Entre a cidade e a floresta

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Organização:

Aila Villela Bolzan

Christianne Godoy Marcelo Delduque Pedro Ferreira

São Paulo - SP 2013

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Rio P

inhe

iros

Rio Tietê

Área de Proteção Ambiental Bororé-Colônia

Reservatório Guarapiranga

Área de Proteção Ambiental Capivari-Monos

Parque Estadual da Serra do Mar Parque Natural Municipal Bororé Reservatório Billings

Parque Natural Municipal Varginha Parque Natural Municipal Itaim Parque Natural Municipal Cratera da Colônia

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Centro de Cultura Afro Asé Ylê de Hozooane

Aldeia Guarani Tenonde Porã

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Sumário Introdução 14

Parelheiros 20

A aldeira Tenonde Porã 32

O terreiro Asé Ylê do Hozooane 66 Encontro de mundos 100

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Introdução

E

ste livro tem como tema a região de Parelheiros, no

extremo sul da capital paulista, focalizando especialmente duas comunidades tradicionais que ali vivem – o povo de

santo do terreiro Asé Ylê do Hozoouane e o povo Guarani

da aldeia Tenonde Porã – e ressaltando o uso que ambas fazem dos recursos naturais. O trabalho é parte do projeto Sociobiodiversi-

dade em comunidades tradicionais nas APAs do município de São Paulo, realizado pelo Instituto Refloresta , com recursos

do Fundo Especial do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Fema).

Parelheiros é um lugar absolutamente singular. Trata-se de

uma região de mananciais que guarda muitas áreas florestais ainda preservadas – florestas e águas não existem separadamente, uma

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depende da outra –, praticamente inserida na mancha urbana da metrópole paulistana.

A região é legalmente protegida por duas Áreas de Proteção

Ambiental, as APAs Capivari-Monos e Bororé-Colônia, cobrindo uma área de 341 quilômetros quadrados, ou cerca de 20% da área do

município de São Paulo, o que dá a dimensão de sua importância.

Nela nascem os cursos d’água que enchem os reservatórios Billings e Guarapiranga, responsáveis por 30% do abastecimento de água da capital. Ali existem inúmeros fragmentos de Mata Atlântica em

estágio de regeneração entre médio e avançado, compartilhando

o espaço com diversos núcleos urbanos, áreas agrícolas, obras de vulto como o Rodoanel, trecho sul, ocupações irregulares e ativi-

dades econômicas de alto impacto ambiental, como mineração e

silvicultura; soma-se a esses elementos a crescente especulação imobiliária.

Esse cenário urbano complexo e múltiplo despertou no Ins-

tituto Refloresta o interesse em atuar no território por meio de um

projeto que procurasse pesquisar, compreender e documentar como se dão as relações entre alguns de seus habitantes e a natureza. Parcerias

A aproximação do Refloresta com a região de Parelheiros

aconteceu de forma gradativa, primeiramente contribuindo com

seminários locais, em seguida integrando o Conselho Gestor da APA Capivari-Monos e, finalmente, apresentando o projeto Sociobiodi-

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versidade em comunidades tradicionais nas APAs do município de São Paulo para apreciação do Fema (Fundo Especial do Meio

Ambiente e Desenvolvimento Sustentável). Para a implantação do

projeto buscaram-se parcerias locais, fundamentais para a obtenção de resultados positivos e duradouros.

A primeira parceira foi estabelecida com o terreiro de candom-

blé Angola Asé Ylê do Hozoouane, e nasceu de uma série de en-

contros informais com seus integrantes, nos quais, além da empatia

natural, houve um claro reconhecimento da potencialidade apresentada por aquela comunidade para operar transformações a partir de projetos em desenvolvimento na região.

Além disso, as casas da cultura afrorreligiosa, com suas prá-

ticas e simbolismos, fazem uso de espaços sagrados de extensos limites, se apropriando de um território vasto, que vai além de

seus muros, em uma relação pautada muito mais pelo sentido de

“pertencer ao lugar” do que pelo de “possuir” o lugar. A proximidade com as florestas e as águas é uma situação ideal para os povos de terreiro. Vivenciar essa relação, com respeito e admiração, foi um dos aspectos mais relevantes do projeto.

Dessa forma, a primeira parceria se deu com uma comunidade

que apresenta uma forma bastante original de apropriação do es-

paço e dos sistemas naturais, e que traz para o centro de suas relações sociais representações, símbolos e mitos de profundo respeito à natureza. Outras parcerias deveriam seguir esse mesmo sentido.

Foi com esse conjunto de considerações que se chegou à

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aldeia Tenonde Porã. As populações indígenas são centrais na reflexão sobre a conservação da natureza à luz de um

sistema de manejo agrícola e extrativista geralmente marcado

pelo respeito aos ciclos naturais. Essas sociedades preservam um complexo emaranhado de conhecimentos adquiridos pela tradição herdada dos mais velhos, por intermédio de mitos e

símbolos, que são necessários à reprodução do seu modo de

vida. Os Guarani Mbya, antigos habitantes da Mata Atlântica, são profundos conhecedores desse hábitat, e mantêm uma relação de intimidade com a terra, considerada sagrada no seio de sua cultura. O território é também o local das representações e do imaginário mitológico dessa cultura.

Sob tal perspectiva, o contato do Instituto Refloresta com as

tradições dos Guarani Mbya possibilitou uma melhor compreensão das relações e representações que esse povo estabelece com a região de Parelheiros. Cultura e natureza

Terreiro e aldeia possuem em comum o fato de serem

comunidades tradicionais, ou seja, “sociedades que desen-

volveram formas particulares de manejo dos recursos naturais e dos ciclos da natureza, que não visam o lucro, mas à reprodução social e cultural”, conforme conforme o cientista social Antonio Carlos Diegues.

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A intenção maior do Instituto Refloresta foi aproximar-se


dessa relação, que se contrapõe à concepção da natureza como mercadoria. Quando as interações com os sistemas naturais se

vinculam ao modo de produção e consumo capitalista, o resulta-

do historicamente comprovado tem sido a degradação; por outro lado, quando são dotadas de sentido espiritual, a situação muda radicalmente, ainda que impactos sejam causados. As atitudes

dessas comunidades ligam-se então a algo profundo, enraizado como as árvores na floresta, e ancestral como a floresta em si.

Para o antropólogo Maurice Godelier, “no coração das relações materiais do homem com a natureza aparece uma parte ideal,

não material, onde se exercem e se entrelaçam as três funções

do conhecimento: representar, organizar e legitimar as relações dos homens entre si e deles com a natureza. Torna-se, assim,

necessário analisar o sistema de representações que indivíduos e grupos fazem do seu ambiente, pois é com base nelas que agem sobre o meio ambiente”.

Numa região em que cidade e natureza estão tão

próximas, e convivendo num equilíbrio extremamente delicado – em que a floresta quase sempre sai perdendo –, as comunidades tradicionais atuam como uma espécie de

cinturão de proteção à natureza. Ao divulgar sua história, seu cotidiano e seus saberes, este livro pretende colaborar tanto

para a preservação dos recursos naturais locais quanto para o fortalecimento dessas ricas e complexas culturas.

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A região de Parelheiros

ara uma compreensão de Parelheiros, é fundamental

P

olhar para trás e recuperar alguns aspectos do processo de ocupação da região, sendo importante também

relembrar algumas características da formação do Brasil.

Esse recuo no tempo ajudará a entender as singularidades desse pedaço da cidade de São Paulo, das histórias das pessoas que vivem lá e da forma como essas histórias se cruzam com a das florestas que ali se mantêm de pé. Um pouco de História do Brasil

Antes da chegada dos portugueses, os povos indígenas se

espalhavam pelo território que viria a ser o Brasil com seus diversos modos de vida intimamente ligados ao clima e aos ciclos da terra.

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No atual estado de São Paulo, quase

Warren Dean em A ferro e fogo, “os invasores

inteiramente ocupado pela Mata Atlântica,

portugueses imprevidentemente destruíram

troncos linguísticos Tupi, Guarani e Jê.

tinham apenas pálida consciência.”

habitavam famílias indígenas pertencentes aos

Vivendo em clareiras na floresta, essas

populações armazenaram, durante cerca

de 12 mil anos, seus próprios estoques de

informação a respeito dos recursos naturais. Cada grupo atribuiu nomes a centenas – ou até milhares – de espécies animais e

vegetais, das quais conheceram seus hábitats, comportamentos, propriedades alimentares

e medicinais e ainda as relações com outras espécies. Apenas a tradição oral preservava essa cultura.

