Escravos e o código de posturas de são luís

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ESCRAVOS E O CÓDIGO DE POSTURAS DE SÃO LUÍS, OS [16]. A escravidão foi um dos mais vergonhosos períodos da história humana e que se arrasta até os dias atuais, muito embora, atualmente, aconteça de modo velado. Jesus (2005) mostra que a escravidão é algo que acompanha o homem desde os primórdios de sua existência, sendo registrada ainda na pré-história, e está intimamente ligada à economia das sociedades humanas. O autor disserta que a escravidão, na história das sociedades, ultrapassa questões como cor, raça e grupos sociais e está baseada na relação homem e seu semelhante, ela está ancorada na forma que o homem percebe o seu próximo, como ele o concebe. Nesse sentido, a escravidão seria o ato o cultivo de manter um ser humano trabalhando sem o recebimento de um bem pecuniário, e mais atualmente, com a evolução do entendimento dos direitos à vida e a dignidade, aqueles que ficam sem receber os bens devidos pela lei trabalhista em vigor. Desse modo, o escravo é uma espécie de matéria, ou mesmo, um instrumento de seu dono, sendo o homem rebaixado a categoria de ‘coisa’, ‘objeto’, um algo que não possui sentimento, história ou qualquer semelhança com um ser vivo. É como assegura Rosa (apud JESUS, 2005, p 39) que nos lembra que A escravidão pressupõe a subjugação de um outro, do qual não se reconhece nada além do que sua coisificação. O escravo é assim afastado das características humanas. A própria denominação peça dada ao escravo no


comércio escravista denunciava essa coisificação do ser humano. No passar dos anos, o conceito de escravidão vem se espraiando, estendendo-se para designar regimes de trabalho árduo com pouca renumeração, até para designar as vítimas de tráfico humano que são obrigadas a se prostituírem pelos traficantes e máfias de países europeus. Com relação a essa prática, as leis têm sido bastante severas, punido com duras penas aqueles que a exercita. O homem, graças a profundas reflexões com relação a sua existência e sua própria constituição, tem encarado como escravo inúmeras pessoas que praticam atividades renumeradas e que ferem a dignidade humana, como as garotas que são tomadas no Brasil e levadas ao exterior para trabalharem como prostitutas ou traficantes e os garimpeiros, no interior do Brasil, que trabalham para pagar os gastos com a própria sobrevivência e nunca possuem lucro com o seu trabalho. É interessante notar que para a doutrina marxista, o trabalhador é sempre encarado como um escravo do sistema capitalista, por está vendendo sua força de trabalho e seu lucro pertencer não ao trabalhador, mas ao capitalista(o escravocrata), configurando uma escravidão. Nesse sentido, é conveniente afirmar que na base da escravidão há inúmeros vícios humanos que dão forças a esse regime, como a exploração, o desejo do lucro excessivo e, ainda, total


desrespeitos pelo ser-humano, por sua constituição física e pelos seus direitos. Muito embora a escravidão esteja ‘extinta’ no território brasileiro pela lei assinada pela princesa regente Isabel, em 1889, a escravidão deixou profundas marcas na cultura e na psicologia social do Brasil, permeando, ainda hoje, a péssima situação que muitos descendentes dos escravos vivem. É válido lembrar também que a escravidão já foi um comercio de grande lucro para o País e durou cerca de 4 séculos (XVI, XVII, XVIII e início do XIX). A partir do século XVIII, muito embora a escravidão já existia desde os primórdios do descobrimento, no século XVI, muitos brasileiros começavam a enriquecer com o trabalho e com o comércio de escravos: o braço africano substituiu o indígena e serviu como uma grande engrenagem para a produção do açúcar, do café e do algodão, entre outros, nas diferentes regiões do País, produtos, que durantes séculos, deu suporte à economia do País. Sobre o início da escravidão no Brasil, mais uma vez citamos Rosa (apud JESUS, 2005, p 40): Aqui chegando, os portugueses deparam-se com uma nova categoria, os chamados ‘negros da terra’, isto é, as populações indígenas cuja as comunidades desconheciam a escravidão tal como era praticada no mundo europeu. Em alguns grupos indígenas, os prisioneiros de guerras, não devorados em festim, eram assimilados pela tribo, inicialmente em


condições de inferioridade. A ele estava destinada uma carga maior de trabalho físico. (grifos originais)

