A Azul agradece a todas as pessoas que, de alguma maneira, participaram da produção deste livro. Seja enviando fotos, sugerindo histórias ou cedendo um pouco do seu tempo para relembrar momentos marcantes na trajetória da companhia e, consequentemente, de suas próprias carreiras.
É emocionante podermos voltar no tempo não apenas como um exercício nostálgico de relembrar o passado. Mas, principalmente, para conhecer a origem de tudo o que somos hoje. Olhar para esses últimos 15 anos é entender que a Azul é o resultado de cada uma dessas histórias que vêm sendo escritas com muita criatividade, carinho e dedicação.
Por isso, agradecemos. Não só aos mais de 16 mil Tripulantes que, hoje, atuam por aqui, mas também aos milhares que nos ajudaram na construção dessa empresa, mas que, por diversos fatores, tomaram outros rumos.
Agradecemos, enfim, a todos os que aceitaram fazer dessa empresa a melhor companhia aérea do mundo e transformaram a Azul no melhor emprego de suas vidas.
Fabio Campos
Diretor Institucional da Azul Linhas Aéreas
Registro feito pelo spotter Rafael Chaves inscrito no concurso fotográfico em comemoração aos 15 anos da Azul
PREFÁCIO
Há histórias que não apenas se contam, mas que inspiram, emocionam e deixam marcas profundas. A trajetória da Azul Linhas Aéreas é uma dessas. Uma empresa que nasceu do sonho de fazer diferente, trazendo ao mercado brasileiro uma proposta ousada, inovadora e profundamente humana. Este livro que você tem em mãos é mais do que um relato; é um tributo às pessoas que fizeram e continuam a fazer parte dessa jornada.
A Azul surgiu em um cenário desafiador, enfrentando um duopólio que dominava o mercado e um ecossistema cético quanto ao crescimento da aviação comercial no Brasil. Com coragem e determinação, provamos que era possível sonhar alto e realizar. Em dez anos, dobramos o mercado, mostrando que a nossa visão não apenas fazia sentido, mas também tinha o poder de transformar realidades.
Liderar essa companhia foi o maior desafio da minha vida. Vindo do varejo de moda e grandes companhias de mercado de massa, tive que aprender e me adaptar rapidamente a um universo completamente diferente. Desde o início, o compromisso era claro: proporcionar aos nossos Clientes experiências cada vez melhores e oferecer aos nossos colaboradores o melhor emprego de suas vidas. E foi com base nesses pilares que construímos nossa cultura, nossos valores e nossos ritos.
Encontrei na Azul um mosaico de pessoas incríveis – profissionais vindos de companhias icônicas como VARIG, TAM, Transbrasil e VASP. Muitos deles traziam as melhores práticas de suas experiências anteriores, mas também carregavam as cicatrizes de empresas que não conseguiram se sustentar. Nosso desafio foi transformar essa diversidade em uma unidade, alinhada por valores comuns e guiada pelo propósito de servir nossos Clientes como jamais havia sido feito.
Uma mudança crucial que introduzimos foi a maneira como enxergávamos nossos “passageiros”. Decidimos que eles não seriam apenas isso; seriam nossos Clientes. Essa simples mudança de nomenclatura simbolizou uma revolução em nossa filosofia. Clientes merecem respeito, atenção e cuidado. Esse princípio foi e continua sendo a base de tudo o que fazemos.
A Azul não é apenas uma companhia aérea; é uma ponte que conecta sonhos, encurta distâncias e transforma vidas. Somos hoje uma empresa que atende a 160 cidades e trabalhamos com mais 4 tipos de aeronaves, enquanto nossos concorrentes principais operam em menos de 80 e todos com um tipo de avião. Levamos o Brasil ao mundo e trazemos o mundo ao Brasil, criando oportunidades para que cada canto do país esteja ao alcance de todos.
Este livro não é apenas um registro histórico. Ele celebra as conquistas de um time extraordinário que, com suor, paixão e comprometimento, transformou a Azul na maior e melhor companhia aérea do Brasil. É uma homenagem à simplicidade e ao trabalho árduo, à crença de que é possível crescer com valores sólidos e nunca perder de vista o que realmente importa: as pessoas.
Se você já fez parte dessa história, este livro é para relembrar e reforçar o orgulho de ter contribuído para um legado tão significativo. Se você é um Cliente ou apenas alguém curioso por histórias de superação e sucesso, convido você a explorar as páginas seguintes e se inspirar com as lições que aprendemos ao longo do caminho.
O impacto da Azul na sociedade brasileira é inegável. Trouxemos mais opções, conectividade e qualidade ao setor aéreo, provando que uma empresa pode ser ao mesmo tempo eficiente, humana e inovadora.
A jornada da Azul é a prova viva de que sonhos, quando guiados por valores sólidos e executados com excelência, podem transformar não só uma empresa, mas também uma família e uma nação.
Pedro Janot
Fundador e primeiro presidente da Azul Linhas Aéreas
Aérea
Registro feito pela Tripulante Sabrina Alves Costa para o concurso fotográfico em comemoração aos 15 anos da Azul. A foto foi tirada durante no momento em que a aeronave sobrevoava a cidade de São Paulo
A história da Companhia Aérea que conecta o Brasil o céu é
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O futuro é logo ali
A Azul de hoje mostra o quanto é possível criar a Azul do futuro. Mas, como chegamos até aqui? 12
Todos os caminhos levam ao Brasil 2
O sonho de uma empresa aérea começa a ganhar forma. David Neeleman e seu time chegam ao país
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3
Não se pode ensinar paixão
Da união entre norte-americanos e brasileiros surge uma nova empresa ainda sem nome 28
Para o alto e avante
O voo inaugural abre caminho para uma série de conquistas. Contrariando as expectativas, a Azul decola.
66 7
74 Dois mais dois, cinco 8
Fusão com a Trip cria uma companhia ainda mais forte. Mais aviões, mais aeroportos e uma nova sede
Yes, nós temos a Azul!
Próxima parada: EUA! Voos internacionais permitem à companhia conectar Brasil ao resto do mundo
86 9
Alameda Surubiju, 2010
A primeira sede oficial era um grande caldeirão de ideias. O time, agora, estava completo 38 4
Chegam as primeiras aeronaves e a empresa conclui o processo de certificação. Prontos para voar 50 Afivelem seus cintos 5
Um novo tempo
A entrada no mercado de ações. Depois de algumas tentativas, IPO eleva Azul a outro patamar 94 10
Uma pandemia quase parou o mundo, mas a Azul mostrou que isso não é nada para uma empresa formada por pessoas 100 Algo maior que todos nós 11
Um aeroporto para chamar de seu
Como nos grandes romances, o amor entre Azul e Viracopos teve de enfrentar muitos percalços 60 6
Após 15 anos, segue inabalável a cultura da Azul, uma empresa que renasce a cada dia, ainda mais forte 110 12
Depois de um longo e tenebroso inverno
124 Memórias com a Azul
O futuro é logo ali
A Cliente entra apressada no aeroporto de Viracopos, em Campinas. Observa o saguão espaçoso, bem movimentado e não se cansa de pensar na diferença em relação ao que era há duas décadas, quando a Azul Linhas Aéreas Brasileiras resolveu transformar o lugar em sua base de operações. Antes, um terminal de cargas. Agora, um aeroporto de passageiros moderno, que recebe voos dos quatro cantos do Brasil, fazendo a conexão de milhares de pessoas por dia.
É 2030. Os balcões das companhias aéreas, em 2030, são praticamente decorativos. Não ostentam mais um funcionário para despachar bagagem e fazer check-in. Tudo aqui é bem mais rápido. Praticamente todos os check-ins são feitos pelo celular ou em totens de autoatendimento. Até aí, tudo bem. Você vai dizer que isso também se vê em 2025. Mas, não com essa agilidade. Mesmo quem tem bagagem, não precisa mais pegar fila. Conta com a ajuda de um profissional munido de um aparelho que se assemelha muito a um telefone celular, que identifica a mala e a despacha. Tudo é tão rápido que nem dá tempo de se chegar ao balcão. Por isso, eles são praticamente objetos de decoração do aeroporto.
Dentro da aeronave, uma tela individual posicionada à frente do assento conversa com a Cliente. Ela sabe o seu nome, conhece todos os destinos para onde ela voou, quais seus horários, assentos preferidos e é até capaz de sugerir pequenas mudanças para tornar a viagem mais agradável.
”Sei que você gosta de janela, temos um assento vago um pouco mais atrás. Quer trocar?”, propõe a assistente virtual.
E é até difícil lembrar que se trata de uma máquina. A tela, com quem a Cliente pode conversar como se fosse uma pessoa, conhece também os seus programas preferidos e pode elaborar, em segundos, um roteiro que se encaixe perfeitamente no tempo que ela passará voando.
A viagem acontece em plena segurança, um valor da Azul desde o seu primeiro voo, e sem imprevistos. Ela está em um e-jet da segunda geração da Embraer. Eles consomem menos combustível e são menos poluentes, mas isso a nossa Cliente do futuro não consegue perceber. O que ela pode notar de seu assento, aqui em 2030, é que a aeronave é bem mais silenciosa do que as de antigamente. Ela pode até não saber que isso acontece graças à evolução da aerodinâmica, da fuselagem e à redução de fontes de ruído no motor, mas ela sabe que, com esse silêncio, fica mais fácil relaxar e chegar bem disposta ao seu destino.
Enquanto confere o relógio e fica satisfeita com a pontualidade da companhia aérea, a Cliente do futuro analisa como pode fazer o trecho final da viagem. Pensa em algum transporte coletivo ou num carro de aplicativo, mas acha tudo antiquado demais. “Tudo tão 2020”, pensa ela e, logo em seguida, decide que, hoje, vai fazer diferente: escolhe um carro voador, que vêm se tornando popular em todo o mundo. Despede-se da companheira de viagem e parte para mais um dia em 2030.
Se, há algumas décadas, a cena narrada acima teria ares de ficção científica, hoje sabemos que ela reúne projeções muito possíveis para um futuro cada vez mais próximo. Questão de tempo para acontecer.
Inovações desse tipo já estão em análise – umas mais avançadas que outras, é verdade – mas todas tratadas como fundamentais para o setor da aviação. Há 15 anos, quando a Azul surgiu para o mercado nacional, trouxe novidades que ajudaram a melhorar a experiência dos Clientes brasileiros.
A TV ao vivo a bordo, por exemplo, foi algo inovador. A empresa foi a primeira da América Latina a oferecer o serviço de maneira gratuita, individual e em todas as classes de voo. Foi a primeira também a vender passagens por meio de débito bancário e parcelamento em cartão de crédito. Mas, a principal novidade, sem dúvida, foi a proposta de efetivamente interligar o Brasil com voos em seus mais diferentes destinos de norte a sul do país, algo impensável para as empresas que comandavam o setor.
Com seu plano de negócios focado na obtenção de aeronaves menores e mais eficientes, conseguiu conectar o interior do Brasil às principais capitais. Hoje, voa para mais de 160 destinos, uma malha de mais de 300 rotas. Para isso, começar a voar a partir de um aeroporto praticamente sem passageiros foi algo que fez a diferença. A empresa conseguiu criar ali as condições necessárias para crescer de maneira sustentável e oferecer aos seus Clientes uma experiência cada vez melhor. Isso foi inovador e pouca gente achava possível.
Hoje, a companhia chama atenção pelo seu crescimento robusto, sustentado por uma gestão competente. É uma das poucas aéreas do mundo que passou pela pandemia sem receber qualquer ajuda estatal ou ter de recorrer a recuperações judiciais, como aconteceu com suas principais concorrentes no Brasil.