Quando chegaram, em 1500, os conquis-

tadores dependeram totalmente dos conhe-

cimentos dos povos da terra sobre a floresta

para sobreviver naquele lugar então estranho. Ainda que os contatos iniciais tenham sido

pacíficos, o processo de colonização incluiu

extermínios, escravizações, catequizações e expulsões dos indígenas de seus territórios,

o que acarretou na perda de um inestimável

conhecimento. Como observou o historiador

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uma considerável realização cultural, da qual

E assim, enquanto alguns nativos re-

manescentes foram sendo incorporados ao

sistema colonial, como escravos ou como aliados dos portugueses, outros fugiram floresta

adentro. Como é bem sabido, após quase meio século de colonização, os escravos indígenas foram substituídos pelos africanos.

Como estratégia para ocupar a colônia,

o litoral e parte do interior do Brasil foi dividido

pelo Império Português em glebas denominadas

capitanias hereditárias, entregues a membros da pequena nobreza de Portugal. Aos donatários cabia a produção agrícola, comercializada na Europa, que garantia o poder e o monopólio

comercial de Portugal, na base de mão-de-obra escrava.

Enquanto a Coroa distribuía as terras,

indígenas e negros fugidos se escondiam nas florestas e nos quilombos, enquanto brancos pobres e negros livres ocupavam as bordas das cidades em formação.


Não foi coincidência que justamente no

mês em que foi proibida a compra e venda de africanos escravizados, o Império Brasileiro criou uma lei estabelecendo que só seria

proprietário de uma terra aquele que pagasse

por ela, passando a considerar ocupações que não possuíam escrituras ilegais ou irregulares. Uma lei cujas cruéis decorrências históricas marcam o Brasil até hoje. Ocupação

Situado nas bordas da serra do

Mar, o extremo sul do município de São Paulo começou a ser ocupado a partir

dos aldeamentos formados e controlados

pelos jesuítas. A região foi, durante todo o período colonial, uma zona de passagem

entre a cidade ao litoral. Os colonizadores

aproveitavam-se de antigas trilhas indígenas, que acompanhavam os cursos dos rios

Anhembi – hoje conhecido como Tietê – e

Geribatiba ou Jurubatuba – atual Pinheiros. Um dos aldeamentos nessa zona de

passagem deu início à vila de Santo Amaro,

em 1832. A região contava com a presença de

algumas colônias agrícolas, como a Colônia Alemã, hoje chamada Colônia Paulista,

fundada em 1829, configurando como um dos

mais antigos focos de colonização estrangeira

no Brasil. Nessa época a cidade de São Paulo se organizava nos limites das ruas Direita, 15 de Novembro e São Bento, atual centro da

cidade. A relação estabelecida entre os dois

núcleos – São Paulo e Santo Amaro – era de fornecimento de alimentos e materiais. Com

a expansão do café, São Paulo avançou em

seu processo de urbanização. Surgiu então a

necessidade de conexão entre os dois núcleos, que se efetivou com uma linha férrea para

transporte de cargas e de passageiros. Até a implantação da linha férrea da Cia Carris de

Santo Amaro, no fim do século 19, a paisagem mantinha-se predominantemente rural.

As mudanças, inicialmente tímidas, in-

tensificaram-se nos primeiros anos do século 20, período em que São Paulo, sob a fortuna do café, começava a se modernizar. A ocu-

pação da região também foi favorecida pela

construção das represas Guarapiranga (19061909) e Billings (1925-1927) e, na década de

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1930, com a chegada de colonos japoneses,

da cidade se acentuaria no fim da década de

Grande, Grajaú e Veleiros. Mudanças ainda

porou definitivamente à paisagem da cidade.

que se estabeleceram em Colônia, Casa

mais bruscas teriam vez a partir de 1940 com

1970, quando o extremo sul da capital se incor-

a construção de uma nova ferrovia que cortou

O caminho

ao litoral. Em sua esteira, surgiram novos

direção ao extremo sul da cidade observa uma

as áreas afastadas do município em direção núcleos, como os de Engenheiro Marsilac e Evangelista de Souza.

O processo de industrialização consoli-

dava-se em São Paulo, escorado em rápidas inovações tecnológicas. A crise internacional

do café deslocou os investimentos da agricul-

tura para o setor industrial, estimulando o início da exploração de madeira das florestas locais para a produção de carvão. De Parelheiros

vinha energia que movia a indústria paulista.

A região entrava enfim na rota do desenvolvimento paulista.

A década de 1960 constitui-se outro marco

importante na ocupação da região, devido à

construção de uma subestação transformadora de energia, inaugurada em 1963, e à chegada de uma grande leva de migrantes, em grande parte nordestinos. O processo de expansão

Quem segue do centro de São Paulo em

transformação gradual, mas notável, na paisa-

gem. À medida que se avança, a metrópole dá lugar a áreas verdes cada vez mais amplas.

Ao cruzar o centro de Parelheiros, onde a cidade pela última vez se adensa, e continuar rumando ao sul, se percebe que a via toma o aspecto de

uma estrada rural. É uma sensação quase irreal presenciar a emersão dessa São Paulo feita de

chácaras e sítios, na qual se dilui, cada vez mais esparsamente, a atmosfera de periferia.

Descobre-se então que uma das maiores

megalópoles do mundo produz, em sua borda

sul, hortaliças, frutas e flores; possui pastos de vacas leiteiras, açudes onde se criam peixes, monoculturas de pinheiros e eucaliptos.

E preserva ainda uma mata exuberante: pouco antes de chegar ao limite da capital, já nas beiradas da serra do Mar, a Mata Atlântica

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toma inteiramente a paisagem, protegida

Áreas protegidas

contornos adentram levemente a capital.

hoje feições rurais. A Lei de Proteção aos

pelo Parque Estadual da Serra do Mar, cujos

Essas duas São Paulo parecem

incompatíveis. Quem vive na região central da cidade sente certo estranhamento ao

conhecer uma São Paulo tão diferente. O

signo de urbanidade sob o qual a metrópole é reconhecida é tão acentuado que não parece

ceder lugar ao rural. Ao conhecer a ocupação das terras da região, contudo, veremos que a contradição é apenas aparente.

A monumental metrópole não é

autossuficiente. O centro não poderia viver

sem sua porção marginal. É dali que milhares de trabalhadores madrugam para chegar

cedo em seus empregos e é desse pequeno enclave rural paulistano que vem a comida que alimenta milhares de pessoas de São

Paulo. É ali, ainda, nas franjas da serra do Mar, onde a floresta persiste, que brotam

as nascentes que enchem os reservatórios Billings e Guarapiranga, responsáveis por

cerca de um terço do abastecimento de água da capital.

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Parelheiros, portanto, conserva até

Mananciais, de 1975, conteve um pouco do

ímpeto da especulação imobiliária, ainda que

tenha estimulado as ocupações clandestinas. Graças a ela persistem ali muitos fragmentos de Mata Atlântica e glebas de dimensões

consideráveis, utilizadas para a produção agrícola até os dias de hoje.

Ali onde a cidade morde a roça,

uma e outra precisam coexistir. Não é

uma convivência tranquila, como nunca foi

harmonioso no Brasil o contato entre o rural e o urbano. A pressão urbana é quase um imperativo. Ocupações irregulares, rápido

adensamento populacional, desmatamentos e degradação ambiental, carência de

equipamentos públicos, baixa renda, altos índices de violência são pontos comuns a

esses locais marginais, e estão presentes também em Parelheiros. Por muito tempo

esquecido pelo poder público, o bairro associa a todos esses elementos a sinistra sina de ser uma área de desova de carros e cadáveres.


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Entretanto, embora seu IDH – Índice de

Desenvolvimento Humano – mantenha-se o

mais baixo da capital, o estigma da violência

começa atualmente a dar lugar a outra imagem, muito mais positiva, relacionada à importância de suas áreas verdes e às culturas ligadas à valorização da natureza.

Na última década, duas unidades de

conservação foram criadas na região, as APAs (Área de Proteção Ambiental) de Capivari-Monos e de Bororé-Colônia, criadas respectiva-

mente pelas leis 13.136/2001 e 14.162/2006.

