Ficção Interrompida

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Copyright © 2010 by Diógenes Moura Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, por escrito, da editora.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Moura, Diógenes Ficção interrompida: [uma caixa de curtas] / Diógenes Moura São Paulo: Ateliê Editorial, 2010 ISBN 978-85-7480-469-9 1. Contos brasileiros I. Título. 09-13383

CDD-869.93 Índices para catálogo sistemático: 1. Contos: Literatura brasileira 869.93

Direitos reservados à ateliê editorial Estrada da Aldeia de Carapicuíba, 897 06709-300 – Granja Viana – Cotia – SP Telefax: (11) 4612-9666 www.atelie.com.br / atelie@atelie.com.br Printed in Brazil 2010 Foi feito depósito legal

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um. dois. três. quatro. cinco. seis. sete. oito. nove. dez. onze. doze. treze. quatorze. quinze. dezesseis. dezessete. dezoito. dezenove. vinte. vinte e um. vinte e dois. vinte e três. vinte e quatro. vinte e cinco. vinte e seis. vinte e sete. vinte e oito. vinte e nove. trinta. trinta e um. trinta e dois. trinta e três. trinta e quatro. trinta e cinco. trinta e seis. trinta e sete. trinta e oito. trinta e nove. quarenta. fic•a o_miolo.indd 5

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um.

Elevada sobre o altar de um mármore quase encardido, a imagem da mãe com seus filhos nos braços os via dormindo, as cabeças reclinadas sobre os bancos da frente como pingentes perdidos naquelas longínquas listras de madeira. Cada um tinha uma coisa ali dentro: o sexo desnudo, o dinheiro rompido, a água da chuva invadindo a casa, o tiro na porta da agência. E aquele nada derretendo segundos, entre imagens e flores artificiais. Aquele nada mergulhando no sono e no silêncio elevado sobre o altar.

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dois.

M. rodopiou duas vezes no centro, rompeu a argola de ar, voou sobre a rede antes do chão. Depois subiu retinho diante dos olhos dos outros que o viam como um pássaro. Lá em cima aquele pontinho de carne e poesia balançava como um pêndulo, entre os seus dias aos ares, embaixo da lona, sobre as cadeiras. Ele nem sabia, mais lhe restavam apenas os olhos dos outros e o trapézio, um fio de cabelo e a navalha: e se não conseguisse voar? E se não varasse a rede antes do chão? Quando chegou ao Bate Facho com a chave de casa no bolso da calça viu a bola rolando entre uma trave e outra, e dedicou-se. Ainda corria em direção ao gol quando surgiram os três homens com os aços até os dentes. O fio de cabelo partiu-se: 24 balas dentro do corpo, guardadas. Ele rodopiou duas vezes, sem parar. Despencou retinho como um ponto de carne e poesia: olhos arregalados rompeu a argola de vento e forrou o chão de vermelho.

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três.

Então veio a agonia. O caminhão fez um L querendo entrar no grande galpão onde foi encenado Hair e parou o trânsito na rua. O motorista do táxi tocou o apito e deu-se: tudo o que era músculo começou a mover-se. Pela metade, o filme onde a atriz que imita o poder monarca é igual à outra, a de verdade: carregada de mitos, de passado, de durezas afetivas que levam a alma aos elásticos. Depois veio a agonia outra vez: nada de respirar, nada de ver pela janela. O mundo lá fora como um feixe de tensão e aço. Foi quando o caminhão desfez o L e entrou no grande galpão.

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quatro.

Foi logo cedo, à janela da manhã. O tomador de contas do prédio de um lado. Em frente, o esquife com o homem que vive na rua. Entre eles, epígrafes de vozes gritando não, não fique aí, vá embora! Embora para onde? Embora eu já esteja, aqui, nessa esquina ou em outra: minha pele está ficando cheia de estrelas, não vês? O homem do lado de dentro do prédio gesticulou o quanto pode, engolido pelo barulho dos carros que irá engolir os seus donos de ossos, molengas e moléculas de espírito. Pelo lado de dentro do prédio. Do lado de fora o homem de fora acendeu o cigarro.

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cinco.

No centro do coração inundado as árvores no mangue passam. Logo após, alto-falantes de todos os tipos anunciam calcinhas, pastéis chineses, alpargatas, empréstimos a tantos por cento sem nenhum documento. Na avenida estreita um homem muito pequeno (quase um homem grande) arreia suas bugigangas no canto do chão para dançar lambada. A lente gira. No restaurante um senhor de cabelos azulados e óculos e quatro meninas fala roncamente. No restaurante os garçons passeiam em linhas retas enquanto as rosas vermelhas ainda estão sozinhas do apetite ao menos.

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seis.

Não sobrou nada. Nem as lagostas de bronze, nem as rosas de mármore. Aos poucos tudo o que era redondo começou a desaparecer em frente à esquina onde ficam os ciganos, do outro lado da drogaria, no que poderia vir a ser uma praça. Primeiro foram as espécies, empinadas para cima. Depois as rosas de mármore. Depois a água secou e vieram os olhos esbugalhados e os transeuntes seguindo as suas vidas sem perceber o que estava dentro daquele círculo. Logo à direita as três viaturas pararam com os luminosos piscando (nove homens/nove revólveres/cinquenta e quatro balas) e eles mergulharam para a parte de dentro da fonte, onde não havia mais nem água, nem os ciganos, nem as lagostas, nem as rosas de mármore. E se uma daquelas balas furasse a carne seca deixando a pele úmida? E se não houvesse mais remédios de tarja preta do outro lado da praça?

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sete.

O homem daquele outro dia apareceu no mesmo lugar, na encruzilhada, entre as quatro ruas. Botou o pau para fora e uma senhora que vinha do supermercado viu tudo: o pau, o homem, o fim de tarde anoitecendo. Viu tudo com os sacos de plástico nas mãos. Depois veio o nada. Apenas três corpos numa cabine embolorada e o sonho começou a vazar. Ouviram-se os gemidos lá fora enquanto um casal de atores tentava fugir de um ônibus entupido de bombas. Era mais um filme americano falando de amor.

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oito.

Sobre o paralelepípedo uma flor esmagada gosma. Quando amanheceu já estavam os cargueiros e a tripa fina de asfalto já estava. E aqueles três tabularam os cachimbos e acenderam suas pedras entre as nesgas de branco e antes das pequenas luzes: se você quiser, estarei aqui. Se você não quiser, estarei aqui do mesmo jeito. Às vezes um fruto rachado. Uma troça de sangue escorre pelo chão. Tudo sobre um sim. Em trinta segundos. São quase oito horas. Ao lado, epidermes envelhecidas ao lodo, trapos, pão e leite escorrendo morro abaixo. Há vozes na TV. Gorecki bem de mansinho tem cheiro de romã e Lucas, aos cinco anos, vem ao telefone para dizer que quer ouvir a voz de um robô de verdade, mas de brinquedo. Sobre o paralelepípedo uma flor esmagada gosma.

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nove. Foi do outro lado da rua, entre o carro e o orelhão. O tempo espremido ao meio e a chuva invadindo, pingando pelos cantos do número sete, suspendendo tudo: arquivos, cadeiras, retratos amarelados pelo tempo, louças quebradas, o cesto com roupa suja escorrendo pelos cantos da casa. E eles como um bordado, chuleados, ali, parados, agarrados no canto da parede. Querida de Oliveira tomou um choque quando atendeu ao telefone. Morreu durinha. Nem sequer boiou. Dissolveu-se. Passou para outra parede. Para dentro de uma caixa de curtas.