A Azul vem se notabilizando por ótimos resultados focados nos Clientes e que a qualificam para seguir trazendo as inovações que devem continuar encantando as pessoas. Foi eleita a melhor companhia aérea do mundo, em 2020, pelo Tripadvisor, maior plataforma de viagens do mercado. Dois anos mais tarde, foi apontada como a empresa aérea mais pontual do mundo, segundo números da Cirium, líder em análise de dados de aviação.
Há uma estrutura complexa que sustenta a companhia e possibilita a obtenção de resultados cada vez melhores. Em Campinas, a Azul inaugurou um hangar em 2020. Instalado numa área de 35 mil metros quadrados, a unidade é reconhecida como o maior hangar da América Latina e emprega, aproximadamente, 650 Tripulantes e, em pouco tempo de atuação, já se consolidou como um centro de excelência, com capacidade para realizar manutenções pesadas.
Desde 2012, a cidade do interior paulista é também a sede da UniAzul, universidade corporativa que concentra cursos de treinamento e capacitação dos Tripulantes da companhia. É lá que estão instalados os simuladores que testam e treinam a capacidade dos Pilotos de agir em situações extremas e preparam os demais Tripulantes para os desafios que a empresa terá nos próximos anos.
Pensar o futuro e criar condições para concretizálo é uma especialidade da Azul. Foi assim que ela evoluiu de uma ideia na cabeça para uma startup funcionando em uma casa no bairro do Morumbi e, em tempo recorde, chegou a maior companhia aérea brasileira em número de destinos e voos diários, com mais de 16 mil Tripulantes, como são chamados todos os seus funcionários.
É essa disposição para sonhar, planejar e executar que a deixa preparada para liderar as transformações que acontecerão na aviação nacional nos próximos anos. Analisando sua trajetória até aqui é fácil acreditar que ela pode alçar voos ainda maiores. Uma história que começa no segundo semestre de 2007, depois que um empresário nascido no Brasil e radicado nos Estados Unidos ainda na infância, recebeu uma missão que mudaria a história do transporte aéreo nacional.
Após fazer fama no setor da aviação criando, do zero, três companhias aéreas, ele estava prestes a desembarcar no Brasil com uma grande ideia na cabeça e a promessa de US$ 250 milhões em investimentos.
Pronto para mudar o futuro.
Registro feito pelo Tripulante Antônio Luiz Pinto de Sousa para o concurso fotográfico em comemoração aos 15 anos da Azul. A foto foi tirada durante procedimento de movimentação de aeronave no hangar VCP
Legenda da foto lorem ipsum dolor sit amet, consectetur adipiscing elit. Morbi gravida consequat felis eu vestibulum. In ut feugiat nunc.
Registro enviado pela Tripulante Marcela Fernandes para o concurso fotográfico em comemoração aos 15 anos da Azul. A foto foi tirada durante sua instrução de 1º oficial EJET, em 2015
Registro de um ATR da companhia feito pelo Tripulante Lucas da Silva Batista para o concurso fotográfico em comemoração aos 15 anos da Azul
Todos os caminhos levam ao Brasil
2
O ano era 2007. O Brasil vivia um boom econômico e eram muitos os sinais de que o país poderia caminhar a passos largos rumo ao tão prometido e sonhado desenvolvimento. A Bolsa de Valores atingia recordes históricos, com a entrada de 64 companhias e a realização de 76 ofertas públicas de ações, que captaram mais de R$ 70 bilhões à época, o que seria hoje equivalente a cerca de R$ 215 bilhões, corrigidos.
Os bancos ampliavam a oferta de crédito à classe média e o setor imobiliário, pelo menos por aqui, ia de vento em popa. Ao longe, ouvia-se rumores de uma crise no mercado norte-americano. Algo que ainda não estava muito bem delineado, ligado à bolha de hipotecas no mercado financeiro. Situação com potencial devastador, mas ainda não detectado em toda sua extensão àquele momento. Talvez por isso, o otimismo por aqui ainda superava ameaças externas. A Petrobrás descobria novas bacias de petróleo e gás natural no litoral brasileiro, e o real valorizado levava cada vez mais gente ao exterior. Somente em 2007, brasileiros gastaram mais de US$ 8 bi fora do país.
Boa parte desse cenário se devia ao boom das commodities. Os portos brasileiros despachavam toneladas e toneladas de produtos como soja, minério de ferro, petróleo e carne bovina para mercados dispostos a pagar caro pela matéria-prima verde e amarela. Com essa receita baseada numa balança comercial positiva e no fortalecimento do mercado consumidor interno, 2007 marcaria uma guinada no crescimento do PIB, que fecharia com alta de 6,1%.
A nova realidade melhorou a imagem do Brasil. Acordos comerciais abriram espaço para produtos nacionais e o país reforçava laços políticos importantes.
Um prestígio que atingiria seu ápice dois anos depois, com a famosa capa da revista britânica
The Economist, que ilustrava um Cristo Redentor decolando para afirmar que o país era ‘a maior história de sucesso da América Latina’. A sensação de que seríamos eternamente o país do futuro ia, aos poucos, caindo por terra. O futuro, finalmente, parecia ter chegado.
Mesmo com um cenário altamente favorável ou, como se diz na aviação, com um céu de brigadeiro, algumas empresas passavam por sérias turbulências. No setor aéreo, a Varig estava mergulhada num processo de recuperação judicial que já se arrastava havia dois anos e anunciava demissões constantes.
Outra companhia do setor, a BRA Transportes Aéreos, ia mal das pernas. Criada em 1999 pelos irmãos Humberto e Walter Folegatti, a companhia dedicou-se, em um primeiro momento, a voos fretados internacionais e, em 2005, passou a realizar voos regulares no país, em todo o mundo. Despede-se da companheira de viagem e parte para mais um dia em 2030.
Chegou a ter para mais de 30 destinos e 4,6% do mercado de aviação civil. Em 2007, havia anunciado a compra de 40 jatos Embraer 195, o que a tornaria a primeira companhia brasileira a voar o modelo nacional.
Porém, algum tempo depois, afundada em dívidas, suspendeu suas operações, demitindo mais de mil funcionários. E é exatamente aqui que entra em cena o personagem central dessa história.
Preocupado com o futuro da BRA, um grupo de investidores que havia aportado dinheiro na companhia decidiu procurar um homem que era, talvez, o único que poderia dar um diagnóstico preciso e sincero sobre o que estava acontecendo. Ele era David Neeleman, um dos nomes mais bem conceituados do setor da aviação.
Ele havia acabado de deixar a JetBlue, empresa que tinha fundado nove anos antes, em sua terceira experiência bem-sucedida na criação de uma companhia aérea. Vivia um período sabático. Um período sabático muito curto, é verdade, de apenas alguns dias, como acontece com pessoas muito inquietas.
David não parou de empreender desde que abriu seu primeiro negócio, no início dos anos 1980. Era uma empresa de turismo que vendia pacotes de viagens para o Havaí e que teve de fechar as portas depois que a dona dos aviões fretados utilizados por ele foi à falência. Mas, ele não desistiu. Pelo contrário, foi com essa primeira experiência adquirida que ele resolveu encarar um desafio ainda maior. Criou a Morris Air, uma empresa que começou fretando aviões e, em pouco tempo, tinha 24 aeronaves e já dispunha de voos regulares nos Estados Unidos.
A experiência já trazia algumas das marcas registradas de David, como a inovação e a preocupação em oferecer um serviço inteiramente voltado ao Cliente. A empresa criou, por exemplo, um sistema que dispensava a apresentação de papel na hora do embarque e era baseado apenas em um número de reserva. Algo simples hoje em dia, mas que representou uma revolução no setor, há quatro décadas.
Em 1994, a Morris Air foi vendida para a Southwest e, ao deixar a empresa, David assinou um contrato de não competição que o impedia de trabalhar em outra companhia aérea nos Estados Unidos por cinco anos. A exigência fez com que ele atravessasse a fronteira para colocar em prática as ideias que tinha na cabeça. Assim, ele desembarcou no Canadá e criou a WestJet Airlines, uma low cost focada em oferecer passagens aéreas a preços mais baixos e condições modestas de viagem.
Tão logo terminou o prazo previsto no contrato com a Southwest, David fez as malas e retornou aos EUA com mais um projeto arrojado pronto para sair do papel. Tratava-se da JetBlue, também focada em oferecer bons serviços a um baixo custo e de olho em importantes inovações.
Uma delas foi a possibilidade de passageiros assistirem televisão ao vivo durante os voos, algo até então inédito em trajetos nacionais. Novidades tecnológicas como essa – numa época em que a internet estava apenas engatinhando – e o bom preço das passagens foram fazendo a fama da JetBlue. Baseada no Aeroporto Internacional John F. Kennedy (JFK), em Nova York, a companhia chegou a transportar mais de 2 milhões de passageiros no primeiro ano de atividade.
Gerald Lee, Cel. Jair Evaristo, David Neeleman, Trey Urbhan e Marlon Ramirez definindo detalhes da estrutura da companhia
Arquivo Gerald Lee
O modelo pensado por David garantia voos lotados e um bom retorno financeiro. Todo esse sucesso explica porque Neeleman foi procurado pelo grupo de investidores da BRA – alguns deles também investidores da JetBlue – para saber se deveriam ou não seguir com o negócio aqui no Brasil. Se alguém sabia os caminhos para criar uma empresa aérea de sucesso, esse alguém era David.
Mas, antes de detalhar como a derrocada da BRA começou a abrir caminho para que uma nova companhia aérea desembarcasse no Brasil, é preciso apresentar mais um personagem importante dessa história: Gerald Lee.
Um dos homens de confiança de David na JetBlue, Gerald havia sido contratado em 2000, logo no início das atividades da empresa, após participar das negociações com a LiveTV, criadora da tecnologia que permitiu a televisão ao vivo nos voos.
Gerald trabalhava em um escritório de advocacia nos Estados Unidos especializado em contratos desse tipo e seu desempenho para garantir à JetBlue a exclusividade dos serviços de TV a bordo chamou a atenção de David, que o trouxe para seu time. Desde então, foi ocupando postos de comando na companhia: foi diretor jurídico corporativo, diretor financeiro, comandou a área de marketing e era vice-presidente de novos negócios em setembro de 2007, quando recebeu um telefonema de David, que já estava planejando colocar fim a seu curtíssimo período sabático.
David queria que Gerald fosse ao Brasil, dois dias depois, para colher informações sobre uma companhia aérea brasileira que andava mal das pernas. Era justamente a BRA. Depois de sete anos de amizade, esse não era nenhum pedido descabido. Mas, mesmo assim, Gerald teve dificuldades em aceitar.
Ele estava há quase dez anos sem férias e, finalmente, havia cedido aos apelos da esposa, feito as malas e embarcado rumo ao Velho Continente. Estavam jantando em Londres, num sábado, quando o telefone de Gerald tocou. Ele ouviu calado o pedido do amigo e disse que precisava de um tempo para pensar
no que fazer. Desligou o telefone e ficou um tempo em silêncio, pensativo. De um lado, as tão sonhadas férias. De outro, o pedido misterioso que, Gerald sabia, poderia resultar numa nova oportunidade. Com a saída de David da JetBlue, Gerald ficou vulnerável na empresa. Temia ser demitido, o que poderia colocar em risco alguns de seus planos pessoais, como o de ser pai. Portanto, era preciso estar atento a todas as possibilidades. Chamou a esposa, expôs todas essas variáveis e, no dia seguinte, chegou cedo ao aeroporto, para embarcar rumo aos EUA. Na segunda-feira, já estava no Brasil.
Gerald já conhecia o país, o que também pesou para que fosse escalado para a missão. Quando atuava no escritório de advocacia, passou uma temporada no Rio de Janeiro negociando a compra de empresas durante o boom da internet, na década de 1990. Veio para cobrir os dias de descanso de um outro advogado e ficou dois anos. Desde então, riscou de seu vocabulário a palavra férias.