APAs são áreas protegidas que procuram as-

segurar o uso sustentável dos recursos naturais, preservar a biodiversidade e disciplinar a ocu-

pação do território, sendo constituídas de áreas públicas e privadas. Por meio de instrumentos

de gestão como os Conselhos Getores, o Plano de Manejo e o Zoneamento Ambietal, ambos

construídos com a participação da comunidade local, identificam-se as potencialidades e fragi-

lidades da área em questão, estabelecendo-se diferentes graus de restrição e usos dos re-

cursos naturais e apontando-se as atividades

econômicas compatíveis com a conservação da

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região e da biodiversidade local.

Assim, diferentemente do que se costuma

imaginar de uma unidade de conservação, as

APAs são muitas vezes ocupadas – até mesmo intensamente ocupadas – por processos urbanos, o que é o caso de Capivari-Monos e

Bororé-Colônia. Mas a criação dessas áreas

pela Prefeitura Municipal de São Paulo indica

uma preocupação em relação à conservação ambiental daquelas localidades e mostra a

necessidade e o comprometimento público

de implementar alternativas locais que conduzam ao uso sustentável dos recursos naturais e sejam capazes de conter a pressão de urbanização, hoje a principal ameaça de degradação ambiental.

Não é coincidência, portanto, a

existência de outros regulamentos de

caráter disciplinador voltados à gestão

conservacionista dos recursos naturais, que se sobrepõem à área geográfica abrangida pelas APAs. A região está inserida na Área

de Proteção aos Mananciais Sul, Reserva da Biosfera do Cinturão Verde de São Paulo e

Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, além


de incluir um trecho do Parque Estadual da

sas de religião de matriz afro-brasileira e duas

de Proteção e Recuperação dos Mananciais

Serra do Mar, Terras Indígenas e as Áreas (APRMs) Billings e Guarapiranga.

Convivência e desenvolvimento local

Hoje algo que poderia ser considerado

improvável há alguns anos começa a acontecer no extremo sul da cidade: roteiros de

ecoturismo e de agroturismo levam visitantes

às trilhas, aos rios de águas límpidas em meio à floresta e às diversas cachoeiras da região, bem como às áreas agrícolas, onde se pode

conhecer a intensa produção local de alimen-

tos. Por sua vez, chácaras de fim de semanas,

clubes e pousadas atraem gente da cidade em busca de descanso, retiro e contemplação.

A região possui ainda uma particulari-

dade notável, a de ser historicamente povoada por di-ferentes grupos étnicos, como os pio-

neiros colonos alemães que fundaram o bairro de Colônia, os norte-americanos, estabelecidos no bairro do Jardim Novo América, e os

japoneses. Em todo o entorno de Parelheiros

existe também uma grande quantidade de ca-

aldeias Guarani Mbya.

Esses grupos de identidades bem dis-

tintas ocupam o mesmo território, convivendo e eventualmente criando estereótipos a respeito uns dos outros. Os grupos de ascendência

africana e os indígenas são os mais estigma-

tizados e sujeitos a todo tipo de preconceitos. Como suas tradições ligam-se intimamente

aos elementos da natureza, a compreensão, o respeito e a valorização de sua cultura resulta

a um só tempo na conservação da diversidade cultural e biológica e do patrimônio natural, material e imaterial nas APAs.

Este potencial comunitário, aliado às

particularidades da paisagem, fornece novos caminhos para o desenvolvimento socioambiental e o manejo socioeconômico locais. Dessa forma, acredita-se que a região de

Parelheiros poderá ser palco de experiências

originais e positivas para equacionar o conflito sempre latente entre crescimento urbano e

conservação ambiental, construindo-se ali um projeto de desenvolvimento local sustentável efetivamente centrado nas pessoas.

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A aldeia Tenonde Porã

ekoa é a forma pela qual os Guarani se referem ao local

TT

que preserva condições necessárias para a manutenção

do nhandereko – o modo tradicional de ser e viver. A tekoa

Tenonde Porã situa-se numa região peculiar, de transição

entre a mancha urbana da cidade de São Paulo, uma das maiores

metrópoles do mundo, e o Parque Estadual da Serra do Mar. Trata-

se de uma área estratégica, que dá acesso ao complexo de aldeias Guarani Mbya da planície litorânea e, ao mesmo tempo, compõe uma espécie de cinturão de proteção à Mata Atlântica.

A denominação guarani Tenonde Porã foi estabelecida no final

dos anos 1990, e se originou do grupo de canto e dança de mesmo nome, integrado por crianças da comunidade. Carrega o sentido de “luz e esperança” ou “aliança para o futuro”. Até então a aldeia era

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chamada de Morro da Saudade e, anterior-

e cerimônias tradicionais como o Nhemonga-

Vila Guarani.

Nhemongarai (consagração da erva-mate) e

mente, na década de 1970, simplesmente de

A aldeia possui cerca de 26 hectares

de terras demarcadas e homologadas pelo

Decreto nº. 94223 de 14/4/1987, publicado no

Diário Oficial da União em 15/4/1987. A área

encontra-se em processo de revisão, que

será ampliada para aproximadamente 16 mil

hectares. A população varia entre 800 e 1200 indígenas, dos quais muitos são moradores permanentes e outros passam ali períodos breves.

A casa de reza central Opy Guaxu con-

grega todas as famílias da comunidade. Ali

são realizadas reuniões, rezas, rituais de cura

rai (atribuição dos nomes às crianças), o Ka’a o Mbojape Nhemongaraii (consagração do milho guarani). Além dessa Opy principal,

cada extensão familiar elementar possui sua

própria Opy, onde um líder espiritual, chamado

xeramoĩ transmite ensinamentos, media re-

flexões, toma decisões e orienta as famílias de forma geral.

Um depoimento da anciã guarani Ilsa

Varyju, no qual ela descreve o momento em que chegou ao local onde se constituiria a

aldeia Tenonde Porã, oferece elementos que

permitem compreender alguns pontos importantes da história da comunidade:

[...] Quando eu nasci, meus pais e meus irmãos moravam na

aldeia de Itariri, perto de a Peruíbe. Não sei direito a data, mas

vim pra cá depois que minha mãe morreu. Nesse momento eu era

pequenininha, meu pai ficou desorientado e não sabia o que fazer. Procurou trabalho aqui e achou. Ele encontrou serviço com uma

família de japoneses. Quando me dei por gente, de acordo com a minha memória, nossa moradia era próxima ao clube campestre,

e na época lá só tinha mato, mas também tinha lavoura de tomate,

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mandioquinha e cenoura. Depois, pelo que me lembro, já estávamos aqui onde hoje é a aldeia Tenonde Porã. Moramos aqui bastante tempo, até eu me formar mocinha. Daí meu pai me pegou e me

levou para a aldeia do Rio Branco. Ele continuou trabalhando aqui bastante tempo, na lavoura do japonês. Na época ainda não havia Guarani aqui na área, só uma tia falecida que morava próximo à

aldeia do Krucutu, bem perto da represa Billings. Depois que eu fui embora daqui, certo dia o japonês foi para Santo Amaro e viu os

índios Guarani Mbya embaixo da ponte do Socorro. Ele os trouxe

para cá. Aos poucos foi aumentando, vindo mais gente do Paraná. Esse japonês fez a doação desta terra para o povo Guarani. O povo Guarani

Há pelo menos 5 mil anos, segundo

vestígios arqueológicos, o povo Guarani

habita uma região ampla da América do Sul. Antes da chegada dos colonizadores euro-

peus, a grande família Tupi-Guarani ocupou

terras que seriam posteriormente os territórios

da Argentina, Brasil, Bolívia, Equador, Guiana,

Paraguai, Peru e Uruguai. Atualmente existem aldeamentos Guarani Mbya no Brasil, Argen-

tina, Paraguai e Uruguai. No Brasil, além dos Guarani Mbya, encontram-se os subgrupos

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Nhandeva e Kaiowá, também pertencentes à tradição e tronco linguístico Tupi-Guarani.

