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mundo
from Grifo 09
by Jornal Grifo
14 mundo Desperta, América!
“O futebol é tão fora da realidade assim?” perguntou o comentarista após o reinício do jogo entre América de Cali e Atlético MG em Barranquilla, Colômbia, dia 13 de maio, interrompido duas vezes pela fumaça do gás de pimenta jogado pela polícia em manifestantes contra o governo. Para o comentarista e a equipe de transmissão, era para suspender a partida e pronto, porque havia algo muito mais importante, e sério, acontecendo.
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Mudanças importantes estão acontecendo na América Latina. O Chile atingiu outra etapa de protestos contra a direita no final da mesma semana (15 e 16 de maio), elegendo a assembleia que vai redigir uma nova constituição para substituir a atual, editada pelo ditador Augusto Pinochet. O resultado surpreendeu pela derrota do fascismo, que não elegeu sequer um terço dos 155 deputados, pela quantidade de independentes (grupo mais heterogêneo politicamente), pela fortalecimento do Partido Socialista (que elegeu 15 numa coligação que conquistou 28 cadeiras) e pelo grande resultado da coligação entre comunistas e Frente Ampla (25 cadeiras). Além disso, os comunistas venceram nas eleições para prefeitos e governadores importantes, como a capital, Santiago, Recoleta (região metropolitana).
Em 11 dias de maio (10 a 21), o primeiro-ministro Benyamin Netanyahu agiu como agiam os nazistas do século 20 ao mandar bombardear a Faixa de Gaza. Conseguiu 240 mortes, aumento de sua impopularidade e sangue nas mãos.

Macondo manda uma utopia
Carlos Roberto Winckler é sociólogo
No discurso de aceitação do Prêmio Nobel, Gabriel García Márquez rompe com o pessimismo do final de Cem Anos de Solidão, ao enunciar a possibilidade de uma segunda oportunidade às estirpes condenadas a cem anos de solidão.
“Uma nova e arrasadora utopia da vida, onde ninguém possa decidir pelos outros, até mesmo a forma de morrer, onde de verdade seja certo o amor e seja possível a felicidade...”
O que desejam os jovens, estudantes, camponeses, povos originários, afrodescendentes, os velhos nas ruas das cidades colombianas, senão um mundo onde possam decidir suas vidas, sonegadas pela violência secular? Violência presente nas disputas intra-elites desde o século XIX, onde coube às classes subalternas o papel de vítima coadjuvante, que esboça em alguns momentos certa autonomia e radicalidade, que as distingue na América Latina. Assim foi na Guerra dos Mil Dias na passagem para o século XX , na resistência à reação conservadora, que levou à La Violência entre 1946 e 1957 com dezenas de milhares de vítimas. O posterior pacto pelo alto das elites bloqueou oposições fora do sistema e forçou o salto organizativo das guerrilhas de esquerda contraposto à crescente militarização do Estado, concomitante à formação de bandos paramilitares de extrema direita. O acordo de paz no início dos anos 80 sucumbiu com a onda repressiva à grupos da guerrilha incorporados à vida política institucional. Centenas de políticos e lideranças populares foram assassinados.
Nos anos 90 foi imposta a ordem neoliberal como política de Estado. A assinatura do Tratado de Livre Comércio com os EUA liquidou a soberania colombiana. Degrada-se o tecido social, o crime organizado torna-se meio de vida e a economia “delectiva” se expande com as políticas neoliberais de desregulamentação geral. Em escala modesta, nem setores da guerrilha ficaram imunes a esse processo. A dinâmica da violência levou à remoção forçada no campo, a formação de massas de refugiados a pretexto de luta contra o “narcoguerrilha” (termo criado pela inteligência dos EUA) ; à concentração agrária, ao cultivo ilícito, à exploração desenfreada de recuros minerais com destruição dos modos de vida dos povos originários e degradação ambiental. A especulação imobiliária foi impulsionada pela lavagem de receitas do narcotráfico. Avalia-se que as receitas da exportação de coca superaram as do café. Em 2009 foi assinado o tratado militar com os EUA, que permitiu instalação de bases estadunidenses no território colombiano. Novo pacto de paz foi realizado pelo governo de Juan Manoel dos Santos, sucessor de Alvaro Uribe, ambos de extrema direita. A política uribista de repressão social retorna com Ivan Duque em meio à crise pandêmica. As manifestações em curso têm como motivo imediato uma reforma tributária insuficiente. A repressao policial com apoio do exército e de grupos paramilitares deixa um rastro de agressões, mortes, desaparecimentos e estupros, em tudo semelhante à repressão às manifestações chilenas de 2019. Sob pressão, o projeto de reforma foi retirado e o governo fala em diálogo.
O que nos diz a Colômbia? O massacre em Jacarezinho, precedido nos meses anteriores pela morte de centenas de pessoas nas favelas, prenuncia o risco de parapolitica similar à colombiana. O assassinato de Marielle por milicianos é parte dessse cenário. O Rio de Janeiro é laboratório bolsonarista com cumplicidades no aparato estatal e conluios com a elite local. Se na Colômbia surge a possibilidade de uma Macondo de verdadeira comunhão humana, por aqui outros ainda decidem pela nossa vida e morte.