Agora, Gerald se dedicava a buscar informações precisas sobre a BRA. Em poucos dias fazendo contatos e gastando o pouco que sabia da língua portuguesa, reuniu informações importantes. “Mostrei ao David todos os dados que tinha conseguido. Ele viu tudo, analisou por um tempo e concluiu que aquele dinheiro colocado na BRA estava perdido”.
David, então, anunciou aos investidores que tinha uma notícia boa e outra ruim. A ruim era que eles não veriam mais os dólares. A boa era que o país tinha muito mercado para uma nova companhia aérea e que ele estava disposto a tocar o negócio.
A proposta unia a possibilidade de investimento em um setor ainda pouco explorado à necessidade de interligar um país com dimensões continentais que, praticamente, só tinha voos entre suas capitais. Mas, não era só isso. A ideia também ia ao encontro de um desejo antigo de David: o de retornar ao Brasil, país onde nasceu e viveu um período bastante produtivo de sua juventude.
Uma missão, um sonho e o começo de um time
David é filho do jornalista e escritor norteamericano Gary Neeleman, que desembarcou pela primeira vez no Brasil em 1954, aos 20 anos, como missionário da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, conhecida como igreja mórmon. Voltou para casa completamente apaixonado pelo país. Quatro anos mais tarde, já casado, retornou como correspondente da agência de notícias United Press International e participou de importantes coberturas, como a inauguração de Brasília e os acontecimentos que desembocaram no golpe militar de 1964. Foi no início dessa sua segunda passagem por aqui, em 1959, que nasceu David, seu segundo filho.
A família Neeleman retornou aos Estados Unidos em 1965 e essa primeira viagem de avião de David, com cinco anos à época, marcou a despedida de um país que aprendeu a amar. Ainda no Brasil, na hora do embarque num avião da Varig, ao checar os documentos da família, um funcionário da Polícia Federal lançou a brincadeira ao pai de David, em tom de profecia: “Lembre-se que esse cara é nosso, não é seu”. O policial estava certo.
Foram 13 anos morando nos EUA e o retorno à terra natal aconteceu em condições muito semelhantes às de seu pai. Ele resolveu ser missionário e, sem que tivesse qualquer influência na decisão da igreja, foi enviado ao Brasil. Quando desembarcou no Rio de Janeiro, em 1978, no entanto, encontrou uma realidade bastante diferente daquela que conheceu em São Paulo na década anterior. Em vez dos almoços com a alta sociedade no Rubaiyat, algo bastante comum na época em que morava em São Paulo e nos períodos de férias em que vinha para o Brasil, comeu comida simples e conviveu com pessoas que mal tinham condições para se alimentar.
“Antes da missão, quando vinha para cá, ia aos clubes, à praia, tudo era bonito demais, até melhor que nos EUA. Parecia que o mundo não tinha problemas. Mas, quando eu fui para as favelas, eu entendi o que era o Brasil realmente”, conta David.
Nos dois anos em que esteve por aqui, andou por Campina Grande, João Pessoa, Fortaleza,
Maceió e finalizou sua estada em Recife. O choque de realidade mexeu com o missionário. Um país tão complexo, carente e, ao mesmo tempo, encantador merecia algo melhor. “Vi pessoas maravilhosas, mas que não tinham oportunidade. Eu queria voltar para ajudar de alguma forma”.
Essa era, portanto, a oportunidade que David esperava para realizar mais um sonho. O de criar empregos e ajudar a desenvolver a economia de um país que acolheu seus pais e que tinha tanto a oferecer. Enquanto tentava convencer os investidores, tinha de começar a pensar na equipe que daria o pontapé inicial no novo projeto. Precisava de pessoas de confiança, capacitadas e que aceitassem encarar o desafio sem nenhuma remuneração inicial. David não pensou duas vezes e foi atrás de seu time da JetBlue.
Obviamente, Gerald Lee estava nessa lista. “Éramos amigos e era natural que eu estivesse com ele”, conta Gerald, que lembra como ficou sabendo quem eram os outros que fariam parte da empreitada. “Um dia, David me chamou para a casa dele para conversarmos sobre o projeto. Quando cheguei, estavam lá John Rodgerson e Trey Urbahn, todos falando português. Achei aquilo bem estranho. Eles trabalhavam comigo na JetBlue. A gente se via todo dia, há anos, e eu nunca soube que eles falavam português. Fiquei sem entender nada”, diverte-se.
A questão da língua foi, de fato, um fator agregador. Além de David e Gerald, que aprenderam português nos anos em que viveram no Brasil, John Rodgerson, à época diretor da JetBlue, também se arriscava na língua de Camões. No caso dele, era, de fato, o português de Portugal, mas com certo sotaque de Cabo Verde, dois países onde viveu na adolescência também como missionário mórmon.
Mas, é obvio que John não entrou no projeto apenas por falar português. Havia uma série de outras motivações. Ele era um dos homens de confiança de David, com amplo conhecimento em finanças. Além disso, estava encantado com o desafio de criar uma empresa aérea do zero. John ainda não trabalhava com David quando ele voltou do Canadá para lançar a JetBlue.
Nessa época, John atuava num mercado muito mais promissor, principalmente nos Estados Unidos: o da tecnologia. Depois de se formar em Finanças, entrou para a International Business Machines Corporation (IBM), em plenos anos 1990, quando ocorreu o boom da internet e crescia fortemente a demanda pelos processadores produzidos pela empresa.
Mas, todo esse mundo próspero da tecnologia não o encantava. “Só me relacionava com números, aquilo não me emocionava. Queria algo que transformasse a vida das pessoas de um jeito mais profundo”, explica John. Ele pensava em algumas possibilidades de futuro para sua carreira quando assistiu a uma entrevista de David na TV. Chamou sua atenção a quantidade de vezes que o executivo usou a palavra ‘pessoas’. Algo que John não estava acostumado a ouvir. Escutava falar sobre ‘máquina’, ‘processadores’ e ‘recursos humanos’, mas não pessoas. Logo, achou que aquele poderia ser um caminho. Mandou currículos, fez testes, mas não recebeu nenhum retorno positivo. Mesmo assim, não desistiu. Um ano depois, tentou novamente e, dessa vez, foi chamado para integrar o quadro de funcionários do maior sucesso recente na aviação norte-americana.
A aproximação com David, no entanto, não foi imediata. Veio somente quando uma mudança no cenário econômico fez com que tivessem de se sentar à mesa para arrumar soluções. “O preço do combustível, que era relativamente barato naquela época, de repente, mais do que dobrou. Com isso, a minha área, a Financeira, ganhou uma importância ainda maior. Tínhamos de cortar custos e fazer a companhia se pagar e, por isso, eu e ele passamos a nos reunir praticamente todos os dias. Além disso, somos da mesma igreja, fomos missionários e falávamos português com um sotaque diferente. Isso tudo foi nos aproximando e criamos uma amizade”.
O elo criado entre os dois foi tão forte que, quando David teve a ideia de criar a nova empresa no Brasil, John nem precisou insistir para trabalhar no projeto.
Foi o próprio ex-chefão da JetBlue quem foi atrás dele. “David falou pra mim: a gente tem que começar a se preparar rápido. Esses caras (da BRA) vão quebrar logo e temos que estar prontos para ocupar o espaço”, lembra John.
O apelo de David fazia todo o sentido. Ele sabia que John era a pessoa ideal para ajudar a criar primeiro plano de negócios da empresa. Um plano de negócios que se assemelhava bastante ao da JetBlue. “Pensamos no seguinte: uma empresa aérea ponto a ponto, pequena, que vai concorrer no mercado, mas vai fazer coisas que as outras empresas não estão fazendo”, resume John.
Viajar para lugares onde a concorrência não passava nem perto. Esse era o grande pulo da nova empresa. Com isso, não necessariamente disputaria passageiros, mas atenderia pessoas que eram ignoradas pelas duas gigantes do setor. Traria para perto quem não voava ou tinha de fazer malabarismos para chegar aos seus destinos. Muita gente que saia de sua cidade por uma rodovia que levasse a um grande aeroporto e, muito provavelmente, ainda teria de completar
Arquivo Gerald Lee
a viagem utilizando novamente uma estrada.
Essa estratégia interferia diretamente no tipo de aeronave que seria utilizada. Se o objetivo era conectar lugares fora dos grandes eixos, era natural que fossem voos com menos Clientes. Ou seja, em vez de utilizar aviões maiores que demorariam para encher e voar em intervalos grandes de tempo, a ideia era usar aviões menores, cujos assentos se esgotariam mais rapidamente, e aumentar a frequência dos voos. Nessa lógica, os aviões da Embraer, com capacidade entre 100 e 124 passageiros, eram a melhor escolha.
“Nosso plano inicial previa 30 aeronaves Embraer 190 e Embraer 195, com opções para mais 30.
Naquele começo, ninguém pensava em voar turboélice, nem A320 (modelo da Airbus com capacidade para 174 passageiros). Muito menos voar para a Europa e ter uma frota diversificada. Tudo isso foi surgindo depois”, explica John.
O plano de negócios da nova empresa aérea estava amparado numa constatação importante: voa-se muito pouco no Brasil. À época, eram cerca de 100 milhões de passageiros por ano, num universo de 200 milhões de pessoas, o que dava 0,5 viagens por habitante/ano. Nos EUA, essa relação era cinco vezes maior e chegava a 2,6 viagens por pessoa. Mesmo em outros países sulamericanos, com realidade mais próxima da brasileira, voava-se muito mais. No Chile, 1,2 viagens por pessoa/ano e, na Colômbia, 0,9. Ou seja, havia um mercado bastante promissor que era preciso ser explorado.
Para estruturar tudo isso, John não tinha muito tempo. Durante o dia, trabalhava na JetBlue para garantir o plano de saúde da esposa que estava grávida e só à noite é que se juntava ao restante do time escolhido por David para pensar em um projeto sedutor que ajudasse a captar os recursos necessários.
John não conhecia nada do país quando desembarcou em São Paulo pela primeira vez, em fevereiro de 2008. Assim como o plano de negócios queria convencer os investidores, David também queria agradá-lo para acabar com qualquer dúvida que ainda pudesse existir sobre a ideia de morar no Brasil. “Quando
ele queria convencer, levava as pessoas para fazer o que eu chamo de Tour do Pão de Açúcar. No nosso caso, reservou um hotel bacana, perto da avenida Paulista, e levou a gente para um ótimo restaurante. Depois, fomos para o Rio de Janeiro, conhecemos o Cristo Redentor e comemos churrasco”, diverte-se John ao lembrar desse período.
Apaixonados por pessoas
Era 4 de janeiro de 2008, uma sexta-feira, e os amplos salões do Harvard Club, em Nova York, estavam prestes a testemunhar o primeiro encontro entre os executivos capitaneados por David Neeleman e os donos do dinheiro dispostos a participar do novo negócio. Foi no restaurante do centenário clube que um seleto grupo de investidores que também estavam com David na JetBlue tomou conhecimento do plano de negócios original da empresa que seria criada no Brasil. Ninguém se recorda ao certo do nome de todos os presentes, nem de todos os detalhes da conversa, mas a informação mais importante daquela noite é que os primeiros investidores sinalizaram que estariam na empreitada junto com o time de Neeleman. O projeto ia se estruturando. David já tinha meio caminho andado para conseguir o dinheiro, tinha também um ousado modelo de negócios, um profissional competente para cuidar das finanças e um advogado para negociar contratos.