A grande mobilidade característica do

povo Guarani, sobretudo na busca incessante pela Yvy marãey, que alguns pesquisadores entendem como “terra sem mal”, dificulta a

precisão dos dados relativos à população do grupo no Brasil. Segundo informações da Fundação Nacional da Saúde (Funasa) e do Centro Indigenista Missionário (Cimi),

estima-se que a população Guarani seja de


aproximadamente 50 mil pessoas, das quais

suas regras e obrigações é de um peso insu-

e o restante, de maioria Mbya, habita terras

de superação dessa condição, uma espécie

80% vivem no estado de Mato Grosso do Sul, tradicionais localizadas nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro.

A antropóloga Hélène Clastres observou

que, para os povos Tupi-Guarani, sobretudo

aos Mbya, a vida em sociedade, com todas as

portável. A “terra sem mal” é a possibilidade

de recusa das atividades sociais. Nesse mo-

mento, os Guarani Mbya, despidos em vida de sua condição humana, se metamorfoseariam

em homens-deuses e se tornariam capazes de viver sem doenças e sem fome, eternamente jovens e felizes numa terra esplêndida. Para

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os Mbya a relação com a Yvy marãey é mais

águas e à proximidade com a periferia de São

nhandereko; essa é uma das razões funda-

sados de geração para geração pelos xamoi e

intensa na medida em que seguem o seu

Paulo, estimulados pelos ensinamentos pas-

mentais para resistirem por mais de meio

xejarĩ, jovens e crianças dão continuidade

dores, constituindo hoje uma das populações

zando ao mesmo tempo ferramentas e conhe-

milênio às pressões e ameaças dos conquistaindígenas mais numerosas do Brasil.

A terra Guarani é compreendida como

uma unidade, a Yvy Rupa, de forma que os territórios determinados pelas fronteiras criadas

pelos Estados nacionais não condizem com o

entendimento e a relação que essa nação indígena há séculos estabelecem com seu espaço de ocupação e circulação.

Resistência

São múltiplas, e muito inventivas, as

maneiras pelas quais a comunidade Tenonde Porã segue conduzindo seu modo de viver. Resistindo a pressões vindas de todas as

partes, ela se apoia na manutenção da língua e da espiritualidade para seguir em frente.

Apesar das inúmeras dificuldades enfrentadas cotidianamente devido à alta densidade popu-

lacional, à limitação do espaço, à poluição das

e ressignificam as práticas tradicionais, utili-

cimentos de outras culturas. A introdução ou o uso de alguns desses elementos reforça cada vez mais a autonomia da comunidade,

demonstrando suas escolhas, afirmando sua identidade étnica e dando suporte à luta por

seus direitos de forma equilibrada e criativa.

A mobilidade Guarani é uma necessi-

dade cultural e extrapola os limites estabelecidos para suas aldeias. Assim, os índios não se fecham nas áreas homologadas. Nas regiões não desmatadas, existem trilhas

ancestrais que dão acesso a outras aldeias e a locais de coleta, caça, pesca e extração de matéria-prima para o artesanato. O caminho

que liga as aldeias da Barragem e do Krucutu à do Rio Branco é o mais utilizado. Este per-

curso é feito a pé pelos Guarani, possibilitando visitas a parentes e contato com rios e florestas ainda preservadas.

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Da mesma forma, vivendo a

aproximadamente 13 quilômetros

do centro comercial de Parelheiros, os indígenas saem às compras e

circulam nas zonas urbanas, ainda que de forma tímida e discreta.

O futebol é um dos elementos

que integra alguns moradores

indígenas aos não indígenas do

entorno. Todos os fins de semana ocorrem partidas, às vezes

campeonatos de várzea, que contam com a presença de torcedores, a

maioria feminina. Sentadas à beira do campo, as mulheres Guarani fazem

artesanato em quanto acompanham o jogo e vibram com seus parentes.

Na aldeia, nhande kuery, ou

“nossas crianças”, crescem livres.

Entre casas, pequenas roças, represa, campo de futebol, escola, posto de

saúde, casa de reza, mata e cidade,

seguem em frente, dando consistência e sentido ao nome de sua tekoa –

Tenonde Porá, a aliança para o futuro.

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Plantas e seus usos

Falar sobre plantas entre os Guarani Mbya exige cuidado e in-

timidade com os especialistas no assunto. As plantas têm poderes, são habitadas por espíritos, possuem os seus donos, os “guardiões”, aos

quais se deve demonstrar respeito e pedir licença. As plantas podem ser

utilizadas para fins medicinais, para alimentação, fabricação de peças de artesanato e artefatos.

Maria Inês Ladeira, antropóloga que convive há anos entre os

Mbya, sugere: “[...] Partindo da premissa de que todos os seres pos-

suem sentimentos e experimentam sensações, podemos observar como os estados de crise, os estados mentais e os males do corpo afligem e perturbam as pessoas de modo particular nas diferentes sociedades.

As sociedades que vivem uma integração maior com as florestas, que

não vivem a dicotomia entre humanidade e não humanidade, entendem que todos os seres que estão na Terra possuem também a sua alma,

sentimentos, sensações, dores... E isso é importante considerar porque

qualquer prática de cura ou mesmo de cuidados preventivos tem implicações muito específicas em cada sociedade indígena. Como também são particulares as relações de afetos e afinidades com os ‘seres da natureza’ sejam eles animais ou plantas.”

Entre os moradores da aldeia, Casemiro é um dos conhecedores

das plantas. A seguir, seu depoimento sobre o tema:

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Meu nome em português é Casemiro

da Silva e em Guarani é Karaí Jeguaka. Vou falar um pouco sobre a medicina

tradicional. Já fiz muitos remédios para

crianças e adultos, que melhoraram e se curaram por meio deles. Existem várias

espécies de remédios e plantas medicinais utilizados na cultura Mbya, mas por aqui elas são muito escassas. Desde que me

mudei para cá não vejo ou não reconheço várias espécies. Lá no Paraná é mais fácil sair à mata e encontrar as plantas medicinais utilizadas pelo Guarani. Passo muito

tempo procurando por elas aqui na região, e encontro apenas algumas.

Conheço plantas boas para enxaque-

ca, tosses, resfriados, dores de garganta, problemas do coração, dores no corpo e

dores em geral, febre, vermes etc. Há também remédios para as mães após o parto, como parte da dieta tradicional e das restrições alimentares que devem ser adotadas por homens e mulheres de acordo

com os costumes Guarani após o nasci-

mento de seus filhos. Existem também pre-

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parados de ervas que são utilizados para

maneira especial: quando utilizamos só

Depois de colher todas elas, colocamos

dar banho nos bebês recém-nascidos.

Ervas, cipós e entrecascas de ár-

vores podem ser utilizados para fazer

remédios. A forma de preparo e a maneira de utilização de cada uma delas varia de

acordo com a doença. Por exemplo, algu-

mas folhas e ervas devem ser misturadas ao chimarrão e ingeridas juntamente com a bebida; emplastros são colocados na região do corpo que esteja inchada ou

afetada pela doença; com entrecascas de árvores fazemos chás, xaropes e assim por diante.

Nós que conhecemos as plantas

muitas vezes preferimos não divulgar suas propriedades para evitar o mau uso que

poderia ser feito tanto pelo próprio Guarani quanto pelo juruá.

a flor, por exemplo, cortamos só a flor.

numa bacia ou recipiente e adicionamos água. Certas plantas são conservadas

desta maneira para que dê certo o preparo do remédio.

Aprendi muito com meus pais,

observando-os colher folhas e fazer os

remédios. Conforme iam preparando os remédios, colhendo as plantas etc, eles me falavam como se faziam e para que serviam os produtos.

Eu faço muitas vezes, quando as

pessoas solicitam, caso eu conheça a

planta adequada. A maioria dos pedidos é feita por adultos, mas desconfio que

muitos pedem para dar aos seus filhos.

É possível identificar estas plantas de

diversas formas: através da raiz, do caule

ou da folha. Há também algumas espécies

cuja utilidade pode ser descoberta olhando de longe. Eu consigo fazer isso com certas espécies. Algumas são cortadas de

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A agricultura Guarani

Apesar do reduzido espaço da aldeia,

algumas pessoas continuam mantendo roças

anuais de subsistência, preservando as formas de cultivo tradicionais do povo Guarani Mbya. Os melhores meses para o cultivo de cada

espécie são indicados pelo xeramoĩ e todos os mais velhos, de acordo com suas previsões,

considerando as possibilidades de chuva e outros fatores presentes na cosmologia Guarani.

