Revista Morel

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CULTIVO a esperança de que alguém possa dividir comigo a imensa impressão que causa esta fotografia encontrada na vitrine de um hospital, onde algum admirador -ou admiradora- de Julio Cortázar, após recortá-la de una revista, colou-a cuidadosamente pelos quatro cantos. Quando a olhei de perto, envolvido pela iluminação frontal que o destaca tão avivadamente, não resisti à tentação de levá-la comigo, disposto a descrevê-la para aqueles que não a conheciam. Entretanto, devo reconhecer que não foi tarefa fácil, senão um desafio contra a subjetividade que me espreitava a cada instante, pois passei varias horas querendo descrevê-la, sem sucesso, e somente aqueles que passaram noites sem dormir, com uma ideia insistente que revoa na cabeça, compreenderão o desespero que supõe tentar caçar as palavras exatas para descrever una fotografia que por si é uma poesia feita de luz e de sombra. Querido Julio, nesta fotografia, mais que em nenhuma outra, você nos olha desde o fundo de teus olhos ternos, enquanto teu rosto, marcado por uma profunda expressão de melancolia, nos inspira um súbito respeito e admiração pelo que foste na simplicidade e o silêncio, circunstancias nas quais aprendeste a comunicar-te mais com os gestos do que com palavras, como todo grande escritor que manifesta seus pensamentos e sentimentos através da palavra escrita, desses pequenos grafemas que você, desde criança, escrevia com o dedo no ar, como se tratassem de signos mágicos que nasciam de tua imaginação ou a partir de um palíndromo, onde a palavra “Roma” lia-se “amoR” ao invertêla.

Ao contemplar intensamente esta fotografia, na qual aparece com a cabeleira e barba leoninas, crescidas com tanta rebeldia como as chamas de sua alma, te imagino em seu escritório qual gigante perdido no “País das Maravilhas”, escutando os improvisos do jazz, lendo os livros de sua preferência ou, simplesmente, acariciando as costas de sua gata Flanelle, cujo ronronar era a única música que rompia a monotonia do silêncio.

Foto de Ulla Montan, inspiração para essa crônica


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