa que, conforme Antonio Candido, o crítico ao lançar seu olhar sobre o tecido literário, busca, frequentemente, Ŗdescobrir a razão profunda dos textos, razão cuja natureza pode escapar a quem os produziuŗ 1. Prosseguindo por essa convergência entre leitor e receptor, texto e recepção, o conceito de horizonte de expectativas pode ser definido como um sistema intersubjetivo ou Ŗestrutura de esperaŗ que se liga à hermenêutica, que não se fixa à imanência do texto sem a mediação do leitor, por não ser uma Ŗciência hermética, mas um instrumento precioso na prática da vida, na medida em que, pela compreensão dialógica na experiência do texto, ela permite ao mesmo tempo a experiência do outroŗ2. Cada leitura é a concretização de um sentido trazendo à tona a que pergunta a obra responde porque, como já afirmou Gadamer, a ação da reconstrução da questão nos permite compreender o sentido de uma dada produção escrita como sendo a resposta do nosso ato de questionar. Portanto, entedemos que obra literária é sempre transitiva, pois, segundo Jauss, a relação entre literatura e leitor tem implicações estéticas e históricas. A estética consiste na recepção primária de uma obra encerrar um juízo de seu valor estético, pela comparação com outras obras já conhecidas pelo leitor. ŖA implicação histórica manifesta-se na possibilidade de, numa cadeia de recepções, a compreensão dos primeiros leitores ter continuidade e enriquecer-se de geração em geraçãoŗ3. 2 DA VISÃO EPIFÂNICA À VISÃO DA LOUCURA EM TRÊS CONTOS DE GUIMARÃES ROSA

2. 1 OS CONTOS “AS MARGENS DA ALEGRIA” E “OS CIMOS” Sabemos que ao realizar um estudo sobre ŖOs cimosŗ é imprescindível não ser 1 CANDIDO, Antonio. A vocação crítica. Entrevista a Manuel da Costa Pinto. Cult. São Paulo, v. 6, n. 61, set. 2002, p. 53. 2 JAUSS, Hans Robert. Limites e tarefas de uma Hermenêutica Literária. In: Por uma hermenêutica literária. Trad. Maurice Jacob. Paris: Gallimard, 1982, p. 29. 3 JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994, p. 23.


320 retomado o enredo de ŖAs margens da alegriaŗ, por serem dois contos que apresentam como personagem principal uma criança que proemia e fecha o circuito das estórias de 1962, sendo que as outras personagens são apenas identificadas pelo grau de parentesco. As duas narrativas se fundem na experiência do olhar do protagonista, por isso, em razão da aproximação da temática e da estrutura, faremos um paralelo a respeito dos contos já sublinhados, no decorrer do trabalho. Na primeira, o garoto está deslumbrado pela beleza da viagem e, na última, em ŖOs cimosŗ, ele está triste, apesar de retornar para o mesmo local, o motivo da viagem é outro: a mãe adoecera e a família acha por bem afastá-lo desse momento doloroso. A criança de ŖAs margens da alegriaŗ e de ŖOs cimosŗ não se deixa abater pelas adversidades, pois cria novas formas para lidar com os desafios que possam surgir graças à percepção da cosmogonia da personagem envolta de um jogo de luz e sombra, que a convivência dos contrastes permite uma apreensão mais profunda da realidade, uma maneira de intervir no mundo com novas atitudes. Guimarães Rosa congrega a sua escrita uma linguagem poética realçada pela construção de um Ŗmétodo mais óbvio da criação conceptual de novas realidades [que seria] mesmo a invenção de contrastesŗ1. Assim como a linguagem, as pessoas e o próprio mundo estão em desenvolvimento, numa mudança contínua e os recursos poéticos utilizados pelo autor mineiro nos levam a acompanhar a experiência estética da realidade sob o olhar de uma criança. Para isso, ele se utiliza de uma linguagem poética nos transmitindo como frações de segundos podem decidir o que há de mais importante na vida do garoto: ŖSó no grão nulo de um minuto, o Menino recebia em si um miligrama de morteŗ2. A estória do Menino, de ŖAs margens da alegriaŗ e ŖOs cimosŗ, mostra a experiência do ideal reaproximado do espaço real, sob o prisma da experiência de uma realidade que se dará pela morte, dor, violência e destruição em meio ao espaço histórico e local de uma cidade em construção. Em ŖAs margens da alegriaŗ o garoto estava vivendo um idílio terrestre. Ele comparava a visão ascensional do peru com o crescimento da cidade e, ao mesmo tempo, com essa ave, daí se pode inferir que se trata de uma hipálage, já que personagem tomava a forma e a beleza daquele animal. Entretanto, as satisfações, as emoções e as alegrias não duravam muito

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RÓNAI, Paulo. Os vastos espaços. In: ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. 6. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972, p. L. 2 ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962, p. 6.


321 quando descobre que o magnífico peru havia sido morto: ŖSó umas penas, restos, no chãoŗ1. Neste instante, o Menino despenca do mundo ascensional em que vive para as paragens terrestres e vê a realidade dolorosa por meio da morte da ave e da queda da árvore, logo a repetição da sílaba Ŗnumŗ possibilita a ideia de desarmado e indefeso. Anaforicamente, a repetição Ŗnum lufo, num átimoŗ 2 revela a intenção poética da exteriorização do sentimento do personagem ante à revelação de um mundo maquinal, das pesadas voragens terrestres, como se estivesse despido, renunciando à própria curiosidade porque se achava temeroso. O conto ŖOs cimosŗ é precedido por desventuras, tratando-se, inicialmente, de um ambiente desequilibrado em que a criança se encontra de novo no avião, contudo, é Ŗuma íngreme partidaŗ3 à casa do Tio. Ela ingressa no avião, renegando qualquer claridade do dia e o encanto das paisagens aéreas e se pudesse, como raciocinava, colocava-se no lugar da mãe, numa regressiva volta ao tempo. No decorrer da estória, o Menino, devido a consciência trágica do destino humano em relação à doença da mãe e morte do peru (no primeiro conto), acredita que o tucano traz a claridade de volta ao seu coração e é o portador da aurora: ŖO sol ainda não viera. Mas a claridadeŗ4. O protagonista confere à palavra um poder mágico, pois transforma o seu universo em poesia, transfigurando tudo ao seu redor em beleza, mesmo que o seu pensamento esteja Ŗainda na fase hieroglíficaŗ 5 em ŖAs margens da alegriaŗ. Essa ideia nos leva pensar que a construção de uma poética do desejo do Menino da narrativa ŖOs cimosŗ está envolta nas palavras Ŗentremanhãŗ, Ŗentremeioŗ, Ŗentretempoŗ e Ŗentrepensavaŗ, revelando fronteiras temporais como se fossem etapas pelas quais o protagonista deve percorrer até alcançar a alegria. Assim, Ŗa claridade de juízoŗ6 do Menino obtida durante a travessia do noturno: ŖO calado, o escuro, a casa, a noite ŕ tudo caminhava devagar, para o Outro diaŗ 7 coincide com a prodigiosa aparição do tucano que irrompe na Ŗentremanhãŗ e com ele surge o sol que é arrebatado do abraço da noite. A criança do conto, apesar de estar ainda quase desperto, encontra-se intimamente em estado fronteiriço, Ŗno não-estar-mais-dormindo e não-estar-

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ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962, p. 5-6. Idem, ibidem, p. 5. 3 Idem, ibidem, p. 168. 4 Idem, ibidem, p. 171. 5 Idem, ibidem, p. 7. 6 Idem, ibidem, p. 170. 7 Idem, ibidem, p. 170. 2


322 ainda-acordadoŗ1, ela inicia a travessia do seu estado sombrio encaminhando-se à alegria, e, aos poucos o seu coração consegue Ŗse equilibrar, como a bola de ouro, no azul de um fioŗ 2 e passa a apanhar Ŗcom o olhar cada sílaba do horizonteŗ3. Logo depois, o garoto se encontra no Ŗentremeioŗ, em dois espaços, entre a Ŗcircuntristezaŗ4 e nas Ŗmargens da alegriaŗ, pois, tal como o tucano, o sol surge Ŗdaquela partezinha escura no horizonteŗ5. Diante disso, concretiza-se, no Menino, o renascer do prazer prazer de viver e do sentir das coisas, já que, sentia que o Ŗvôo do pássaro habitava-o maisŗ6 porque tornava-se confiante em relação à doença da mãe, posto que, Ŗao quarto dia, chegou um telegrama. O Tio sorriu, fortíssimo. A Mãe estava bem, sarada!ŗ 7. Oscilando em um tempo intermediário, a personagem do conto ŖOs cimosŗ ao voltar para a sua casa: ŖEntretempo, se atrasava numa saudade, fiel às coisas de láŗ 8 deseja reunir o ausente e o presente em sua imaginação Ŗo que se afinava, agora, no quase-azul de seu imaginarŗ9. Por fim, o Menino começa a entender, por meio dessa Ŗfronteira soporosaŗ10, os sentimentos de perda e de separação que o fazem transitar do mundo infantil ŕ pelo prazer das brincadeiras e doces lembranças ŕ para o mundo adulto ŕ morte do peru e doença da mãe ŕ, mas que ao longo do percurso fará seu aprendizado. No entanto, Ŗentrepensava o Menino, já quase na fronteira soporosa. Súbita seriedade fazia-lhe a carinha mais compridaŗ 11 quando percebe que perdera o pequeno companheiro, mostra-se como uma criança desesperada pela falta do brinquedo preferido, porém, compreendida a experiência do que vivera, adquirindo conhecimento supera a tristeza. A criança dos contos em análise ao decifrar seus conflitos interiores, transmite Ŗuma mensagem de otimismo e de féŗ 12 que nos leva a perceber que a vida é uma eterna aprendizagem e que os problemas podem ser superados com um pouco de esperança. É isso que faz com que o personagem principal receba o adjetivo enigmático porque entende que a alegria é a própria vida, que se anuncia pela preexistência da morte e pela completude da morte indo além dela. 1

ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962, p. 170. Idem, ibidem, p. 172. 3 Idem, ibidem, p. 172. 4 Idem, ibidem, p. 6. 5 Idem, ibidem, p. 174. 6 Idem, ibidem, p. 174. 7 Idem, ibidem, p. 175. 8 Idem, ibidem, p. 175. 9 Idem, ibidem, p. 175. 10 Idem, ibidem, p. 175. 11 Idem, ibidem, p. 175. 12 RONÁI. Os vastos espaços. In: ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. 6. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972, p. XXXVI. 2


323 2.2 O CONTO “DARANDINA” Considerando a interpretação de ŖOs cimosŗ, a narrativa ŖDarandinaŗ desenvolve um juízo de apreensão do mundo não por meio da beleza, mas pela visão da loucura. O conto se passa em uma cidade estruturada, que em torno de uma praça há um Instituto, um manicômio, do qual um homem sai correndo em direção a um chofer e rouba-lhe a sua caneta-tinteiro, e, sendo surpreendido decidiu fugir, abrigando-se no topo de uma palmeira onde inicia um discurso filosófico confuso e desconectado com a realidade. A história é narrada em primeira pessoa por um dos médicos de plantão do instituto de saúde mental. O narrador, aos poucos, se deixa influenciar pelas concepções difundidas do homem ensandecido, bem como a população que testemunha a falta de sanidade desse excelso homem, e, ao observar o comportamento do personagem, identifica as várias faces do ser humano sob as quais se esconde a sua essência ŕ enquanto sujeito social, gerenciador de suas próprias atitudes e opiniões. É estabelecendo conceitos, por exemplo, sobre a realidade circundante, entre elas a palmeira, dos quais o louco inaugura conceitos como: ŖUma palmeira é uma palmeira ou uma palmeira ou uma palmeira?ŗ 1. É uma árvore, contudo, ao dizer Ŗou uma palmeiraŗ, a conjunção Ŗouŗ introduz a dúvida, pois uma palmeira já não é mais uma palmeira e não conclui a frase, repetindo de novo a conjunção Ŗouŗ: Ŗou uma palmeira?ŗ. De todo modo, Guimarães Rosa nos coloca em evidência como um cidadão consegue pôr em dúvida verdades até então não questionadas, fazendo uma verdadeira luta verbal acerca de conceitos, por exemplo: ŖViver é impossível!...ŗ e ŖO amor é uma estupefação...ŗ2, os quais se confrontam com os da população, principalmente entre os homens da ciência. Em meio ao impasse pela cena inesperada e chocante, a visão de um homem despido no topo de uma palmeira em pleno sol do meio-dia, que muda a rotina de uma cidade, o narrador da história medita, baseado no discurso desse homem, como o ser humano se deixa abalar não necessariamente por conteúdos renovados, mas pela forma como eles ocorrem, ou seja, como se apresentam. Em ŖDarandinaŗ, há várias situações engraçadas provocadas pela forma como as palavras são proferidas pelo protagonista da estória e, também pela forma como elas foram empregadas por Guimarães Rosa. Porém, o tom de comédia, que é o clima geral deste conto, deve-se a uma nova atribuição a este sujeito enlouquecido. Ele deixa de ser um simples 1 ROSA, João Guimarães. Op. cit., p. 136-137. 2 ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962, p. 140 e p. 144.