Era necessário ainda alguém que tirasse esse plano do papel. Que pensasse nas rotas e em como aproveitar todo o potencial da malha aérea brasileira. Esse alguém era Trey Urbahn. Trey já tinha uma carreira bastante ligada à aviação e à tecnologia. Em 1981, entrou para a United Airlines, onde permaneceu por sete anos. Passou também pela Northwest Airlines e pela US Airways, no início da década de 1990. Depois, sua carreira enveredou para o lado da tecnologia. No início dos anos 2000, criou duas startups, uma delas especializada na venda de ingressos para shows. E foi justamente nessa etapa de sua vida, entre uma startup e outra, que Trey começou a fazer amizade com um de seus vizinhos. Seus filhos jogavam futebol juntos, o que certamente facilitou a aproximação. Mas eles também tinham muito
em comum: compartilhavam essa necessidade constante de empreender e estavam sempre atentos às novidades. Além disso, o vizinho atuava em um setor que ele conhecia bem, o da aviação, e estava tendo muito sucesso em uma companhia que havia criado. Dessa amizade, surgiu o convite. “Foi nessa época, em 2005, que David me convidou para ser Chief Commercial Officer na JetBlue”, relembra Trey. Sim, o vizinho era David Neeleman e a parceria deu tão certo que, dois anos depois, Trey foi um dos primeiros a ser convidado para o novo projeto, no Brasil. David, Gerald, Trey e John. Foi com essa formação inicial que a ideia começou a sair do papel. Ora na casa de David, ora na sala de jantar de Trey, o plano ia tomando forma e as tarefas iam sendo divididas.
Mas, ainda assim, o time não estava completo. Faltava alguém para trabalhar com pessoas. Para isso, David pensou em um profissional que se define como um apaixonado pelo ser humano: Jason Ward. Ele também era do time da JetBlue e é quem conhecia Neeleman havia mais tempo. Começaram juntos na Morris Air, em 1992. Jason atuava no call center e, aos poucos, foi se aproximando do fundador da companhia, que, em um hábito não muito comum para altos executivos nos anos 1990, sempre queria saber qual o motivo do contato dos Clientes.
Jason lembra que, já naquela época, David pregava a ideia de que sua equipe deveria ser formada por líderes preocupados com pessoas. “Ele tinha umas frases que me tocavam profundamente. Ele dizia, por exemplo, que nunca devemos pedir a ninguém algo que não estamos dispostos a fazer. Com isso, fui aprendendo a ser um líder servidor, algo que ele também falava muito”.
A experiência de cinco anos no call center foi fundamental para a carreira de Jason, pois permitiu que ele entendesse o negócio sob o ponto de vista do Cliente. Depois da venda da Morris Air para a Southwest, ele deixou o setor da aviação por um tempo e só retornou quando David chegou aos EUA, depois da sua temporada no Canadá, para fundar a JetBlue. Trabalharam juntos nos oito anos em que David ficou à frente da companhia. Quando o companheiro anunciou que estava deixando o
posto, Jason era diretor e tinha acabado de trocar Utah por Nova York, uma mudança de mais de 2,1 mil quilômetros, feita com toda a família.
“Quando cheguei em casa e comentei com a minha esposa que David estava pensando em criar uma empresa aérea no Brasil, ela logo me respondeu: eu não vou para o Brasil. Eu falei que ele não tinha me convidado, mas ela não acreditou muito”, lembra. O que a esposa de Jason já sabia era que a sua paixão por pessoas encantava David. O fundador da JetBlue sabia da importância de ter em sua equipe alguém que olha nos olhos e está sempre interessado no que os outros têm a dizer.
O convite que a esposa de Jason sabia que era só questão de tempo para ser feito veio algumas semanas depois. “Ele me disse que tinha entrevistado umas dez pessoas para assumir o atendimento ao Cliente, mas não estava dando certo. As pessoas não estão entendendo o que queremos fazer”.
Jason entendia perfeitamente. Ele sabia que a nova empresa teria o mesmo DNA da JetBlue, focado sobretudo nos Clientes. O objetivo era, já naquela época, ser a melhor empresa para os Clientes e o melhor emprego da vida dos profissionais que aceitassem embarcar com eles nesse desafio. Com isso, se criaria um grupo de pessoas fiéis, apaixonadas pela marca.
Mesmo com o plano na ponta da língua, Jason não aceitou a proposta de primeira. Ele não conhecia nada do Brasil. Tinha, no máximo, vindo até a Argentina, onde viveu dois anos, também como missionário. Sem compromisso, ele e a esposa, ainda resistente a mudar de país, embarcaram em um voo apenas para conhecer. E, assim como John, os dois também foram vítimas do Tour do Pão de Açúcar. “Brasileiro é diferente. Me apaixonei logo de cara. O povo é muito mais simpático, mais quente, aberto para receber estrangeiros. Foi amor à primeira vista”, conta Jason, que se recorda ainda do argumento final de David. “Ele me disse que seria por, no máximo, cinco anos. Depois, deixaríamos o negócio nas mãos dos brasileiros. O resultado é que estamos aqui até hoje”.
Depois de aceitar o convite, Jason tomou outra decisão muito importante: era preciso aprender português. Ele falava um pouco de espanhol, mas achava que seria insuficiente e que não conseguiria se conectar com Clientes e Tripulantes sem falar a língua local. Não pensou duas vezes. Acessando um aplicativo, estudava duas horas por noite para aprender, principalmente, vocabulário. Ouvia a pronúncia das palavras e repetia. Ouvia e repetia, inúmeras vezes. Enquanto não conseguisse pronunciar de maneira correta, a aula não avançava. Fez isso toda noite por quatro meses, até que conseguiu formular suas primeiras frases e passou para uma nova etapa. Já no Brasil, conversava com as pessoas e deixava que elas o corrigissem. Nessa toada, foi aprendendo palavras novas e conseguindo formular frases mais complexas, o que aumentava as possibilidades de diálogo e, assim, ele foi evoluindo. “Eu sentia que as pessoas queriam entender o que eu estava dizendo. Elas gostavam do fato de eu estar tentando falar a língua delas e, justamente por isso, se esforçavam um pouco mais para concluir a comunicação. Isso me ajudou muito. Ganhei um pouco de respeito das pessoas por isso”, lembra. “Hoje, falo com sotaque, mas falo. Consigo essa conexão com as pessoas daqui”.
É preciso saber negociar
Enquanto John trabalhava no plano de negócios e Jason pensava em um modelo de atendimento a Clientes, Gerald Lee se dividia entre Brasil e Estados Unidos para colocar em prática um roteiro bastante complexo. Para que empresas aéreas possam voar comercialmente, precisam ter uma Certificação de Homologação de Empresas de Transporte Aéreo (CHETA). Inicialmente, havia o temor de que conseguir essa certificação do zero junto à Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) fosse algo demorado, o que colocaria em risco a ideia de voar ainda em 2008. Por isso, surgiu uma alternativa que, à primeira vista, pareceu interessante: comprar o CHETA de uma empresa já estabelecida. Isso abreviaria o tempo necessário para resolver todas as burocracias.
Essa, portanto, era a primeira missão de Gerald no Brasil. O alvo era a NHT Linhas Aéreas, sediada em Porto Alegre. Foram quase dois
meses de conversas que demandavam tempo e energia. “Eu tinha muita dificuldade com a língua, com o sotaque, com o vocabulário. Chegava no hotel esgotado”, lembra.
Gerald é um negociador habilidoso. Aprendeu muito em seus empregos anteriores, antes mesmo de ser formar em Direito. Para pagar os estudos, além de lavar pratos em um restaurante mexicano, foi policial. Durante quase dez anos, usou inúmeros disfarces para se infiltrar em organizações e ajudar a acabar com esquemas criminosos. Com equipamentos de escuta, armas da polícia e um pager (importante equipamento de comunicação nos anos pré-telefonia celular), ele atuou em investigações famosas, como a da máfia chinesa em Nova York, nos anos 1980. Nesse período, desenvolveu habilidades importantes, como ouvir atentamente, falar na hora certa e, principalmente, saber o momento de recuar.
Quando já estava praticamente tudo certo para fechar negócio com a NHT, Gerald recebeu uma ligação de David, pedindo para mudar a rota: iriam tentar uma homologação própria. Ele havia sido aconselhado a correr com a documentação e, se tudo desse certo, seria possível aprovar o CHETA antes do fim do ano. Era hora de recuar. Uma das principais preocupações de Neeleman que o fizeram desistir do negócio era que, ao comprar o CHETA de outra aérea, fossem encontrados, depois de um tempo, problemas não identificados no momento de assinar o
John Rodgerson e Trey Urbahn / Arquivo Gerald Lee
contrato. Algo como comprar uma casa com esqueletos no armário. Os esqueletos, no caso, poderiam ser, por exemplo, processos tributários e trabalhistas. “Fiquei um pouco frustrado, mas ele sabia o que estava fazendo”, conta Gerald. Outra negociação que ocorria simultaneamente era com a Embraer. Já era 2008 quando David, Gerald e John iniciaram as conversas para a compra das primeiras aeronaves. Esse era um passo essencial para a obtenção de um CHETA próprio. Quanto mais rápido ocorressem as conversas e se chegasse a um acordo, mais rápido a empresa conseguiria a certificação junto à ANAC e estaria autorizada a voar comercialmente. Mas, isso não seria tarefa fácil. Havia uma série de obstáculos que elevavam a complexidade da operação. Com a crise do subprime e a quebra de bancos como o Leman Brothers, em 2008, o sistema financeiro global se retraiu e houve forte restrição de linhas de crédito. Além disso, a maioria dos bancos exigia – e exige até hoje – um histórico operacional e financeiro para começar a financiar seus Clientes. A nova empresa, obviamente, não tinha nada disso. “A Azul era um PowerPoint, na época. Lógico, tinha muito dinheiro por trás, tinha o nome do David Neeleman com toda a sua credibilidade, mas não tinha o histórico exigido. Além disso, estava nascendo em um momento extremamente adverso para o mercado mundial de financiamento”, explica o VP de Contratos da Embraer, Marcelo Santiago. Em 2008, ele estava começando a carreira na área financeira da empresa e liderava o time que apoiava a estruturação dos financiamentos de venda de aeronaves na América Latina. Ele era o gerente responsável pela conta da nova companhia aérea e um dos profissionais empenhados em buscar uma solução para a compra das aeronaves. “Era importante para a Azul concluir essa negociação com rapidez”, completa.
A pressa de David Neeleman para começar a voar ainda em 2008 tinha várias justificativas. A primeira delas era aproveitar a temporada de verão que se iniciaria em dezembro. Nenhuma empresa focada no transporte de passageiros pode se dar ao luxo de dispensar o período de férias de verão e seu intenso deslocamento motivado pelas festas de fim de ano. Além disso, era preciso aproveitar
enquanto o país não sentia os efeitos da crise. Mesmo com a restrição ao crédito, a classe média seguia consumindo e era justamente com base no crescimento dessa fatia da população que se estruturava o plano de negócios da companhia. Havia ainda uma questão estratégica. Suas principais concorrentes acompanhavam atentamente as movimentações da novata. Estavam preparadas para usar uma estratégia bastante comum no mercado: quando a Azul lançasse um voo para determinado destino, elas fariam o mesmo, mas com tarifas reduzidas. Tinham estrutura para manter os preços lá embaixo por um tempo, até que a nova empresa desistisse. Por isso, era importante ser rápido. A ideia era lançar uma malha bastante capilarizada e que crescesse em um ritmo que confundisse as concorrentes. Para isso, era preciso aviões. Muitos aviões.