Dona Idalina, antiga moradora da

Tenondé Porã, costuma destinar seu quintal, à beira da represa Billings, para o plantio de

milho, mandioca, feijão, batata, cana, cabaça e melancia, entre outras plantas. O local

conta ainda com espécies perenes: plantas

ornamentais e árvores frutíferas. Anualmente, na ocasião do ara pyau, ou ano novo para os Guarani, entre agosto e março, dona Idalina

dedica-se às pequenas lavouras. Por preservar as práticas agrícolas tradicionais, esse espaço foi esco-lhido pela equipe do projeto para a realização de um mutirão.

A experiência no quintal de dona Idalina

envolveu a participação de técnicos, monitores locais e moradores da comunidade, em

especial as crianças. A proposta era entrar em contato com a agricultura tradicional Mbya a partir de uma troca de saberes, fazendo-se

uso de tecnologias agrícolas de baixo impacto ambiental. De forma alegre e receptiva, dona

Idalina, orgulhosa de seu quintal e dos anos de cultivo e cuidado que lhe dedicou, demonstrou aos participantes a importância do tempo para o crescimento das espécies e do respeito ao

ciclo da natureza, conforme as vontades dos deuses Nhanderu, Tupã e Kuaray .

As roças são destinadas não só ao

plantio de produtos para consumo, mas

também à produção de sementes. Dessa maneira, o povo Guarani Mbya garante a

manutenção e a originalidade de seus cultivos tradicionais, fortalecendo-os também com a

troca de sementes entre os parentes distantes, moradores de outras aldeias.

As muitas variedades presentes em

cada roça constituem um dos muitos aspectos

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que dão cor e sabor à cultura Mbya. Por exemplo, entre os milhos podem ser encontrados o avaxi etei (milho-verdadeiro), avaxi para (milho-listrado), avaxi

parai (milho-mesclado) e avaxi huũ (milho-escuro); e entre as batatas, jety ju

(batata-doce-amarela), jety xiĩ (batata-doce-do-branco), jety karaũ (batata-roxa)

e jety mbyku ra’yĩ (batata-miudinha).

Com a palavra dona Idalina:

Eu fico feliz com este trabalho. Primeiramente vejo que este

ano as coisas estão indo bem. Estou aqui hoje, neste dia, e de al-

guma forma Nhanderu está me ajudando com algumas coisas. Vejo que as coisas que estamos fazendo estão sendo bem realizadas,

dando bons frutos para o mundo. Tudo a partir do meu quintal. Eu

gosto muito das crianças, e quando elas estão contentes fazem com que eu fique muito feliz. Quando elas chegam aqui em casa quero

sempre ter alguma coisa para oferecer. Pode ser mandioca, batata

doce ou milho. Eu não penso em comercializar aquilo que eu plan-

tei, quero simplesmente oferecer às crianças para que elas possam se alimentar. Poder oferecer alimento para os visitantes para mim

é muito importante. É muito gratificante saber que não deixei faltar nada para os visitantes, mesmo sendo uma simples batata-doce.

Agora mesmo tem uma mulher grávida que sempre vem pedir cana

takuare’e mirĩ’ĩ [cana-guarani] e eu fico feliz de poder oferecer a ela.

O que também me deixa feliz é que eu estou recebendo algumas

crianças, por meio desse projeto, que estão trabalhando e ajudando a limpar o terreno. Ver que vamos conseguir bons frutos dessas plantações vai me deixar mais feliz.

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A importância da medicina tradicional

Cacique da aldeia Tenonde Porã desde

2003, Timóteo Vera Popygua é articulador e

importante porta-voz dos povos indígenas do Sudeste e outras regiões do Brasil que lutam

pela visibilidade e demarcação das terras indí-

genas de ocupação ancestral. Timóteo chegou na aldeia Tenonde Porã por volta de 1983.

Ainda jovem acompanhou outras lideranças

Guarani Mbya em viagens por diversas aldeias

do estado de São Paulo, sempre procurando entender a realidade, as dificuldades e as

necessidades dos povos indígenas. Generoso

e de forte potencial guerreiro, assumiu naturalmente a posição de liderança. Com extrema sabedoria, Timóteo discorre sobre diversos temas que permeiam aspectos da cultura

Guarani Mbya. Aqui ele fala sobre o uso das plantas na medicina tradicional:

Um dos motivos principais do distanciamento de nosso povo

em relação ao uso de plantas na medicina tradicional é que hoje,

com as facilidades dos remédios do homem branco, algumas famílias levam as crianças diretamente para o posto de saúde. A busca

frequente de nhande kuery (nosso povo) por médicos juruá e enfermeiros vem reduzindo a procura de plantas medicinais e tratamen-

tos tradicionais. É importante mencionar que conhecemos e temos remédios específicos para várias doenças.

No entanto, vejo muito hoje casos de doenças que chegaram

às comunidades através do homem branco. Para essas situações não temos remédios, pois são doenças desconhecidas por nós;

somente eles, os juruá, têm o conhecimento de qual remédio poderá

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ser usado para tratá-las. Então, por mais

que tenhamos o conhecimento das nossas plantas, muitas vezes não sabemos como

curar doenças de juruá [...] Apesar de que,

muitas vezes, os nossos métodos de cura são muito eficazes.

Todas as doenças podem ser

curadas. Muitas vezes achamos que não, mas todas têm cura. É só saber qual é

o tipo da doença. Algumas são físicas e

aparecem no corpo da gente, como aquelas adquiridas a partir da ingestão de comidas industrializadas que estão vencidas.

Esses alimentos têm prazo de validade

e ingredientes que desconhecemos, ou

produtos colocados para fazer com que se conservem por mais tempo.

As vacinas e remédios feitos pelos

juruá às vezes produzem efeito contrário

nas crianças Guarani. Contra algumas

doenças é possível imunizá-las, como os

juruá falam, mas contra outras não. Por

isso é muito importante guardarmos e

termos os nossos próprios conhecimentos sobre os tratamentos com plantas

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medicinais da nossa cultura. Sabemos também que existem dois tipos de doença, a espiritual e a física, uma a ser diagnosticada

pelo xeramoĩ e a outra pelo médico. Nos dias de hoje não sabemos

ao certo a quem procurar. Alguns pacientes procuram o médico

primeiro, mas o mais indicado seria ir até o pajé mesmo. Muitas vezes acabamos passando por essa situação confusa. O xeramoĩ também

consegue fazer um diagnóstico preciso da doença sem utilizar muitos equipamentos e ferramentas da ciência do juruá. Temos que utilizar

esses dois métodos e conhecimentos.

Muitas das plantas do conhecimento Guarani não vêm mais

sendo utilizadas. É uma pena, pois elas servem para muitas coisas. Por exemplo, às vezes as crianças demoram a andar, e existem

plantas específicas que servem para ajudar nesse processo. A maior parte das vezes, a dificuldade que temos para fazer tratamentos se deve à falta de matéria-prima, pois as matas e rios próximas das nossas tekoas vêm sendo reduzidos. Como algumas plantas só

são encontradas em lugares assim, a ausência de mata dificulta o trabalho.

Em relação à presença de equipe médica juruá na aldeia: acho

que com essa proximidade dos juruá nas terras indígenas, hoje,

infelizmente somos obrigados a aceitar essa condição e de alguma forma temos que acabar utilizando o método de tratamento não

tradicional, mas o ideal é fazermos o trabalho em conjunto. Mais

importante ainda é que eles entendam e respeitem nosso conheci-

mento e a nossa forma de tratamento tradicional. Só assim podemos

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fazer um trabalho em conjunto que possa gerar bons frutos. Por

exemplo: quando for necessário consultar o pajé primeiro, o médico juruá tem que entender e dar permissão para a pessoa fazer o

tratamento com o pajé. A gente vê o crescimento atual das popu-

lações indígenas, vê aumentar o número de crianças. Certamente

as doenças também estão aumentando. Mas o próprio crescimento

populacional que vemos nas comunidades já é fruto desse trabalho das equipes de saúde que estão presentes nas aldeias. Os juruá

conseguem hoje diagnosticar doenças antes de evoluírem, para as-

sim curá-las evitando consequências mais graves. Esta é a parte do trabalho deles que eu mais gosto, porque, muitas vezes, nós Gua-

rani, quando Nhanderu nos mandou aqui para terra, não foi para ter

um corpo frágil, é para sermos sempre fortes e saudáveis. Por isso, apesar das dificuldades e algumas doenças que o homem branco

traz, nós vamos continuar fortes. Acho que por isso é importante ter essa presença do homem branco fazendo tratamento médico para a

nossa comunidade, porque conhecem melhor e sabem fazer melhor tratamento do que nós.