324 humano para ser um Ŗhomem empalmeiradoŗ1 quando profere ao seus espectadores: ŖEu nunca me entendi por gente!...ŗ, ŖQuerem comer-me ainda verde?!ŗ e ŖMinha natureza não pode dar saltos?...ŗ2. A loucura longe de ser uma condição doentia é tão somente um Ŗpano de fundoŗ à transcendência do protagonista da narrativa. A esquizofrenia do Secretário das Finanças Públicas não sinaliza uma ruptura absoluta com a razão, visto que em decorrência de seu devaneio se abre uma trilha do desdobramento para aprendizagem de uma nova percepção da vida, na medida em que, conforme Michael Foucault (1922-1984), Ŗa loucura só existe em cada homem, porque é o homem que a constitui no apego que ele demonstra por si mesmo e através das ilusões com que se alimentaŗ3. Além disso, em ŖDarandinaŗ é perceptível a influência da medicina, tendo em vista a formação médica de Guimarães Rosa. Pois, não devemos achar estranho o uso de termos técnicos de praxe da psiquiatria, por exemplo: ŖPsicose paranóide hebefrênica, dementia praecoxŗ, ŖSíndrome exofrênico de Bleuler...ŗ e Ŗcatatônico-hebefrênicoŗ4. Conforme os estudos dos psicólogos Aurélio Bolsanello e Maria Augusta Bolsanello, no artigo intitulado ŖEsquizofreniaŗ, de 1981, os termos assinalados no parágrafo anterior se expressam assim: a psicose paranóide hebefrênica designa um processo esquizofrênico manifestada por delírios e uma perda de contato realístico. A linguagem pode estar inibida, com tom de discurso, com neologismos e prolixa; a demência precoce, do latim dementia praecox é relativa à hebephrenia vista geralmente entre os jovens; porém, a síndrome exofrênico de Bleuler substituiu a expressão anterior e novas pesquisas revelaram que esta doença não afeta apenas os adolescentes e é recuperável. Já, o catatônico-hebefrênico é um tipo de esquizofrenia que caracteriza a presença de mudança no humor, pensamento, comportamento grosseiro e alternação na psicomotricidade do doente. Vemos que Guimarães Rosa exercita-se pela linguagem, chegando a expor nitidamente a força expressiva da palavra Ŗpsiquiartistaŗ5, que, segundo ele, designa um homem em estado de loucura, cuja circunstância faz com que o personagem possa desapegar-se das convenções e das normas sociais, que limitam a liberdade, inaugurando conceitos inusitados e jocosos. Por conseguinte, o seu público o acompanha, também, nessa loucura e diante das

1 Idem, ibidem, p. 139. 2 Idem, ibidem, p. 139, p. 142, p. 146, respectivamente. 3 FOUCAULT, Michel. História da loucura: na Idade clássica. 8. ed. Trad. José Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 24. 4 ROSA, João Guimarães. Op. cit., p. 139, p. 145, p. 147, respectivamente. 5 ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962, p. 149.


325 explanações do personagem darandino o narrador após a reaparição do Ŗhumano e estranhoŗ 1 reflete: ŖUm homem é, antes de tudo, irreversívelŗ 2, dessa forma, além de o Secretário das Finanças Públicas, já com a razão, como não poderia deixar de ser, houve a mudança das máximas da atitude das autoridades, como o Ŗprofessor Dartanhã, ex-professo, o dr. Diretor e o dr. Enéias ŕ alienistas. ŕ ŘVejo que ainda não vi bem o que vi...ř — referia Sandoval, cheio de cepticismo histórico. ŕ ŘA vida é constante, progressivo desconhecimento...ř — definiu o dr. Bilôloŗ3. Em suma, ŖAs margens da alegriaŗ, ŖOs cimosŗ e ŖDarandinaŗ nos revelam como as situações negativas e positivas podem provocar mudanças nas pessoas, sendo que os contos não são meramente um recorte da realidade ou mesmo uma discussão da própria condição humana, mas sim, Ŗa extensão do mundo em que se vai embrenhar, com o risco certo de perder-se mais de uma vez e com a recompensa não menos certa de se reencontrar seguidamente a si mesmo nos muitos atalhosŗ4 deixados por Guimarães Rosa. 3 A CRÍTICA LITERÁRIA DE PRIMEIRAS ESTÓRIAS: LEITORES ENREDADOS PELA ESCRITA DE GUIMARÃES ROSA

Desde a publicação em 1962, o livro Primeiras estórias, continua a ganhar espaço especialmente entre o segmento mais avançado, a crítica e o ensino, dado a sua riqueza e complexidades crescentes, milimetricamente calculadas pelo criador da obra João Guimarães Rosa. Queria o autor trilhar sua permanência na literatura independente de moda ou mesmo de prestígio, mas, sobretudo de suas qualidades próprias, indo além de sua destreza como um verdadeiro mestre da ficção, de um escritor que sabe que Ŗ[s]ua missão é muito mais importante: é o próprio homemŗ5. Guimarães Rosa ao escrever suas estórias já contava com a participação do leitor tornando-o a outra ponta da sua criação artística. Compreendemos, assim, que o sujeito receptor e o objeto estético exercem papéis específicos para o sentido da obra, não ligada apenas a significação aplicada ou mesmo sugerida pelo autor, nem exclusivamente na atribuição de sentido por parte do leitor no ato de leitura.

1 Ibidem, ibidem, p. 148. 2 Ibidem, ibidem, p. 148. 3 Ibidem, ibidem, p. 149. 4 RÓNAI, Paulo. Os vastos espaços. In: ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. 6. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972, p. LVIII. 5 LORENZ, Günter W. Diálogo com Guimarães Rosa. In: COUTINHO, Eduardo F. (org.). Guimarães Rosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 63.


326 Sendo um processo (a literatura e o público) que não alega existir para cada obra um público específico, na medida em que pode ser atualizada por diferentes leitores em circunstâncias adversas de leitura, ressaltamos haver obras que Ŗnão podem ser relacionadas a nenhum público específico, mas rompem tão completamente o horizonte conhecido de expectativas literárias que seu público somente começa a formar-se aos poucosŗ. Isto significa, como o valor estético é observado, conforme o momento histórico da publicação do texto que pode superar, atender ou até mesmo contrariar as expectativas do seu público anterior. Expectativas em relação à recepção e ao escritor que fizeram com que o Paulo Rónai (1907-1992) reconhecesse o seu ledo engano quando declarou em A arte de contar em Guimarães Rosa (1958), a falta de dote do seu amigo brasileiro para os contos. Erro logo desfeito na aparição de Primeiras estórias, elogiando a riqueza de uma diversidade e unidade das narrativas fundidas pela arte fecunda do artista. Nas palavras do intérprete vemos que a multiplicidade dos contos, o Ŗfantástico, o psicológico, o autobiográfico, o episódico cômico ou trágico, o retrato, a reminiscência, a anedota, a sátira, o poema em prosaŗ 1, não se deve só ao tema, mas sim da personalidade de Guimarães Rosa, presente ou até mesmo oculto na sua escrita. De modo que, Rónai saudou Primeiras estórias, como uma obra de ficção enriquecedora não só para as letras brasileiras, mas também para a literatura mundial, somando-a aos trabalhos que lhe sucederam, passando a ser lida por um universo diferenciado de espectadores mais exigentes, dentre estes, o lusitano Óscar Lopes. Este contrariando a delegação portuguesa de candidatura ao Prêmio Internacional de Literatura de 1964, foi favorável a indicação de Guimarães Rosa em detrimento a de Jorge Amado. Para ele, entre os escritores de língua portuguesa, o escritor mineiro era o melhor que nos Ŗpersuade de como a linguagem é, em última análise, criação continua, veredas singrando num horizonte imprevisto; de como a linguagem é traduzível, portanto convencional, nas suas estruturas ossificadas, mas produtora do real humano na sua mais viva linha de avançoŗ2. Em outra abordagem recepcional, a mítica-social assinalada por Ana Paula Pacheco em Lugar do mito: narrativa e processo social nas Primeiras estórias de Guimarães Rosa (2006) afirma que os contos de 1962 representam novo momento ante as contradições do assunto que Rosa chega a lidar, Ŗse comparado tanto aos livros de 56 e sua passagem, por assim dizer, 1 RÓNAI, Paulo. Os vastos espaços. In: ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. 6. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972, p. XXXII. 2 LOPES, Óscar. Ler e depois. 3. ed. Porto: Inova, 1970. v. 1, p. 335-336.


327 mais franca pelo mítico (embora nunca desproblematizada), como a Sagarana (1946), volume de estreia mais preso à estilização da cultura oralŗ1. A professora paulistana mostra que é possível a recriação simbólica do mundo adentrando no tempo mítico, emoldurado pelo histórico, frente a rápidas mudanças sociais, a temática da violência, da política e da sociedade patriarcal, adentrando nas fronteiras entre um e outro, destarte, retira-se o mito de uma função apenas mitificante. Ao ratificar o interesse de Guimarães Rosa pelo estudo das condições extremas da alma humana, Fábio Lucas no texto, ŖA loucura padecente de Minas Gerais nas obras de Machado de Assis e Guimarães Rosaŗ (2010), destaca que a escrita rosiana se integra a realidade social ao imortalizar na ficção o drama de pessoas que pereceram a margem de uma sociedade que almejava a modernização nas décadas de 50 até 70. O crítico, ainda, argumenta que em Primeiras estórias os personagens Ŗsão estratégicos para introduzir espaços de poesia no cursivo da prosa narrativa. Traduzem o ser natrural, inspiram sentenças polissêmicas, operadoras de expressões-signo carregadas de lirismoŗ2, bem como de uma certo teor crítico do que se apresenta como o mundo atual. CONCLUSÃO Nos contos analisados foi possível observar uma abordagem acerca de uma nova concepção da vida, em ŖOs cismosŗ há a uma espécie de retomada da primeira narrativa em que o personagem principal faz uma viagem inversa daquela retratada no inicío da obra, a priori em ŖAs margens da alegriaŗ a criança visita a casa dos tios em uma cidade ainda em construção, esta viagem pode ser encarada alegoricamente como um movimento de aproximação do Menino à alegria, em contrapartida, na última narrativa desta coletânea de contos, a mesma criança não está mais às margens, à beira dessa felicidade, já que essa viagem se dá em direção a um momento de sofrimento para o protagonista, qual seja, a morte de sua mãe, assim, observamos, nesse percurso, uma aprendizagem por parte do personagem central, ele entende que a morte não deve ser tomada como um fim mas como uma travessia. Nesta perspectiva, ŖDarandinaŗ apresenta um homem louco que tem sua percepção da realidade alterada em função da referida patologia, fazendo-o ver de uma outra forma o mundo circundante. Nesse sentido, criança e louco lidam com as informações extraídas da 1

PACHECO, Ana Paula. Lugar do mito: narrativa e processo social nas Primeiras estórias de Guimarães Rosa. São Paulo: Nankin, 2006, p.15. 2 LUCAS, Fábio. A loucura padecente de Minas Gerais nas obras de Machado de Assis e Guimarães Rosa. In: FANTINI, Marli. Machado e Rosa. Leitura críticas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2010, p. 368.


