Memórias Fantásticas

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Memรณrias Fantรกsticas Lucas Migowski Marcello Costa M. N. Bondezan Willian Maciel (org.) Duque de Caxias 2019


Copyright © 2019, Willian Maciel Diagramação, ilustração e capa - Willian Maciel Projeto realizado com fins acadêmicos Independente 1° edição - 2019 Todos os direitos reservados. Créditos Lucas Migowski Marcello Costa M. N. Bondezan (Utopia - Contos Fantásticos)

Maciel, Willian, 2019 Memórias Fantásticas/ Willian Maciel. - Duque de Caxias: Independente, 2019. 52 p. ISBN 978-85-212-0899-0 1. Literatura brasileira; 2. Contos; Ficção I. Título.


"Quem escreve constrói um Castelo, quem lê passa a habitá-lo." -Monteiro Lobato


Sumário 08 Introdução 10 O Ciclo 12 O Pergaminho 14 A Barreira Arcana 17 Forja 18 Convocados 22 As Linhas da Guerra 24 Depois do Fim 26 Sobreviventes 28 O Grande Segredo


30 Recordações 32 Dúvidas 34 Influente Iguaria 36 A Faísca da Fúria 38 Eis aqui o nosso Acordo 39 És Apenas um Momento 40 O Ente e a Promessa 42 Sonhos e Visões 44 Entre Ideias e Rascunhos 46 Transeuntes 49 Autores


Introdução Quando você conta uma história, os véus da realidade se

desdobram e se tornam menos espessos, revelando, por detrás, infinitos universos. E, ali entre todas aquelas possibilidades, está o lugar em que está acontecendo, nesse exato momento, o seu conto. Você pode apenas acompanhar cada uma delas de perto, está além do tempo e do espaço, ou pode romper a barreira e participar, criando a sua própria. Cada momento vivido, é uma história e, ao contála futuramente, estará relembrando suas próprias aventuras e permitindo que mais pessoas conheçam aquele mundo. É por isso que neste livro reunimos não simplesmente contos, mas sim memórias de aventureiros, como eu e você, que passaram por diversas situações, em diversos mundos, dos mais conhecidos e belos até os mais distantes e misteriosos. Lembre-se que você ainda é responsável por cada um de seus atos e suas consequências. Seja cauteloso, nunca se sabe o que nos espera por trás de cada mundo que podemos chegar, mas não deixe o medo limitar tuas experiências. Quer ver como funciona? É uma ótima ideia.

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O Ciclo Ilusionista

A

magia sempre vem com um preço.

Os céticos jamais serão capazes de manipulá-la e tentar mantê-la viva em um mundo que sequer acredita em sua existência é uma tarefa cruel e que beira o impossível. Esta será a sua aventura, meu caro aprendiz. Os ponteiros do relógio deram suas voltas e meu tempo é chegado ao fim. Deixo contigo meu legado, a sabedoria de um mestre arcano. Meu Nodo e uma parcela de meu poder são seus agora para que desempenhe seu papel neste ciclo que se inicia com o fim daquele que vivenciei. Sua mais importante batalha será contra a descrença massiva que assolará o mundo nos séculos adiante, encontre aliados, aprendizes com potencial excepcional tal como o seu, funde sua irmandade e guie a humanidade rumo a percepção de que existe muito mais do que eles supõem. E na hora certa, corte o véu para que eles vejam que, apesar da razão explicar tudo, ela não resolve absolutamente nada. Mas jamais se esqueça de meu primeiro conselho... A magia sempre vem com um preço.

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O Pergaminho Incubbus

A passos ágeis e cautelosos, um dos guardiões do conhecimento

caminhava em meio a Biblioteca dos Onze Alicerces e o forasteiro, embora reservado demais, o acompanhava sem hesitação, talvez apenas com alguma apreensão. Quem poderia dizer? Seu semblante era sempre inescrutável. — Aqui, neste lugar já registramos muitas histórias sobre este mundo, aventuras, pesquisas, fatos, mas apesar do grande número de relatos aos quais tive acesso, jamais havia pousado os olhos em escritos redigidos a próprio punho por uma entidade tão cabalística. — o guardião disse apanhando um dos pergaminhos que jaziam na ala oculta. — Creio que é este o pergaminho que vieste buscar, forasteiro. O forasteiro por sua vez desenrolou o couro, viu logo seu nome cuidadosamente delineado com sangue ancestral, a mensagem fora dirigida a ele mesmo antes dele nascer. Ele percorreu os olhos pelos escritos, não eram códigos comuns, mas ele sabia que os guardiões daquele lugar eram capazes de decifrar qualquer linguagem, até mesmo as mais esfíngicas e estrangeiras, assim como ele próprio, que crescera ali, mas que diferentemente de todos os outros não permanecera. Não era para as pedras e mistérios daquele lugar, mas para as selvas e segredos do mundo.