Hoje, eu fico muito contente com essa presença, mas também

quero dizer que para nós o xeramoĩ é um médico, é um especialista no assunto. Mas também é importante o conhecimento juruá para

trabalharmos em conjunto. Porém em alguns casos não acho ne-

cessária essa intervenção, como, por exemplo, no nascimento das crianças. O parto não é mais feito tradicionalmente, não acho correto ter que levar a mãe e o bebê para a cidade.

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O terreiro Asé Ylê do Hozooane

Asé Ylê do Hozoouane pertence a uma linhagem tradi-

O

cional de terreiros do sul da Bahia, região de Itabuna. É um legítimo candomblé de Angola. Nos ritos, fala-se o

idioma kimbundu, cultuam-se divindades como nkisses

e caboclos e tocam-se tambores com as mãos, entre outros traços

que identificam o povo banto, do sudoeste da África subsaariana, em território brasileiro. O Ylê possui também herança Savalu, uma casa matriz do povo jeje, oriundo da região do Daomé, atual Benim, no

noroeste da África. Embora os fundamentos dos ritos sejam tratados com rigor pelos iniciados, essa diversidade de referências caracteriza o Ylê como um espaço heterodoxo, que não se alinha às ideias de pureza e sectarização comuns à cultura afro-brasileira.

O terreiro instalou-se em Parelheiros em 1980. Na época,

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a atual rua Conde de Fontalva, que lhe dá acesso, era apenas uma picada aberta

na mata nativa, segundo seu fundador, o sacerdote Tata Katulemburange, o Katu.

Havia ali uma antiga fazenda que estava sen-

do loteada; Katu conseguiu um financiamento para comprar um dos terrenos, a fim de

construir nele uma roça de candomblé; até então, seu terreiro ficava em um imóvel alugado, no bairro do Jabaquara.

Naquele pedaço de chão não havia água

encanada nem energia elétrica. Katu chegou a ser alvo de comentários jocosos por parte de seus colegas de sacerdócio por estabelecer uma casa de culto num lugar tão distante e

desprovido de estrutura física adequada. Mas aquele era o lugar escolhido por Obaluaiê, o

entrava no coletivo, os sapatos que calçava já

sua missão.

No entanto, apesar de todas as dificuldades,

orixá do sacerdote, para dar continuidade à

Além de sacerdote, Katu era então

auxiliar de enfermagem em um hospital da

Zona Sul de São Paulo. Para ir ao trabalho,

caminhava alguns quilômetros pela trilha que

o levava ao ponto de ônibus, levando sempre um par extra de sapatos na sacola: quando

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estavam enlameados.

o Ylê tinha uma grande vantagem em rela-

ção aos terreiros mais próximos do perímetro

urbano: havia ali toda sorte de plantas, além de florestas e de acesso fácil a rios e cachoeiras.

Ou seja, tudo o que era preciso para cultuar os

nkisses estava à mão.


Ação comunitária

cujos índices de violência estão entre os mais

atuação para além do terreiro, institucionalizan-

como um território de livre expressão, em que

Ao longo do tempo, o Ylê expandiu sua

do-se como Associação Beneficente e Cultural Asé Ylê do Hozoouane, ponto de encontro e de cultura da região de Parelheiros, onde as opções são restritas. O Ylê é hoje uma refe-

rência não apenas para a prática afrorreligiosa, mas também exerce um papel central como

polo de convivência comunitária. Esse espaço de trocas de saberes é ainda um refúgio para jovens afrodescendentes e em situação de

vulnerabilidade social, algo bastante relevante em uma região pouco assistida pelo Estado,

altos da capital paulista. Configura-se, assim, questões como saúde, sexualidade, gênero,

raça e identidade religiosa podem ser discutidas com leveza e profundidade.

É importante, ainda, ressaltar que nos

últimos anos a associação tem sido bastante

receptiva a projetos de caráter socioambiental, por experimentar essa abertura à comunidade do entorno e também por se entender como um ator importante para o desenvolvimento

local. Dessa forma, o Ylê vem buscando de-

senvolver ações ligadas à juventude, ao meio

ambiente, à geração de renda e à sustentabilidade.

A disponibilidade não só para a comunidade local como

para os visitantes torna o terreiro acolhedor para a ação e para a contemplação –

trata-se de um raro lugar em que se pode vislumbrar, em

plena São Paulo, a exuberância da serra do Mar.

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Crescimento urbano, áreas (des)protegidas e espaços sagrados

Para os adeptos de candomblé, as

folhas dos vegetais, ou nsabas, utilizadas

como base para a prática dos ritos e cultos, são sagradas. Existe um provérbio Yoruba

que ilustra bem esse valor: “ko si ewé, kosi orisa”, ou seja, “sem folha não há orixá”.

As águas não são menos importantes,

já que tanto as várias práticas litúrgicas

(ritos) como seus significados (mitos) se

relacionam com a água nos diversos contextos em que aparece: águas límpidas, águas correntes, beiras de rio, cachoeiras, brejos, pântanos, mangues etc.

O crescimento demográfico desorde-

nado e as ocupações muitas vezes irregu-

lares da região de Parelheiros impactaram

fortemente as atividades do Ylê e de outros

terreiros, em especial aquelas ligadas ao uso dos recursos naturais das proximidades.

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Dois espaços utilizados para realizar as

práticas litúrgicas sofreram transformações

profundas: a região do Tropical, no entorno

de uma represa, tornou-se um lugar violento;

o ribeirão Vermelho passou a receber dejetos após a construção de um Centro de Detenção Provisória, tornando-se inapropriado para uso religioso.

Atualmente, para exercer certos ritos

em que se faz uso de água corrente limpa é preciso se locomover até o rio Cipó, no

município vizinho de Embu-Guaçu. Ainda

assim, lá se observam placas de interdição

aos trabalhos religiosos. Por fim, uma antiga área florestal vizinha ao Ylê que servia

para coleta de folhas foi substituída por um

conjunto de residências, igrejas evangélicas e comércios, que compõem o atual Jardim Santa Fé.


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APA e o acesso à áreas naturais

Outra situação, esta de ordem legal, vem

desafiando o acesso do povo do terreiro aos recursos das matas. A região e o entorno de onde se encontra o Ylê se tornaram a partir

de 2006 Áreas de Proteção Ambiental, a APA Capivari-Monos e a APA Bororé-Colônia, fato que modificou o acesso às áreas naturais: o

ordenamento de uso fica vinculado ao Plano

de Manejo. O Plano de Manejo da APA Capivari-Monos (o da Bororé-Colônia ainda não

foi realizado) atenta para a necessidade de se observar certos cuidados em relação ao uso das áreas naturais, que muitas vezes fogem aos cuidados das casas de santo:

Uso inadequado por grupos religiosos: apresenta um potencial de impacto considerável, diz

respeito à atuação de grupos religiosos, relacionados à supressão de vegetação, ao sacrifício de animais, aos materiais deixados nas matas, rios e cachoeiras em razão das oferendas, e

ao risco de incêndios causado pelas velas. Embora sejam manifestações culturais de cunho

espiritual e como tal devam ser respeitadas, demandam um trabalho especifico de educação ambiental visando a minimização de seus impactos.

BELLENZANI, M.L. (coord.), Caderno do Plano de Manejo da Área de Proteção Ambiental (APA)

Municipal Capivari-Monos,. São Paulo, Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente,

2011, p.57.

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Para que o debate se aprofunde, é fun-

damental considerar que o uso das áreas de

florestas e dos recursos hídricos para a prática dos ritos e cultos do candomblé se consolidou na região muito antes da criação das APAs.

Assim se estabelecem as relações socioculturais que compõem o chamado território expandido, não estando restrito apenas à casa física de

culto. Trata-se de um direito assegurado por lei.