328 realidade de forma diferenciada, permitindo-lhes a criação de novas atitudes em relação a si mesmo e aos outros, distinguindo, deste modo, criança de adulto, louco de são. Talvez o que provoque em nós, leitores, ao lermos as narrativas rosianas, uma sensação híbrida de estranheza e admiração, provavelmente não muito diferente do que devia sentir o leitor da década de 60, do século XX, perante a mesma condição. Guimarães Rosa escrevia como disso dependesse sua vida, como já havia confirmado em entrevista a Günter Lorenz: Ŗa língua e eu somos um casal de amantes que juntos procriam apaixonadamenteŗ 1. É por isso que, entre nós, seus escritos permanecem vigorando e oferecendo direções dignas de serem estudadas. REFERÊNCIAS BOLSANELLO, Aurélio; BOLSANELLO, Maria Augusta. Esquizofrenia. In: Conselho: análise do comportamento humano em psicologia (A velhice, vol. IV). Curitiba: Educacional Brasileira, 1981. p. 99-103. CANDIDO, Antonio. A vocação crítica. Entrevista a Manuel da Costa Pinto. Revista Cult. São Paulo, v. 6, n. 61, p. 49-64, set. 2002. LUCAS, Fábio. A loucura padecente de Minas Gerais nas obras de Machado de Assis e Guimarães Rosa. In: FANTINI, Marli. Machado e Rosa. Leitura críticas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2010. 512 p. FOUCAULT, Michel. História da loucura: na Idade clássica. 8. ed. Trad. José Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva, 2008. 551 p. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 4. ed. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 2002. 731 p. JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994. 78 p. JAUSS. Limites e tarefas de uma Hermenêutica Literária. In: Por uma hermenêutica literária. Trad. Maurice Jacob. Paris: Gallimard, 1982. p. 11-29. LOPES, Óscar. Ler e depois. 3. ed. Porto: Inova, 1970. v. 1, p. 313-365. LORENZ, Günter W. Diálogo com Guimarães Rosa. In: COUTINHO, Eduardo F. (org.). Guimarães Rosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. p. 62-97. PACHECO, Ana Paula. Lugar do mito: narrativa e processo social nas Primeiras estórias de Guimarães Rosa. São Paulo: Nankin, 2006. 271 p. RÓNAI, Paulo. A arte de contar em Guimarães Rosa. In: Encontros com o Brasil. Rio de Janeiro: INL, 1958. p. 129-130. RÓNAI, Paulo. Os vastos espaços. In: ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. 6. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972. 176 p. p. XXIX-LVIII. ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. 594 p. ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962. 176 p.

1

LORENZ, Günter W. Diálogo com Guimarães Rosa. In: COUTINHO, Eduardo F. (org.). Guimarães Rosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 83.


329 A INTERFACE DA AUTONOMIZAÇÃO E CONSCIÊNCIA LINGUAGEIRA NA APRENDIZAGEM DE LÍNGUA ESTRANGEIRA Silvia Helena Benchimol BARROS (UFPA) Orientador(a): Prof.ª Dr.ª Walkyria Magno e SILVA (UFPA) RESUMO: O objetivo desta pesquisa é o de identificar a relação entre a formação de comportamentos autônomos em aprendentes do Inglês como língua estrangeira e a consciência linguageira. Partindo do pressuposto de que a explicitude na instrução e seus processos é alcançada através de mecanismos de observação, identificação, reflexão, comparação e da utilização de metalinguagem a qual se apresenta como uma das habilidades metacognitivas, hipotetizamos que ao se utilizar dessa ferramenta o docente pode favorecer em seus aprendentes a formação de comportamentos que os levem ao controle de sua própria aprendizagem. Desta forma, o presente estudo terá como objetivo verificar esta correlação e identificar experimentalmente como a consciência linguageira pode se colocar como promotora da autonomização. Para que os objetivos deste estudo sejam alcançados realizaremos pesquisa bibliográfica que se concentrará nas contribuições teóricas de autores como Peter Garret; Carl James, Leo van Lier, Eric Hawkins; Benson, Dam, Flavell, Fotos and Ellis; Walkyria Magno e Silva, Doughty and Williams e Donmall ente outros por meio de seus artigos, estudos e dissertações sobre o tema visando recolher, selecionar, analisar, contrastar e interpretar as sua contribuições teóricas. Procederemos a uma pesquisa etnográfica de caráter exploratório como uma investigação que segundo Martins (2000, p.30) Ŗse constitui na busca de maiores informações sobre o assunto com a finalidade de formular problemas e hipótesesŗ. Como serão estudadas diversas perspectivas de diferentes autores sobre a relação da autonomização com a consciência linguageira, teremos uma análise correlaciona.Utilizaremo-nos do estudo de campo para recolher dados das observações in lócus e assim desenvolver análise de aulas e de estratégias pedagógicas utilizadas para a solução de problemas emergidos no contexto dinâmico da sala de aula. PALAVRAS-CHAVE: autonomização, metalinguagem, consciência linguageira ABSTRACT: This research aims at identifying the relationship between the formation of autonomous behaviors in learners of English as a Foreign Language and the Language awareness. From the standpoint of explicit instruction and its processes being reached by means of observation, identification, reflection, comparison and use of metalanguage which in its turn is one of the metacognitive abilities, we hypostatize that by using this tool, the teacher may benefit learners with the emergence of behaviors that will lead them to the control of their own learning. In doing so, the current study aims to spot this correlation and experimentally identify how language awareness may foster autonomization. In order that these purposes are met our bibliographical investigation will concentrate in theoretical contributions from authors such as: Peter Garret; Carl James, Leo van Lier, Eric Hawkins; Benson, Dam, Flavell, Fotos and Ellis; Walkyria Magno e Silva, Doughty and Williams and Donmall among others, through their papers, studies and dissertations on the focused theme with the purpose of collecting, selecting, analyzing, contrasting and interpreting their contribution. We will also rely on exploratory ethnographic research which is defined by Martins (2000,p.30) as Ŗone that comprises the search for more information on the matter with the intention of formulating problems and hypothesisŗ. As several perspectives provided by different authors will be considered on the interface of autonomization and language awareness a correlational analysis will ensue. Field study will allow us to collect observation


330 data in locus and thus develop analysis of class and pedagogical strategies employed for the solution of problems emerged in the dynamic context of the classrooms. KEY WORDS: autonomization, metalanguage, language awareness Os pressupostos do ensino de línguas estrangeiras que se sustentam no desenvolvimento da competência comunicativa e no uso de materiais e estratégias que levam o aprendente aos comportamentos de autonomização são comprovações de que o ensino de Língua Estrangeira tem encampado novos olhares e conhecimentos promovendo um salto qualitativo no campo da Linguística Aplicada. Estudos realizados na área de Informação e Tecnologia da Comunicação - ICT (DIETMAR, 2000; McDONOUGH, 1978; SILVERMAN, 2001; STEPP-GREANY, 2002; YOUNG, 1986) são alguns exemplos que trazem evidências de que o ensino de língua estrangeira têm inegavelmente fomentado a exposição do aprendente à língua alvo por meio do emprego de novas tecnologias e mídias. Especialmente no âmbito das salas de aula dos cursos livres, contextos onde se prima pelo uso, o ensino de Língua Estrangeira tem propiciado a simulação de contextos autênticos que reproduzem as realidades de uso e o desenvolvimento da competência linguageira através dos mais diversificados gêneros orais e escritos e seus suportes. Porém, em minha prática como docente da língua inglesa por mais de duas décadas, ainda identifico comportamentos que revelam o que eu denomino de resistência por parte dos docentes em promover a autonomização de seus aprendentes. Uma das formas que o docente dispõe para fomentar estes comportamentos é por meio da mobilização explicita do conhecimento metacognitivo. Isto é, utilizando-se da metalinguagem para partilhar com o aprendente a reflexão, comparação e racionalização do uso da língua. Nesta direção me aproprio do artigo de Dam (2003) o qual revela que ainda que estes docentes sejam sensibilizados através de treinamentos e reconheçam os benefícios destas estratégias que levam o aprendente a assumir o controle sobre os seus próprios processos de aprendizagem, alguns docentes acabam por retornar ao modelo tradicional de ensino centrado no professor. A atualidade dessa problemática nos leva a iluminar alguns aspectos que podem explicar este comportamento de resistência. Dam (2003) afirma que o padrão tradicional do professor transmissor já é um paradigma de responsabilidade aceito pelas partes envolvidas: professor, aprendentes e pais. Pelo fato dos envolvidos já sentirem-se seguros, fica garantida a auto-estima do professor.


331 No mesmo artigo a autora se refere aos quatro níveis de articulação pelos quais o aprendente passa para se capacitar como responsável pela sua aprendizagem: a experiência no que diz respeito à escolha de atividades úteis, parceiros adequados e organização apropriada do trabalho, opções de avaliação do processo e do progresso; a conscientização do que, por que e como aprender, do seu papel no processo de aprendizagem; a influência e participação na tomada de decisão, no que diz respeito a sua própria aprendizagem e por fim a responsabilidade sobre sua própria aprendizagem. Este estudo pretende enfocar a dimensão, da conscientização do aprendente que se dá por meio do uso da língua para melhor compreender seus processos. Em se tratando da metalinguagem como mediadora da aprendizagem, há que se considerar que muitas vezes o nível de proficiência dos alunos de uma determinada classe de Língua Estrangeira sugere que a metalinguagem deva ocorrer em Língua Materna e não em Língua Estrangeira e esta é outra questão polêmica em relação a como os docentes percebem que deva ser a sua conduta ideal em uma perspectiva comunicativa. Por esta razão, destacamos outro estudo de relevância em relação ao tema em questão disponível online1 e apresentado no excerto abaixo: ...a maioria dos educadores de língua estrangeira concordaria que o uso da língua alvo é uma meta prioritária na instrução e que se os aprendentes devem adquirir esta língua, eles deverão estar expostos à ela e usá-la. Entretanto, há pouco consenso sobre o quanto a língua maternal deveria ser utilizada nas salas de aula para propósitos de instrução (KOUROU, 2008, p.1).

Referimos Kourou (2008) por trazer para este estudo a perspectiva do uso racional da língua materna em prol da mobilização do conhecimento metalinguageiro como uma habilidade mediadora da aprendizagem com o qual estamos em consonância. Existe ainda alguma polêmica em relação ao conceito de metacognição que é um termo relativamente recente na literatura, introduzido por volta de 1970 na Psicologia por Flavell. Apesar da polêmica em termos conceituais, o trabalho de Ribeiro (2003) disponível online afirma ser inegável a sua contribuição para a aprendizagem, uma vez que os treinos que contemplam atividades metacognitivas têm produzido melhores resultados no que se refere a realização escolar. Sendo a metalinguagem um recurso utilizado por qualquer ser que se utiliza da linguagem nos seus processos de interação e aprendizagem, torna-se importante 1

Tradução nossa. Documento http://www.eltnews.gr/art_details.asp?art_id=340

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332 para nós identificar, a contribuição das habilidades metacognitivas para o processo de autonomização de aprendentes de língua estrangeira. Hipotetizamos que pela interpretação mediada pela linguagem, o sucesso individual na resolução de problemas de natureza linguageira pode ser ressignificado para o grupo podendo assim habilitá-lo para planejamento de novas tarefas baseadas no discurso, na interação, e na interpretação racional mediada pela linguagem. Ancoramo-nos na definição de Oxford (apud Silva 2006) onde caracteriza as estratégias de aprendizagem Ŗ[...] como instrumentos que permitem um melhor autodirecionamento ao aprendente uma vez que são utilizadas para resolver um problema e são centradas no Řcomo fazer e não no que Řnão fazerř de aprendizagem. As estratégias segundo essa autora são geralmente conscientes, flexíveis, mas nem sempre observáveisŗ (OXFORD apud SILVA, 2006, p. 2).

