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INTRODUÇÃO
O predomínio de atitudes e convenções sociais discriminatórias em relação aos LGBT+ ainda é uma realidade persistente e naturalizada na maioria das sociedades. No Brasil, algumas conquistas já foram comemoradas em relação ao combate à discriminação contra a população LGBT+. No entanto, ainda existem muitos desafios a serem vencidos, principalmente no momento político conturbado vivido pelo país. As discriminações por orientação sexual, gênero e/ou características biológicas, são produzidas em todos os espaços da sociedade brasileira e apenas leis não serão suficientes para a mudança da percepção dos brasileiros em relação à estas temáticas. Sendo assim, encontramos o ponto chave que faz do Movimento LGBT+ um importante agente político-social: as suas ações têm um papel estruturante, que motiva a reflexão individual e coletiva e que age efetivamente na busca do fim do preconceito.
Diante dessa perspectiva, apresentamos o tema principal deste livro: o Movimento LGBT+ do Espírito Santo. A própria denominação indica, ao utilizar a palavra “movimento”, do que se trata. Entendemos por movimento o estado contrário da inércia, a mudança de lugar, de posição ou, simplesmente, o ato de se mover. Movimentar-se, nesse sentido, é iniciar um processo de luta. Luta por afirmação, por respeito e por dignidade social para esse grupo social.
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Neste livro percebemos os processos discriminatórios como construções concebidas socialmente e buscamos desenvolver uma postura crítica em relação à naturalização do preconceito contra pessoas LGBT+. A homossexualidade, bem como a transexualidade, já foi duramente condenada, vista como transtorno, perturbação ou desvio durante largo
tempo, por diferentes segmentos da sociedade. Hoje, embora existir como pessoa LGBT+ não seja mais considerado atitude criminosa no Brasil, nem transtorno ou desvio sexual pela medicina, o preconceito ainda vigora no país.
Esse preconceito vem sendo combatido pelo Movimento LGBT+, que luta para superar o estigma que já reprovou e perseguiu veementemente pessoas ao longo da história. As pessoas LGBT+ têm seu direito à vida violado e para se certificar deste fato, basta acompanhar os índices alarmantes indicados, por exemplo, no Relatório do Grupo Gay da Bahia (GGB), que mostra que a cada 20 horas um LGBT+ é barbaramente assassinado ou se suicida vítima da LGBTfobia no Brasil em 2018 – o que faz do Brasil o campeão mundial de crimes contra as minorias sexuais2 .
O relatório indica que, enquanto nos Estados Unidos – com 330 milhões de habitantes – foram assassinados 28 transexuais durante todo o ano – no Brasil – com 208 milhões de habitantes – registraram-se 164 travestis e transexuais vítimas fatais de transfobia. Isto é, o risco de uma pessoa trans brasileira ser assassinada é nove vezes maior do que as norte-americanas.
Diante de tudo isso, podemos afirmar, de maneira prática, que o Movimento LGBT+ atua em três vertentes: 1. no sentido de esclarecer questões junto à sociedade, com o intuito de combater a discriminação; 2. na tentativa de visibilizar e promover a voz de grupos silenciados, de lutar pela liberdade integral das pessoas e pela garantia de seus direitos assegurados pela Constituição deste país3; 3. na busca diária pela mudança do status quo e pela substituição de valores nocivos arraigados na sociedade que promovem a desigualdade entre as pessoas por causa de suas diversidades.
O Movimento LGBT+ entretanto, heterogêneo que é, ainda que esteja
2 É necessário pontuar que o trabalho realizado pelo GGB é um dado extraoficial, feito, inclusive, por conta da falta de interesse do poder público em realizar uma quantificação eficiente desses dados. A efetivação de uma base de dados mais completa deveria ser realizada unindo instâncias hospitalares, policiais, etc. Assim, os números indicados pelo GGB podem ser ainda muito maiores. 3 Lembremos que o Artigo 5 da nossa Constituição deixa evidente que: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.
amplamente comprometido com as vertentes citadas acima, ramifica-se e adequa-se conforme as especificidades de cada estado, de maneira a acompanhar a pluralidade de um país com dimensões continentais como o Brasil. Assim, observamos, no Espírito Santo, localidade onde este livro se constitui, peculiaridades que serão expostas ao longo dos capítulos.
Por exemplo: segundo o Dossiê do Lesbocídio no Brasil, criado pelas pesquisadoras Maria Clara Dias, Suane Soares e Milena Peres no Núcleo de Inclusão Social da UFRJ e publicado em 2018, foram registrados 16 lesbocídios em 2014 e 54 em 2017. O relatório indica aumento alarmante dos registros de assassinatos de lésbicas motivados pelo ódio, mostrando inclusive números levantados pelo GGB que indicam dois casos registrados de lesbocídio no Brasil no ano de 2000. O documento aponta que 3% dos lesbocídios cometidos entre 2014 e 2017 aconteceram no Espírito Santo – com pico em 2017, quando 6% desses crimes foram cometidos no estado.