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Estou a caminho, não se aflija As horas passam, os dias voam Se engano-me, corrija-me São tantos os ponteiros que destoam Em uma mão carrego o tempo Na outra, um cômputo das possibilidades Eis um notável passatempo Tanto nos campos como nas cidades O mais temível pesadelo para a tal humanidade Aos que agonizam, um salvador Aos que merecem, plena maldade Sou um rigoroso trabalhador O Paradoxo da Eternidade

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A "Barreira Arcana" Sibila

P

— ortas... — Mya, bufou. — O que faríamos com elas se não houvesse paredes? — a garota indagou arrancando-me de meu raciocínio e mergulhando-me em outro ainda mais profundo. — Portas, portais, janelas, todos são passagens, até mesmo os buracos nas cercas da fazenda do velho Greymont o são, algo que não existe nessa maldita barreira arcana! — praguejei socando a barreira que nos impedia de passar, estávamos encurralados e não nos restava muito tempo, nem mesmo alternativas. Mya caminhou então, devagar até a barreira, ela a apreciava, sempre fora estranhamente contemplativa, via beleza nas mais invulgares situações, nos mais inoportunos momentos. Ergueu a mão aproximando-a com cautela da barreira com um sorriso a se desenhar em seus lábios. — O que foi? — indaguei ranzinza e a garota virou-se apenas o suficiente para encarar-me de soslaio com um dos sorrisos de sua vasta coleção, um que eu conhecia muito bem e que indicava sua excêntrica sabedoria. — Estamos há exatos dezoito minutos aqui e você já fez de tudo para resolver este pequeno contratempo... — ela começou e eu a encarei. — Sim... E você só arredou o traseiro do chão agora, até então ficou olhando! — repliquei irritadiço, o que apenas fez com que ela sorrisse ainda mais. — Você realmente acredita que há paredes, digo, isso que você enche a boca para chamar de barreira arcana, quando tudo o que eu vejo são mais portas do que poderíamos contar... — ela disse e por um

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instante olhei a nossa volta, mas não via nada que não fosse o enorme globo de energia arcana. A garota retirou então do bolso de seu cinto um dispositivo que imediatamente emitiu um brilho dourado e só então minha mente viu o que meus olhos realmente olhavam. A verdade, ou a verdade de Mya, não importa, fato é que flutuávamos em um céu de portas.

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— Temo que tenha acreditado na barreira porque não há apenas uma saída deste lugar, mas mais saídas do que você seria capaz de escolher... — ela explicou tão calma como de habitual e sorriu depositando a mão na maçaneta da porta mais próxima ao lugar onde estava. — Librianos são assim, desafiados pelas opções. — ela prosseguiu zombando de minha inabilidade para tomar decisões quando um leque de opções se abria. — Não acredito nessa baboseira, você sabe disso, garota. — eu disse indo na direção da porta que ela abrira, não podíamos ver o que havia adiante, era um tiro no escuro entrar daquele jeito, mas precisávamos sair de algum modo. Mya desapareceu e a porta pela qual ela entrou também. Não eram passagens para dois, ao menos não a que ela escolhera. Balancei a cabeça negativamente, aquilo me cheirava a uma encrenca ainda pior do que aquela em que estávamos metidos.

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Eu contemplei a...

Forja

Meu bronze estalava e chamuscava. Nunca resfriado, sempre dobrado, Dobrado... Dobrado. DOBRADO fui! Do pó de um ancião recebi sopros e fui untado. A resina cravejou a essência, o calor me fez um com os ósseos. Levado à gruta daqueles que adoram o Dragão da Guerra, Consagrado meu bronze foi, à matança, à liderança, à contenda. Em nome da tribo Kardagomnok, os Bronze-Fogo, Fui ostentado pelo líder da matança, da contenda, do zelo pelo seu povo. Forjado para levar o legado selvagem onde a civilidade cegara os mortais. Forjado fui. Prometido fui. Derrubado eu fui. Bronze-Fogo já não urrava. A Besta das Profundezas fizera calar a tribo. Nas cinzas permaneci, com o sopro do dragão em mim. Um punho vi purgar a terra, emergindo da mortandade dos seus. Era um punho de escamas bronze. Bronze-Fogo. Forjado fui. Prometido fui, Erguido eu fui. Anmgo'Ohorn, Presa de Dragão Dos Bronze-Fogo, como me chamavam. Nas mãos do último destinado. Em meio a maior das guerras. Marcello Costa