Como ora afirmamos, a cultura de cana-de-açúcar subsidiou a escravidão no País. Graças ao trabalho escravo, os engenhos puderam moer canas e sobreviver no País: a relação escravidão e indústria canavieira é tão íntima que pode-se perceber, conforme nos demonstra Godoy (2007), que a medida que a cultura de cana foi crescendo, crescia, na mesma medida, a indústria escravocrata: À medida que avançava a acumulação proveniente das atividades agroaçucareiras e expandia a disponibilidade de crédito na Colônia, cresciam os investimentos na aquisição de escravos africanos. Inicialmente, privilegiou-se a compra de cativos especializados, com o deslocamento gradual dos indígenas para atividades não-especializadas. Em um segundo momento, os africanos foram alocados indistintamente em todas as atividades do cultivo e transformação da cana-de-açúcar. (GODOY, 2007,

p 11) No quesito religiosidade que o escravo fora mais ferido. Extremamente perseguido pela igreja cristã, o escravo era considerado como um ser sem alma, e que, portanto, não possuía direitos de entrar em qualquer templo religioso, como se fosse um animal; suas religiões foram, e atualmente ainda são, consideradas bruxarias, podendo ser condenado a morte aqueles que a praticasse. Desse modo, o escravo só


poderia cultuar seus deuses escondidos ou em refúgios, ou ainda, em zonas isoladas em âmbitos rurais (NEVES, 1996). Na sociedade colonial, os escravos possuíam inúmeras atividades, que eram atribuídas a partir de aspectos físicos do escravo, da origem e das habilidades que o escravo apresentasse: desse modo, conforme Neves: O escravo negro, no Brasil – e no resto da América onde o sistema escravista foi adotado -, foi empregado em todas as atividades que exigissem esforço físico, mas principalmente nas grandes propriedades monocultoras. Desde a mais tenra idade, os negros desempenham todas as atividades necessárias ao bom funcionamento das unidades agrícolas: ou dedicavam-se ao trabalho da terra, ou eram empregados em atividades domésticas, ou ainda, em atividades complementares à agricultura (marceneiro, pescadores, barqueiros etc.). (NEVES, 1996, p 27).

Nos centros urbanos, os escravos eram presença certa nas casas dos grandes donos de terra, como serviçal. Por outro lado, era comum também ver os escravos trabalhando na rua para sustento próprio e da casa onde eles residiam. Desse modo, era possível ver escravos vendendo alimentos e serviços (domésticos, na grande maioria das vezes, como limpeza de calçadas, recolha de lixos residenciais, transporte de coisas e pessoas etc.). Os alimentos vendidos pelos escravos eram diversificados, conforme nos relata Neves:


Aos escravos de ganho ficava também reservado o pequeno comércio ambulante(...): nas praças, ruas e jardins das cidades brasileiras era comum verem-se negras que ofereciam aos passantes mercadoria bem diversificada como verduras, frutas, flores, raízes, cosméticos, bolos, doces, legumes, ovos, torta, rosca, panelas, copos, moringas, roupas, jóias de fantasia, livros, etc (NEVES, 1999, p. 49)

Neves (1999) nos relata de igual modo que muitos escravos eram obrigados a dar grande parte de seus lucros a seus senhores, além de muitos deles serem obrigados a mendigar e se praticar prostituição para o lucro de seus senhores: Vale também mencionar que a prostituição e a mendicância eram modalidades de exploração dos ganhos dos cativos, fornecendo aos senhores renda razoável (p. 49). No Maranhão, a escravidão, como em todo o Brasil, deu-se com a introdução das culturas de cana-de-açúcar e algodão. A Companhia do Comércio do Grão-Pará e Maranhão foi quem importou inúmeros escravos para o Estado, sendo grande parte de Angola e Guiné-Bissau. No entanto, o comércio no Estado era de pouca relevância, por causa da famosa crise do algodão e a produção de açúcar que não era uma grande produção, o que fazia com que os escravos não fossem uma ‘mercadoria’ útil no Estado. Contudo, na história da escravatura brasileira, o Maranhão possui um emblema que o marcou durante muito tempo: o Estado foi terra temida pelos escravos, conforme nos explica Assunção:


Junto com o Pará, o Maranhão gozava de péssima reputação entre escravos e senhores alhures. Ao ponto de a venda para o Maranhão ser até uma ameaça para punir escravos desobedientes em outras províncias. Não há ainda uma explicação bem estabelecida na historiografia a respeito dessa imagem negativa. Contemporâneos viam a causa nas péssimas condições de trabalho. Outra razão certamente residia na proliferação, por todo o território da província, de doenças endêmicas como “sezões” (malária) (ASSUNÇÃO, 2010, p. 69).