Em se tratando do que pode ser observável, referimo-nos à explicitude da instrução nos níveis lingüísticos com expressão nos estudos do FonF1 que é outro aspecto que julgamos importante destacar no presente trabalho. Equivocadamente, os processos de conscientização que dele advém no campo lingüístico, são muitas vezes relacionados com a prática do ensino de gramática descontextualizado e meramente analítico. Saeidi; Chong (2005) afirmam que o Focus on Form (FonF) se refere às atividades que capturam a atenção dos aprendentes para a forma da língua enquanto mantêm comunicação significativa e desempenham um papel facilitador da aprendizagem. Ressaltam ainda, estes autores, que os princípios teóricos do FonF são contrários à crença de que o ensino de gramática seja sinônimo de técnicas explícitas. Fotos (1998 apud SAEIDI; CHONG, 2005) menciona que o ŖFonF é uma apresentação de formas gramaticais baseadas no contexto de uso, muito mais do que uma instrução conduzida abertamente pelo professorŗ. Assim como no âmbito lingüístico, a explicitude utilizada para construir as competências linguageiras e autônomas dos aprendentes, passa por uma série de mal entendidos conceituais e de concepções pessoais. O fato de que a concepção de um docente sobre a aquisição de uma língua estrangeira se reflete diretamente em sua prática, ou seja, nas ferramentas que escolhe e nas estratégias das quais lança mão, leva-nos a revisitar importantes noções de aquisição e da produção de linguagem.

1

O termo Fonf que designa focus on form (foco na forma)


333 A proposição de Chomsky sobre a existência do LAD Ŕ Language Acquisition Device criou uma perspectiva individual, fisiológica e maturacionista, nas décadas de 70 e 80, de que o aprender através de uma consciência sobre os aspectos lingüísticos seria irrelevante, uma vez que o aparato para a assimilação da língua é inato no ser humano. Este entendimento abalou a noção de que falar sobre a língua e compará-la com a língua materna, compreender sua estrutura, concebê-la como um sistema e refletir sobre a sua utilização sob os diversos pontos de vista linguareiros seriam mecanismos úteis e importantes no processo de aprendizagem. Proposto em décadas mais recentes ressaltamos os trabalhos de Espéret (1990) que enfocam duas categorias de componentes mobilizados pela produção da linguagem: os processos e as representações. Diz o autor sobre processos e representações: Os primeiros podem ser descritos como sequências finalizadas de operações [...]a finalização remete à uma outra noção importante, a de estratégia[...]o encadeamento das operações reflete escolhas feitas para atingir de modo mais eficiente e menos oneroso possível, um fim antecipadamente definido[...]. As representações, por sua vez, correspondem aos diversos tipos de conhecimentos elaborados por um indivíduo durante sua vida[...]qualquer que seja seu campo de aplicação e seu grau de acessibilidade para a consciência ( ESPÉRET, 1990, p.1)

Enquanto alguns estudos detêm-se em analisar as diferentes formas de se tratar a aquisição e as capacidades envolvidas na produção de linguagem, outros propõem reflexão sobre os aspectos de aprendizagem, metodológicos e sobre os objetivos que subjazem o ensino da língua estrangeira. Hawkings (1999 p.1), por exemplo, diz que Ŗtrata-se a língua estrangeira como uma habilidade, uma ferramenta útil ao mercado de trabalho e às conquistas profissionais ao invés de concebê-la como um componente da formação do indivíduoŗ. A consciência linguageira tem sido objeto de muitos estudos ao longo de recentes décadas. Garret e James (1991) reportam-se às pesquisas sobre a consciência linguageira nas escolas, sobre a utilização de textos autênticos, a gramática pedagógica e a consciência linguageira no ensino de língua estrangeira (DONMALL, 1985; LITTLE, D. e SINGLETON, G.D.M. 1988). Estes estudos iluminam, com dados experimentais, nossa hipótese de que a utilização da metalinguagem favorece a aprendizagem e que pode fomentar a autonomização do aprendente de língua estrangeira tendo como conseqüência uma aprendizagem mais eficaz. As definições dos principais conceitos utilizados neste trabalho apresentam alguns insights que nos serão úteis para a interpretação de sua ocorrência nas práticas de sala de aula.


334 As definições de Consciência Linguageira variaram em Van Lier (2001) entre os termos: Ŗcompreensão da linguagemŗ, Ŗsensibilidade à linguagemŗ, Ŗinsight da linguagemŗ. Nosso estudo adotará a concepção de ŖLanguage Awarenessŗ de Donmall1 (1985 apud JAMES; GARRET, 1991): ŖA Consciência Lingüística é a sensibilidade para e a percepção consciente da natureza da língua e seu papel na vida humanaŗ. A partir desta percepção, pretendemos situá-la em uma perspectiva de estudo indutivo da língua a partir de exemplos genuínos trazidos da sua utilização no contexto real, de forma contextualizada e significativa, progredindo da percepção para a interpretação através da mobilização consciente dos processos metacognitivos, entre eles a metalinguagem. Van Lier (2001 p.162) ressalta que James e Garret (1991) compilam um número razoável de estudos realizados em salas de aula e que ilustram diversos aspectos da Consciência Linguística, mas que Ŗpoucos reportam resultados sólidos‖ que evidenciem com sucesso a relação entre consciência e sensibilidade lingüísticas na aprendizagem de línguas estrangeiras apesar dos esforços em pesquisas sobre o tema. Nossa pesquisa pretende ir além desta relação e identificar experimentalmente como a consciência linguageira se coloca como promotora da autonomização. Para atingir os objetivos deste estudo realizaremos pesquisa bibliográfica que se concentrará em explorar as contribuições teóricas de autores como Peter Garret; Carl James, Leo Van Lier, Eric Hawkins; Phil Benson, Leni Dam, Flavell, Fotos and Ellis; Magno e Silva, Doughty and Williams e Donmall ente outros por meio de seus artigos, pesquisas e dissertações sobre o tema visando recolher, selecionar, analisar, contrastar e interpretar as contribuições teóricas existentes sobre o fenômeno pesquisado. Martins (2000, p. 30) refere-se à pesquisa de caráter exploratório como uma investigação que Ŗse constitui na busca de maiores informações sobre o assunto com a finalidade de formular problemas e hipótesesŗ. Como estudaremos diversas perspectivas de diferentes autores sobre a relação da autonomização com a consciência linguageira, teremos uma análise correlacional. Ainda conforme Martins (ibid 2000, p. 28), Ŗa análise correlacional busca a identificação de fatores em relação a outro, a partir de comparações entre os diversos estudos com a finalidade de estabelecer parâmetros de análisesŗ.

1

Tradução nossa para o original em Inglês: Ŗ[...] Language Awareness is a personřs sensitivity to and conscious awareness of the nature of language and itřs role in human life[…]ŗ. DONMALL, B.G. Language Awareness: NCLE Reports and Papers, 6. CILT, London, 1985.


335 Desenvolveremos concomitantemente um estudo de campo para recolher dados das observações in lócus com amostras de alunos de vários e diferentes níveis de proficiência. Procederemos à observação e análise de aulas e de estratégias pedagógicas utilizadas para a solução de problemas gerados no contexto dinâmico da sala de aula, verificando a ocorrência de metalinguagem e dos comportamentos de autonomização que possam advir da prática de conscientização. As entrevistas serão também utilizadas como uma ferramenta para coleta de dados entre docentes e discentes. Utilizaremos a análise quanti-qualitativa para inferências e interpretações dos dados coletados. O tempo estipulado para conclusão da pesquisa e conseqüentemente elaboração da dissertação, é de 24 meses, sendo os 12 primeiros meses dedicados à seleção, investigação da literatura, leitura de material teórico e prático disponíveis, ajustes e aperfeiçoamento do projeto, procedimentos documentais para viabilização da pesquisa: ofícios, autorizações etc., definição e construção dos instrumentos de coleta de dados, sob a supervisão do orientador responsável. A coleta de dados ocorrerá de forma contínua com início durante os 12 meses finais do desenvolvimento do trabalho paralelamente à construção da dissertação propriamente dita e a contínua revisão e reedição do texto. REFERÊNCIAS CARTER, R., NUNAN, D. The Cambridge Guide to teaching English to Speakers of Other languages. Cambridge: Cambridge University Press. 2001. DAM, L. Developing learner autonomy: the teacherřs responsibility. In LITTLE, David, RIDDLEY, Jennifer and USHIODA, Ema (eds) Learner autonomy in the Foreign Language Classroom. Dublin: Authentik, 2003. ESPÉRET, E. Aprender a Produzir Linguagem: Construção das representações e processos Cognitivos. In: Acquisition ET utilisation dúnelange étrangère: lřapproche cognitive Revue Le Français dans Le Monde, Paris,Edicef, fév/mars 1990, p.8 a 15. FRANÇA,J.;VASCONCELLOS,A. Manual para Normalização de Publicações Técnico – Científicas. Belo Horizonte: Editora UFMG.2009. HAWKINS, Eric. Foreign Language Study and Language Awareness.York.UK: Cambridge University Press. 2001. KOUROU, P. The Use of L1 in the Foreign Language Teaching Process. ELT News, Greece, March 2008. Disponível em: < http://www.eltnews.gr/art_details.asp?art_id=340> Acesso em 14 de setembro de 2010.

MARTINS, G. Manual para elaboração de monografias e dissertações (2a ed.). São Paulo: Atlas. (2000). McDONOUGH, S. Introspection and generalization. In The British Council. The Foreign Language Learning Process. London: The British Council. (1978) PAIVA, V.L.M.O. Autonomia e complexidade: uma análise de narrativas de aprendizagem. In: FREIRE, M.M; ABRAHÃO, M.H.V; BARCELOS, A.M.F (Orgs.). Lingüística Aplicada e Contemporaneidade. Campinas e São Paulo: Pontes e ALAB, 2005. p.135-153 RIBEIRO, Célia. Metacognição: um apoio ao processo de aprendizagem. Psicologia:


336 Reflexão e Crítica.Coimbra. Disponível em: http://www.uniapaemg.org.br/admin/downloads/artigo20102030.pdf. Acesso em 14 de Setembro de 2010. ROSLER, D. Foreign language learning with the new media: between the sanctuary of the classroom and the open terrain of natural language acquisition. In http://www.gfljournal.de/1-2000/roesler.html#_ftn2. (2000) SAEIDI, M., CHONG, L. Focus on form approach in a efl context. (2005) SILVA,W.M. Estratégias de aprendizagem de línguas estrangeiras – um caminho em direção à autonomia. Revista Intercâmbio,Volume XV.São Paulo: LAEL/PUC-SP, ISSN 1806-275X, 2006, SILVERMAN, D.Interpreting Qualitative Data: Methods for Analysing Talk, Text and Interaction, 2nd Edition. SAGE Publications Ltd. (2001) STEPP- GREANY, J.Student Perceptions on Language Learning in a Technological Environment: Implications for the New Millennium. Language Learning and Technology, Vol. 6, No. 1, pp.165-180. (2002). YOUNG, J. The effects of three different sequences of instruction on student performance and attitudes in a teacher education course (Doctoral dissertation, Florida State University, 1986). Dissertation Abstracts International, 47, 244. (1986).