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dez. Visto de cima refletia no mar o arpão e a ponta fina. Às quatro da tarde a mulher gritava e o homem com a peixeira queria sangrar o outro, meio corpo dentro do mar, até os joelhos, molhado de sal e iodo. Correu, correu e depois caiu. Dava para se ver o que era negro estendido no chão, de cuecas. O outro arranhava os cabelos com o cano brilhante. Um que estava sentado mastigava palavras tomando caldinho e mande o cachorro comê-lo. Ainda nem era noite direito. Então o do cano que brilhava anotou: dê-me o seu número porque posso esquecer suas feições.

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Estavam escritas no meio da rua, sobre um tapume azul. Pequenas formas psicodélicas embaixo e elas ali, em cima, coladas no maior zumbido de venda urbana: Cacau, gostosa e liberal. Anal giratório sem frescura. Chocolate, mulher nota 10. Rainha da bateria. Rebola gostoso chamando por mamãe. Lupita, gulosa. Oral com Halls, delírio total. Embaixo, menor ainda, dois pontos. Pajubazeira: não fume na frente de Deus!

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onze.

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A capital está acesa e há esbórnia por trás dos vidros quadrados. Uns por cima e outros não. Pela fresta vê-se o anúncio: Compra-se carne – alcatra. Bem fresquinha e sangrando. Quem quiser que diga o contrário. Nada. Apenas as construções de um fotógrafo chinês aliviam as chagas, a anã, a catedral modernista, o cachorro. E vê melhor os olhos de S., cega e sorrindo. Cega, vendo mais que o planalto nas pontas dos dedos e pelas frestas, comprando carne fresca – alcatra, bem limpinha e sangrando. Acesa, a esbórnia, o cachorro, as chagas e a anã.

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doze.

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GG. contou tudo no início da noite. Depois que o aviso para colocar o cinto de segurança foi desligado. Então GG. contou que voltava de Londres ainda com um vestígio de raciocínio, mas o que ele não sabia é que por dentro do seu corpo de capoeirista não havia (e nunca houve) nenhum S. Poderia ser um, ou dois, ou muito mais de cem: mas os Ss mesmo não havia. Desapareceram para sempre. Para ele tudo era um. Mesmo lá em cima, no ar, quando voltou de Londres nove horas sem falar. Disseram-lhe apenas excuse me, na hora em que o passageiro do lado derramou suco de tomate sobre sua calça branca quando pulou por cima das suas pernas para ir ao banheiro. Apenas uma palavra: excuse me. Nove horas durante. Mesmo que não existisse nenhum S em um, em dois, em mais de mil. Que importam os Ss se o que mais ele queria era descer embaixo do sol, dentro do Carnaval, gemer muito enfiando seu

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treze.

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cacete suado em alguma cavidade seja ela qual for, mas onde coubesse o seu cacete bem direitinho. Assim, reto, como quando ele era criança e entrava no túnel sentado ao lado de papai e de mamãe no trem fantasma. Então, quando o aviso do cinto fosse desligado outra vez ele poderia beijar todos aqueles corpos, tomar a bênção a sua avó, rezar, acender uma vela e esquecer o passado: a bomba explodindo entre os avisos do metrô e muito mais não lembrar daquelas almas voando como pigmentos pelas janelas amanhecidas.

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As cabras amontoadas espelham-se nos hinos das águas, por onde a terra escorreu. Fuíram-se os anos de améns, os matos, os rastros, as sombras. Mas os olhos das mulheres encardidas estão ali, logo adiante. Amontoados em seus marrons, os chifres e as cabras esperam o dia em que tudo se romperá. Aí então boiarão sobre o mar de azeviche, onde, do outro lado do porto, a mulher de branco com seus guizos e búzios chora ao ver suas vestes e os seus barros destruídos lamberem o chão de terra batida. O mesmo chão batido guardado dentro dos samburás: carcaças, esferas, canetas, apitos, capim. Cinco metros logo depois que as cabras com os seus chifres marrons olham-se espelhadas nos hinos das águas.

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quatorze.

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Estavam todos juntos do lado de dentro das grades. O pai, a mãe, os irmãos, o filho do sobrinho e as marcas dos pés do ladrão que entrou pela varanda e levou para o lado de fora dos gomos o aparelho que faz o pão esquentar. Deixou a sola tatuada na parede. Então o pai levantou-se da mesa (por trás do açucareiro) e falou sobre uma coisa mais humana: uma coisa que não era uma coisa rolando sobre esferas, era uma outra coisa, que ia além de todos eles e de todas aquelas palavras. Muito mais do que todos juntos. Foi então que ouviu o ruído da barata e andou em direção ao corredor. Como não via nada, esticou as mãos para não bater o rosto na parede fina. Mesmo assim arranhou o pescoço. Depois ouviu o porteiro falando bem fininho – como uma criança – e foi com as mãos estendidas até a varanda olhar para baixo. Não viu nada: nem a voz, nem os pés tatuados na parede, nem o risco fino da lua descendo sobre a ilha. Mas ficou assim, com as mãos estendidas, esperando o interfone tocar.

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quinze.

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Dalvaleze catou tudo o que encontrou pela frente. Viu a sombra do homem da biblioteca, a sombra do galo, a sombra do dia. Levou para casa o que jogaram no lixo. Cada vez que se curvava reconhecia no espelho o seu rosto e a cidade refletida nas poças de lama. Depois, chorou. Apareceu na televisão sem nada e sem mesmos, só com as coisas que catou no chão. Dalvaleze, filha de tio Zavo e irmã de Valzinho franziu tanto a testa com a cabeça encostada na geladeira arreganhada que ficou vazia. Sem nada, Dalvaleze e os filhos com os olhos grandes e o corpo fino. Chorou tanto e doeu tanto e cada dia doía tanto e todo dia ela se curvava na feira para ver o seu rosto (seu estômago, sua cruz), a cidade e as poças de lama que quando chegou em casa desquarou e arrancou o coração.

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dezesseis.

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Do porto dava para enxergar os abdômens arrumando os estoques. Então Farailton foi logo dizendo – bem na beira do rio – que sofria do coração e porque sofria do coração não poderia ficar nervoso. Porque se ficasse nervoso atacava os outros com a faca na mão e sofria do coração. Foi ele quem pediu o dinheiro com uma lista de mantimentos nas mãos porque sua mãe estava de férias e porque não era problema dele, nem dele nem da mãe dele, mas sim dos outros. Queria dinheiro porque sofria do coração e já estava ficando nervoso e precisava comprar mantimentos, com a lista, a faca e o anzol entre os dedos. E Farailton para livrar-se dos morcegos pulou para dentro do rio.

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dezessete.

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Os três homens judeus caminham com suas vestes negras sobre a calçada onde o símbolo da cidade avança em duas pontas: uma para cima, outra para baixo. Duas pontas. O homem que vinha cinco passos atrás parecia que caminhava escondido, pontiagudo, enferrujado como suas palavras que quase não se ouviam. Hoje nós não temos nada, saímos sem nada, disseram os três. Têm sim, vocês têm e eu quero o que vocês têm, disse o homem pontiagudo, enferrujado. Então os outros responderam que vai com Deus! Dorme com Deus! Deus lhe acompanhe! E o homem pontiagudo disse eu quero o que vocês têm. Quando olhou para trás viu as rodas do carro sobre suas mãos, como mapas pontiagudos, enferrujados. Duas pontas para cima, duas para baixo. E a terceira cor escorrendo entre o preto e o branco, na cidade tão íntima que logo se derramou ao seu lado.

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dezoito.