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Convocados Marcello Costa

E m territórios não reinados, no meio da Savana Dourada,

dentro do Acampamento Dracomox Magmar, composto por uma fração de tropa, em retorno para Muralha Inferno. — AAAAaaaarrrhhhggg!! Seu dinossauro filho da puta!!!

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Berrou um draco, segurando sua crista mutilada. — Sua ordem será acatada, mensageiro. — Disse um draco aberrante, cuspindo as escamas arrancadas. Em meio à turba que se forma no acampamento, chegam um tenente e seus guardas pessoais. — O que houve aqui? O que houve com a sua cabeça, soldado?! — Aquele desgraçado me mordeu! — Algo a dizer em sua defesa antes de ser chicoteado no terreiro mais próximo, legionário de primeira classe? — Pergunta o tenente, imediatamente se voltando para Jormungar, o draco vermelho aberrante. — Eu vou ser chicoteado... Tudo bem! Mas amanhã estarei indo para Merídius! — Do que esse soldado está falando? — O mensageiro é questionado. — Fui enviado até essa divisão com ordens expressas de Muralha Inferno para desvincular dois indivíduos auxiliares da legião, senhor. Achei um deles, uma draco mal vista aos olhos do Estratego Gorvanom. Expedi a ordem para extração dela e esse primitivo se voluntariou. Eu neguei e ele me agrediu! O acampamento gargalha. — Deixe-me ver essa mensagem, soldado. — O tenente toma em mãos a carta e lê atentamente. — Ao que parece, isso é uma passagem só de ida para essa tal draco. O que você tem com ela, legionário? E Jormungar responde seriamente. — O pai dela, falecido Estratego Arcameniz, me confiou a responsabilidade de protegê-la. Crescemos juntos. Eu devo ir com ela. — Está me dizendo que essa tal draco é a filha de Kallamutt? — pergunta o tenente, agora também num tom de seriedade. — A draco que menospreza ordens diretas do oficialato estratego e gera pensamento individual dentre a tropa? A elementarista Draguna, certo? — Essa mesmo, senhor! — responde o soldado ferido — Essa puta draco que aliena a tod...

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— A pergunta não foi para você! Foi para ele. — Interrompe o tenente, apontando para Jormungar. — Sim. Ela. E em honra ao pedido de nosso falecido líder militar, peço que considere. Afinal, sou voluntário e isso supera uma indicação de acordo com nossos códigos militares. — Pois bem. Entenda que você não é de força secundária, você é da legião. Para desvinculá-lo seria uma burocracia demasiada que levaria dias e, para que se torne rápida, seria necessária uma conduta extremamente perturbadora. — Diz o tenente num tom sugestivo, entregando de volta a carta. — Quão perturbadora ela deveria ser, senhor Tenente? —Tão violenta quanto essa Draguna é impertinente. — Responde o tenente, já se retirando. Jormungar dispara contra o mensageiro.

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No dia seguinte, na caravana de retorno, seguindo para Muralha Inferno, Draguna se desprende de sua leitura por um instante. — Que confusão foi aquela ontem? Ouvi o barulho de longe, logo depois que o mensageiro me visitou. — Aquele pária ofendeu o pedido de teu pai a mim. Razão pela qual consegui ser desvinculado novamente do serviço ativo. — O que você fez, Jormungar? — Curandeiros conseguem fazer nossas caudas crescerem de novo?

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As Linhas da Guerra Sibila

E spadas e lanças jaziam cravadas no solo manchado com o sangue

dos revolucionários enquanto estandartes marcavam nossas conquistas. Pouco a pouco retomávamos o controle sobre Vale Enevoado. O trotar dos cavalos substituíram os tambores, as batalhas não eram compassadas, não havia mais regra e a honra fora substituída pela gana de vencer, pela ânsia dos soldados por tempos de paz.