TEATRO NA NET.COM: PALHAÇOS TROVADORES E O PROCESSO COLABORATIVO EM O AVARENTO DE MOLIÈRE Suani Trindade CORRÊA (UFPA/CAPES) Orientador(a): Prof.ª Dr.ª Lilia Silvestre CHAVES (UFPA)

RESUMO: A presente pesquisa apresenta uma leitura e um estudo de O avarento, de Molière, na montagem teatral O mão de vaca, por um grupo teatral constituído de palhaços (os Palhaços Trovadores), em Belém do Pará, na primeira década do século XXI, na era da Internet. A proposta de realização da montagem fundamentou-se em um processo colaborativo, iniciado nos ensaios na rua e na praça e veiculado no ciberespaço, permitindo o diálogo entre atores, diretor e público/internautas, tornando a montagem uma criação pública e coletiva. Sendo assim, esse público foi convidado a intervir no processo criativo do grupo, compartilhando ideias, sugerindo cortes e adaptações do texto, ou seja, reescrevendo, lendo e interpretando a peça, junto com os artistas e criadores. Neste contexto, a Internet torna-se um elemento importante, pois possibilita o estreitamento de relações, a troca e abertura de novos horizontes entre artistas com outros artistas e/ou entre artistas e público. PALAVRAS-CHAVE: Teatro, Internet, processo colaborativo. RÉSUMÉ: Cette recherche a comme but présenter la lecture et lřétude de Lřavare, de Molière, dans la montage théâtrale O mão de vaca, par un groupe de clown (Os Palhaços Trovadores), à Belém dans lřÉtat de Pará, dans la première décennie du XXI siècle, dans lřère dřInternet. La proposition de la réalisation de la montage a été fondée sur le processus de collaboration, qui a été débuté dans les essais dans la rue et dans la place et véhiculé dans le cyberespace, en permettant le dialogue entre les acteurs, le directeur et le public/internautes, rendant la montage une création publique et collective. Ainsi, le public était invité à intervenir dans le processus créatif du groupe, partageant les idées, suggérant des coupes et des


337 adaptations du texte, cřest-à-dire, réécrivant, lisant et interprétant la pièce avec les artistes et créateurs. Dans ce contexte, lřInternet devient un élément important, car elle possibilite lřétroitement des relations, lřéchange et lřouverture de nouveaux horizons entre des artistes avec dřautres artistes et/ou entre des artistes et le public. MOTS-CLES: Théâtre, Internet, processus de collaboration.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS Durante o ano de 2009, o grupo Palhaços Trovadores1, do qual sou integrante desde 2003, decidiu se debruçar, novamente, sobre uma obra do dramaturgo francês Molière 2; assim decidiu montar uma adaptação da peça O avarento, escrita por ele em 1668, que conta a história de Harpagon, um velho avarento que deseja casar os filhos Elisa e Cleanto, com pessoas mais velhas e ricas, com o intuito de obter mais riqueza para si. A proposta de realização de nossa nova montagem, que recebeu o nome de O mão de vaca, fundamentou-se nos princípios do processo colaborativo, tipo de processo que Ŗsurge da necessidade de um novo contrato entre os criadores na busca da horizontalidade nas relações criativasŗ (PAVIS, 2007, p. 253) e neste sentido, a montagem do grupo deveria seguir, de uma forma aberta, em um processo amplo de colaboração de todos os envolvidos: diretor, atores e cenógrafo. Assim sendo, tal colaboração também deveria se estender ao público, configurando, portanto, uma criação pública, coletiva. Durante o processo de montagem, que teve a duração de quase um ano, pontuamos dois momentos em que se estabeleceu a inserção do público na montagem: o primeiro aconteceu quando decidimos utilizar a Internet como veículo de compartilhamento, divulgação de nosso(s) processo(s). Então decidimos construir diários de bordos no ambiente digital blog3; o segundo aconteceu quando decidimos realizar ensaios abertos, tendo o anfiteatro da Praça da República como local de realização. E é seguindo este percurso que este trabalho surge, partindo para uma investigação sobre a leitura, interpretação e adaptação, ou seja, uma nova recepção do texto literário1

Criado em novembro de 1998, quando Marton Maués foi convidado a ministrar uma oficina nos meses de agosto e setembro, para um grupo de alunos e ex-alunos da Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará - ETDUFPA. Como resultado da oficina, foi criado o espetáculo Sem peçonha eu não trepo neste açaizeiro, utilizando trovas e canções populares. Trata-se de um espetáculo sobre o universo de lendas e mitos da Amazônia (uirapuru, boiúna, boto, iara), cujas cenas são repletas de humor e lirismo. 2 No ano de 2006, o grupo montou uma adaptação de O doente Imaginário, também de Molière. Esta montagem foi contemplada com o edital Myriam Muniz da Funarte, e acabou se chamando O hipocondríaco. 3 A criação e o uso dos blogs pelos atores no processo de montagem de O mão de vaca estão servindo de material para minha pesquisa de Mestrado em Estudos Literários (UFPA), em que eu busco a recepção da peça enquanto texto literário, observando como se dá tal processo de recepção pelos atores, através de suas descrições, de seus posts e pelos internautas, através de seus comentários.


338 dramático O avarento, do dramaturgo francês Molière: o processo de montagem do espetáculo O mão de vaca, do grupo teatral Palhaços Trovadores. O presente trabalho será dividido em três capítulos, denominados aqui como Ŗpancadasŗ. A expressão Ŗpancadaŗ Ŕ coup Ŕ surgiu com Molière (França, século XVII). Naquela época, a plateia francesa era bastante barulhenta e agitada e, no intuito de acalmá-la, Molière batia várias vezes no chão com um bastão de madeira Ŕ o batelier. Primeira pancada. Ele, o leitor, terá tempo para ler um capítulo Ŕ Molière e a arte dramática/teatral de sua época – dividido em duas partes: a primeira intitulada Molière, o dramaturgo francês, em que falarei brevemente de Molière, do contexto em que ele nasceu, do início da sua vida no teatro, do que se escrevia na época em relação à arte dramática e da sua própria maneira de escrever, o revelando enquanto dramaturgo. Pretendo também, falar sobre dramaturgia (percurso do conceito) e sobre o teatro, citando vários autores, dentre eles, Staiger (obra escrita é feita para ser representada); na segunda, denominada A escolha pela arte de fazer rir, pretendo mostrar a escolha de Molière pela arte de fazer rir, ao contrário de Corneille e de Racine que escreveram tragédias, além de tecer considerações sobre o gênero comédia, assim como sobre a Commedia dell‘arte, que permeou a arte de Molière. Segunda pancada. Inicia-se o capítulo que apresenta As aventuras da troupe de Molière e do grupo Palhaços Trovadores, também dividido em duas partes: De L’Illustre Théâtre à la Troupe de Molière, com o objetivo de mostrar um panorama do itinerário do grupo de teatro de Molière, na França Ŕ o contexto histórico-social desse dramaturgo francês e a história e as características de seu teatro, além de apresentar uma espécie de cronologia das obras e de suas representações (suas premières); De Sem peconha, eu não trepo neste açaizeiro ao Mão de vaca: voilá o grupo (a história dos) Palhaços Trovadores, onde abordarei a história e a poética do grupo Palhaços Trovadores e descreverei rapidamente as apresentações do grupo paraense de palhaços, desde seu início, até chegar à sua adaptação do Malade imaginaire, do dramaturgo francês, na cidade que um dia foi conhecida como a Francesinha do Norte. Nesta parte, pretende-se, ainda, tecer breves considerações sobre grupos que montaram peças de Molière na Região Norte do Brasil, como os grupos Gruta Ŕ Tartufo, Cena Aberta Ŕ Jorge Dandim, Palhaços Trovadores Ŕ O hipocondríaco (adaptação de O doente imaginário), de Belém (Pará) e Baião de Dois Ŕ Coquetel Molière, de Manaus (Amazonas). Terceira pancada: a peça vai começar. O capítulo que vem em terceiro lugar abre as cortinas Ŕ L’avarice. É também dividido em duas partes: O avarento: Molière e a avareza


339 da alma humana, que apresenta uma leitura da obra O avarento, comparando-a com vários textos de peças de teatro, de fábulas e de romances, principalmente com a peça O santo e a porca, de Ariano Suassuna, já que o tema da avareza une Molière a outros escritores que trataram deste vício da alma humana; O mão de vaca: uma adaptação de O avarento de Molière, cujo objetivo é a descrição e a análise crítica do processo de montagem idealizado pelo grupo Palhaços Trovadores, inclusive no que diz respeito à proposta de realização estar sendo veiculada e discutida na Internet, enfatizando a recepção do texto pelo grupo em si e pelos internautas que foram convidados a colaborar com o processo e que, por meio de com seus posts e comentários, de certa maneira trouxeram aqui e ali sugestões para a montagem. Neste artigo, apresentarei um recorte dessa pesquisa, pois a mesma ainda se encontra em fase de elaboração. O AVARENTO: MOLIÈRE E A AVAREZA DA ALMA HUMANA Por volta de 1668, Molière travava um grande embate com a Igreja, por conta da apresentação da peça Tartufo (1664), que retratava os devotos religiosos na figura do personagem-título, Ŗpintadoŗ por Molière como hipócrita e dissimulado, o que fez com que a peça fosse proibida de ser apresentada, impedindo sua troupe de representar por algumas semanas. Tal situação fez com que Molière escrevesse, nesse mesmo ano, três peças: Anfitrião, George Dandin e O avarento. A primeira apresentação de O avarento data de 9 de setembro de 1668, no Teatro do Palais-Royal. O que sabemos é que as primeiras apresentações não tiveram grande sucesso diante do público, situação que é explicada pelo fato do público se deparar com uma escrita diferente da habitual: a peça estava escrita em prosa. O hábito da época era de que as peças, principalmente as grandes comédias, fossem compostas em versos. A peça foi mal acolhida porque, mesmo sendo uma Ŗgrande comédiaŗ, ela estava escrita em prosa. [Molière] teria renunciado de submeter o texto às necessidades da medida e da rima porque estava doente, desencorajado pela violência dos ataques lançados contra ŘTartuffeř? Permanece que esta prosa torna texto mais simples, mais claro, mais rápido, mais vivo. Ao estudar o texto, detecta-se vários versos brancos1 (DURAND, [s.d], tradução nossa).

1

No original : La pièce fut mal accueillie parce que, bien qu‘une «grande comédie», elle était écrite en prose. Avait-il renoncé à soumettre le texte aux nécessités de la mesure et de la rime parce qu‘il était malade, découragé par la violence des attaques lancées contre ―Tartuffe‖? Il reste que cette prose rend le texte plus simple, plus clair, plus rapide, plus vivant. À bien étudier le texte, on y décèle de nombreux vers blancs (Disponível em: <http://www.comptoirlitteraire.com/docs/211-moliere-l-avare-.doc>.


340 Outro fato que pode ter gerado uma antipatia, o estranhamento do público frente a O avarento, seria a mistura do cômico e do trágico. OS PERCURSOS DA PEÇA Há indícios que a peça de Molière tenha sido inspirada na obra A Aulularia (A marmita), do escritor latino Plauto, que data de, aproximadamente, 200 anos antes de Cristo. Na comédia de Plauto, o personagem Euclion é um homem pobre que encontrou um tesouro escondido em uma marmita. Desde que descobriu o tesouro, passou a viver em uma inquietude contínua, pois o medo de perdê-lo ou de ser roubado, o perturbava. Entretanto, Euclion não é considerado um avarento por natureza, por temperamento, pois o sentimento da avareza o toma por ocasião, no momento em que se torna rico, ao achar o tesouro dentro da marmita. Porém, a abordagem da avareza em A Aulularia é diferente da apresentada em O avarento, pois o personagem da peça de Plauto difere do personagem da peça molieresca. Nesse sentido, Euclion estaria mais próximo do pobre sapateiro da fábula de La Fontaine1 do que de Harpagon, personagem principal da peça de Molière, que é um burguês muito rico e muito avarento. Além disso, a comédia de Plauto é considerada uma comédia de intriga, voltada para as peripécias e confusões de Euclion, surgidas depois de ele haver encontrado, na lareira de sua casa, uma marmita cheia de ouro; além de também pontuar a história de amor de sua filha, grávida de Licônides, e que será pedida em casamento por Megadoro, sem que este e seu futuro sogro saibam da gravidez da moça (SOUZA, 2004). A comédia de Molière é de caracteres (tipos) e de moeurs (costumes), pois o dramaturgo francês apresenta o meio burguês do século XVII, mostrando todas as consequências sobre o plano moral e sobre a desorganização da vida familiar. Mas Berrettini considera que a peça de Molière se encaixa no esquema habitual da comédia de intriga (1979, p. 77). Já para Durand2, O avarento seria, primeiramente, uma comédia de amor que se abre aos suspiros dos jovens personagens apaixonados, Valério e Mariana, que, contrariados em seus inocentes amores romanescos, lamentam sobre seu infeliz destino (tradução nossa). Nesse sentido, teríamos a apresentação de um problema amoroso: o par jovem, cujo plano de casamento não goza do consentimento paterno, situação que será solucionada somente no final da peça. 1

O sapateiro retratado na fábula de La Fontaine expressa uma das ideias mais sábias do fabulista: o dinheiro não traz felicidade. 2 Disponível em <http://www.comptoirlitteraire.com/docs/211-moliere-l-avare-.doc>.