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Por trás das folhas de alfaces os dois não refletem no vidro. Nem ele, nem ela. Mesmo que a pantera tatuada rogue para livrar-se daqueles braços e músculos. De corpo inteiro, metida no seu bote loiro de tesão e osso. Depois virá o coito (as garras dentro da cona) sim, venha, venha, assim, com mais força além da noite suada onde tentamos a todo custo fazer daquele inferninho um afã diante de um beijo, de uma paixão. Então amanheceram ainda dois, um por cima do outro (os sucos escorrendo entre o cheiro de cigarro e as manchetes do jornal) e não atravessaram mais a rua, nem eles e nem a pantera por trás das folhas de alfaces.

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dezenove.

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Dentro da vitrine o coelho avermelhado com a grande cabeça e a roupa de pelúcia vazia nem sorri. No pé da ladeira uma bola de massa cruza o tempo por cima dos carros, em grandes arcos, jogada de um lado para o outro. Cola no disco voador do tamanho de um prato – de um lado para o outro. No meio da rua um homem joga para uma mulher, de um lado para o outro. A bola de massa obedece. Junto do coelho avermelhado com a grande cabeça e a roupa de pelúcia, outra vitrine, num corredor sem luz, exibe frangos de matéria plástica, depenados. Todos podem ser vistos através do olhinho do cu de cada um deles, as pernas em direção à rua. Mais de doze.

vinte.

No meio de tudo um personagem raquítico com roupa de bancário apita engolindo o som. Os homens de azul apareceram pelo lado esquerdo, subindo a ladeira, e todos recolheram tudo o que é coelho, esfera, cuzinho de galinha, carcaças,

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canetas, apitos. Correm em direção à entrada do metrô. Os homens de azul param em frente ao coelho para atender ao celular. Os outros voltam. Tiram tudo outra vez de dentro das sacolas: farneses, edemas, apitos. Os homens de azul ainda falam. A bola de massa voa. Os frangos e seus cuzinhos com as pernas para cima agora são refletidos na vitrine no pôr-do-sol. O coelho avermelhado nem sorri. A grande cabeça continua oca. Sua roupa, vazia.

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Foi na noite passada: a menina sequestrada, embrulhada num guardanapo branco (suas manchas ao molho vinagrete) apareceu porque a câmera invadiu o porta-malas entreaberto e estampou na primeira página do jornal. Do lado de fora não havia ninguém. Apenas o reboliço da madrugada anterior e o resultado jogado no meio da rua: nomes e endereços rasgados, agora como ciscos na paisagem. Ninguém chorou. A moça na cadeira de rodas passou voando com seus sapatos de salto altíssimos e os lábios quase pulando para fora ladeira abaixo. Depois o gato cruzou a avenida. No mesmo chão reluz uma agulha com o furo virado para dentro. Nem uma linha. A mulher gorda como a ponta de uma distância empurra a explicação e degola a cabeça dos pombos: o sangue, a orelha furada e aquele pedaço de passado ainda traindo o verão.

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vinte e um.

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Quando R. entrava bem lentamente no meio das pernas de C. o seu mundo inteirinho passava voando pelos lados do seu pequeno pássaro de aço. Então R. enchia-se de avenidas fumegantes, automóveis e buzinas, mais de mil semáforos piscando entre o verde e o vermelho e R. flutuava, entre as filas intermináveis por onde filtrava sua vida escorrendo, paralelas sob o sol a pino, quebrando o vento todos os dias na vertical. Mas R. enfiava-se no meio das pernas de C. e tanto se enfiou e tanto eles gozaram enfiados um pelo meio das pernas do outro que logo em seguida nasceu um taquinho deles dois. E R. amava tanto o taquinho deles dois que voava no seu pequeno pássaro de aço entregando o que lhe mandavam fazer. Ele fazia e entregava, todo dia, o que fossem cartas, correspondências, embrulhos desconhecidos, uma caixa de chocolate, uma certidão de nascimento, um pacote de cigarros, um remendo nos óculos: o sol a pino quebrando o vento todos os dias na vertical.

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vinte e dois.

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Uma vez, antes de R. se enfiar bem devagarzinho por entre as pernas de C., ele ficou sabendo que por entre as pernas de C. já havia outro lambuzando as beiradas, as suas e as de C. Então R. desceu do seu pequeno pássaro de aço, foi lá e viu C. – logo depois de escovar os vidros – sair de mansinho pelo lado esquerdo e deixar J., o outro, outra vez derramar o seu líquido bem ali nas beiradas onde R. mais gostava de entrar e lambuzar tudo. Então R. meteu cinco balas na cabeça de J. e escorreu foi muito líquido de outra cor, bem quentinho, quase no meio das entranhas luminosas de C. Depois R. pegou o nome e a data e o dia e a hora e escreveu para sempre o nome de J. no braço direito. C. ficou por trás do vidro escovando tudo. J. nunca mais voltou. C. não sentirá outra vez o líquido de J. Nunca mais vai receber também o líquido de R. porque R. vendeu seu pequeno pássaro de aço e tudo o que passa pela vida dele agora é muito mais vertical do que escorrer entre os corredores horizontais da cidade, entregando todo dia o que sejam cartas, correspondências, caixas com nozes, cortes de tecidos, gargantas degoladas, certidões de nascimento, embrulhos desconhecidos, cintilografias do tórax, ferramentas para Exu.

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O homem de camisa quadrada surgiu por trás do gerador naquela manhã em jejum. Vendia agulhas de todos os tipos. Umas, tortas, apontavam para ele mesmo. Outras, retas como o fim, seguiam em direção às árvores. Outras, menores, furavam o papel laminado duas vezes e desapareciam sobre a superfície da mesma cor. Então ele caminhava fingindo que falava a verdade e vendia agulhas tortas, agulhas finas, agulhas que apontavam para o fim. Dizia que as vendia porque precisava trocar os olhos. Com o dinheiro, entrava na primeira portinha da esquina mais próxima e bebia tantos copos pequenos com três dedos de um líquido transparente. Tão invisível que quando deixava a portinha para trás, o homem de camisa quadrada falava tão alto que a vida era não sei o quê; que precisava trocar os olhos cinco vezes por semana e vender suas agulhas tortas e retas; umas apontando para ele mesmo e outras que apontavam para o

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vinte e três.

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fim. Então ele já pensava nos próximos cinco copos pequenos para dentro, no meio da manhã de jejum, quando a atriz apareceu na calçada, fingindo ser outra, com outro nome que não era o dela, falando sobre suas “feridas de ferro” por entre os ecos de luz e o gerador foi desligado.

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M. veio pela esquerda. Vestia um timão azul cheio de vieses finos que abraçavam seu corpo e a tornava ainda mais azulada na mesma manhã cinzenta de domingo. Mas M. tinha um passado que ela transformara em páginas soltas, espetadas cada uma por um graveto, nas grades de ferro do casarão onde, pelo lado de dentro, dois homens arrumavam as folhas das castanheiras. O livro que M. escreveu naquela manhã cinza de domingo tinha sete páginas. Na primeira ela amaldiçoava os filhos e as mulheres dos policiais. Falava sobre canalhice, sangue, estupro e desaparecimento. M. anda sozinha com as sacolas amarelas nas mãos. Na quarta página do seu passado estava escrito que quando eu morava na pensão do Sr. S., na Rua Barão de Tatuí, desde aquele tempo eu já fumava maconha. Depois fui tendo aqueles pensamentos e saía andando pelo meio da calçada e todo mundo só passava ou pelo lado esquerdo, ou pelo lado

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vinte e quatro.