Vitória, a capital do estado, foi apontada pela pesquisa “Juventude e Sexualidade”, realizada pela UNESCO (organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), como a capital mais LGBTfóbica4 do país. A pesquisa, apesar de bem antiga – de 2004 – é ainda uma das únicas que abrangem o ambiente escolar e o tema. Outra pesquisa realizada pelo Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN), em parceria com a Secretaria de Direitos Humanos (SEDH) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo (FAPES) somente focada na população transgênero, revelou que o preconceito muitas vezes está dentro do lar: mais de 60% dos entrevistados disseram ter sofrido discriminação em sua família por ser transexual ou travesti. Dos entrevistados, 43% relataram ter sofrido algum tipo de violência no ambiente familiar, seja psicológica, verbal e também física. Cerca de 10% revelaram ter sofrido abuso sexual por membros da família. Grande parte dos pesquisados atribui o preconceito à falta de informação, já outra parte, também significativa, aos valores morais e religiosos dos agressores.
Infelizmente, pesquisas como essas são escassas e ainda não abarcam as especificidades de todas as violências motivadas pelo precon-
4 A pesquisa, na verdade, utilizava o termo “homofóbica”. Adequamos livremente o termo para LGBTfóbica por o considerarmos mais abrangente e melhor adequado para a situação.
ceito que atingem a população LGBT+. Faltam estatísticas, mas sobram episódios de preconceito, sensação de insegurança e impunidade. Na tentativa de minimizar o problema, porém, existem políticas públicas voltadas para essa minoria social, tanto a nível estadual quanto municipal, que merecem ser apontadas. Não as consideramos suficientes, ainda há muito o que percorrer, mas valorizar o caminho trilhado até aqui é essencial para a construção de um futuro melhor.
Um exemplo positivo é o município de Colatina, que tem a Lei nº 5.304, de 17 de julho de 2007, que “institui no âmbito do município de Colatina a promoção e o reconhecimento da liberdade de orientação, prática, manifestação, identidade sexual e estabelece penalidades aos estabelecimentos localizados no município, que discriminarem pessoas em virtude de sua orientação sexual e identidade de gênero”. Ou mesmo a capital, Vitória, que somente em 2018, depois de quase cinco anos em silêncio, regulamentou a Lei 8.627, de 2014, que prevê punições administrativas em atos de discriminação por diversos motivos, entre eles por causa de identidade de gênero e por orientação sexual.
O principal objetivo desse mapeamento é preservar a memória do Movimento LGBT+ do Espírito Santo. Acreditamos ser importante esse resgate histórico, na medida em que vivemos em um mundo de mudanças sociais aceleradas. Ou seja, o livro-reportagem em questão atua numa tentativa de resistir à dissolução do tempo.
Essa resistência se faz necessária para que os espaços de poder já conquistados e as políticas públicas já alcançadas sejam vistas como fruto de processos específicos, por vezes demorados e custosos, de lutas políticas encampadas por uma minoria ciente do seu papel de agente social, dentro da minoria LGBT+. É para que a memória dessa minoria, desses personagens que foram e são importantes na militância no Espírito Santo, não se perca com o passar do tempo, que escrevemos essa narrativa.
Sendo o objeto deste livro um movimento social influente na sociedade atual, acreditamos ser extremamente importante avaliar o passado para agir no presente e, quem sabe, ajudar a construir seu futuro. Para além da preservação da memória, este livro tem como objetivo contribuir para que as entidades e órgãos que militam a favor da causa possam
sustentar ainda mais a sua luta, baseadas em dados coletados através de documentos oficiais, arquivos, fotografias, clipping de jornais, estatísticas, depoimentos e pesquisa bibliográfica. O trabalho pretende, por fim, contribuir como forma de esclarecimento em relação à temática LGBT+, para que o assunto cada vez mais deixe de ser um tabu na nossa sociedade.
Ao manter vivo e acessível aquilo que passou, tomamos consciência da nossa efemeridade como sujeitos históricos e podemos vislumbrar uma possibilidade de continuidade e perpetuação. Conhecer o passado e preservar a nossa memória é condição básica para as ações no presente. Acreditamos que, quando sabemos como aqueles que nos antecederam agiram diante de determinado acontecimento, podemos nos espelhar, ou não, em suas ações para agir com mais consciência no presente. Refletir sobre a memória é valorizar o passado e seu legado, e isso é um pressuposto básico para que mudanças futuras ocorram.