341 Entretanto, consideramos que O avarento é uma comédia de costumes e de caracteres, rica em peripécias, cujo assunto principal é a história de um avarento roubado, explorando um velho que Ŗbeiraŗ a bufonaria. Assim, Harpagon poderia ser comparado a um irmão de Euclion, pois o monólogo do avarento roubado está bem próximo do original latino: HARPAGON (gritando por socorro, antes de entrar, e entrando em desalinho, alucinado) Ŕ Ladrão!... Ladrão!... Assassino!... Assassino!... Onde está a Justiça, meu Deus?... Estou perdido!... Assassinaram-me, degolaram-me, roubaram meu dinheiro... Quem poderia ter sido?... Que fizeram dele?!... Que farei para encontrá-lo?... Estará lá?... Ou aqui?... Quem fez isso?!... Ah!... Para, miserável!... devolva o meu dinheiro!... (agarra o próprio braço, arquejante) Ah! Sou eu mesmo!... Sou eu mesmo!... Meu espírito está perturbado!... Ignoro onde estou, quem sou e o que faço!... ai de mim!... Meu pobre dinheiro, meu querido dinheiro, meu grande, meu adorado amigo!... Privaram-me de ti!... E visto que me foste arrebatado, perdi minha razão de ser, meu consolo, minha alegria!... Tudo acabou para mim!... Nada mais tenho a fazer no mundo!... Longe de ti é impossível continua a viver!... Não posso mais!... Eu sufoco!... Eu morro!... Eu estou morto!... Eu estou enterrado!... Não há por aí alguém que queira me ressuscitar, devolvendo-me o meu dinheiro?!...O meu querido dinheiro?!... Ou revelando quem furtou?!... Hein?!... Que foi que você disse?!... Ah! Ninguém falou!... Quem quer que tenha preparado esse golpe, escolheu bem o momento, esperando enquanto eu falava com o traidor do meu filho!... Saiamos daqui... Eu quero ir intimar a Justiça e interrogar todo o pessoal da casa... Criado, filho, filha, eu mesmo até1... Quanta gente reunida, meu Deus!... Não posso olhar para ninguém sem suspeitar que esteja diante de quem me roubou... Hein?!.. Do que é que vocês estão falando aí?!... Daquele que me roubou?!... Que rumor é esse lá em cima?!... Será o meu ladrão que está aí?!... Por favor, se alguém souber notícias do meu ladrão, diga o que sabe!... Não estará ele oculto entre vocês todos?!... Vocês me olham todos e estão todos rindo!... Covardes!... Naturalmente são cúmplices do miserável que me roubou!... Ah! Mas eu me vingarei!... Comissários, archeiros, prebostes, juízes, aparelhos de torturas, cadeias e carrascos, eu quero que enforquem todo mundo!... E se não encontrar o meu dinheiro, eu mesmo me enforcarei, depois!... 1 (IV, 7)2. EUCLION: Estou perdido, liquidado, morto! Para onde correrei? Para onde não correrei? Pega, Pega! (Pega) quem? Quem (pegará)? Não sei, nada vejo, ando cego e, sem dúvida, não posso saber com exatidão com a cabeça (perturbada), para onde vou, ou onde estou, ou quem sou. Eu vos peço, rogo, suplico que venhais me socorrer e (me) mostreis o homem que a roubou. Que dizes tu? É certo que acredito em ti; na verdade, vejo que (tu), pela aparência, pareces bom. O que há? Por que estais rindo? Conheço todos: sei que existem vários ladrões aqui, que se escondem sob uma roupa branca e ficam sentados, como se fossem santinhos. Ah! Nenhum de vós está com (ela)? Mataste-me. Dize, então, quem está com (ela)? Não sabes? Ai, pobre de mim! Estou inteiramente perdido, terrivelmente perdido! Pessimamente assistido ando, tanto pranto, (tanto) mal e (tanta) aflição, fome e pobreza este dia me trouxe! Eu sou o mais arruinado de todos (os 1 2

Os excertos de O avarento utilizados neste trabalho são da edição traduzida por Bandeira Duarte (1996). Irei referenciar as peças Ŕ Molière; Plauto - da seguinte maneira: o ato em romanos e a cena em arábicos.


342 homens) na terra. Na verdade, de que vale a vida para mim? (Para mim), [que] perdi tanto ouro, o qual guardei com tanto cuidado, com (tanto) zelo! Eu mesmo me lesei, (acabei com) minha vida e meu prazer de viver; agora, conclusão, os outros se divertem com a minha desgraça, com a (minha) ruína. Não posso agüentar (IV, 9)1.

Molière criou o Harpagon como um arlequim (da Commedia dell‘arte), um grotesco, um fantoche que se movimenta e fala com o intuito de provocar o riso no público por meio de procedimentos milenares, como caretas e pontapés. Assim, a avareza é pintada com uma sequência de números de repertório, presentes em várias gags, que são pequenas ações cômicas ou situação burlesca, como, por exemplo, gag das outras mãos (I, 3), gag do chapéu (III, 1). Tal repertório encontrado na peça teria a sua constituição na obra do escritor latino. Poderemos, dentro desse percurso de O avarento, apontar outras obras, que teriam, de certa maneira, feito com que Molière seguisse a tradição de ter como tema a avareza: Les esprits (1579) escrita pelo francês Pierre Larivey (1550-1611), com o personagem Séverin; La belle plaideuse (1654), de Boisrobert, que mostra as ideias da condição burguesa frente à avareza, da aliança entre o filho e a filha contra seu pai; em La mère coquette (1665), de Donneau de Visé, tem-se um pai que tem uma paixão senil por uma jovem moça que recebe a corte de seu filho. Berrettini (1979) ressalta a aproximação entre outro personagem molieresco, o Gorgibus (O Médico volante- s.d.) e Harpagon, pois ambos gostam de dinheiro, sendo que, em Harpagon há um paroxismo, ou seja, a avareza se faz presente nesse personagem em maior intensidade. E considera que o Médico volante pode ser considerado um embrião de O avarento. O MÃO DE VACA E OS BLOGS Por haver o desejo de descrever mais detalhadamente o processo e de compartilhá-lo com o público, o grupo prôpos-se estender essa colaboração coletiva ao ciberespaço, já que a Internet possibilita o estreitamento de relações, a abertura e a troca de novos horizontes entre artistas e outros artistas e/ou entre artistas e público. Além disso, o grupo, com a divulgação de suas impressões e experiências do processo critavino na Internet, aproveitaria a possibilidade de ouvir muito mais pessoas do que apenas as que o assistiram na praça ou na rua. O intuito do grupo era de que as pessoas pudessem intervir em seu processo criativo, compartilhando ideias, sugerindo cortes e adaptações do texto, ou seja, pudesse reescrever, ler 1

Tradução de Mariza Mencalha de <http://recantodasletras.uol.com.br/teorialiteraria/1970158>).

Souza.

(Disponível

em:


343 e interpretar a peça, junto com ele. Então, o público, deveria estar presente desde o início, acompanhando o processo. É oportuno dizer que os Palhaços Trovadores procuram fazer um trabalho de estabilização do texto a partir das suas próprias necessidades, na busca de inovação e/ou manutenção de suas pesquisas com os folguedos e manifestações populares, relacionados à cultura local. Mas como aproximar o Ŗpúblicoŗ dos usuários da Internet e o grupo durante o processo de montagem? Para tal aproximação/comunhão com os internautas, foi proposto ao grupo, composto por 12 integrantes (11 atores e o diretor) e às duas atrizes convidadas, a criação de diários1 para o registro, para a descrição e para o compartilhamento do processo, sendo que, nessa nova montagem do grupo, os diários deveriam ter o formato digital. Logo, o gênero digital escolhido foi o blog (que surgiu como forma de diário), por possibilitar Ŗum relacionamento em via dupla entre um autor disposto a contar sua vida íntima a um público desconhecido e um público que se propõe a ler sobre ela e comentá-laŗ (SCHITTINE, 2004, p. 16). Entretanto, apesar de não ser a vida íntima (os assuntos pessoais recorrentes nos diários íntimos Ŕ namoros, amores, angústias etc.) dos integrantes que seria exposta, podemos dizer que haveria a intimidade própria das dúvidas quanto ao processo de montagem, e certa subjetividade das escritas desse processo (o que enfatiza duas características paradoxais do blog: o privado que é público). À primeira vista, tal proposta de criação de blogs não foi bem aceita, pois alguns integrantes nunca tinham criado um blog, ou não acessavam frequentemente a Internet por causa do tempo, já que exercem outras atividades não relacionadas ao Teatro. Tal postura refletiu na quantidade de blogs criados, já que de quatorze pessoas envolvidas na montagem somente nove construíram suas páginas, sendo que, dentre essas nove, somente quatro atualizaram constantemente seus blogs, até a estreia. BILAZINHA DA MAMÃE <HTTP://BILAZINHADAMAMAE.ARTEBLOG.COM.BR> Resolvemos destacar o blog da Andréa Flores, uma das atrizes convidadas a participar do processo2, por ter sido o último blog a ser criado, também no Arteblog, em 28 de setembro de 2009, depois de alguns meses de processo iniciado.

Ela justifica, em sua primeira

postagem Ŕ 29 de setembro Ŕ que a demora em criar seu blog foi devido a correria em que se

1 2

Chamamos tais diários de Ŗdiários de bordoŗ, normalmente feitos de forma manual e artesanal. A outra atriz foi Joyce Baroel, a palhaça Barú.


344 encontrava, já que estava em fase de terminar seu Trabalho de Conclusão de Curso em Terapia Ocupacional. Já nessa primeira postagem, temos a percepção do trabalho sobre O avarento durante o processo dos Palhaços Trovadores, pois a atriz registra que leva consigo o texto, para gravar as falas, pois para ela, já era tempo para os atores estarem com o texto na memória para que pudessem estar mais livres para propor movimentações em cena, assim como novos cortes. Ainda com relação ao corte, ela descreve que outra atriz, Rosana Coral, comemorava com cada corte que o texto sofria durante o processo, fato que ela também achava necessário, pois algumas cenas ainda estavam muito longas. E acrescenta: ŖAlém disso, sofremos de verborragia: algumas coisas não precisam ser ditas, apenas mostradas de uma outra formaŗ. E acrescenta:

Comecei lendo o texto, ainda durante o trabalho de mesa, em meados de maio e junho, como a personagem Elisa, filha de Harpagon, o muquirana (vocês não acham que também ficaria perfeito se o espetáculo se chamasse ŘO muquiranař? Sugiram! Sugiram! Gosto ainda mais deste nome!). No entanto, não tínhamos papéis definidos e, conforme o processo avançou, virei Joaquim, o empregado puxa-saco de Harpagon. Eu simplesmente a-m-o o Joaquim, desde que iniciamos as leituras.