A escravidão maranhense manteve-se graças ao A Companhia do Grão-Pará e Maranhão e o comércio de algodão, que fazia com que mais de metade da população fosse escrava, no começo do século XIX. Com o fim da importação de escravos e o sufocar da indústria escravista no resto do Brasil, o Maranhão figurou como um dos últimos estados que foram redutos do comércio negreiro no Brasil, servindo como fornecedor de escravos para outros estados, uma vez que com a crise do algodão, que estava em seus tempos áureos, e as muitas dívidas deixadas pela crise, os fazendeiros se viam obrigados a vender seus escravos (ASSUNÇÃO, 2010); não se pode esquecer que uma das principais revoltas populares acontecidas no Maranhão, a balaiada, teve em sua base um grande apoio de escravos revoltosos e sedentos pela liberdade. Apesar da presença marcante da indústria escravocrata no Estado, ainda são escassos os trabalhos que se detivessem no


cotidiano dos escravos nas cidades maranhenses, trabalhos que nos relatem acerca de como era o cotidiano dos escravos e como era a hierarquia de uma casa em São Luís, nos quase quatro séculos de escravidão no Brasil (mesmo tendo o Maranhão vivenciado apenas dois séculos). Nesse sentido, um artigo escrito por DVF, na Revista Maranhense de Cultura, publicada no primeiro semestre de 1978 se mostra relevante. No trabalho, DVF descreve como eram as tarefas e a convivência com os escravos nas ruas de São Luís de meados do século XIX, além de demonstrar como as leis regiam os escravos da época; DVF também disserta acerca de alguns mitos presentes no imaginário popular acerca da escravidão no Estado. DVF inicia o artigo descrevendo como era o código e o que ele regia, naquelas alturas, nos dando informações do ano, sancionador entre outras coisas: um dos melhores códigos de postura que vigiram para a cidade de São Luís, disciplinando inúmeros aspectos de sua via urbana, foi o de1866,(...) sancionado pelo então presidente da província Dr. Lafayette Rodrigues Pereira (p. 16). DVF afirma que o código ajudou e muito a reorganizar a vida urbana de São Luís da época por tratar de inúmeros aspectos, como os limites dos poderes municipais e estaduais: (...) abrangia um amplo quadro de franquias e vedações normalizadoras da vida municipal (...) com as frequentes turras entre camaristas e governo e povo e clero (p.16).


Contudo, é o aspecto escravista que mais chama a atenção de DVF para o código: Nele o escravo africano e seus descendentes é objeto de preocupação do legislador porque, na ótica jurídica da época, o pobre africano transplantado à força para cá, onde se exauria em mil tarefas, na dura labutação dos campos de lavoura e no lufa-lufa das cidades, era visto mais como uma coisa do que como pessoa, algo assim, abaixo dos próprios semoventes. (p. 16)

Como se vê no trecho citado, o negro no Maranhão, a despeito de outros estados do Brasil, era considerado como um objeto. Essa visão só começou a dividir espaço com uma visão humanística a partir dos estudos antropológicos do estruturalismo americano, sobretudo na figura de Franz Boas que classificava o racismo como um “egocentrismo do homem europeu” que só sucumbiu após um contato (às vezes íntimo) com os escravos, como expõe DVF em seu artigo. No texto, DVF comenta que às Câmaras Municipais era devido fazer denúncia dos maus tratos e violências causadas pelos senhores a seus escravos; no entanto, DVF explica e que algumas leis do século XVII, obrigavam as câmaras a esconder ou relaxar as penas sobre os senhores de escravos. DVF também comenta com respeito da fama de o Maranhão ser um lugar temido pelos escravos, dizendo que essa era uma realidade infundada, assegurando que o exagero