E tudo isso estava em jogo nessas primeiras conversas entre o time de Neeleman e a Embraer. As negociações estavam apenas começando e ainda se arrastariam por todo o ano de 2008. Embora parecesse que tinha começado há anos, pela quantidade de passos que já haviam sido dados, a saga vivida pelos executivos para erguer a empresa tinha começado havia poucos meses. Tudo caminhava rápido demais. Em março, a equipe começava a preparar a documentação para conseguir o CHETA próprio, já pensando na governança da empresa e em uma estrutura que garantisse proteção aos investidores ao mesmo tempo em que desse aos executivos liberdade total para criar a empresa e conduzi-la até a abertura de capital. “Naquela época, tudo acontecia ao mesmo tempo, estávamos comprando aviões, criando a estrutura, pensando na governança, entendendo a legislação brasileira, negociando com investidores e abrindo contas bancárias”, lembra Gerald Lee.
A julgar pelo primeiro bimestre, 2008 seria um ano inesquecível, marcado pela chegada definitiva do grupo ao país e pela escolha dos primeiros brasileiros que fariam parte da empreitada. Estava na hora de o projeto ganhar novos sotaques.
Não se pode ensinar paixão 3
No restaurante de um dos hotéis onde vinha se hospedando nas últimas semanas, em suas constantes viagens ao Brasil, David Neeleman se mostrava bastante impressionado com o homem a sua frente.
Muito recomendado por Gerald Lee e Trey Urbahn, dois de seus principais companheiros de empreitada, o interlocutor de David entendia tudo de avião. Sabia da história das aeronaves, da carreira de David e de todos os detalhes das três companhias aéreas que ele tinha criado, nos EUA e no Canadá. Durante o café da manhã, em cada resposta que dava às perguntas de David, ele mostrava um profundo conhecimento sobre a aviação brasileira, incluindo todo o histórico das empresas aéreas criadas no país, suas rotas e os aviões que utilizaram. Tudo na ponta da língua, um conhecimento pouco comum, ainda mais nessa riqueza de detalhes.
O homem que conversava com David naquela manhã era o publicitário Gianfranco Beting, que havia recebido em sua casa, dois dias antes, Trey e Gerald para uma primeira conversa, que deveria durar 45 minutos, mas durou cinco horas. A dupla saiu da sua casa completamente impressionada e disse que marcaria um café da manhã com David. Panda, como Gianfranco é conhecido, chegou no dia e horário marcado preparado para uma entrevista de emprego, mas passava por uma verdadeira sabatina. Ele e o fundador da JetBlue já estavam há três horas totalmente mergulhados em uma conversa que abordou até mesmo aspectos pessoais da vida do publicitário – incluindo sua infância – e chegou ao fim com uma conclusão arrebatadora de David: “A gente não pode ensinar a paixão. E você não é apaixonado por aviação, você é louco. Nunca vi coisa parecida. Quero saber se você quer trabalhar com a gente”.
Panda ficou sem palavras. Ele não estava diante de um mero empregador, mas de alguém que admirava profundamente por tudo o que ele já havia feito na aviação.
“Eu tinha o sonho de apenas conversar com ele. Trabalhar já era algo muito além”,
recorda-se Panda, que, enquanto se perguntava se aquilo estava realmente acontecendo, ouviu David completar: ”Quero que você seja o diretor de marketing da nova empresa”.
Aérea
Panda Beting e David Neeleman
Crédito: Panda Beting
O convite foi aceito na hora. “Ele nem perguntou quando eu podia começar. Só falou que, no dia seguinte, teria uma reunião na Embraer e quis saber se eu iria com ele”.
Panda costuma dizer que as três primeiras palavras que disse na vida foram “Varig, Varig, Varig”, reproduzindo a identidade sonora da companhia brasileira fundada em 1927. A paixão do menino não era nenhuma herança familiar, ninguém dos Beting era ligado à aviação. Mesmo assim, Panda vivia pedindo aos pais para que o levassem ao aeroporto de Congonhas, sua grande diversão da infância. A paixão foi fazendo com que, mesmo
Crédito: Panda Beting
Panda, Gerald, Trey e David no lançamento da campanha para a escolha do nome da empresa
muito jovem, passasse a conviver com algumas personalidades do mundo da aviação. Aos nove anos, por exemplo, conheceu o comandante Omar Fontana, fundador da Transbrasil.
O encontro foi direcionando a carreira do futuro publicitário. Quando tinha 12 anos, Panda recebeu um pedido especial: escolher a cor dos aviões da Boeing, que Omar estava comprando para a Transbrasil. “Posso dizer que esse foi meu primeiro trabalho com a aviação”. Com o sucesso da missão, mergulhou ainda mais nesse universo. Passou a acompanhar o empresário em visitas às fábricas e show aéreos e, quando percebeu que os óculos o impediriam de realizar o sonho de ser Piloto, começou a se
dedicar ao desenho e à fotografia. Durante toda a adolescência fez trabalhos esporádicos para a Transbrasil e para outras empresas aéreas.
Em 1990, recebeu de Omar Fontana um convite tentador: virar executivo. Aos 26 anos, assumiu a vice-presidência da Intermarket, agência de publicidade do grupo Transbrasil, onde ficou até 1992. Deixou a companhia por um tempo e voltou novamente em 1995 para assumir a diretoria de Marketing. Dois anos depois, retornou à publicidade e vinha se destacando no atendimento a Clientes do setor da aviação quando, no início de 2008, abriu as portas de sua casa a dois norte-americanos que diziam ter um projeto de empresa aérea.
Crédito: Panda Beting
Primeiro espaço a reunir os fundadores da Azul, casa do publicitário Panda Beting era um verdadeiro caldeirão de ideias
Eram Trey Urbahn e Gerald Lee. Começava ali um período mágico de sua carreira.
No dia seguinte ao café da manhã em que foi sabatinado, Panda driblou compromissos profissionais – que logo dispensaria de maneira definitiva – para acompanhar David na visita à Embraer. Aquela era uma oportunidade única e não poderia ser desperdiçada. “
Logo quando chegaram, David percebeu que todo mundo conhecia Panda. O cumprimentavam, chamavam pelo nome, demonstravam proximidade. Resolveu perguntar se já se conheciam antes e ouviu a seguinte resposta: “Quem não conhece o Panda na aviação?”. Ficou ainda mais impressionado.
O relacionamento entre o grupo vindo dos Estados Unidos e o primeiro brasileiro a abraçar o projeto foi se estreitando. Todos os dias, se reuniam na casa de Panda, no bairro do Morumbi, na capital paulista, e se deixavam ficar em reuniões que duravam horas e horas.
Foi ali que discutiram como começariam a executar o plano de negócios da companhia pensado ainda nos EUA. A casa de um apaixonado por aviação era, certamente, o lugar ideal para avançarem nesses estudos. Além de confortável e bem localizada, dava ao grupo a sensação de que estavam em um hangar, com hélice de avião em exposição, centenas de réplicas de aeronaves, posteres e livros sobre o tema. Algo de fazer inveja a muito museu pelo mundo afora.
No início, o endereço recebia apenas David, Gerald e Trey Urbahn. Mas, à medida que novos profissionais se juntavam ao projeto, o grupo foi aumentando. Com o tempo, as reuniões também passaram a ser mais frequentes. Enquanto David aparecia de terça à quinta, os outros já batiam ponto na casa de Panda praticamente todos os dias da semana e, somente no final do dia, iam para hotel.
Em pouco tempo, surgiu a ideia de que era necessário encontrar um escritório para tocar os trabalhos aqui no Brasil. Um pouco indignado, Panda perguntou porquê e, sem ouvir nenhuma
resposta plausível, questionou: “Está ruim aqui?”
“Não”, todos responderam em coro.
“Então, para que a gente vai ficar gastando dinheiro com escritório se, por enquanto, com o tamanho que a gente tem, a gente pode fazer perfeitamente a minha casa como uma sede?”.
Todos se entreolharam e aceitaram a ideia. Não tinham mesmo do que reclamar. A casa era espaçosa, tinha piscina, sauna, além de toda a decoração que não os deixava esquecer o motivo das reuniões intermináveis. O tempero da cozinheira Silsa, que trabalhava com o publicitário havia dois anos, certamente também pesou para que topassem ficar por ali.
O empenho de Panda em transformar sua casa no primeiro escritório da nova empresa tinha algumas explicações. A primeira delas era financeira.
“Logo descobri que o David é um cara muito econômico. Muito preocupado em preservar caixa, em ter capital de giro para estar sempre com o máximo de dinheiro no banco e poder financiar os sonhos e voos da organização. Isso ficou claro logo nos primeiros encontros”, lembra.
A segunda explicação era algo mais pessoal: não era todo dia que se tinha a chance de acompanhar uma empresa surgindo do zero, reunindo os principais nomes da aviação mundial, alguns deles com os quais sempre sonhou conviver, e ainda fazer parte ativamente de tudo isso, vendo a história acontecer de perto, literalmente, no quintal de casa. “Tudo aquilo era uma coisa meio onírica. Parecia um sonho. Lembro de um dia em que eu estava trabalhando no meu escritório, em casa, e o David estava sentado no sofá. Ele falou que estava cansado, deitou e, logo em seguida, cochilou. Fiquei pensando: será que é verdade isso? O David Neeleman está dormindo no sofá do escritório da minha casa? Isso é muito excepcional”.
O primeiro aeronauta
E, aos poucos, aquele espaço foi se transformando, ainda que informalmente, na primeira seda da empresa. Foi ali que o comandante Miguel Dau chegou para se juntar
ao grupo, em abril. Ele foi o segundo brasileiro a ser contratado para o projeto. Recebeu o primeiro contato ainda em janeiro, via LinkedIn. Em mensagem escrita num misto de português, inglês e espanhol, Trey Urbahn perguntava se ele tinha interesse em conhecer um projeto ligado à aviação. Sem muitos detalhes. Dizia também que teria uma viagem ao Brasil nas próximas semanas e gostaria de encontrá-lo no Rio de Janeiro.
O contato via LinkedIn pode dar a impressão de que Trey o tinha encontrado por acaso na plataforma e, sem conhecer ninguém que intermediasse o encontro, resolveu mandar uma mensagem por ali mesmo. Não era bem assim. Trey já tinha levantado toda a ficha de Miguel Dau em conversas com executivos do setor e sabia muito bem com quem estava falando.
Sabia, por exemplo, que ele era Piloto de caça da Força Aérea Brasileira, onde atuou por 11 anos. Sabia também que tinha deixado a FAB para ingressar na Varig como Piloto e que, nos mais de 20 anos de empresa, já tinha sido gerente-geral do Centro de Controle Operacional, vice-presidente de cargas, vice-presidente operacional e, mais recentemente, tinha sido eleito gestor para a recuperação judicial da companhia. Ao todo, eram 31 anos de experiência na aviação até aquele primeiro contato.
Miguel estava na fase final de seu mandato como gestor judicial e já estudava os próximos passos que daria na carreira. Logo, aquele contato tinha aparecido no momento exato. Mesmo assim, duas semanas depois, quando Trey marcou um encontro para o hotel Pestana, em Copacabana, Miguel aceitou sob uma condição: deveriam conversar fora de seu horário de trabalho na Varig. Ele não se sentiria bem tratando de assuntos pessoais durante o expediente. E assim foi feito. Encontraram-se às 6h30 para tomar um café no restaurante do hotel. A ideia de conhecer o projeto e chegar no escritório da Varig antes da 8h, no entanto, não deu muito certo. A conversa foi tão boa que só conseguiu sair de lá às 9h. “Quando estávamos quase acabando, o Gerald Lee também apareceu, o que acabou fazendo a coisa demorar um pouco mais”, lembra o comandante.