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direito. Nunca entendi por que não passavam pelo meio, justamente para que eu pudesse vê-los de frente, e, assim, descobrir toda a verdade. Desde aquele dia que o Sr. S. enfiou a mão na gaveta do meu guarda-roupa que ele e toda a comandita da pensão onde eu morava na Rua Barão de Tatuí, eles todos acertaram que eu fumava maconha e pegaram as minhas coisas e até o disco de Janis Joplin, só porque era lugar-comum. Então o Sr. S. jogou minhas coisas na rua. Quando eu voltei para buscar meu guarda-chuva já não havia mais nenhum registro. Dormi ali mesmo. No dia seguinte o Sr. S. me empurrou para o outro lado de fora. Nunca mais vi ninguém. Então comecei a costurar minhas roupas com essas linhas como se fosse um caminho de volta para casa. Todos os dias eu acordo e escolho uma roupa e repito as ruas, as esquinas, as casas, a farmácia, o banheiro público, o penteado, o jeito de falar. E fico olhando de fora para dentro os mesmos supermercados. O mundo continua passando pelo lado esquerdo ou pelo lado direito, nunca pelo meio. Duvido que ainda tenham medo que eu possa descobrir toda a verdade.

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Um automóvel rasga o centro da rua ao anunciar os quinze quilos de carnes nobres que você poderá comer por apenas quase nada. Você e toda a sua família. Multiplicado um vezes um, cada indivíduo terá quinze quilos de carnes nobres rondando por dentro das suas entranhas: entre as mentiras diárias, o vazio do amor que já escorreu pelo ralo; entre o desejo nos poros alheios. Por todos os lados do automóvel – computadores, aparelhos de TV, lâmpadas como supositórios de todas as cores, pilhas palitos que ligam algo sempre imperceptível, relógios falsos. Por ali qualquer um estará sempre pronto para roubar o outro. Dos dois lados, por entre tudo aquilo, o alto-falante continua anunciando os quinze quilos de carnes nobres, naquele lugar três esquinas mais adiante. A voz do locutor quase implora para que tudo seja de mesmo.

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vinte e cinco.

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Então quem ouve chega lá e coloca o anúncio dentro de si: quinze quilos de carnes nobres. Como se fosse um complexo de vitaminas b e c; um long-play do Pink Floyd; quarenta miligramas de Enaprotec; uma plaqueta de Dramin e outras buzinas que reverberam nas taliscas das janelas dos hotéis baratos. Dentro, espécies despidas transferem seus líquidos para corpos desconhecidos por até vinte e dois reais (fora a espelunca) e podem gritar bem alto, alto mesmo. Do lado de baixo ninguém escuta: nem deram fé quando aquela mulher bem grandona que atravessava a praça todos os dias – no final da tarde –, e que tinha um pau entre as pernas e negociava o corpo das outras (todas também com paus entre as pernas e carnes nobres) entrou pela porta da frente. Nem ouviram quando o carro parou em frente ao bar, às 3:05h daquela madrugada, e a mulher bem grandona com o pau entre as pernas enfiou a cabeça dentro para beijar o motorista. Não trocaram uma palavra. Ploc. Ploc. Ploc. Amanheceu o dia ali mesmo, estirada na esquina, ao lado do cachorrinho com menos de quinze quilos de carnes nobres e por isso a Terra funciona.

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JV. apareceu na televisão porque foi ele quem trocou a fechadura da porta antes de fazerem aquilo. Suando tanto, JV. disse que não havia visto nada. Nem a queda, nem os gritos. Repetiu que estava tudo em ordem porque os vizinhos do mesmo arrabalde onde ele mora contavam um, dois, três, cinco casos, todos iguais e do mesmo jeito, e que às vezes até cortavam as figuras em pedacinhos e guardavam nos tapewares dentro do congelador. Mas os vizinhos de JV. nunca apareciam na televisão e por isso JV. não sabia falar daquele jeito e suava tanto. Então JV. queria passar no meio da multidão e não podia e ficou olhando de baixo para cima quando apareceu a boneca de plástico escapulindo pela janela do sexto andar. JV. teve a impressão de estar clamando a Deus para que com os seus dois pequenininhos (M. e J.), que ele teve depois de trocar bastante líquido com sua mulher e que

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eram quase daquele mesmo tamanho da boneca que escapulia pela janela, que com eles dois não acontecesse nada, Senhor! Também pensou que os seus dois não eram de plástico e sim de poros, carne, unhas, suor, veias e mamilos. Depois que JV. disse que não tinha visto nada e que apenas havia trocado a fechadura nunca mais ninguém o procurou. Ele nem lembrava mais de olhar para cima. Por isso entrou sozinho no trem e voltou para casa. Ficou lembrando que nunca mais iria aparecer na televisão. A não ser que pegasse um dos seus dois (ou M. ou J.), quase do mesmo tamanho da boneca de plástico que escapuliu pela janela e fizesse assim: os cortasse pequenininho, separando-os com cuidado em vários tapewares de formatos diferentes e depois os guardasse bem pertinho, um ao lado do outro, dentro do congelador.

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A maior fotografia foi aberta às 11:20h. Primeiro ela apareceu sorrindo, nua, seu corpo igual aos panos da cama, tão brancos como o nada. Depois olhou as letras e os rabiscos das rosas e do poema que enviara ao único amigo que não a queria de quatro, sobre qualquer superfície, em qualquer uma daquelas mansões onde geralmente prostravam-se os outros, um atrás do outro, todos eles esperando a sua vez para entrar por trás dela, entre uma conversa e outra, um whisky, uma fileira de cocaína e outra, em qualquer uma daquelas mansões, pouco importava. Quando a fotografia ficou inteirinha descoberta ela ainda sorria e abraçava as duas flores junto ao peito, acima da cicatriz. A cicatriz que os outros (aqueles que entravam por trás e que pensavam que eram um dos seus donos) nunca deixaram que aparecesse. Então ninguém jamais a tinha visto ferida do lado direito.

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Assim que a tira de plástico bolha despencou sobre o chão, descobrindo toda a imagem, apareceu o seu corpo inteiro, a taça de vinho, os sapatos virados para fora, o telefone, o grande espelho. Tenho a impressão de que o navio nunca chegará ao porto, foi o que ela havia escrito naquela noite, antes de atender ao telefone. Depois ficou em silêncio, sozinha sobre os panos, enquanto os outros rondavam o quarteirão. Quando a segunda fotografia foi aberta ela sorria por trás de um lenço listrado: olhava para a câmera com os olhos quase cerrados. Foi entre essa fotografia e a próxima que um dos homens entrou na penumbra e aplicou a injeção. No dia seguinte apareceram muitos fracos derramados em volta do corpo nu. Não havia mais ninguém do lado de fora. Apenas uma luz acesa na varanda. Já era quase o dia seguinte.

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Logo em seguida Z. olhou para as coisas esculpidas em madeira: havia um presépio com oito centímetros de altura, vazado por todos os lados; um castiçal retorcido para a direita como se pretendesse fugir das suas chamas; um turíbulo com os tendões prontos para o emaranhado entre paredes e paredes; e o quadrado por onde se diluía o traçado. Vistas de cima, sombras seguiam os passos em direção às colunas. Z. passou grande parte dos seus dias percorrendo cada esconderijo: subiu e desceu ladeiras, dobrou tantas esquinas, enfiou os dedos entre as louças dos banheiros e as cápsulas dos arranha-céus e viu todos os outros parados, olhando e querendo tudo para eles. Até que se alinhou sozinho para dormir. No centro do presépio com oito centímetros de altura havia uma grande esfera. Nos grampos da esfera, todos penduravam suas vidas: os santos, os padres, as putas, os mancos, os que caem, os que carregam marcas nos pulsos.