Diferentemente do que percebemos no blog de Antônio Marco, as postagens de Andréa Flores, que ao todo são 19, registram mais efetivamente o processo de montagem, evidenciando a perspectiva da atriz dentro do processo de O mão de vaca. Ela descreve suas sensações, seus anseios, como na postagem do dia 18 de novembro de 2009, sob o título ŖLoucura, loucura! (Mão de vaca)ŗ, em que descreve o seguinte: Ainda falta trabalho. Conclusão inevitável a que chegamos nos últimos ensaios. E muito trabalho! [...] voltamos a ensaiar as cenas iniciais, como fazíamos no começo e... surpresa... elas estão parando e parando e parando. O motivo esbarra, ainda, na falta do texto, no clown pessoal que muitas vezes some e, como conseqüência de tudo isto, falta ritmo do espetáculo. [...]

Percebemos ao longo de seu blog, que os artigos explanam Ŗa mão na massaŗ dos atores sobre o texto, assim como o suscitar a participação do público, quando a atriz pede a colaboração desse público de internautas para a escolha de outros nomes para os criados Joaquim e La Flèche, já que na montagem, acreditavam que tais nomes não seriam bem entendidos pelo público. Mas também há posts sobre o universo clownesco, do palhaço, além de traços mais pessoais.


345 REFERÊNCIAS BERRETTINI, Célia. Duas Farsas, O Embrião do Teatro de Molière. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979. DURAND, André. L‘avare (1668). Disponível em: <www.comptoirlitteraire.com>. Acesso em: agosto 2010. FLORES, Andréa. Bilazinha da mamãe. Disponível em: <http://bilazinhadamamae.arteblog.com.br>. Acesso em: 25 abr. 2010. MOLIÈRE. O avarento: comédia em 5 atos. Tradução de Bandeira Duarte. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996. PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. 3..ed. São Paulo: Perspectiva, 2007. SCHITTINE, Denise. Blog: comunicação e escrita íntima na internet. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. SOUZA, Mariza Mencalha de. Teoria Literária Clássica Romana (Plauto e A Aulularia). In: VIII CONGRESSO NACIONAL DE LINGÜÍSTICA E FILOLOGIA (I Congresso Internacional de Estudos Filológicos e Lingüísticos), 2004, Rio de Janeiro: CiFEFiL/IL/UERJ. Disponível em: <http://recantodasletras.uol.com.br/teorialiteraria/1970158>. Acesso em: 2010.

ESTRATÉGIAS DE REFERENCIAÇÃO ANAFÓRICA COM NÚCLEOS NOMINAIS NO TWITTER: EM CENA O PREFEITO DE BELÉM DO PARÁ Vanessa Fabiane Martins de OLIVEIRA (UFPA) Orientador (a) : Prof.ª Dr.ª Maria Eulália Sobral TOSCANO (UFPA) RESUMO: Esta dissertação de Mestrado pretende analisar as estratégias de referenciação anafórica com núcleos nominais, utilizando como corpus o perfil Ŗ@sosbelemŗ, do suporte Twitter, com o objetivo de reconstruir os sentidos dos objetos-de-discurso a que essas anáforas remetem Ŕ neste caso, o prefeito de Belém Duciomar Costa. Com isso, procuraremos evidenciar e trazer à superfície as intenções e o posicionamento do(s) locutor(es) através de suas escolhas, contribuindo assim para as discussões acerca fenômeno da remissão. Segundo KOCH (2003), o processo de reativação de referentes no texto, realizado por meio de expressões anafóricas forma assim cadeias coesivas que, conforme MOURA (2006), possibilitam ao falante manter controle sobre o que já foi enunciado (objetos ou indivíduos). A análise de expressões nominais anafóricas permite-nos recuperar as intenções, crenças e atitudes do locutor, não se reduzindo, portanto, apenas a uma estratégia de coesão textual. Para aprofundar nosso conhecimento sobre referenciação e, em particular, sobre a anáfora, buscaremos estudiosos do assunto, que possibilitarão o embasamento teórico necessário a nossas análises. Observaremos também a participação dos interlocutores, como eles interagem e por que interagem de tal forma, ou seja, tentaremos explicitar o processo de interação que se desenvolve nesse ambiente virtual. A investigação sobre o processo de interação entre os Ŗtwitteirosŗ e sobre o contexto sócio-histórico em que esses sujeitos estão inseridos remetemnos a outros campos que vão além da Lingüística do Texto. Por essa razão, esse trabalho fundamentar-se-á não só na Linguística Textual, mas também na Linguística da Enunciação e da Interação Verbal. Em suma, esta dissertação tem como objetivo analisar as formas nominais anafóricas em um perfil do twitter, demonstrando que essas escolhas não são feitas ingenuamente pelos locutores, ou seja, que elas são intencionalmente selecionadas de modo a, imprimir no discurso determinadas orientações argumentativas. PALAVRAS-CHAVE: interação, Twitter, referenciação.


346

ANAPHORIC REFERENTIATION STRATEGIES WITH NOMINAL CORES AT TWITTER: ON THE SCENE THE BELÉM MAYOR OF THE PARÁ Vanessa Fabiane Martins de OLIVEIRA (UFPA) Advisor: Maria Eulália Sobral TOSCANO (UFPA)

ABSTRACT: This Master dissertation intent to analyse the anaphoric referentiation strategies with nominal cores, using as corpus the profile Ŗ@sosbelemŗ, of Twitter support, with the objective of reconstruct the object-of-speech senses those anaphoras refer Ŕ in this case, the Belém mayor Duciomar Costa. Thus, weřll looking for to evidence and bring to the surface the intents and the positionament of the announcer(s) through yours choices, contributing thus for the discussions about remission phenomenon. According KOCH (2003), the reactivation process of referents in the text, realized through anaphoric expressions form cohesive chains that, as MOURA (2006), enable to speaker keep control about which was enunciated (objects or individuals). The anaphoric nominal expressions analysis allows us to retrieve the intentions, beliefs, and announcer attitudes, not reducing, therefore, only in a textual cohesion strategy. To deepen our knowledge about referentiation and, in particular, about the anaphor, weřll search scholars of the subject, which will enable the necessary theoretical backgrounds to ours analyses. Weřll observe too the inter announcers participation, how they interact and why they interact in such as way, i.e., weřll try to explain the interaction process which that develops in this virtual environment. The investigation about the interaction process between Ŗtweetersŗ and about the socio-historic context which those subjects are inserted refer us to others fields that will go besides Linguistic of the Text. For this reason, this work will substantiate not only in the Textual Linguistic, but too at Enunciation and Verbal Interaction Linguistic. To sum up, this dissertation has how objective to analyse the anaphoric nominal forms within a Twitter profile, demonstrating those choices arenřt made naively by announcers, i.e., that theyřre intentionally selected in order to, print in the speech certain argumental guidelines. KEY-WORDS: interaction, Twitter, referentiation.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS A internet é uma grande rede de computadores que possibilita a seus usuários a troca de mensagens sobre os mais variados assuntos, assim como a troca de vídeos, músicas e imagens. Essa enorme rede de troca de informações caracteriza-se pela interação entre pessoas que podem estar ou não, geograficamente afastadas umas das outras, e pela velocidade com que essas informações circulam na rede, podendo ser acessadas por qualquer usuário em qualquer lugar do planeta. Com o surgimento da internet e com a popularização dessa rede de informações e relacionamentos em nossa sociedade, emergiram novas práticas sociocomunicativas no


347 ciberespaço que se distinguem pelos aspectos interacionais, objetivos ilocucionais e estrutura composicional.

Dessa forma, essas

novas práticas discursivas

modificaram e/ou

redimensionaram a forma usual e já estabelecida de comunicação e interação entre os indivíduos. Essas novas práticas discursivas, denominadas de discurso eletrônico Ŕ bate-papo (chat), e-mail, e-fórum, fotolog, blog ou microblog etc Ŕ, têm atraído cada vez mais a atenção de estudiosos da linguagem, já que esses discursos apresentam os mais variados e interessantes aspectos linguísticos e sociológicos, que constituem um campo extremamente fecundo para análises dessa natureza. Atraídos por essa perspectiva, selecionamos para este trabalho Ŕ uma síntese da pesquisa em andamento do mestrado em Lingüística da UFPA, ano 2010 Ŕ o suporte Twitter, site de relacionamento virtual que tem crescido consideravelmente nos últimos anos, e nele, elegemos como corpus o perfil @sosbelem1, com o objetivo de analisar as estratégias de referenciação anafórica com núcleos nominais e, desta forma, reconstruir os sentidos dos objetos-de-discurso remetidos. No caso do perfil @sosbelem, o objeto-de-discurso a ser retomado pelas anáforas é o prefeito de Belém do Pará, Duciomar Costa. Ao observarmos as estratégias de referenciação anafóricas utilizadas pelo locutor no perfil supracitado, perceberemos que as escolhas não são feitas de forma despropositada e ingênua, pelo contrário, são intencionais e trazem à superfície suas intenções e seu posicionamento através de suas escolhas. Em suma, ao analisarmos esse corpus, não estaremos apenas diante de uma análise lingüística, mas, também, de caráter sociológica, na qual é possível determinar o contexto sócio-histórico em que esse locutor está inserido, as possíveis razões que o fez utilizar determinados expressões para se referir ao prefeito, o porquê de criar um perfil no Twitter para tratar de questões sociais referentes a sua cidade, além das questões sociológicas próprias das práticas discursivas mediadas pelo computador.

1.

O FENÔMENO DA REFERENCIAÇÃO:

ANÁFORAS

COM NÚCLEOS

NOMINAIS

A priori, o pressuposto da referenciação estava pautado numa visão da língua como representação direta do mundo, a estreita relação entre as palavras e as coisas, os objetos. A partir do avanço das ciências cognitivas essa postulação ganhou uma proporção maior, as 1

http://twitter.com/sosbelem Acesso em 01/10/2010


348 referenciações já não se encontram mais apenas no âmbito da palavra, mas do discurso. Os elementos retomados não são apenas objetos, e sim, objetos-de-discurso. Mondada e Dubois (2003) postulam que tudo aquilo que a língua refere não passa de objetos-de-discurso, ou seja, o mecanismo da referenciação é uma maneira de compreender Ŗcomo as atividades humanas, cognitivas e lingüísticas estruturam e dão um sentido ao mundoŗ. A cada lance no jogo comunicativo confere-se aos termos referidos estatutos variáveis, instáveis, de acordo com nossos posicionamentos. Logo, a referenciação será entendida, não apenas como uma estratégia de retomada de referentes que geram uma cadeia coesiva que possibilita aos interlocutores uma compreensão global do texto, mas como um processo de caráter sócio-cognitivo em que os produtores dos textos (re)criam objetos-de-discurso a partir do seu projeto-de-dizer. A referenciação constitui uma atividade discursiva, pois, na medida em que o discurso se desenvolve, os termos retomados são construídos por sujeitos sociais e históricos em interação. Segundo Koch (2002), Ŗa realidade é construída, mantida e alterada não somente pela forma como nomeamos o mundo, mas acima de tudo, pela forma como, sociocognitivamente, interagimos com eleŗ. Koch (2003) destaca que a reativação de referentes no texto é realizada através de estratégias de referenciação anafórica que formam, assim, cadeias coesivas mais ou menos longas. Esse tipo de remissão poderá ser efetivado através de: a) recursos de ordem Ŗgramaticalŗ ou pelo auxílio de recursos de natureza lexical Ŕ sinônimos, hiperônimos, nomes genéricos, descrições definidas; b) reiterações de um mesmo grupo nominal ou parte dele; c) elipse. A (re)ativação de referentes pode acontecer também por meio de inferências, Ŗpistasŗ expressas no texto que levam os interlocutores a Ŗdescobrirŗ quais os objetos-de-discursos remetidos, através dos Ŗconhecimentos que fazem parte de um mesmo Řframeř ou Řscriptř, a partir de um ou vários de seus elementos explícitos na superfície textualŗ. (Koch, 2003). Há um tipo de referenciação, que não será analisado neste trabalho, que se realiza por meio de remissões para a frente, denominada catáfora, geralmente feitas através de pronomes demonstrativos ou indefinidos neutros (isto, isso, aquilo, nada), através de nomes genéricos e por meio dos demais pronomes, numerais ou advérbios pronominais. Como já mencionado, as estratégias de referenciação analisadas nesse trabalho serão de caráter anafórico, ativadas ou reativadas através de expressões nominais definidas, ou seja, de


349 descrições definidas do referente. Essas expressões trazem incutidas em si as impressões que o locutor faz do referente, caracterizando-o, conforme diz Koch (2003): Ŗo uso de uma expressão definida implica sempre na escolha dentre as propriedades ou qualidades que caracterizam o referente, escolha, escolha esta que será feita de acordo com aquelas propriedades que, em dada situação de interação, em função dos propósitos a serem atingidos, o produtor do texto tem interesse em ressaltar, ou mesmo tornar conhecidas de seu(s) interlocutor(es)ŗ.