Ao final da conversa, Trey disse que, no que dependesse dele, Miguel seria o COO (Diretor de Operações) da companhia. Mas, faltava ainda passar pelo crivo de David, o que aconteceu 15 dias depois, no escritório da Gávea Investimentos, no Leblon. A gestora de ativos fundada pelo ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga estava entre as principais investidoras do projeto e foi testemunha de uma das piores entrevistas de emprego já feitas por Miguel Dau em sua longa carreira. “Em vez de ir direto ao ponto, David quis discutir os problemas da Varig. Eu comecei a rebater, a dizer que ele estava errado. Ele é difícil de mudar de opinião, mas encontrou alguém igual. Eu vivia a Varig, sabia do que estava falando. Resultado: perdi mais da metade do encontro, que durou pouco mais de uma hora, discutindo Varig. Até o momento em que pensei: estou com o cara que vai dar
Comandante Miguel Dau: o 02 da companhia
Crédito: Panda Beting
a palavra final sobre a minha participação em um projeto e não paro de bater boca com ele sobre Varig. Não faz sentido”, relembra.
Felizmente, deu para mudar o rumo da conversa a tempo. David mostrou o plano de negócios da nova companhia para Miguel, que ficou encantado. Achou que o plano fazia todo o sentido para o momento que o Brasil vivia. Comprou a ideia na hora e, dois dias depois, recebeu de Trey Urbahn a proposta de trabalho com tudo o que eles já haviam combinado.
Só não pode ser incorporado imediatamente ao projeto porque ainda tinha uma última tarefa a cumprir na recuperação judicial da Varig. Tratava-se do voo de certificação da Flex, empresa que ficou no lugar da Varig depois da sua falência. Miguel cumpriu sua última missão, no final de março, deixou o cargo e, no dia 1º de abril, ingressou na nova empresa aérea.
A missão fez com que ele perdesse o crachá 01 da companhia. “O Panda foi admitido oficialmente na sexta-feira anterior. Por isso, fiquei com o crachá 02. Panda costuma dizer que ele é o primeiro aeroviário da Azul e eu sou o primeiro aeronauta”.
Brasileiros em várias frentes de trabalho
A partir da formação da dupla Panda e Miguel Dau, o núcleo dos brasileiros foi crescendo.
Alex Malfitani, hoje CFO da companhia, estava nessa primeira leva. Ele, porém, não era frequentador assíduo da casa de Panda. Morava nos EUA quando tomou contato com o projeto e passou a fazer seus primeiros trabalhos de um escritório em Connecticut, a uma hora de Nova York, onde se reunia com executivos como John Rodgerson e Jason Ward.
Já trabalhava há cinco anos na United Airlines, em Chicago, quando um executivo da companhia norte-americana, conhecido de David Neeleman, os apresentou. Embora tivesse planos de ficar de vez nos EUA, Alex viajou até Nova York para conversar com David. Além de falar português, Alex já trabalhava com aviação e estava disposto a encarar um novo projeto. Tudo o que David queria em seu time. “Ele estava precisando
de tanta gente que não estava sendo muito seletivo”, brinca Alex. “Então, eu gostei muito de estar no lugar certo, na hora certa”.
Depois de alguns dias, recebeu uma proposta e conversou com sua esposa, que tinha acabado de dar à luz ao segundo filho do casal. Ela não se opôs e eles decidiram voltar. “Sinceramente, o Brasil já não me atraia muito. O que me convenceu a voltar foi o David, o modelo de negócios e a oportunidade que eles enxergavam na aviação brasileira. Gostei do clima deles, um pessoal mais informal, despojado”, lembra Alex, que voltaria ao Brasil para um cargo inferior ao que ocupava na United. “Lá, estava entre diretor e vice-presidente. Aqui, seria gerente de Tesouraria. Mas, era tentador entrar em uma empresa que estava nascendo. Pensei: mesmo que seja um passo para trás agora, em termos de carreira, vai ser uns 20 passos para frente depois”.
As diversas frentes de trabalho que iam se abrindo – tanto na casa de Panda, quanto no escritório dos EUA e em espaços improvisados, como os lobbys e restaurantes de hotéis – se dividiam em algumas missões fundamentais para tirar a startup do papel. A principal delas, da qual Alex começava a fazer parte, era dar continuidade às negociações com a Embraer em busca dos primeiros aviões.
Primeiro uniforme das comissárias de bordo, criado por Panda Beting
Crédito: Panda Beting
Arquivo Azul
Era preciso criar condições de financiamento, o principal obstáculo identificado logo nas primeiras conversas. David Neeleman e a Embraer já tinham um relacionamento próximo. Quando estava à frente da JetBlue, quatro anos antes, ele fez um dos maiores pedidos até então da história da companhia brasileira. Isso, sem dúvida, facilitou as conversas. Os executivos da Embraer sabiam que não estavam negociando com um aventureiro. A nova companhia não se tratava de mais uma daquelas que surgem e desaparecem na velocidade de um jato, deixando para trás apenas frustração e dívidas.
Diante da escassez de crédito nos bancos mundo afora, só restava praticamente uma saída para Neeleman: tentar um financiamento com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) em moeda local. Havia, porém, um problema. Problema, não, contingência, como eles preferem definir. O BNDES nunca tinha feito isso, tratava-se de uma linha de financiamento inexistente no banco e esperar a sua estruturação era algo que demoraria tempo demais e comprometeria a estratégia da empresa.
O time de David Neeleman, no entanto, não estava sozinho. A quatro mãos, com o apoio fundamental dos executivos da Embraer,
desenvolveu-se uma nova linha específica para financiar aviões de longo prazo. Com a experiência da Embraer, foi possível acelerar esse processo, reduzindo o tempo de negociação.
A crise da BRA, meses antes, também contribuiu para que a operação fosse bem-sucedida, lembra o VP de Contratos da Embraer, Marcelo Santiago. “A BRA tinha assinado com a gente um tempo antes de fechar as portas. Ou seja, existiam slots disponíveis. Isso nos permitiu oferecer os mesmos slots para a Azul”, explica. O contrato de quase US$ 3 milhões previa 36 aviões e 40 opções de compra, um marco na consolidação dos e-jets no Brasil e na América Latina. Ou seja, Azul e Embraer tinham muito a ganhar com o negócio.
Além do financiamento das aeronaves, era preciso centrar esforços também na documentação necessária para dar entrada no CHETA da companhia. Os primeiros passos eram burocráticos, como alterar o objeto social da empresa e apresentar as primeiras pessoas que assumiriam funções regulatórias, como o administrador da empresa e o responsável pelas operações. O comandante Miguel Dau assumiu o posto de representante máximo da empresa nesse processo e liderou a formação de um grupo de pessoas-chave para comandar as próximas etapas.
Panda apresentando a Trey e David os modelos de uniformes e pinturas das aeronaves da companhia, que ainda não tinha nome definido
Diversos núcleos de trabalho atuavam para confeccionar os manuais que deveriam ser apresentados à ANAC indicando os procedimentos da nova empresa em todos os aspectos da sua atuação. “Com esses manuais deveríamos expressar tudo o que a Azul pretendia fazer, sua doutrina operacional e o conceito de operação.
Fizemos tudo isso do zero”, conta Miguel Dau. Foi assim que nomes como Antônio Flavio Costa, hoje vice-presidente técnico da companhia, passaram a fazer parte do time. Além dele, os comandantes Augusto Pereira Nunes (responsável pelo desenvolvimento da área de Safety), Ary Nunes (primeiro Piloto-chefe) e Álvaro Neto (primeiro diretor de operações da Azul) tiveram papel decisivo na elaboração dos manuais que seguiram para a ANAC. “A partir daí, você vai cumprindo etapas: entrega o manual de operações, a ANAC devolve pedindo ajustes, você mexe e manda de volta, até tudo estar aprovado”, explica Miguel.
Atravessaram o samba e deu azul
Paralelamente, Panda Beting, o 01 da companhia, tinha uma missão importantíssima: definir o nome e a imagem da nova empresa. Até então, nos documentos oficiais, a startup era chamada de Saleb, razão social de uma empresa já aberta por Gerald Lee e que era uma combinação das iniciais dos nomes de pessoas que trabalhavam com ele.
Panda decidiu que não encomendaria o trabalho a nenhuma agência. Ele mesmo criaria pintura, uniformes e cores. “David me pediu um orçamento. Falou para não cobrar caro, mas para mandar um orçamento. Pensei muito e resolvi não cobrar nada. Disse para ele que usaríamos esse dinheiro para brigar com as nossas concorrentes. Ele ficou surpreso e falou que eu estava deixando dinheiro em cima da mesa”, relembra Panda.
Por mais que concordasse com o chefe, o publicitário não se sentia à vontade para cobrar da empresa que estava ajudando a fundar. “Acho que tenho que dar o máximo de colaboração, me sinto o pai dessa companhia”, argumentou e ouviu David rebater: “Acho que você é um profissional, que está fazendo um trabalho profissional e deve cobrar por isso. Depois, não vai chorar”.
Não adiantou, Panda não cobrou e, quando chegou em casa, contou a história a sua mulher, Sharon. Também publicitária, ela era vice-presidente de uma agência de branding, ou seja, especializada em marca. Sabia que um trabalho como esse, se fosse cobrado, estaria na casa dos milhões de dólares. “Ela me fez dormir no sofá um mês. Ficou bem brava mesmo”, conta.
Havia algumas sugestões para o nome. Samba era a principal, a que estava escrita nos primeiros rascunhos do projeto, ainda nos EUA. O nome Azul também já havia aparecido nas conversas sobre o tema. Panda lembra que, seis anos antes, tinha sido contratado por um grupo de empresários de São Paulo para criar a identidade e o nome de uma companhia aérea. Fez o trabalho e sugeriu que ela se chamasse Azul. O projeto não foi para frente e o nome nem chegou a ser registrado. Quando contou a história a Trey Urbahn, ele se empolgou com as inúmeras possibilidades e, a partir daí, surgiu a ideia de um concurso para que os futuros Clientes escolhessem o nome da companhia.
Criaram um site, o voceescolhe.com.br. A proposta era a seguinte: quem primeiro sugerisse o nome que, por ventura, fosse escolhido ganharia o direito de voar de graça para o resto da vida. Para participar, as pessoas preencheriam um cadastro, com seus dados pessoais e e-mail. Assim, a empresa ganharia também seu primeiro banco de dados para divulgação de ofertas e promoções.
Convocaram uma entrevista coletiva e, no momento em que tiraram o pano que cobria uma réplica da aeronave para mostrar como seria o nome e a marca, estava lá: um avião verde e amarelo, com a bandeira do Brasil na cauda e o endereço virtual voceescolhe. com.br no corpo. Estava lançada a primeira ação de marketing da companhia.
Foram recebidas 138 mil sugestões, enviadas por 119 mil pessoas. Foi feita uma primeira seleção com os mais votados e, em uma segunda etapa, as pessoas escolheram, a partir dessa lista, os seus preferidos. A fase final teve a participação de 27 mil pessoas, que escolheram Samba como o nome da empresa.
Quer palavra mais brasileira do que samba? Um ritmo surgido no Brasil, que representa todo o gingado e a capacidade de improviso dos brasileiros. Algo alegre, vivo, divertido. Mas, David Neeleman não estava nem um pouco convencido a chamar a empresa de Samba. Queria algo mais sério. Queria menos gingado, algo menos divertido. E foi em uma conversa com o então presidente da Embraer, Frederico Curado, que conseguiu o argumento que precisava para bater o martelo. “Ele me disse que, aqui no Brasil, quando uma coisa dá errado, a gente diz que ela sambou ou que deu em samba. Ah, o avião está atrasado? Ih, sambou”, conta David.
Quando voltou da conversa, ele disse a Panda que a nova empresa se chamaria Azul, o segundo nome mais votado. O publicitário argumentou que Samba tinha sido o vencedor e ouviu do chefe o seguinte veredito: “Não tem problema, você dá uma passagem para o resto da vida pra quem escolheu os dois nomes e seguimos em frente. Lembra de uma coisa: não é o nome que vai nos fazer. Nós é que vamos fazer o nome”. E, antes de sair da sala, cravou: “Vamos de Azul, que é a minha cor da sorte”.