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Mas foi quando Z. começou a se mexer para um lado e para o outro que sentiu alguma coisa entre os lençóis da cama. Suas mãos tatearam o objeto e ele já sabia que não se tratava de uma impressão sobre papel, como as que aquela pintora, bem magrinha e de cabelos curtos, amplia em formato de lambe-lambe e cola embaixo dos viadutos e dos muros sujos de fuligem para discutir a sua nudez, esquartejando a si mesma, passo a passo, sobre o papel, algumas vezes colorido. Quando Z. tocou no objeto perdeu a respiração ao sentir a parte de um corpo ainda quente, de verdade. E não pode ver nada mais naquele momento em que a porta de aço do armazém foi fechada e as luzes foram desaparecendo entre as colunas da cidade.

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Quando o vento levantou a ponta do cobertor deu para ver o corpo dobrado entre a testa e os joelhos. Naquela noite SN. não havia sonhado nada. Embaixo da marquise a poeira do tempo já cobria sua pele. A mesma pele que um dia, tão perfumada, avançara com desejo no desejo dos outros: os homens que antes passavam nos veículos e, assim, um minuto além, os dois já estavam lá adiante, no ermo de alguma rua sem sol. Nem dormindo SN. sentia um devaneio, coisinha pequena, sequer. Nem a lembrança de uma voz sussurrando, nem a denúncia de quando viu pela primeira vez seu reflexo no espelho e sua boca encarnada, já sabendo que os seus dias seriam as noites dos outros. Toda vez que o vento levantava a ponta do cobertor, a poeira do tempo entrava mais e mais por todo o seu corpo e por isso ela não guardava nenhum resquício de uma coisinha sequer.

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Quando o vento colocava entre os seus dedos a manhã seguinte, SN. desdobrava seu corpo entre a testa e os joelhos e fazia a única coisa que era possível naquela existência depois: caminhava entre os veículos arrastando a sua sombra, como uma caixa de arquivo morto. Não conhecia mais ninguém, nem a si mesma. Sua antiga comandita vivia do outro lado da cidade, carregando no sangue a moeda barata que era tudo quanto os seus corpos agora valiam. Em cada manhã seguinte, já outra vez tomada pela poeira do tempo, SN. abria a sua caixa de arquivo morto. Perdida entre suas catrevagens, via-se refletida na sombra de uma outra mulher – à procura de uma boca encarnada – que existisse bem maior que a sua.

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Surgiu com a mala na mão. Era moça simples. Vestido verde de pano leve. Cabelos negros, ondulados até o fim das costas. Aproximou-se do homem sentado na cadeira de balanço. Também um homem frágil, lembrava ter mais de oitenta anos. Passou-lhe a mão pelo rosto, foi descendo as alças do vestido. Um dia qualquer antes de sábado. Quando estava inteiramente desnuda, disse baixinho: toma, sou tua.

trinta.

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O filho daquela senhora de Psicose saiu do elevador levando uma sacola de listras pela mão. Demorou tanto para abrir a porta do apartamento que o que havia dentro da sacola começou a pingar. Ele é o vizinho do apartamento 42. Tem dias que a mãe aparece. Hoje ela estava de costas, antes de virar-se para a câmera, como no filme. Ele disse boa-noite! Está fazendo tanto calor! Ela fez que não ouviu e se curvou entre a moldura e a porta entreaberta do quartinho onde foi jogar o lixo. Em seguida saiu andando bem de mansinho pelo corredor. Limpou os pés no tapete e entrou descalça na sacola de listras.

trinta e um.

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O cheiro apareceu escorrendo pelos cantos da casa: entre os poros das figuras entalhadas, por trás – bem por dentro – das treze fotografias, nas frestas dos postigos suados, nas dobras da poltrona vermelha. Tudo ontem (agora já é domingo), antes de F. dizer para E. olhando pelo canto do verbo: Amanheceu. Sim, amanheceu, entre os óvulos dos vícios e das natas.

trinta e dois.

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Das quatro que circulava lá dentro ele era a mais magrinha. Seios duros duas pontas quase rompendo a pele cafusa. Surgiu por trás da igreja. Sem olhar para os lados cruzou a rua e entrou. Perambulou entre as filas e cadeiras por mais de uma sessão. Até ali nada. Apenas odor de porra e pauzinhos de velhos barrigudos, carecas e casados. No banheiro, diante do espelho, as quatro espremidas se olharam. Cobro trinta com direito a melar minha boca, falou a da frente. Depois outra vez a plateia e, por enquanto, nada. Até que um movimento giratório pulando entre uma cadeira e outra na penumbra se desenhou: na quarta fila do meio um casal ameaçava aquele dia de serviço. O homem era alto, inflável. A mulher, serena e com grandes olhos. Como num jogo de xadrez, segurava o pau do primeiro vizinhos e cavalgava até fazê-lo gozar. Depois o vizinho saía e o próximo sentava no lugar vazio. A mulher com os

trinta e três.

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grandes olhos repetia. Limpava a mão escorrendo com lenços de papel que o homem inflável oferecia. Pelo assento da esquerda passaram mais de uma dúzia. Antes do décimo terceiro trocar de lugar a mais magrinha de todas entrou pela fila da frente. Parou diante do casal. Nada em seu rosto se alterou. Inclinou-se para frente e falou. Na tela a atriz sorria com um ator qualquer enfiado até onde era possível. Gemia chupando os dedos, olhos semi-abertos, como se estivesse vendo, pelas costas, a mais magrinha dizer: a freguesia aqui é nossa. Nenhum de vocês vai chorar por nós. Vou ao banheiro e quando voltar não quero mais encontrá-los aqui. Diante do espelho, aliviadas, espremidas se olharam. Quando cruzaram o corredor de volta para a plateia ainda deu para ver o casal saindo de braços dados. Na tela outro ator qualquer parecia olhar de frente, enfiado em outra atriz que também sorria. Das quatro, ele era a mais magrinha.

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Hoje logo cedo AV. apareceu no hall com um cachecol enrolado na cabeça. Segurava um saco de plástico em uma das mãos. Ela sempre sai com o saco de plástico cinza e vai embora alameda acima em direção à praça. Quando fala é possível ver que faltam os móveis: as duas mesinhas de cabeceira, as prateleiras da estante, o pequeno instrumento ao lado da porta onde sua mãe guardava os álbuns de família. AV. mora dois andares abaixo do filho daquela senhora de Psicose. Foi logo dizendo que estava muito frio e que, por isso, havia perdido a voz. Antes de sair apertou o play. Depois voltou, abriu a porta, acendeu o cigarro, foi até o banheiro e começou a se maquiar. Enquanto passava o lápis dentro dos olhos bebia whisky num copo raso. Com o batom desenhou uma boca maior que a verdadeira. Foi nesse momento que ouviu o barulho na porta: fechou os olhos e acendeu outro cigarro.

trinta e quatro.

