Retrato do artista quando jovem

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Outro ponto interessante é a especificidade da epifania no contexto de Retrato do artista quando jovem pois, se as experiências místicas dos santos, o êxtase poético dos românticos e o êxtase amoroso dos trovadores medievais têm muitas ligações com o momento de revelação buscado por Stephen Dedalus, tais instantes de transe também apresentam diferenças essenciais em relação à epifania conforme explicada pelo personagem. Em primeiro lugar, como ensina William Wordsworth, o êxtase romântico do qual deriva a obra de arte está diretamente relacionado com o fazer poético obtido pela conjunção de percepção sensorial, emoção, e “recollection in tranquility”. Além disso, propõe-se a recriar a beleza através de capacidade exclusiva do artista, isto é, por meio do dom específico que Samuel Taylor Coleridge denomina “secondary imagination”; a finalidade de tal momento de transe é, naturalmente, um resultado estético e praticado objetivamente, ou seja, uma obra de arte concreta. O “minnesinger” medieval, por sua vez, descreve o instante de alumbramento em que a beleza transita do olhar para o coração humano, fazendo refulgir aí o amor absoluto. Neste caso, o resultado do êxtase é um sentimento abstrato, e consequentemente puro. Aliás, como largamente difundido, é uma mágica experiência desse tipo que absorve Dante, no momento mesmo em que ele avista Beatriz pela primeira vez; ambos têm apenas nove anos de idade mas, segundo conta o poeta em Vita Nuova, naquele instante, a centelha de beleza ilumina para sempre o seu coração com a chama do amor perene e absoluto. Outro transe específico é a experiência mística dos santos, um êxtase de natureza puramente anagógica, um momento inefável em que o humano transcende a si mesmo, um estado milagroso de arrebatamento em que, para usar-se termos de Mircea Eliade, o profano é momentaneamente absorvido pelo sagrado atemporal e aespacial. O resultado deste transe não é um objeto concreto como a obra de arte romântica, nem um sentimento, como no caso o “minnesinger” apaixonado, mas uma momentânea morte do corpo, o milagre da comunhão do espírito humano com o espírito divino. No que concerne à epifania ambicionada e sistematicamente registrada pelo personagem de Joyce, entretanto, a exaltação milagrosa, o alumbramento momentâneo é de natureza especulativa e, portanto, intelectual. Toma por base a “coisidade”, a essência do ser, uma essência não necessariamente espiritual ou artisticamente bela, e não um dos atributos do ser, ou a ausência total do ser, ou seja, a morte do observador, ou do objeto observado; constitui-se como o raro momento de desvelamento do ser ou, como diz Stephen Dedalus, o instante em que o


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