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Estratégias eram desenvolvidas para exterminar o maior número de opositores possível, olhos espreitavam por detrás das linhas inimigas e magos desenvolviam artes obscuras nunca antes estudadas por nosso povo para aniquilar nossos oponentes. Nós portávamos armas, mas a guerra nos transformava em armas letais, logo não nos lembraríamos mais o propósito de nossas batalhas. Logo a paz não seria mais o bastante.

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Depois do Fim Incubbus

E ntão chegaste ao fim da linha, humano.

Lutaste em uma guerra sangrenta em nome da liberdade, em nome de teu rei e finalmente conseguiste asas para teu povo e ouro para teu soberano. Mas ao custo de que? Permita que eu esclareça este quadro, creio que tens apreciado apenas um foco presente na totalidade desta tela. Teu heroísmo é visto por outros como uma vilania sem precedentes, afinal aqueles que sobreviveram à carnificina promovida por tua cobiça pela glória serão acorrentados. Oh sim, maldito humano, eu não só quis dizer tudo isso, como de fato disse, já que ao contrário de sua raça, não preciso de pretextos para fazer aquilo que tenho vontade. Não engano minha própria alma alegando ser altruísta quando na verdade sou movida por nada além de meu próprio ego. Isso, muito bem. Após cegar o corte de sua espada levando tantas cabeças ao chão e tantas almas ao Oculto, cair de joelhos em profundo arrependimento não lhe garantirá o paraíso, mas talvez instigue a curiosidade daquele a quem presenteou com tantas almas, dizem por aí que ele está a recrutar alguns anjos...

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Sobreviventes Arcanjo

O mundo que um dia eles haviam conhecido estava arruinado,

dragões haviam tomado terras civilizadas e selvagens de norte a sul, de leste a oeste, não havia escapatória. Cidades inteiras jaziam reduzidas a cinzas e sua fúria parecia não ter fim. — Há um portal em Arcos de Outrora. — sugeriu o trapaceiro vasculhando sua mochila em busca de bandagens para o ferimento em seu braço.

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— Arcos de Outrora fica em uma região de planícies, não há chance de chegarmos lá vivos. As sentinelas não tardariam a nos encontrar. — retrucou o duelista caminhando até uma pilha de itens que jazia jogada na biblioteca em que estávamos. — Embora eu tenha que concordar que estamos há tempo demais neste castelo, precisamos encontrar outros sobreviventes e abastecer o estoque de suprimentos, além do que, não acho que os arcanos suportarão muito mais neste revezamento de proteção. — Precisamos tentar. — declarou a arquimaga que estava no alto de uma escada verificando mais uma vez os tomos que ali havia. — Eu e Royan somos experientes em forjar defesas arcanas, mas temos de convir que o nosso poder não é nem uma fração do poder deles, na verdade há inúmeras teorias sobre eles serem os primeiros arcanos, o que não me admira a destruição que agora estão causando. — ela concluiu se sentando em cima de uma pilha de livros de auto-ajuda para aventureiros abrindo um grimório. O silêncio tomou o ambiente, apenas o folhear cuidadoso das páginas do grimório podia ser ouvido quando um estrondo, seguido por um tremor provocou uma rachadura no teto da biblioteca. O grupo ficou em alerta. Parecia apenas um dos vários terremotos que volta e meia aconteciam naquele região. O trapaceiro, que estava sentado próximo a janela se levantou e pelo canto olhou para fora. Nem sinal de escamosos. Uma fração de segundos depois a criatura surgiu. Em sua face rascunhavam-se linhas de algo similar a um sorriso. Royan que estava encarregado da proteção do castelo já sabia que não havia falhado, sua magia funcionava e a construção estava mesmo invisível, no entanto aquele tipo de escamoso era capaz de ver o invisível. Um jato de chamas explodiu na direção do grupo que corria em desespero, estantes, livros, pergaminhos e até mesmo as pedras derretiam-se. Tudo estava sendo devorado pelas chamas. O mundo já não era mais de aventureiros.