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Voltou para a sala, pegou o saco de plástico, ligou para a mãe, entrou no quarto de dormir. Empurrou a cama de casal para o lado esquerdo e com a ponta de uma ferramenta pontiaguda deslocou um quadrado no chão: enfiou a mão na cavidade até o ombro e trouxe de volta um par de sapatos da mesma cor do seu rosto. Acendeu outro cigarro e sentou na sala de jantar. Depois levantou, desceu a calcinha até o meio das pernas, ficou de pé em frente ao espelho e se masturbou olhando para o saco de plástico sobre a mesa. Voltou ao banheiro, ligou a luz, abriu a torneira, lavou o rosto, acendeu outro cigarro, colocou um disco no aparelho de som, bateu a porta e saiu. Atravessou a rua até o ponto de ônibus mais próximo, encostou-se no muro e acendeu outro cigarro. Deu duas baforadas e começou a correr de volta para casa. Abriu a porta, atendeu ao telefone, voltou ao banheiro e ligou a luz. Acendeu outro cigarro e pintou mais uma vez os olhos de preto. Voltou ao quarto e empurrou a cama para o lugar de origem. Atravessou a rua em direção ao ponto de ônibus, acendeu outro cigarro, pagou ao cobrador com

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o dinheiro certo. Soltou a fumaça em direção ao mar. Depois se levantou, pediu o ponto, desceu. Escondeu-se no meio de pequenos arbustos para dar comida aos gatos. Depois rodopiou sozinha no meio da praça, como se estivesse dançando em torno de si mesma e seguiu para o outro lado de uma rua muito estreita. Encostou-se no muro e acendeu outro cigarro. O homem apareceu pelo lado esquerdo. Aproximou-se calmamente, fez um carinho em seu rosto, começou a beijá-la. Lambuzou sua boca, engoliu os sinais, meteu a mão até o meio das suas pernas. Começaram a se roçar um pelo meio do outro. Ela o virou de costas, baixou sua calça, começou a lamber suas costas no mesmo instante em que abriu o saco de plástico, pegou a faca de ponta fina e cravou-lhe na nuca. Depois acendeu outro cigarro e com o mesmo batom que aumentara sua boca, escreveu na parede: a saudade é como um dia de Domingo. Empurrou o corpo para frente, puxou a calcinha para o lugar e voltou em direção ao ponto de ônibus. Quando entrou no hall do edifício de volta para casa apertou o stop diante do espelho: foi então que descobriu que estava quase sorrindo.

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Nenhuma das três tinha nome. Não eram ninguém. Mas tinham voz. E pediam. Se não saírem logo da doceria vou chamar a polícia, pensei que alguém poderia pensar assim. Seria bom. Com elas entrando na viatura logo ficaríamos livres de tudo. Do pai enfiado dentro da mãe naquele resto de cama que nenhuma das três conheceu nem o pai, nem a mãe. Dos irmãos que não conhecem, dos seus filhos que também não irão conhecer ninguém: nem o pai, nem a mãe, nem os irmãos, nem os filhos dos filhos que nunca irão conhecer. Quem criou Paloma fui eu. Era meio dia de sábado quando ela entrou na doceria com os olhos arregalados, sem conhecer ninguém. Então se alguém chamasse a polícia Paloma iria embora. Mas ela só queria um doce: bem redondinho, assim, coberto por um creme de pistache e banhado por uma calda de rum. As outras duas também queriam um pedaço do doce, que, dividido por três, seria quase nada.

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Quem criou Paloma fui eu: então ela nasceu refletida nas mossas das panelas, uma ou duas ou três que ficavam em cima do fogão enquanto o pai que ela não conhecia gozava dentro da sua mãe desconhecida e ela via os dois em câmera lenta, distorcidos, nos reflexos das panelas vazias. Agora ela está aqui, pedindo um doce e fico pensando onde é que eu errei, o que foi que eu fiz para Paloma sair desse jeito. Tão diferente de mim. Ela vive pela cidade andando ao lado dessas outras duas que não conheço e que não sei por que, Meu Deus!, também não conheceram nem o pai, nem a mãe. A moça da mesa ao lado pagou um doce e Paloma dividiu por três: o creme de pistache escorreu. A calda de rum pingou no chão. Depois fiquei pensando se o motorista do táxi que me levou ao cinema tinha mesmo razão. Eu contei pra ele e ele me disse que daqui a pouco Paloma e suas amigas não irão mais pedir um doce, e que depois, ainda, ela irá tomar o doce de quem estiver na doceria, e depois, matar, e mais depois, ainda, morrer com uma bala alojada na cabeça. Nem consegui ver o filme direito pensando como é que um desconhecido pode dizer uma coisa dessas sobre Paloma e suas duas amigas.

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A cantora americana apareceu com o seu violino no pescoço e antes do som sair, arrodiada de velas pelo chão, as gotas das chamas amontoando-se dentro dos copos de vidro como pequenas montanhas de neve fez-se um silêncio profundo. Então ela falou que no início de tudo, quando ainda não existia a Terra e somente os pássaros voavam de um lado para o outro sem ter aonde pousar, o mais velho de todos morreu, caiu no ar, foi despencando sem ter onde parar. Enquanto os outros pássaros também caiam, sete dias depois da morte do pai (o mais velho de todos), eles não sabiam aonde enterrá-lo. Foi quando a única filha do pássaro, caindo, despencando, entre o pai e os ventos do tempo teve uma idéia: enterrá-lo dentro da sua própria cabeça. E assim o fez. Abriu um buraco no meio do cérebro e o arrumou bem guardadinho, ao lado dos ventos e do tempo. Desde então não despencaram nunca mais, nem ela, nem o pai, nem os outros pássaros: foi assim que nasceu a memória.

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Quando o dia amanheceu e a cidade ainda escorria suas remelas, os modelos de roupas íntimas desceram dos outdoors, com seus paus apertados e suas conas escondidas, e seus olhos sempre olhando muito do alto, e eles desceram para a rua lumiada ao sol entre os aços das motos e pronto: já existia a terra. Foi então que apareceu o homem carregando um escapamento como se fosse um peixe, (um peixe vertical), escorrendo água, óleo, sal, iodo. Caminhava entre os guidons enviesados como se tivesse acabado de sair de uma fotografia porque daquele dia em diante existia a memória e não se ouviu nenhum tiro, nenhum grito de morte. As montanhas de neve começaram a derreter dentro dos copos de vidro, e nunca, nunca mais nenhum pássaro caiu e nenhuma vela se apagou.

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Sabonete pulou outra vez do segundo andar. Caiu de novo sobre os sacos de lixo na calçada. Correram os vizinhos e sua mãe – aquela senhora ruiva que dá comida aos gatos na rua –, e recolheram Sabonete de volta para casa. Antigamente ele tinha uma verruga no nariz. Então toda vez que ele cruzava o hall do prédio nós o víamos todo arredondado: o corpo arredondado e o rosto se projetando para frente, como um Y deitado. Mesmo assim, de perfil, Sabonete também era redondo com a pontinha do nariz aparecendo. Dava uns traços com uma das pinturas daquela senhora bonita que foi mulher do poeta e que em sua tela havia a cidade quase cortada ao meio. Depois que o pai dele morreu, a verruga sumiu. O pai de Sabonete também era pequenininho. Parecia uma rolimã saída do esboço de um desenho animado. Ele era muito sorridente e quando Sabonete ficava nervoso e batia na mãe derrubando

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toda a comida dos gatos, a televisão, a batedeira, o forno micro-ondas, o liquidificador, ele, o pai, saía correndo para a rua, entrava no elevador e depois se encostava na árvore da esquina, pelo lado de dentro da calçada, para chorar bem baixinho. Só via quem passava muito, muito de perto. Sabonete tem esse nome porque sempre escorrega pela varanda do segundo andar. A mãe dele passou muito tempo, quando ele era menor ainda, o levando para o hospital psiquiátrico. Pegavam o trem e ela ia abraçada com ele até os 50 minutos depois. Então os especialistas deram muitos remédios para ele ficar bom. Hoje Sabonete já está bem melhor. Não grita mais durante a madrugada dizendo que Robin não é mais amigo do Super-Homem; só bate na mãe de vez em quando; não derruba mais a comida dos gatos; nem a televisão; nem a batedeira; nem o processador; nem a churrasqueira elétrica que assa espetos sem pingar na mesa. A verruga que sumiu depois da morte do pai nunca mais nasceu e a última vez que Sabonete pulou da janela do segundo andar (antes da noite de ontem), já havia se passado mais de quatro meses.