Daí a importância da participação em

Soma-se a isso a questão do direito de uso de

espaços de gestão compartilhada, como os

primem significados nas suas dinâmicas so-

estando presente nesses fóruns, para debater

áreas em que comunidades tradicionais im-

ciais. Ou seja, o Ylê constitui-se como Ylê por

interagir, ocupar e se valer dos recursos e dos espaços de seu entorno – incluindo as APA.

Conselhos Gestores das APAs. Somente

questões como a liberdade de uso das áreas

naturais para rituais, o povo de terreiro poderá fazer valer os seus direitos.

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Territórios clandestinos

Outro ponto importante a ser lem-

brado na defesa da liberdade de uso das

áreas naturais para rituais é que, quando se fala em espaço sagrado para o povo

de santo na região de Parelheiros, se está referindo a um território limítrofe, onde o

Estado nem sempre se faz presente, independentemente da presença das APAs.

Os locais em que se coletam fol-

has sagradas e se consagram oferendas

são também palco de diversas atividades clandestinas, tais como prostituição, uso

de drogas, desovas de carros e de cadá-

veres e outros crimes. O candomblé acaba convivendo com a clandestinidade, o que não é uma novidade – após ter sido por muito tempo alvo de repressão policial,

ele fez da invisibilidade uma estratégia de

sobrevivência. À margem dos instrumentos

oficiais de controle ambiental e empurrados para a clandestinidade, os afrorreligiosos podem também resvalar na agressão ao ambiente.

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Com o intuito de envolver as casas

de Parelheiros na discussão socioambiental, o Instituto Refloresta ministrou uma

série de oficinas de educação ambiental

nos terreiros da região. Um deles é o I´Nzo Atim Pazangolá, situado no Jardim Santa

Fé, ao lado do Asé Ylê do Hozoouane. As

duas casas mantêm um estreito vínculo de reciprocidade, com a circulação de infor-

mações e pessoas; ambas estão buscando parcerias.

Durante as oficinas, foi levantada

uma série de depoimentos que relataram

perseguições aos ritos do povo de santo,

tanto no espaço sagrado da casa de santo como nos espaços sagrados do seu território expandido, sobreposto à Área de Proteção Ambiental, onde se localizam matas, rios, cemitérios e cachoeiras.

Naiambá, nome de iniciação de

Cristina Gomes da Silva, líder do I’Nzo Atim Pazangolá, contou que o povo de

santo é perseguido com se fossem bandidos ou marginais:


Muitas vezes vamos à mata fazer nossas oferendas e

somos coagidos. O povo de Parelheiros é muito marginalizado, talvez se fôssemos de uma religião euro-

peia fosse diferente. Chegamos até a ser ameaçados

com arma de fogo. Num trabalho realizado para Oxossi tínhamos de oferecer frutas num pedaço de mata ali

próximo. Lá tinha uma roda de pessoas que quando

nos viram com nossas vestimentas, nos interpelaram dizendo que não poderíamos fazer isso lá. Sacaram

um revólver dizendo que macumbeiro tinha mesmo é que morrer [...] Quer dizer que usar droga pode, mas

cultuar nossa divindades, não. Outra vez tínhamos de

fazer uma oferenda para Obaluaiê à noite, no cemitério.

A polícia nos abordou e, mesmo vendo nossa indumentária religiosa, nos fez abrir as sacolas e colocar tudo

no chão; revistaram as oferendas passando o revólver

nos objetos. Disseram que devíamos ter avisado primeiramente a polícia e que não poderíamos fazer as oferendas [...] foi uma situação humilhante.

A nossa casa de santo já foi apedrejada seis vezes.

Durante os “toques” que fazemos esporadicamente à noite, vive aparecendo a polícia por causa de denún-

cias. A prefeitura já veio lacrar minha porta por causa

da “lei do Psiu”. Pensei em até desistir do candomblé.

Outra vez, no bairro da Barragem, fomos ao rio Monos

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tirar um ebó, que consistia apenas em passar canjica e acaçá [espécie de bolinho de farinha de milho branco

embrulhado em folha de bananeira] e tomar um banho no rio [...] Um morador saiu armado e nos impediu, embora o material fosse totalmente biodegradável.

Questionada sobre os resíduos impactantes deixados pelos afrorreligiosos nos

territórios sagrados sobrepostos às Áreas de Proteção Ambiental, Naiambá tem uma opinião formada:

Com relação à degradação ambiental não somos víti-

mas. Estamos dando o direito de sermos perseguidos. Se eu quero ser respeitada tenho de respeitar o próxi-

mo. O que existe é ignorância de algumas pessoas da minha própria religião, e desinteresse dos adeptos de candomblé em relação ao impacto dos ebós e ao respeito ao meio ambiente.

Naiambá demonstra muito interesse na formação humana dos seus filhos de

santo. Durante as oficinas de educação ambiental para povos de terreiro pro-

vou ter grande capacidade mobilizadora na comunidade. O terreiro de Naiambá é um dos parceiros do Asé Ylê do Hozoouane no projeto Cajá Mungosu, que

visa pensar alternativas sustentáveis para a confecção de materiais que serão

utilizados em atos religiosos realizados nas áreas naturais, para que não gerem impacto como ocorre muitas vezes com as garrafas de vidro, os alguidares de

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barro, as velas e a parafina.

entorno. Outros tantos terreiros em formação

possibilidades para a superação da dicotomia

Estamos diante de um processo de

Os esforços das duas casas apontam

entre a proteção ambiental e a manutenção da cultura afro-brasileira em Parelheiros. Trata-se de uma necessidade urgente. Existem cerca de 150 casas de matriz

afrorreligiosa na região, situadas dentro das

APAs Capivari-Monos e Bororé-Colônia ou no

poderão se estabelecer nas imediações.

formação socioambiental no qual uma co-

munidade, aos poucos, começa a entender

e vivenciar o que é pertencer a um território protegido ambientalmente – um caminho

de amadurecimento e transformação, uma conquista de toda a coletividade.

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Saberes afrodiaspóricos

O segredo é uma estratégia de sobrevivência para os povos que

foram sequestrados em solo africano e trazidos para as Américas. Os co-

nhecimentos sobre o emprego das plantas no pensamento mágico dos po-

vos tradicionais são velados. Divulgá-los envolve imensa responsabilidade: deve-se ter cuidado para que os fundamentos não sejam violados. Assim é no candomblé. O que pode e se deseja que seja dito, será. O que não

pode ser revelado se manterá no campo do segredo. Quando perguntado

sobre a importância das plantas no candomblé, Katulemburange responde: Essa pergunta é fácil de responder, porque qualquer

um, a maioria sabe [...] A folha é a base de tudo. Sem

nsaba não há nkisse, ou seja, sem folha não há divin-

dade. Posso falar em português ou em kimbundu.

Deve-se notar que o emprego das plantas varia de casa a casa,

dependendo da nação de candomblé: “Entre as nações tem diferentes

usos de plantas [...] tem plantas que o ketu usa e eu não, e vice-versa”.

No entanto, ele reafirma a importância da preservação dos usos tradicionais, pois “se as casas são da mesma nação, o uso tem que ser igual, a reza tem que ser igual [...] É tradição, e tradição não se muda”.

A transmissão do conhecimento tradicional por via oral é uma

prática comum no candomblé. O acesso a esse conhecimento se dá de

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forma gradual e iniciática, geralmente do mais velho para o mais novo,

e vem carregado de uma forte herança das civilizações africanas, geralmente permeado por mitos e provérbios.

A maior parte do conhecimento de Katu sobre as nsabas deve-se

à sua falecida mãe de santo Darran Suru: “Aprendi ao longo do tempo, devo isso a quem me iniciou, minha mãe de santo”.

Além disso, Katu conta que muito se aprende na própria convivência

dentro da comunidade, com os irmãos de santo. Ele conta que havia uma prática de “troca de cadernos”:

Havia também um intercâmbio entre as pessoas com

a mesma idade de santo, com, por exemplo, a troca de

cadernos de fundamento [...] Quando a gente é muzenza

(iniciante) isso é comum. E isso se faz até hoje!

A intuição foi citada como também um elemento importante no emprego das plantas:

Eu uso muito a intuição [...] Isso é visão, sexto sentido, vidência... Por exemplo, a hora que você chega, o pri-

meiro olhar que eu dou em você é o que conta [...] Eu sei

como está seu estado de espírito, se está com o coração legal ou não... Isso na primeira olhada! [...] Eu, quando criança, meu avô materno ficou doente e tinha muitas

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dores, e eu queria ajudá-lo de qualquer jeito. Aí me dava a louca e eu ia no mato e pegava qualquer folhinha que eu achasse, colocava no lugar da dor dele e passava....