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O Grande Segredo Ilusionista

E stávamos cercados, a expedição ao Castelo dos Ecos parecia

se provar uma grande armadilha. Gárgulas levantavam voo, golens adquiriam vida e uma legião de extraplanares saltava dos incontáveis abismos que eram separados apenas pelos estreitos caminhos de pedra que estavam também a ruir, logo não haveria mais Castelo para explorar. Olhei para o alto, os gêmeos ladinos brincavam com as sombras, a trapaça e o oportunismo eram as únicas linhas de seu código de conduta, o mago conjurava um grande globo de proteção para bloquear uma saraivada de dardos envenenados, os arqueiros que o acompanhavam, atentos, miravam o vazio, seus oponentes estavam invisíveis. — Manda ver! Eu dou cobertura! — vociferei ao bardo, que assentiu, retirando seu instrumento das costas. Ninguém nunca lhe dera tanto crédito até aquele dia, mas não era à toa que havíamos nos alistado àquele contrato suicida. Eu bem sabia do que meu companheiro era capaz. O primeiro gárgula veio e o fiz em pedaços. Acordes, ritmo, batidas se seguiram em compasso a descompassar o raciocínio do inimigo. Jhetar, o bardo, projetava-se em oito cópias capazes de dobrar a magia tão formidavelmente quanto ele próprio o fazia, não eram indivíduos aleatórios, eram parte dele, e como um menestrel é capaz de tocar, cantar e se movimentar, meu estimado parceiro também o era, de oito maneiras diferentes. Tinha sua própria orquestra de si mesmo. Os monstrengos voadores explodiram tornando-se uma chuva de pó e pedriscos, que por sua vez encobriu as criaturas invisíveis possibilitando

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aos arqueiros mirarem. Os guerreiros feridos levantavam-se com furor aniquilando os extraplanares que ainda restavam. Junto aos inimigos, as cópias começaram a desvanecer. Encarei o bardo lembrando-me do que ele me dissera certa vez ao tentar me fazer entender toda a magnitude de seu poder. Era simples e ao mesmo tempo complicado, fato é que ele havia desvendado talvez um dos mais importantes segredos do universo. A energia, a frequência, a vibração… “A existência toma forma, única e absolutamente devido ao som.”

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Recordações Marcello Costa

Um místio de meia idade contempla a chuva lá fora, pela janela

de sua loja, sentado na cadeira de balanço enquanto aprecia o seu chá da tarde... — Pois é, Aleph. Aí está a estação de pluviano. O que é bom para nós! Venderemos muitas capas esse mês! — Sabe Aleph, andei pensando sobre o jovem Poe... Poe "Ditcher". Ah que rapaz enérgico, meus joelhos chegam a doer quando penso na determinação dele. E no ardor que passou. Foi também numa estação como essa que eu o encontrei, desmaiado em um beco, vindo de sabe-se lá onde. Posteriormente descobri que viera de Mehgalot, manifestando tardiamente seus dons arcanos de nascença. — O que? Como? Você quer um pouco do chá? Hmmm... está bem — e entorna um pouco da bebida no chão. — Poe estava desolado, ferido. Um terço do homem que um dia fora antes "daquilo". Ora essa, Aleph! Você sabe muito bem do que estou falando! Das "cortinas do inferno" — sussurra — Pois então! Exatamente! Para ele deve ter sido um amargo recomeço, tenho

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certeza que sim. Por sorte topei com aquele maltrapilho chamuscado, de longe vi que era um humano. Percebi logo que a vida estava colocando peças novas em seu conturbado tabuleiro, Aleph. Sim, claro! Claro! Você também fora inestimável companhia para o jovem Poe, você o distraia enquanto eu tentava lhe ensinar magia natural — ri, levantando a xícara como que num brinde. — Eu sei que quando ele puder, ele irá partir, Aleph. — Ele nunca se esqueceu dela… Perder uma filha é algo... se é que perdeu não é mesmo? As forças do Reino Branco não a encontraram e também não conseguiram determinar as causas do acidente. Tudo muito penoso... uma pena, uma pena. Sabe, Aleph, quando olho pra ele, vejo em seus olhos humanos o vazio que a menina oriental deixou. Como um templo sem ídolo divinal, como um de nós rúnicos sem magia... Como? — sorri — Sim, Aleph! Claro, claro! Como eu sem você, ora essa! — ri e afaga o pequeno cão felpudo com uma runa na testa que se achegou aos pés da cadeira de balanço. Sinto que para Poe, sua busca por si mesmo apenas começou e irá levá-lo ao limiar de sua própria determinação. Com sorte, esse lugar inóspito será onde a ryujiana estará. — Mais uma xícara, Aleph? O cãozinho late.