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Dona Madama apareceu na janela com os cabelos escorrendo nos olhos, lotada de jóias, entre as copas das árvores, para olhar o dia, cansada da noite anterior. Quando Dona Madama chegou em casa tomou seus remédios para o mental, deitou-se, leu um pouquinho de Proust, provocou seu vibrador entre as coxas e dormiu. No dia seguinte, logo cedo, seus remédios para acordar já estavam sobre a mesinha de cabeceira. Ela foi para a janela esquecida de tirar as jóias da noite anterior. Mais um dia, e depois mais uma noite... Pensava assim quando viu o peão por cima das copas das árvores, no décimo quinto andar do edifício em frente, jogando o cimento armado na parede, rebocando, suando por todos os poros dentro da roupa melada, esfregando o cimento na parede. Então ele jogava o cimento por trás das vigas de ferro e cada vez que o cimento batia na parede Dona Madama nem mesmo sabia o que era aquilo que estava sentindo arder e queimar dentro da alma, por fora do corpo.

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Quando Dona Madama enxergou o rapaz e seus poros imaginou que aquilo que estava sentindo no lugar por onde metia o vibrador nas suas noites de solidão (e muito além do coração) não seria mais um clichê: era amor-profundo-amor à primeira vista. Então Dona Madama correu para sua banheira montanhosa com sais não sei de onde e lascou-se todinha em pensamentos com o seu novo amor, tantos beijos enlouquecidos, tanto prazer: ela iria visitar a favela onde ele morava sem nenhuma jóia, deixaria um dos três motoristas escondido dois quarteirões atrás, fundaria uma escola, daria cursos de comida vegetariana, faria desfiles de moda beneficentes, aulas de inglês, francês, italiano e alemão e passaria a ser bem mais humana ao lado do seu homem que não era um clichê. Para selar esse amor, produziria um espetacular filme de longa-metragem. Quando estava finalizando todo esse sonho descobriu que na favela não havia “quarteirões”. Mas como? Em que lugar Dona Madama esconderia um dos três motoristas? Todos os dias ela ficava assim, sonhando na janela com os cabelos escorridos sobre os olhos. Dona Madama gostava de jóias, sim, muito, mais tinha

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sentimentos. Não era não, uma pessoa vazia. Muitas vezes durante a noite enquanto lia um pouquinho de Proust pensava comovida em quão grotesca a humanidade havia se transformado. Um mundo onde os filhos matam os pais e depois aparecem chorando e sofrendo nas fotos dos jornais e ao vivo, chorando mais ainda nas emissoras de televisão. Ou tomando milkshakes, com os olhos vermelhos de saudade. Ela não, sempre repetia para si mesma um pouquinho de Proust que estava selecionado dentro da sua cabeça. Quatro meses depois e ela lá, no mesmo lugar, todas as manhãs. Do outro lado das copas das árvores o negão já estava três andares acima, o arranha-céu quase ficando pronto. Do lado de cá, aquele amor que não era um clichê esvaia-se, nem adiantava mais os remédios para dormir e outros para acordar e mais outros que o psicanalista francês de Dona Madama havia aconselhado. Nada adiantava mais, a não ser a morte. Quando jogou a primeira pá de cimento armado naquela manhã de sexta-feira e o cimento respingou nos seus olhos, o negão aproximou-se

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da janela para poder enxergar e foi então que viu a negona do outro lado da rua: aquela imagem, sim, era a imagem que Deus colocou sobre a face da Terra e que o fazia desabar de tudo quanto fosse os emaranhados do desejo. Trabalhar mesmo ele não trabalhou. O dia derreteu-se e ele só pensando no que tinha visto do outro lado da rua. E não sabia como fazer para ter ao seu lado aquele amor-profundo-amor à primeira vista. Pensou nos beijos enlouquecidos e em seu coração disparado. Ficou assim, pensando e jogando cimento-armado na parede, pensando e suando cada vez mais por dentro das suas vestes meladas. Quando, às 17h30, tocou a sirene da construção e o negão de banho tomado cruzou o tapume em direção à rua, logo que viu perdeu a respiração: bem na sua frente, caminhando na mesma calçada, indo em direção à mesma estação de trem, lá estava a negona. O negão começou a suar por dentro e por fora das suas roupas limpas e perfumadas com água de alfazema. Como num sonho, logo que dobraram a primeira esquina ela parou. Os dois se atracaram no mais

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longo dos beijos para sempre naquele amor que nunca seria um clichê. Estavam assim, plenos, um praticamente dentro da espécie do outro; a câmera girando em volta; o pôr-do-sol avermelhando os reflexos dos vidros fumês como rebatedores nos prédios da cidade; folhas e folhas e folhas passando lentamente por todos os lados. Estavam assim quando as copas das árvores começaram a balançar com o vento e os pingos da chuva a molhar o negão e sua negona; e os dois pouco se importavam com o sol avermelhado; com as folhas das folhas das folhas; com a câmera girando e foi então, dentro daquele beijo que não era um clichê que o negão começou a sentir sua pele molhada ficar mais preta ainda. Alguma coisa estava derretendo-se em cima do seu corpo e quanto mais chovia mais ele ficava preto, e ficava preto, e ficava preto até que quando abriu os olhos viu que sua negona desbotara e de dentro dela havia surgido Dona Madama, toda molhada, com os cabelos sobre os olhos agora arregalados. Não deu nem tempo de ouvir o diretor gritar, Corta! O negão começou a correr em direção à estação do trem. Dona Madama completamente do jeito que era (e da outra que nunca, nunca

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poderia ter sido), os cabelos escorrendo sobre os olhos, foi descendo o corpo lentamente, encostada no tapume da esquina, foi descendo e chorando bem baixinho, para que nenhum transeunte a ouvisse soluçar e descobrisse porque seu amor que não era um clichê não havia resistido à chuva de uma noite apenas.

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Quando o homem parou o automóvel na esquina ainda não passava das 21h. Impregnado de segredos descartáveis, disse para a mulher não dizer nada a ninguém. Recebeu os pacotinhos pelo lado de fora do muro, na calçada por onde tudo escorria – os litros, as latas, os rolos, os vultos - em frente ao casarão que ainda mantinha na fachada uma lembrança qualquer de que fora azul. A mulher dentro do automóvel tinha o rosto desenhado pela luz amarela que escapulia ao som dos galos, entre os ramos dos flamboiãs. E esperava em silêncio. Entre eles três não havia sequer uma gota de verdade: ela passava os pacotinhos, ele pagava, e a mulher de dentro do automóvel tornava-se muda quase para sempre. Tudo tão magro como um graveto que resta sobre um chão rachado. No dia seguinte já eram mais de 16h quando a mesma mulher que entregara os pacotinhos

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cruzou a alameda. Puxava outro homem pela gola da camisa. Gritava que comigo é assim porque foi assim que você tirou tudo de dentro de mim, inclusive as calcinhas que agora estás usando! O homem caiu. Ela o arrastou pelo chão no meio do trânsito. Depois atravessou por cima do corpo manchado e entrou no casarão que carregava na lembrança a idéia do seria uma cor. No dia seguinte, antes da 21h, mais um desconhecido viria pegar outros pacotinhos. Como ela não tinha nada dentro de si, deitou e dormiu. Não precisaria que a providência divina lhe exigisse, sequer, uma gota de verdade. Sem isso poderia sonhar.