Assim, em maio de 2008, foi divulgado oficialmente com grande destaque na imprensa que a mais nova companhia aérea do país se chamaria Azul Linhas Aéreas Brasileiras. O nome e o mapa do Brasil desenhado na cauda do avião chamaram a atenção do presidente Lula, durante a visita para apresentação da aeronave, já com a pintura definitiva, dois meses depois. “Eu disse a ele que a nova empresa teria aquele nome e aquela pintura porque a gente esperava que, um dia, ela fosse reconhecida no mundo inteiro como a companhia que leva o Brasil na cauda e no coração”, relembra Panda.
Agora, a empresa tinha nome. Não mais sambaria. Pelo menos, não no sentido pejorativo. Os profissionais que foram se integrando ao projeto depois disso já podiam dizer em alto e bom som: “Estou indo para a Azul”.
E muitos fizeram esse anúncio nas semanas seguintes. Aos poucos, foram sendo escolhidos as principais lideranças das áreas. Naquele momento,
cerca de 20 pessoas já se reuniam todo dia naquela espécie de hangar no Morumbi, que, àquela altura, era bem mais que a casa do publicitário Panda Beting: era a primeira casa da Azul.
Já estávamos em maio. A negociação com a Embraer e a produção dos documentos para a obtenção do CHETA seguiam à pleno vapor. Nas reuniões já se podia ouvir diálogos inteiros em português, em um clima de euforia e expectativa crescente. Um sonho estava se tornando realidade. Aquele era o nascedouro da primeira empresa brasileira a voar jatos produzidos no Brasil e que ostentaria em suas aeronaves o mapa do país que ajudaria a interligar. Naquele momento, foi ignorada toda e qualquer teoria das cores, que dizem que a combinação de verde com amarelo resulta num amarelo esverdeado. A partir de então, na cabeça e no coração de todos os envolvidos, a combinação mais brasileira de todas, do verde com o amarelo, sempre dará Azul.
Mesmo não sendo a opção mais votada, David bateu o martelo: “Vamos de Azul, que é a minha cor da sorte”
Arquivo
Azul
Alameda Surubiju, 2010 4
Crédito: Panda Beting
Era intensa a movimentação em maio de 2008, no estacionamento do amplo imóvel localizado no final da Alameda Surubiju, em Alphaville, Barueri (SP). Era ali que funcionava a GGP Produções, produtora de TV criada pelo apresentador Gugu Liberato em sociedade com o empresário Beto Carrero.
Ao mesmo tempo em que saíam do prédio caixas com figurinos, espelhos e equipamentos de filmagem, entravam computadores, planilhas e profissionais que tentavam entender como podiam se organizar a partir daquele momento. “É aqui?”, era a pergunta mais comum de quem chegava para integrar o time da Azul Linhas Aéreas Brasileiras. Talvez esperassem encontrar uma empresa já montada, com recepcionista, porta automática, catraca, crachá. Mas, não era bem o que se via naquele começo.
O imóvel estava em transformação depois de abrigar, durante muitos anos, momentos importantes da indústria do entretenimento nacional. Na década de 1990, a TV brasileira vivia um momento de intensas disputas por ibope. A TV por assinatura estava apenas começando e, pelo menos naquela época, não havia o menor sinal de que o streaming revolucionaria a maneira de consumir entretenimento, o que só aconteceu quase 30 anos depois. A briga, portanto, era na TV aberta. Não é nenhum exagero dizer que, naquela época, praticamente todos os brasileiros acompanhavam semanalmente, ao vivo, uma batalha que durou anos. De um lado, na TV Globo, estava o Domingão do Faustão, programa criado em 1989, que colocou a emissora na liderança dominical por um longo período. Era o renascimento dos programas de auditório. Quatro anos mais tarde, o SBT despertava para a necessidade de uma atração à altura. Estreava o Domingo Legal, programa bastante semelhante ao da concorrente, nos mesmos moldes de programa de auditório, também apresentado ao vivo e liderado por Augusto Liberato, o Gugu.
Na esteira dessa disputa, programas de forte apelo popular encontraram na produtora de Gugu Liberato um palco à altura. Nos estúdios da Alameda Surubiju, foram filmadas atrações que caíram no gosto do público, repletas de apresentações de grupos de pagode e duplas sertanejas, dois ritmos em ascensão naqueles tempos. Entre todas essas atrações nascidas na década de 1990, no entanto, uma tinha atenção especial do público. É missão praticamente impossível encontrar alguém que assistiu TV naquele período e que não entre numa espiral de nostalgia ao ouvir o refrão “Umba, umba, umba, ê”. A música era tema de uma brincadeira em que artistas tinham que pegar o máximo de sabonetes em uma banheira e tinham a missão dificultada por uma mulher de biquini. A Banheira do Gugu representa, em alguma medida, os loucos anos 90 e, talvez por isso, praticamente todos os membros da primeira formação da Azul afirmem categoricamente que a primeira sede da empresa funcionou no imóvel onde era filmada a Banheira do Gugu. A informação, no entanto, não se confirma. “É uma pena, mas não é verdade. O pessoal fala da Banheira porque ela ficou no imaginário de todo mundo, mas a verdade é que esse quadro sempre foi filmado no SBT”, conta Amandio Liberato, irmão de Gugu, que administra o imóvel atualmente.
A informação também é confirmada pelos assessores de Gugu, para decepção de boa parte das pessoas que foram entrevistadas para contar esse período inicial da história da Azul. Algumas até chegaram a garantir que tinham acompanhado gravações. A última Banheira, porém, foi ao ar em 2001, sete anos antes.
Ainda assim, não há como negar que o espaço tinha algo de inusitado, ligado à mística dos programas de TV e do mundo das celebridades. Mas, não era só isso. O terreno também já trazia, há algumas décadas, certo pioneirismo em seu DNA. Além de ser a primeira sede oficial da Azul, ele esteve entre os primeiros lotes ocupados de Alphaville. Nele, funcionava um dos escritórios da construtora Albuquerque Takaoka, que começou a erguer o bairro na década de 1970.
Anos depois, o apresentador Gugu Liberato viu naquele terreno a possibilidade de realizar um sonho: construir uma produtora e, posteriormente, um canal de televisão. Comprou o imóvel e deu início às reformas necessárias. Eram dois prédios. No da frente, onde funcionava a construtora, ele modernizou as instalações e montou o escritório da GGP Produções. Nos fundos, havia um grande galpão que funcionava de garagem e abrigava um macaco hidráulico para a manutenção de caminhões e tratores que trabalhavam na construção do bairro.
Reformado, esse galpão deu lugar ao estúdio principal da produtora, com modernas instalações e pé-direito alto, algo bastante cobiçado no mercado audiovisual. Apesar do sucesso dos estúdios naqueles anos, a necessidade de um grande aporte de dinheiro para viabilizar a criação de um canal de TV fez Gugu mudar um pouco seus planos. “Foi quando resolvemos alugar uma parte do imóvel. Um corretor tirou fotografias e anunciou”, lembra Amandio Liberato.
Enquanto isso, com a casa de Panda, no Morumbi, recebendo cada vez mais gente para fazer parte do projeto, os executivos deram início à busca por uma primeira sede oficial. Mark Neeleman, irmão de David, chegou dos EUA com essa missão. Inicialmente, andou pela região das avenidas Luiz
Carlos Berrini e Faria Lima, que estava em franca expansão e já abrigava bancos e os principais
agentes do mercado financeiro. Tudo isso a poucos quilômetros do aeroporto de Congonhas. Mas, apesar da excelente localização, nada agradava os americanos. Havia, nesses locais, uma intranquilidade, uma intensa movimentação típica dos grandes centros urbanos que os incomodava. Até que alguém veio com a sugestão de Alphaville. Um bairro com ótima estrutura, cercado, seguro e que parecia um subúrbio das grandes cidades norte-americanas. Era tudo o que a turma que vinha da JetBlue queria escutar. E, assim, o foco das buscas foi reajustado e, em pouco tempo, as fotos tiradas pelo corretor do imóvel da Alameda Surubiju chegavam até os executivos. A possibilidade agradava todo mundo: os profissionais da nova companhia aérea e também os donos do imóvel. “Até aquele momento, achávamos que seria impossível alguma empresa alugar aquilo tudo, porque era bem grande. Já estávamos pensando em dividir em vários espaços para que conseguíssemos mais de um locatário. Então, para nós, foi perfeito”, conta Amandio.
Com a negociação concluída, ficou acertado que a empresa ocuparia o prédio da frente para instalar ali toda sua parte administrativa. O espaço abrigava salas de variados tamanhos, alguns camarins repletos de espelhos e uma sala maior, com um grande camarim, que era ocupada por Gugu.
Foi exatamente essa sala que Panda Beting sugeriu que ficasse com David Neeleman. Nada mais justo que a melhor sala da nova sede ficasse com o idealizador de tudo aquilo. Mas, quando David entrou, achou tudo muito luxuoso, grande, e disse que não queria. “Ele falou que ficaria numa sala pequenininha lá no canto. Quando fui ver, ele tinha escolhido um cubículo de dois por três, sem janela. Só cabia ele e uma mesinha”, lembra Panda, que concordou em ficar com a sala de Gugu para abrigar a equipe que já planejava contratar.
Pelos corredores, havia fios e cadeiras espalhadas. Típica casa no meio de mudança. Não era falta de organização. Pelo contrário, era a tentativa de ordenar tudo aquilo que acontecia ao mesmo tempo.
Em meio à negociação para a compra de aviões e à produção de documentos para a ANAC, a empresa chegava em um novo imóvel e vivia um processo acelerado de contratação de profissionais.
A ocupação das salas ocorria sem muito critério. Os primeiros Tripulantes escolhiam seus espaços de acordo com o tamanho da equipe que planejavam. Em geral, era uma mesa para todos. Quando chegava alguém novo, puxava uma cadeira a mais, arrumava espaço na mesa e ia se integrando ao grupo. E, nesses primeiros meses, foram muitos que apareceram puxando cadeiras e tentando entender como ia funcionar tudo aquilo.
Vai dar certo
Robson Costa foi um dos que chegou ao prédio da Alameda Surubiju esperando um lugar com recepção, segurança e portaria. Achou estranho que, na fachada do imóvel, não tinha qualquer identificação do que funcionava ali. Ficou na dúvida se o endereço estava certo. Mas, quando se aproximou da entrada de veículos, um homem foi até ele, puxou portão e falou: “Segue em frente e entra naquela portinha”. Robson seguiu as instruções. Não tinha porta automática, nem uma recepcionista, como pensou. Sentiu um forte cheiro de carpete molhado e foi entrando, tomando cuidado para não tropeçar nos cabos espalhados pelo chão. Subiu as escadas sem ter a menor noção para onde estava indo e, só quando chegou lá em cima, foi que entendeu que estava no lugar certo. Kléber Linhares, seu colega de trabalho na
Gol e quem o chamou para trabalhar na Azul, saiu de uma das salas e disse: “Vem que é aqui mesmo”. Puxaram duas cadeiras e começaram a negociar sua contratação. “Kléber, qual o nome da empresa?”, quis saber Robson e ouviu uma resposta que o deixou ainda mais intrigado:
“Aqui é Saleb Investimentos”.
“Mas, você não me chamou para uma empresa de aviação?”
“É uma empresa de aviação. Estamos acertando o nome ainda. Vai dar tudo certo”.