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Dúvidas Marcello Costa

E m Felter, no reino de Mehgalot, dentro do habitáculo das

preces, no templo da deusa Jorídian, o sumo sacerdote se junta ao alítio, antes só, de pé, frente ao ídolo da deusa da cura. — Eu sou condenado, sacerdote? 32


— Por que seria, meu filho? O alítio olha para a estátua. — Eu não os busco mais. Não sei mais o que preciso ser para este grupo sobreviver. Algo muito ruim está pairando sobre nós. — Os deuses conhecem o coração mortal, Alexiel. Seja lá qual seja sua "razão" para tal negligência aos que apenas te querem bem, — o sacerdote olha para a estátua — a maioria lhe entende. E, acredite! Esperam seus olhos se abrir. — Não sei se ainda posso acreditar nisso. Perdão pela... pela sinceridade, sacerdote. Só acho que eles poderiam estar ajudando mais. Não a mim, mas a todos os outros que são tementes! O alítio faz uma pausa, para segurar o pranto. — Olhe bem Alexiel... — Tivemos de matar um dos nossos hoje! Ele morreu desesperado, tendo uma mácula bestial. Deixou o mundo como um animal... — diz apoiando a cabeça na mão —Não sou eu o negligente aqui, sacerdote. — E você foi poupado. E curado pelo poder deles. — Com todo respeito, sacerdote, eu não pedi por nada para mim. Eu nem sequer pedi pra ser salvo! — Se não crê no poder deles, por que tanta ânsia pela morte? O que acha que virá depois se não algo pelas mãos e poder deles? — É nítido que perdera alguém, alítio — diz repousando a mão sobre o ombro de Alexiel — e não preciso dos meus dons para ver isso. Que sua alma esmigalhada encontre o que é necessário para reavê-los. Mas antes disso, meu filho. Faça uma mudança em seu bem mais precioso — o sacerdote termina, apontando para o coração. — Por que eu deveria? — Quando vamos de encontro a alguém que amamos e nos é importante, nós vamos apresentáveis. Se tratando de nossas almas mortais, elas devem ter além da vontade de reencontrá-los, a certeza de que o farão bem. — E se eles não... — Eles o amarão, Alexiel. Tenho certeza. O amarão.

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Influente Iguaria Incubbus

Q

— uase humano... — Pff, é isso mesmo o que pensa que sou? — perguntei induzindo o pobre mortal a indagar-se sobre minha existência, ver o terror em diferentes nuances na íris de minhas refeições tornara-se um passatempo sem igual para mim, afinal tenho a eternidade para quantos jogos quiser jogar. O mortal sabia que aquele era seu fim e tentava se soltar a qualquer custo apesar de não fazer a mínima ideia de como escaparia de alguém tão ágil que sequer seus olhos conseguiam seguir, sim, ele me vira sumir no parque e aparecer a centímetros de seu rosto. — Ora, não perca seu tempo, caríssima guloseima... — Davies. — ele disse interrompendo-me. — Irrelevante, acaso pergunta o nome das cenouras, das aves e porcos que o alimentam? Não preciso de seu nome, talvez o Oculto precise. — concluí sorrindo enquanto avançava lentamente com minhas presas sobressalentes apenas para que ele vislumbrasse seu fim. Aquele era um rito que deveria ser sempre seguido, eu degustava até mesmo as expressões que precediam o último resfolegar de minhas influentes refeições. Para reger o mundo mortal de acordo com nossos acordes, vez por outra era necessário que um ou outro rebelde fosse varrido da existência. Portanto acautele-se, caro leitor. O mundo das trevas existe e sua máscara reside naquilo que o faz acreditar que neste mundo não há nada além da realidade nua e crua.

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A Faísca da Fúria Incubbus

O

— medo fede! — rosnou Grethan antes que seus ossos começassem a estalar fazendo-o se contorcer. Lembranças da última reunião da matilha em Nove Luas fervilhavam em sua mente: — A fúria não se trata de um estado desencadeado sem mais nem menos, meu jovem. É preciso que sejamos ameaçados, é preciso que sejamos provocados de alguma forma, afinal a pólvora não incendeia sem que haja o atrito a gerar uma faísca que guarda o potencial de transformar-se em uma explosão selvagem. — disse o xamã abrindo sua mão e com apenas um sopro conjurando um pequeno ponto de luz alaranjada que brilhou como um vagalume enquanto caía transformando-se em uma fogueira ardente ao tocar o chão. — É este o ponto onde o instinto nos sobrepuja a razão, nos exime do controle. Sim, é este o momento em que nossa capacidade de raciocínio torna-se duvidosa, pois sucumbimos à cegueira da cólera, de predadores irascíveis... — o velho sábio concluiu com um sorriso torto, encarando a presa de Grethan antes de sair, deixando que o jovem metamorfo resolvesse sua querela. A sanguessuga o encarou atônita por frações de segundos e seu terror refletiu-se nos olhos incandescentes do enorme lobo.