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A moça bem branquinha passeava no bairro elegante logo cedo, com seu cheiro, seus traumas, seus cremes em torno dos olhos, seus cabelos cor de mel sobrevoando a avenida, sua conta bancária no vermelho, os seus gritos para o marido que saiu andando na frente: sempre assim, quando um dos dois não sabia como mentir melhor. Empurrava o carrinho com o bebê que os iria redimir para o mundo, que os faria eternos, que herdaria toda a fortuna: a cadeira de rodas da avó amputada, os frascos com os comprimidos que tentavam fazer o avô não perder a memória, a louça art déco que logo seria vendida e tudo o mais que restou daquela vida tão decente. Mas a moça bem branquinha andava pela avenida empurrando o seu carrinho de bebê – entre as sombras das árvores, as caixas de morangos e as flores em pequenos vasos –, com os seus cabelos cor de mel sobrevoando a avenida quando apareceu a mulher

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bem magrinha, e nem tão branquinha assim, com seus dois dentes e meio e um pedaço de nada entre as mãos. Foi porque o bebê estava chorando que a mulher com os dois dentes e meio se aproximou e a moça bem branquinha foi logo dizendo, não, não, não toque nela, ela está chorando por causa do pai, que saiu andando na frente. E a mulher com os dois dentes e meio e um pedaço de nada entre as mãos passou a segui-la e a dizer que nem Deus, nem Ele, e nem ninguém fariam o bebê parar de chorar, porque não era por causa do pai coisa nenhuma, mas sim por causa da mãe, dos seus cabelos cor de mel pairando sobre a avenida. Aqueles cabelos cor de mel que mais pareciam uma sombra, uma nuvem, alguma coisa vinda com o vento, de onde poderia sair uma bruxa, um Mug, um fantasma, um super-herói ferido. Disse, ainda, que foi por causa dos cabelos cor de mel que sobrevoavam a avenida que a mãe da mulher bem branquinha caiu, no meio da rua, e então veio a moto e logo depois as duas pernas já não tinham mais vida. E que seu pai, de

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tanto implorar para ela não sair de casa com os cabelos para sobrevoar a avenida foi esquecendo de si: esqueceu o próprio nome, esqueceu onde guardava o relógio, esqueceu aonde escondeu o par de sapatos. Esqueceu como riscar o fósforo para acender o charuto. Esqueceu como olhar para a mulher que tanto amou. Esqueceu como assinar o nome e, assim, foi esquecendo o seu passado. Foi então que (enquanto a mulher bem branquinha fugia com o bebê agora nos braços) a mulher com os dois dentes começou a correr e a gritar pelo meio dos automóveis, esmagando os morangos e as flores nos pequenos vasos, batendo com as duas mãos nos vidros fechados, avisando para todos que dos cabelos da mulher bem branquinha iriam sair muitas bruxas, mugs, fantasmas, super-heróis bastante feridos e que o bebê nunca mais iria parar de chorar. Que corressem todos para dentro dos estacionamentos e se trancassem atrás das portas de aço. Gritou tanto, correu tanto, suou tanto, falou tanta verdade que nem percebeu que o seu pedaço de nada havia ficado para trás, caído, sem ter para onde ir.

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último número

Agora estão todos lá. Sobre o roxo que acende cada uma daquelas faces. Uns olham para os outros e não se vêem. Nem os de cá, nem os de lá. Os outros, os que não são os mesmos, partiram em direção ao sol. Os que não são os outros ficaram na estaca do tempo. Todos eles estão ali. Ou como Deuses ou como passantes. Todos em um. Como nós mesmos. Sobre o roxo.

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glossário

dois. Bate Facho é uma rinha de gente em Salvador.

três. Antes do remédio de tarja preta: Lexapro, 10 mg, pontualmente às 21h30, sem bebida alcoólica.

cinco. Entre a Avenida Conde da Boa Vista e o restaurante Leite, em Recife.

seis. Esculturas de Nicolina Vaz Pinto Couto depredadas na Praça Júlio Mesquita, em São Paulo.

nove. Vida real em Minas Gerais.

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dez. Manhã de domingo no Farol da Barra, em Salvador.

doze. Vista de Brasília pela janela do Hotel Nacional.

treze. No voo entre Londres e Salvador, o capoeirista sem nenhum plural.

quatorze. Uma fotografia de Hirosuke Kitamura. Fuíram-se surgiu de uma voz barroca em Drão de Roma – Dezembro Caiu. É uma palavra líquida que simbolisa desmoronamento.

quinze. Meu pai é cego.

dezessete. Às margens do rio Paraguaçu, em Cachoeira, no Recôncavo Baiano.

vinte. Terça-feira, 17h30: Rua 25 de março, região central de São Paulo. “Farneses” é para o dentro de Farnese de Andrade.

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vinte e três. “Feridas de ferro” pertence ao dramaturgo espanhol Fernando Arrabal. (em Cerimônia para um Negro Assassinado)

vinte e quatro. Conspiração pública contra M. que espeta os seus escritos nos muros da antiga casa de Dona Veridiana Prado, em Higienópolis, São Paulo.

vinte e cinco. Sábado, 11h45: Rua dos Andradas, região por onde vive o povo do crack, em São Paulo.

vinte e seis. Os dois filhinhos pequenos de JV.

vinte e sete. De como mataram Marilyn Monroe a partir das fotografias de Bert Stern.

vinte e nove. Antes Rainha do Desejo no Parque da Luz. Hoje vive, morre, nasce e dorme nas calçadas dos Campos Elíseos, em São Paulo.

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trinta e três. Travecas trabalhando na matinê do Cine Ouro, no Largo do Paissandú, em São Paulo. (na tela, Tupimente Anal – O filme)

trinta e seis. Laurie Anderson, em Homeland.

trinta e sete. Pintura de Tarsila do Amaral, (Cidade (A Rua), 1929).

trinta e oito. Dona Madama tingiu-se com piche. Sua carne, sua alma e sua esperança foram desenhadas pelo poeta baiano Paulo Roberto Ferreira, no início dos anos de 1980, num sotão na Rua Nova de São Bento, em Salvador.

quarenta. Domingo pela manhã na Av. Angélica, Bairro de Higienópolis, São Paulo.

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Diógenes Moura nasceu na Rua do Lima, em Recife, Pernambuco. Quando leu, ainda pequeno, segundo sua mãe, Gilda, os poemas de um primo da família, Carlos Pena Filho, teria dito “sim” e nunca mais parou de escrever, ou de tentar escrever. Morou 17 anos em Salvador, na Bahia, no bairro negro da Liberdade, num pedaço de centro chamado Japão. Vive em São Paulo desde 1989. Jornalista, escritor e roteirista tem publicados, entre outros, Elásticos Chineses – Poemas Físicos (1997) e Drão de Roma – Dezembro Caiu (2006), poesia, ambos pela Fundação Casa de Jorge Amado de Salvador. É Curador de Fotografia da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Só entende fotografia vendo-a como literatura. Atualmente finaliza sua primeira novela, Um Nome – Ensaio para Sinônimos.

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Título Ficção Interrompida Autor Diógenes Moura Editor Plinio Martins Filho Projeto Gráfico Marcela Souza Ilustrações Alexandre Benoit Formato 13,5 x 21 cm Tipologia Garamond 10,5/15 Papel Chamois Fine Dunas 90g/m2 Número de Páginas 112 Tiragem 300 CTP, Impressão e Acabamento Prol Gráfica

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