Assim, segundo o apresentado no depoi-

sistematizado dentro do culto; a segunda seria

as plantas advém de três vertentes: a primeira

iniciados do mesmo nível hierárquico. Por fim,

mento do sacerdote, o conhecimento sobre

seria a passagem do mais velho para o mais

novo – na qual o que conta é a importância da iniciação, da transmissão e do conhecimento

a troca horizontalizada de informações entre

há uma recorrência frequente da intuição – que se manifesta como uma predisposição pessoal ao sacerdócio, um dom inerente.

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Encontro de mundos

A

o longo de um ano, nos diversos encontros entre

as duas comunidades envolvidas no projeto, técnicos e antropólogos experimentaram novas percepções a respeito da singularidade do território trabalhado – o

extremo sul da cidade de São Paulo – e da riqueza cultural e natural que persiste ali.

Ainda que compartilhem uma mesma região, comunidades

diferentes constroem visões estereotipadas umas sobre as outras, imagens que só podem ser rompidas por meio do contato e do

diálogo direto. Assim, em Parelheiros, ainda é comum a ideia de que as sociedades indígenas mantêm-se nos dias de hoje tal

como eram à época dos primeiros encontros com os europeus; da mesma forma, é recorrente o pensamento de que as religiões de

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matrizes africanas estão associadas ao culto

a iguaria. O xipá feito no terreiro pelos jovens

dissolveu-se a partir da convivência, das

frequentadores do local.

de espíritos diabólicos. Parte dessas visões

conversas e da troca de experiências entre os grupos.

Os primeiros encontros promovidos

pelo projeto foram contidos e povoados de silêncios, mas também surpreendentes.

Quando as pessoas do terreiro foram à aldeia participar da oficina de cestarias guarani, por exemplo, ficaram fascinadas ao descobrir que a confecção do ajaka exigia extrema

habilidade na manipulação dos materiais e uma conexão ancestral com os elementos

ligados a Nhanderu. De forma análoga, o som do couro percutindo no terreiro, com toques

sagrados dos orixás, impressionou os Guarani, que tatearam os tambores, experimentando seus sons.

Os alimentos preparados durante

as confraternizações entre os dois grupos

foram experimentados e muito apreciados. O abará e o acarajé, oferecidos nos Encontros Afroindígenas, causaram frenesi entre os

Guarani, que até então não haviam degustado

indígenas gerou muita curiosidade entre os

Todos buscaram nas novidades

correspondências com suas próprias

referências cotidianas. Embora alimentos,

objetos e línguas tradicionais sejam diferentes nas duas comunidades, ambas atribuem a esses elementos significados profundos, que as conectam espiritualmente a algo

maior. Transmitida de geração para geração, histórias sobre esses elementos contribuem para a construção da identidade coletiva e

individual. A mitologia africana e a indígena se sustentam na comunicação e no respeito com

um plano sagrado, que rege o comportamento cotidiano e determina as visões de mundo

das comunidades. Essa dimensão sagrada

da experiência cotidiana foi explicitada pela presença dos mais velhos e das lideranças das comunidades, que nos encontros se

empenhavam em mantê-la no centro das discussões.

A equipe envolvida no projeto, por sua

vez, passou por um processo de transformação

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ao confrontar seus saberes com uma

identificassem pontos em comum entre ambas.

Logo ao chegar aos locais do trabalho, o

continente, assim como os povos africanos

vivência prática intensa e questionadora. grupo colocava em xeque o ritmo da vida da cidade, procurando adaptá-lo à rotina

das comunidades trabalhadas, pautada por

necessidades, demandas e expectativas de outra ordem.

Ao mesmo tempo, tornou-se nítido

Os Guarani Mbya, antigos moradores deste expropriados de sua terra-mãe para aqui

serem escravizados. Ainda assim, os dois

grupos conseguiram manter práticas culturais

que até hoje conferem sentido à sua existência comunitária.

Acreditamos que este projeto, ao

que, embora diferentes, os mundos que se

reconhecer, valorizar e fortalecer diferentes

próximos em termos espaciais, pois estão

inscreve-se na trajetória de resistência que

aproximaram vivem surpreendentemente

circunscritos a um mesmo município. Além disso, todos trabalham e circulam por toda a cidade, relacionam-se

nas redes sociais, sentem alegria, raiva, tristeza e amor, desejam

um futuro digno e são impelidos

por anseios pessoais e coletivos. Dessa forma, além de desvelar novos olhares e perspectivas

a respeito da cultura de matriz africana quanto na indígena,

o contato proporcionado pelo

projeto contribuiu para que se

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aspectos da cultura desses dois grupos, ambos construíram ao longo da história brasileira.


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EXPEDIENTE PROJETO SOCIOBIODIVERSIDADE EM COMUNIDADES TRADICIONAIS NAS APAS DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO Realização

Documentação e oficina de foto e vídeo

Coordenação

Oficina de produção

Antropólogos

Consultoria jurídica

Instituto Refloresta Christianne Godoy Aila Villela Bolzan Pedro Ferreira Biólogo

Paulo K. Fonseca Monitores

Claudio Fernandes Vera Popygua Claudio Pires Vera Mirim Domingos Dias Junior

Emili Amorim Maciel (Kojadê) Everton Txumbai

Juscelino Peralta Xunu

Monique Amorim Maciel Educadores ambientais Camila Mello

Pedro Arneiro

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Gianni Puzzo

Jodel Junior Godoy Marcele Guerra

Comissão de acompanhamento técnico Felipe Spina Julia Vilela


ENTRE A CIDADE E A FLORESTA A vida e os desafios de comunidades tradicionais do extremo sul da cidade de São Paulo

Organização

Fotos

Christianne Godoy

Claudio Pires Vera Mirim

Aila Villela Bolzan

Marcelo Delduque Pedro Ferreira

Coordenação editorial e edição Marcelo Delduque Textos

Aila Vilela Bolzan Camila Mello

Christianne Godoy Pedro Arneiro

Pedro Ferreira Preparação de texto

Aila Villela Bolzan Felipe Spina

Gianni Puzzo Guaíra Maia

Marcelo Delduque

Monique Amorim Maciel Syntia Alves

Alunos da Oficina de Foto e Vídeo Mapa

Mitinobu Miyake Imagem de satélite acervo SVMA

Laura Aguiar

Projeto gráfico, diagramação e tratamento de imagens Eduardo de Souza Impressão Leograf

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Agradecimentos

Amanda Amorim Maciel

Comunidade Guarani Mbya Tenonde Porã Fátima Kitassilê

Giselda Pires de Lima (Jera)

Janio Marques Rodrigues Ferreira Kazuo Nakano Milena Mukuá

Muato Monamaze

Tatá Katulemburange

Terreiro Asé Ylê do Hozoouane Tiago Obadinã

Timóteo Popygua

Realização

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Entre a cidade e a floresta : a vida e os desafios de comunidades tradicionais do extremo

sul da cidade de São Paulo / organização Aila Villela Bolzan...[et al.] .

-- São Paulo : Instituto Refloresta, 2013.

Outros organizadores: Christiane Godoy, Marcelo Delduque, Pedro Ferreira

ISBN 978-85-66091-02-1

1. Biodiversidade 2. Comunidade - Desenvolvimento 3. Desenvolvimento sustentável 4. Educação ambiental 5. Florestas - Conservação 6. Parelheiros - São Paulo, Região Metropolitana 7. Proteção ambiental 8. Recursos naturais - Conservação 9. Vida comunitária I. Bolzan, Aila Villela. II. Godoy, Christianne. III. Delduque, Marcelo. IV. Ferreira, Pedro. 13-00517 CDD-307

Índices para catálogo sistemático:

1. São Paulo : Cidade : Região de Parelheiros : Projeto sociobiodiversidade em comunidades :

Vida em comunidade : Sociologia 307

113


Instituto Refloresta

R. Dr. Augusto de Miranda, 1186 S達o Paulo - SP

Tel: 11 2574.1626

www.refloresta.org.br

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ISBN 978-85-66091-02- 1

9 788566

116

091021

Realização:


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