da violência, uma dos principais motivos, segundo DVF, para o medo dos escravos, não era exclusividade dos donos de terras maranhense: os excessos dos senhores de escravos eram comuns a toda a extensa área abrangente da escravidão africana no Brasil (...). O Maranhão, por certo, não constituiu uma honrosa exceção nesse particular. (p. 17). DVF explica que a Literatura da época auxiliou muito para esse estereótipo, mas ele o considera falso. No entanto, DVF afirma que aqui houve muitos maus tratos, muitos eram desumanos, mas DVF relata que nunca se aplicou em terras maranhenses, uma dos mais desumanos dos castigos aplicados aos escravos: Nunca se aplicou por aqui para disciplinar o escravo aquela receita encomendada por um português no século XVI nos primeiros engenhos de açúcar instalados na colônia e que vem referida por Boxer em sua obra “A idade do Ouro no Brasil” (...)”...darselheha com um assoite seu castigo, e depois de bem assoitado, o mandará picar com navalha ou faca que corte bem, he dardelheha com sal, sumo de limão e orina e o meterá alguns dias na corrente, e sendo femea será ssoitada a guisa de bayona dentro em hua caza e com mesmo açoite. (p. 18)

Outro mito sobre a história dos escravos no Maranhão que DVF tenta desfazer em seu texto é o da lendária Ana Jansen, figura temida pelos escravos e que, até os dias atuais, consagra-se no imaginário popular como sendo uma mulher rica, de muitas terras e que aplicava duros castigos a seus


serviçais. DVF disse que muitas das lendas que são contadas sobre a figura de Ana Jansen não passam de inverdades e que a fama de mau estava mais pelo preconceito machista da época, visto que Ana Jansen possuía muitos poderes políticos e econômicos, do que pela forma que ela tratava os escravos. DVF registra que houve alguns excessos praticados no Maranhão, dos quais ele destaca dois que ficaram famosos: o primeiro é sobre tratamento dado a uma escrava que era açoitada todas as vezes que não conseguia vender por completo o estoque de doces que a sua senhora lhe mandava vender e o segundo éde um senhor que obrigava um escravo idoso a trabalhos pesados. No entanto, DVF afirma que esses excessos, às vezes, eram proibidos pelo código de postura, como por exemplo: O Código de Postura proibia expressamente andar pelas ruas de S. Luís escravos postando gargalheiras, grilheiras ou quaisquer outros instrumentos de suplício. (...) “aquele que assim forem encontrados serão retidos por qualquer dos fiscais, que depois de tirar-lhes os mesmos instrumentos os entregarão aos senhores que pagarão a multa de dez mil réis e o dobro nas reincidências (p. 18-19).

DVF afirma que mesmo com essa proibição, era comum ver escravos andando pelas ruas de São Luís com instrumentos de tortura, conforme foi registrado por jornais da época,


como Publicador Maranhense e O Pais, jornal que circulavam na província. Em outro caput, o código proibia a reunião de escravos para fim de jogos ilícitos, os que fossem considerados jogatina, sem a autorização de seu dono; caso a ordem fosse desobedecida, o escravo seria preso e, caso o senhor quisesse, o Estado açoitaria o escravo. Em um outro caput, o código proíbe a circulação de escravos a noite sem a autorização do senhor pois do contrário, será traficado e posteriormente entregue a seu senhor que pagaria a multa de um mil réis. E por certo que descontaria na pelo do pobre negro... (p. 19). O artigo 31 do Código de Postura, segundo DVF, proibia que os negros possuíssem qualquer tipo de comércio próprio, salvo com a prévia autorização de seu senhor. O escravo que não obtivesse tal autorização seria preso (caso reincidisse) e pagaria uma multa de dez mil réis.

Referências deste verbete: ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig . A memória do tempo de cativeiro no Maranhão. Tempo. Revista do Departamento de História da UFF, v. 14, p. 67-110, 2010. Jesus, Jaques Gomes de. Trabalho Escravo no Brasil Contemporâneo: Representações Sociais dos Libertadores [Dissertação de Mestrado submetida ao Instituto de


Psicologia da Universidade de Brasília, Brasil, 2005, 180 páginas] MOTA, Antônio da Silva. Família escrava nas plantations do Maranhão (1780/1820): resistência ou acomodação?. XXVI CONGRESSO NACIONAL DE HISTÓRIA – ANPHU. Anais... São Paulo: ANPHU, 2011, p 1-10. Disponível em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/13009 24454_ARQUIVO_ANPUH2011-familia+escrava.pdf. Acesso em: 31/08/2013. NEVES, Maria de Fátima Rodrigues das. Documentos sobre a escravidão no Brasil. São Paulo: Contexto, 1996.


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