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Eis aqui o nosso

Acordo Minha tola criança dos recônditos sombrios. Uma troca por sua alma já perdida que há de perdurar pela eternidade. Carregue consigo este pergaminho, nele surgirão três nomes para que sua caçada comece e não mais termine, escritos com o sangue de condenados para a ruína de sentenciados. És a partir desta noite memorável um de meus anjos, suas asas não serão alvas como as lápides dos arrogantes, mas obscuras tal como sua alma. A espada em sua bainha será a mensagem de minha foice, que envio aos destinados ao meu beijo letal, vá e zele por sua existência, cumpra nosso acordo, os ponteiros passeiam e a eternidade para você depende somente disso. Incubbus

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És apenas um momento Nada mais. Sua existência está fadada ao fim enquanto a minha sequer teve um início. Eis que minha passagem marca a vida e a morte, a criação e a destruição e destas efemeridades sou apenas espectador, como um transeunte observador que tudo vê por onde passa, mas nada faz para alterar o curso dos acontecimentos. Seus marcadores divertem-me com esta simplória contagem, areias ou ponteiros, não importa, eles podem até mesmo cessar, o mesmo não acontecerá comigo, portanto apresse-se meu jovem, pois lhe restam apenas algumas quebradiças frações destes reles segundos se levarmos em conta minha eternidade. Ilusionista

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O Ente e a Promessa Caçadora

S

— im, a magia andou adormecida por tempo demais nestas terras, jovem aventureiro... Talvez a culpa seja do acaso, embora eu ainda acredite que o que nos levou as profundezas da inexistência tenha sido a própria humanidade. — disse a enorme árvore abrindo seus olhos iluminados com a magia que lhe dava vida. Veios de energia formavamse no solo percorrendo-o por toda parte. A brisa soprava com pequeninos fragmentos que reluziam ao tocar os feixes de sol que invadiam o bosque enquanto borboletas de inúmeras tonalidades dançavam em meio a festa do povo fada que também despertava de um sono que parecia jamais ter fim. Um belo quadro poderia ser pintado a partir de tão estupenda visão, contudo a fúria tomou o ser de cada criatura que ali despertava quando a presença do humano ficou evidente. Este, correu como se o fim o perseguisse e de fato era o que acontecia, afinal a humanidade deveria pagar por ter varrido-os da existência por tanto tempo. A realidade maçante estava próxima de seu derradeiro desfecho.

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Sonhos e Visões Migowski

Nala:

— Você está crescida, filha! Leona: — Mãe?

Nala: — Seu pai sempre disse que sua bondade era capaz de fazer nascer flores até mesmo nos desertos mais secos. Leona: — Então vocês têm visto isso tudo? A guerra está chegando e eu só tento fazer o meu dever.

Nala: — Nós estamos vendo, minha pequena e os deuses sentem orgulho do que está fazendo.

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Leona: — Eles olham pelo lado oposto também? Nala: — E por que deveriam? Leona: — Porque eles também são frutos deles, só estão aqui porque eles permitiram, porque têm um plano maior pra eles. Não é? Nala sorri: — Flores no deserto. — fala baixo — Eles têm um plano pra todos do seu mundo, pequena Leona. E parece que você tem feito sua parte também, tem se tornando um grande exemplo, mesmo tão jovem. Leona sorri. Nala: — Você precisa entender que nem todo o peso do mundo deve ser sustentado por você, pequena. Leona: — Os deuses me deram esses dons por um motivo, mãe e eu acredito que seja pela minha força em sustentar problemas. Nala: — Estamos orgulhosos de você, pequena. — E vai sumindo entre as folhas levadas pelo vento. Leona abre os olhos ainda sorrindo. — Parece que teremos um bom dia hoje!