Como se pode verificar, o uso de das descrições definidas não só retomam determinados elementos do texto trazendo a superfície dados/informações que o produtor julga importante para seus interlocutores, mas podem também revelar ao interlocutor aspectos importantes sobre as opiniões, crenças e atitudes do produtor do texto, e isso, por sua vez, auxilia na construção dos sentidos.

2. O SUPORTE TWITTER

As pesquisas acerca dos e-gêneros e discursos eletrônicos têm avançado ao longo dos anos concomitantemente aos avanços tecnológicos, a popularização da internet e as diversas modificações nas formas e possibilidades de utilização da linguagem, porém, muito se precisa avançar nos estudos sobre as atividades linguística-interacionais mediadas por computador, sendo este um dos principais objetivos que subjaz esse trabalho. O uso da internet é cada vez mais frequente entre indivíduos do mundo inteiro, logo, é importante ficar atento às modificações na linguagem influenciadas por ela. Os suportes que a internet oferece Ŕ suportes estes que são inventados, modificados, reeditados o tempo todo Ŕ possibilitam que os indivíduos criem e recriem a língua na mesma proporção, com a mesma dinamicidade. Um dos suportes mais recentes e que tem ganhado projeção considerável no meio virtual e midiático é o Twitter Ŕ que será a base das análises desse trabalho. O Twitter é uma ferramenta de micromensagens, também conceituado como um microblog, apesar de alguns autores como Recuero & Zago (2009) não concordarem com essa definição, pois para elas embora a ferramenta seja comumente referida como microblog, optou-se por denominá-la como um Ŗmicromensageiroŗ, já que considerá-se que as apropriações conferidas ao suporte fizeram com que ele se afastasse da idéia de um blog. Lançado em 2006, o Twitter tem crescido nos dois últimos anos, tendo um aumento significativo de usuários no Brasil e no


350 mundo. Twitter, em português, significa Ŗgorjearŗ, Ŗtrinarŗ, é o Ŗcanto dos pássaros1ŗ e tem a intenção de denotar algo curto, instantâneo, sintético. Os usuários dessa rede social Ŕ já que é possível definir o Twitter dessa forma por criar perfis públicos, articular redes de contato e torná-las públicas Ŕ são convidados a responder à pergunta ŖWhat are you doing?ŗ (O que você está fazendo?) em apenas 140 caracteres, além de possibilitar Ŗseguirŗ e Ŗser seguidoŗ por usuários. Nesse espaço virtual, como em todos os outros de diferentes suportes, é possível encontrar as mais variadas atividades de linguagem que nem sempre correspondem ao que é inicialmente proposto. O Twitter tem sido utilizado para diversas finalidades, seja para responder sobre o que está fazendo naquele momento, o que se assemelha mais à característica de microblog, seja para divulgar produtos e serviços, conhecer pessoas, saber as últimas notícias, ter acesso a previsões meteorológicas, saber sobre o trânsito, sobre a vida dos artistas, procurar e oferecer emprego, fazer campanha política etc. E todas essas ações acontecem de maneira imediata, simultânea, já que uma das características principais desse suporte é a possibilidade dele poder ser acessado de celular. Por ser um suporte relativamente novo e que redefiniu e/ou recriou um gênero existente no espaço virtual Ŕ blog Ŕ agregando-lhe especificidades diferentes, fez com que despertasse o desejo de estudá-lo mais profundamente, principalmente no que diz respeito às construções do sentido estabelecidas a partir das estratégias de referenciação anafóricas. 3. O CORPUS: EM CENA O PREFEITO DE BELÉM A seguir observaremos tweets2 retirados do perfil Ŗ@sosbelemŗ que como se pode inferir pelo próprio nome trata-se de um espaço para falar sobre os problemas vivenciados na cidade de Belém do Pará, e assim, criticar, sugerir, informar acerca de tudo que diz respeito a essa cidade. Contudo, o que poderemos perceber é que o foco do perfil se centralizará em questionamentos acerca da figura do prefeito, Duciomar Costa. Vejamos: A

B C 1 2

@bina_jares Acho que o blog do Vic Fofoca e o Belchior-com-medo-de-avião aparecem primeiro que Dudu, o fantasminha-não-tão-camarada 6:37 PM Aug 24th from web Quando encontrarem o Belchior, perguntem se ele não viu o prefeitinho por aí. 10:17 PM Aug 28th from TwitterBerry @joalkg As pessoas de Belém são gente muito boa. O único defeito: alguns não sabem votar e elegem essas coisas que a gente nem consegue ver. 7:43 AM Aug 29th from web

O símbolo do Twitter é um pássaro azul, o que reforça a questão da tradução dessa palavra. Na linguagem do Twitter, é como são denominadas as mensagem publicadas pelos usuários.


351

D

E

Será que se o prefeito Gasparzinho conseguir privatizar a Cosanpa vai dar flashback dessa venda da Celpa? 7:40 AM Aug 29th from web @blogdovic Enquanto o sr. sonha c/ a Juju, o povo sonha em achar o Dudu, o fantasma-que-anda, trabalhando. Ele só aparece fazendo o social. 1:31 AM Sep 13th from web Nos tweets escolhidos podemos observar o fenômeno da referenciação através de

anáforas Ŕ em negrito Ŕ todas referentes ao prefeito de Belém, Duciomar Costa. Como se pode perceber, as escolhas para se referir ao prefeito não foram aleatórias, todas são extremamente carregas de sarcasmo e ironia. Isso demonstra o posicionamento do enunciador a respeito do referente, sendo assim, podemos ter uma noção sobre qual é o posicionamento ideológico e político do locutor e que apreciação valorativa que ele faz do referente. No quadro A e D, há uso de três expressões nominais anafóricas ŖDuduŗ, Ŗo fantasminha-não-tão-camaradaŗ, Ŗo prefeito Gasparzinhoŗ. A primeira trata-se de um apelido comumente empregado ao prefeito, utilizado por ele mesmo em sua campanha eleitoral, que aparentemente, em um primeiro momento, não demonstra nenhum caráter pejorativo em se tratando de um diminutivo. Porém, ao unirmos o apelido a segunda e terceira expressões anaforizadas, que ativa, também, informações que se encontram fora da superfície do texto, a partir de conhecimento partilhado sobre a história infantil do fantasma ŖGasparzinhoŗ, personagem que apesar de ser sobrenatural não assustava ninguém, era bondoso e gostava de fazer amigos e, por conta disso, foi intitulado de Ŗfantasminha camaradaŗ, vemos que o produtor do texto não simpatiza com a figura de Duciomar. O prefeito é denominado como um Ŗfantasmaŗ Ŕ e não camarada Ŕ por não aparecer, segundo o autor do tweet, trabalhando na/pela cidade. O tweet A, também faz referência ao episódio em que o cantor Belchior estava desaparecido, o que gerou uma grande comoção nacional para saber onde ele estava e o porquê de ter sumido, a partir disso o produtor do texto cria uma relação ao desaparecimento do cantor com o Ŗdesaparecimentoŗ do prefeito. O tweet B e C traz como remissão as expressões Ŗo prefeitinhoŗ e Ŗessa coisasŗ. O diminutivo utilizado traz à tona o juízo de valor que o autor faz de Duciomar. É uma expressão perjorativa que apresenta certa desqualificação, pouca importância ao elemento anaforizado. A expressão Ŗessa coisasŗ também apresenta incutida em si um caráter depreciativo, que nos leva a pensar que para o produtor do texto o prefeito não está nenhum pouco qualificado ao cargo que ocupa, é um Ŗqualquerŗ, passa do status de pessoa para o status de Ŗcoisaŗ.


352 Por último, temos no tweet E a expressão Ŗo fantasma que andaŗ. Outra vez o produtor faz referência ao prefeito Duciomar como fantasma, retomando o que havia dito no tweet A. Porém, dessa vez, ele troca a expressão para o fantasma Ŗque andaŗ, o que marca mais ainda que o Duciomar só apresenta o stutus de fantasma, porque, para o produtor, o prefeito não aparece realizando obras, benefícios na cidade de Belém. Dessa forma, foi possível traçar uma sucinta análise, tentando reconstruir o objeto-dediscurso referido nesse corpus, de modo a procurar evidenciar como o fenômeno da remissão é importante na construção dos sentidos do texto e o quanto eles demonstram do posicionamento do produtor diante ao termo referido. CONSIDERAÇÕES FINAIS A priori, este trabalho de dissertação de mestrado encontra-se em andamento, buscando aprimorar seu corpus e análises. O objetivo de analisar as estratégias de referenciação anafórica com núcleos nominais no Twitter, surgiu ao reconhecemos o quanto esse campo é rico, lingüísticamente e sociologicamente, e observamos, através de breves análises de reconstrução dos sentidos dos objetos-de-discurso remetidos, que muito se pode descobrir sobre intenções e o posicionamento do(s) locutor(es) através de suas escolhas. A seleção do perfil Ŗ@sosbelemŗ não aconteceu de maneira despropositada, além das questões de referenciações que nela se encontram, podemos ter o contato com o falar paraense, englobando assim, a proposta da linha de pesquisa - Documentação, Descrição e Análise do Português da Amazônia. Em suma, o que se pretende com essa pesquisa é analisar as estratégias de referenciação no suporte Twitter, atentando para a questão lingüístico-cognitivas-sociológicas, ou seja, a construção das imagens e significados dos referentes, procurando evidenciar e trazer à superfície as intenções, o interesse, o posicionamento do locutor através de suas escolhas, contribuindo assim para as discussões acerca do fenômeno de referenciação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS KOCH, Ingedore Villaça. Referenciação e orientação argumentativa. In: KOCH, Ingedore Villaça; MORATO, Edwiges Maria; BENTES, Ana Cristina. (Orgs.). Referenciação e Discurso. São Paulo: Contexto, 2005. __________. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002. __________. O Texto e a Construção dos Sentidos. São Paulo: Cortez, 2003.


353 MONDADA, Lorenza; DUBOIS, Daniele. Construção dos objetos de discurso e categorização: uma abordagem dos processos de referenciação. In: CAVALCANTE, Mônica Magalhães; RODRIGUES, Bernatede Biasi; CIULLA, Alena (Orgs). Referenciação. São Paulo: Contexto, 2003. RECUERO, Raquel. Por que os blogueiros têm Twitter?. Blog Social Media, 27 de maio de 2009. Online, 2009b. Disponível em: http://pontomidia.com.br/raquel/arquivos/ por_que_os_ blogueiros_tem_twitter.html __________. Dos Blogs aos Microblogs: aspectos históricos, formatos e características. Niterói: 2008. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/zago-gabriela-dos-blogs-aosmicroblogs.pdf RECUERO, Raquel; ZAGO, Gabriela. Em busca das “redes que importam”: Redes Sociais e Capital Social no Twitter. GT Comunicação e Cibercultura, XVIII Encontro da Compós. Belo Horizonte, 2009c. Disponível em: http://www.compos.org.br/data/trabalhos_ arquivo _coirKgAeuz0ws.pdf


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