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Entre Ideias e Rascunhos Ilusionista

“Construa uma moradia sem lançar mão da matéria prima

corriqueiramente utilizada pelos homens.” — a ordem de meu mentor ecoava em minha mente perturbando-me o sono. Eu estava sendo submetido a inúmeros testes e este era apenas mais um deles. A Ordem apenas aceitava mortais formidáveis desde que fora fundada e para ser um deles era preciso adquirir o domínio pleno de nossa própria mente, afinal de contas, uma vez que o ser humano é capaz de controlar sua própria psique, ele se torna capaz de dominar seu corpo e também sua alma. Caminhei pelos jardins da imponente construção que sediava a Ordem e observei cada um dos elementos que a estruturavam, as vigas de sustentação que estabeleciam firmes alicerces emoldurados pela curiosa pedra ilunith, o chão que se constituía em mármore e as portas confeccionadas com a madeira maciça de carvalhos ancestrais. Adentrei o salão principal que vivia apinhado de aprendizes, mestres e sentinelas. Senti o agradável aroma das refeições sendo preparadas na cozinha, algo com condimentos naturais e carnes. Subi as escadas tomando nota mentalmente de cada detalhe que compunha a construção, analisando a matéria prima que a engendrava. Consultei livros e pergaminhos sobre construções mágicas e físicas e quando finalmente compreendi o que deveria ser feito comecei a erigir a minha fortaleza. Algum tempo se passou e recebi a visita de meu mentor. — Não vi habitação alguma em meu caminho até aqui, onde jaz a morada que construíste? — ele questionou-me com certa expectativa em sua voz. 44


— Vamos, não fica muito longe daqui. — respondi e o guiei até uma frondosa árvore que margeava um límpido córrego. Sentamo-nos sobre as espessas raízes da grande árvore e lhe mostrei então a morada que havia construído com tanto esmero. Admirado ele sorriu, fechou o livro e admitiu que ninguém jamais havia conseguido compreender aquele teste com tanta perfeição. — Construíste um castelo de palavras e nele puseste não apenas alicerces, pedras, mobília e habitantes. Estruturaste sua morada com palavras dotadas de alma.

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Transeuntes Ilusionista

E stão todos mortos. Os dragões. As ilusões. Este mundo está

acabando, tudo eventualmente tem um fim, embora planejássemos a perenidade... Afinal descobrimos sim, que ela existe, apenas não para nós. Viemos para cá com a passagem de volta garantida, não sabemos para onde ou quando embarcaremos, apenas sabemos que um dia o faremos, sem nos despedir. Sem olhar pra trás. Somos todos transeuntes, alguns permanecem por mais tempo, mas todos estamos de passagem... Desde os microscópicos até os descomunais, formigas, planetas, galáxias inteiras, todos somos uma infinidade complexa de emaranhados cósmicos, fadados àquela palavrinha minúscula que sequer precisa do sinal gráfico para encerrar até mesmo a maior das histórias. Somos livros, com direito a capa, contracapa, lombada, marca de corte, orelhas, marcadores, rasgos, letras capitulares, clímax, nós... Por fora um amontoado exemplar de coesão e coerência, por dentro uma massa desordenada de ideias, pensamentos, de tudo o que foi dito e mais ainda daquilo que foi sufocado. Somos a tinta que nos faz tinteiros. As cores que não podemos apagar. Os erros com os quais tivemos que nos conformar, os risos, sorrisos, as lágrimas, os beijos, os sonhos, a realidade. As cinzas de um mundo inteiro preto e branco e o florescer desconcertante do que neste lugar, só cabe na imaginação... Este mundo está acabado... Mas não se angustie. Deslimite-se! Acaso não vê que o período deles é composto por subordinação, que são sujeitos indeterminados?

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E quanto a mim? Sujeito oculto, creio que em um estranho período composto por insubordinação! Não, nada de oração. Matei os dragões. Não conhecemos nosso destino e nem o tempo de nossa partida. Revelei as ilusões. Ora, somos só passageiros, loucos ou meros aventureiros.

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Autores Marcello Costa Jornalista, escritor, cinéfilo, mestre e criador de seus próprios sistemas e mundos de rpg como Mehgalom e Ômega. Lucas Migowski Escritor, contador de histórias e vendedor. Possui um canal no youtube com o nome Fundo do Poço.

M. N. Bondezan Responsável por Utopia - Contos Fantásticos. Página de contos para amantes da literatura fantástica e afins, que desenvolve diferentes estilos de escrita e histórias, muitas delas relacionadas às aventuras de rpg. Os contos são apresentados sob pseudônimos, que se referem à natureza de cada um. Aqui, foram apresentados Sibila, Ilusionista, Caçadora, Incubbus e Arcanjo. Os contos ficam disponíveis na página do facebook, onde também pode ser adquirido o livro Guardiões da Noite, através do autor.

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