Esse estranhamento inicial de Robson foi também, por muito tempo, o estranhamento do mercado de tecnologia diante do surgimento de uma nova empresa aérea. Era preciso comprar muitos equipamentos para montar a estrutura inicial. Computadores, radiocomunicador, telefone, impressora e até contratar serviços básicos, como o de internet. Logo no início dos contatos que fazia com os fornecedores com quem já estava acostumado a trabalhar na área de tecnologia de outras empresas, Robson era questionado para onde tinha ido. “É uma empresa aérea, o nome dela vai ser Azul. Nos documentos ainda se chama Saleb investimentos, mas ela vai ser a maior companhia aérea do mundo”, respondia Robson, tentando transmitir o máximo de confiança. Apesar de toda essa empolgação, a resposta mais comum que ouvia era: “Não posso, Robson, não dá”.
Com muita insistência, porém, Robson começou a encontrar fornecedores que compraram a ideia, em alguns casos, até arriscando seus trabalhos para atender ao pedido. Nesse início, o CPF dos Tripulantes valia mais que o nome da empresa. “Tínhamos uma dinâmica de nos sentirmos dono. A Azul nasceu desse espírito. Não teria outra forma de aquilo acontecer. Isso faz com que a gente, até hoje, tome decisões como dono”, explica Robson. Kléber Linhares, quem convidou Robson para a Azul, chegou na empresa um pouco antes do aluguel do imóvel da Surubiju, quando as decisões ainda eram tomadas na casa de Panda, no Morumbi. Ele trabalhava havia pouco mais de dois anos na Gol e foi chamado para o projeto por seu diretor, Paulo Nascimento, que também
estava encarando o desafio proposto pelo time de David Neeleman. Já naqueles primeiros dias, começou a entender o tamanho do desafio que tinha pela frente. Ele foi contratado para o cargo de diretor de Tecnologia e, além de comprar equipamentos e contratar serviços, precisava desenhar o datacenter e a rede de telecomunicações. “Tudo isso representando uma companhia que não tinha CNPJ em nome de
empresa aérea ainda. Era difícil”, lembra Kléber. Era um contraste grande em relação à estrutura que tinha semanas antes, como gerente geral de uma empresa consolidada: uma equipe enorme e bem-estruturada e que recebia ligações de fornecedores oferecendo os melhores produtos e as maiores facilidades do mercado. Agora, na Azul, a equipe era só ele.
A primeira visita ao prédio da Surubiju o deixou ainda mais preocupado: encontrou um imóvel sem nem um metro de fibra de internet. Precisava instalar telefone, impressora, criar uma estrutura mínima. Foi aí que teve a ideia de convidar Robson. Na verdade, não foi bem um convite, mas uma intimação.
Em uma das vezes em que retornou à Gol para resolver sua rescisão, cruzou a sala onde Robson trabalhava junto com o restante da
equipe. Cumprimentou as cerca de 30 pessoas e, antes de deixar a sala, com seu inconfundível vozeirão, em alto e bom som, disse à Robson para não esquecer de mandar o currículo, porque a vaga estava certa. “Eu não tinha combinado nada com ele. Fiz daquele jeito, na frente de todo mundo, para ele não ter como dizer não mesmo. E deu certo”, diverte-se. Era preciso certa dose de inconsequência para fazer as coisas acontecerem. Inconsequência e paixão. Meses antes de sair da Gol, Kléber atuou no projeto de incorporação da Varig. Teve de fazer toda a estrutura para ligar as duas companhias. Finalizada a tarefa, saiu de férias e, quando retornou, percebeu o mercado alvoroçado. Um burburinho de que David Neeleman estava vindo para o Brasil para criar uma empresa aérea.
Primeiros Tripulantes da Azul na sede da Alameda Surubiju
Crédito: Panda Beting
Na época, a sede da Gol era na avenida Gomes de Carvalho, na Vila Olímpia, bem próxima ao hotel onde David estava hospedado e onde Kléber começou a ver sua carreira mudar de rumo. Ali, foi entrevistado pelo fundador da Azul e também por Trey Urbahn, que falaram do desafio de começar uma empresa do zero e de como fariam para crescer no mercado brasileiro. Kléber era um executivo com futuro promissor na Gol. Gerente geral aos 31 anos, estava sendo preparado para ocupar os principais cargos em um intervalo pequeno de tempo. “Minha filha tinha nascido há poucos meses, eu já tinha um caminho meio certo na Gol, apartamento para pagar e, mesmo assim, o cara me convenceu a ir para uma companhia aérea que não tinha avião. Ele é um encantador de almas”, lembra.
Kléber não foi o único a se encantar e abandonar uma carreira consolidada para viver a experiência da startup. Marcelo Medeiros já era um profissional rodado àquela época, com empresas como KPMG, Souza Cruz e a startup da Dell Computadores no Brasil no currículo. Em 2008, ocupava um dos principais cargos da General Eletric na América Latina.
Atuando com controladoria, sempre mudou de ramo, migrando conforme a oportunidade. Faltava uma experiência na aviação. Quando foi chamado para uma entrevista, percebeu que a única maneira de se preparar era conhecer a história de David, já que se tratava de uma empresa nova. Foi o suficiente. Conversaram bastante e, no mesmo dia, David já apareceu com um contrato impresso nas mãos. “Não sou um cara de arriscar, não jogo, não aposto, nada disso. Falei para ele: David, estou muito bem na GE. Na posição em que eu estava, para ser demitido, tinha que fazer muita besteira”, lembra Marcelo. Mesmo assim, ele ficou encarando o papel com aquele convite irresistível. Tinha muita coisa que o seduzia na proposta. A principal delas era a experiência de trabalhar em um IPO. Era a chance de montar uma área financeira do zero, pensar em controles internos, auditorias e criar uma cultura desde o início visando a abertura de capital. Além disso, tinha o histórico de David. Depois de criar três companhias aéreas de sucesso, não seria agora que ele fracassaria.
“Os maiores ganhos estão nos maiores riscos”, Marcelo repetiu para si mesmo antes de devolver a proposta à David e pedir para acertar um detalhe no contrato. Queria uma espécie de seguro, afinal de contas, já estava arriscando muito para quem não gostava de correr riscos. Falou que precisava de um valor que lhe desse alguma garantia para o caso de o negócio dar errado. David saiu da sala, alterou o documento, imprimiu novamente e trouxe. Agora, não tinha jeito.
“Foi muita loucura. Quando fui comunicar minha saída na GE, ninguém compreendeu. Me chamaram de maluco. E o David ficou por muito tempo falando para todo mundo, com orgulho: esse é o Marcelo Medeiros, diretor de Controladoria, tirei ele da GE”.
Sem sala de reuniões
Em alguns minutos, o Hyundai Tucson parado no estacionamento no prédio da Alameda Surubiju seria o palco de uma importante reunião. Dentro dele, quatro Tripulantes da Azul se preparavam para uma conversa com o fundador da companhia, David Neeleman, que estava nos EUA. Por mais espaçoso que seja um Tucson, um carro não é o local mais recomendado para uma discussão que poderia se estender por horas. Por isso, o comandante Miguel Dau, dono do veículo, tomou algumas providências para deixar o ambiente mais agradável. A mais importante delas foi ligar o ar-condicionado para suportar os outros três marmanjos ali dentro. O engenheiro Flavio Costa, hoje vice-presidente Técnico, era um deles. Os outros dois eram o diretor de Manutenção, Reuel Matos, e o comandante Álvaro Neto.
Quando conseguiram estabelecer contato com David, puderam, finalmente, discutir relevantes aspectos técnico-operacionais da companhia, como a definição de detalhes do galley, onde fica a cozinha das aeronaves. Outro ponto que estava sendo abordado naquela sala de reuniões improvisada era a necessidade de se conseguir uma aeronave para acelerar o processo de certificação junto à ANAC.
Miguel era um dos que insistia com David que não seria possível certificar a empresa a tempo de
voar no fim do ano se esperassem a entrega dos aviões da Embraer. Mas, o que fazer? Alugar? Onde conseguir essa aeronave? A resposta era simples e eficiente: JetBlue. A companhia havia acabado de receber dois aviões novos da Embraer, exatamente com a mesma configuração das que a Azul tinha encomendado. No entanto, com a crise financeira que já assolava o mercado norteamericano, a empresa decidiu mandar as unidades para o deserto, ou seja, deixá-las encostadas, sem uso por um tempo. David ficou sabendo disso e agiu rápido antes mesmo do início dos preparativos técnicos necessários para conservar os equipamentos nessa espécie de hibernação.
Era tudo isso que se discutia naquele momento. “Por que no carro? O escritório não tinha estrutura ainda, mesa com sistema de teleconferência, essas coisas. Então, íamos para o carro, conectávamos a ligação no vivavoz e conseguíamos conversar”, conta Miguel.
Reuniões como essa eram bem comuns naquele começo. Boa parte das decisões que definiram os rumos da companhia foram tomadas no estacionamento, em celulares de executivos que se esgueiravam pelos cantos do imóvel em busca de um ponto onde houvesse sinal de telefonia ou de internet. Era preciso falar com muita gente. Entrar em contato com fornecedores, com o time que estava nos EUA para definir detalhes sobre os aviões e fechar a contratação de pessoas. Principalmente, fechar a contratação de pessoas. “Tínhamos que escolher os primeiros comandantes, coPilotos, Comissários, equipes de manutenção, de aeroportos. Fomos o terror dos headhunter naquele começo porque não precisávamos deles. Escolhemos o que tinha de melhor no mercado sem nenhuma ajuda. Sabíamos exatamente o perfil que os controladores da Azul pretendiam”, conta Miguel.
Miguel era da Varig. Flavio Costa era da Varig. O comandante Álvaro Neto era da Varig. Eles sabiam muito bem que excelentes profissionais estavam disponíveis no mercado com a derrocada da companhia e foram atrás dessa turma para compor o quadro de funcionários da Azul.
Havia nesse momento a preocupação com
a agilidade. Era preciso contratar certo. Não havia tempo para errar e elaborar outro processo seletivo para ocupar a vaga. Por isso, as indicações dos primeiros Tripulantes eram fundamentais. Além da turma da Varig, que foi decisiva para montar o time de aeronautas, pessoas como Panda Beting e Paulo Nascimento, com profundo conhecimento do setor, trouxeram muita gente para o prédio da Alameda Surubiju. “A grande preocupação era trazer gente que tinha o perfil da cultura desejada pelo David. Conversei muito com ele para entender isso e uma coisa que ficou clara desde o início é que ele queria uma empresa com alto nível de humanidade, gente que gostasse de gente de verdade, que gostasse de servir, tivesse paixão por servir”, conta Johannes Castellano, o primeiro diretor de RH da Azul. Era na mesa dele que todas essas indicações iam parar para que fosse batido o martelo e a contratação fosse finalizada. “Mais do que entender de avião, tínhamos que entender de gente”.
Era uma época em que entravam dezenas de Tripulantes por semana e era preciso ter uma área de RH bem estruturada para organizar tudo isso. Logo no início, Johannes contratou dois gerentes. Um assumiu a administração de pessoal e ficava à frente das admissões, do controle de jornada, férias, segurança e medicina do trabalho e folha de pagamento. O outro ficava com o desenvolvimento de pessoal e cuidava do recrutamento e seleção, dos cargos e salários. No total, a equipe contava com 11 pessoas, que chegaram a contratar 200 profissionais em um único mês. Apenas para algumas posições gerenciais foi necessária a contratação de consultorias. “Lembro que, para os cargos do administrativo, usávamos muito um teste que fazia avaliação do potencial humano. Tivemos um índice de acerto muito grande, porque, como acertamos na escolha de todos os líderes, eles traziam pessoas que eram muito parecidas com eles. Então, fomos obtendo uma empresa muito alinhada em termos de cultura, exatamente como queríamos”.
Com uma equipe totalmente voltada aos processos típicos dessa fase inicial de contratações, Johannes podia se dedicar a outras tarefas complexas, como o desenho do plano de cargos e salários, a definição do organograma, dos
níveis e dos pesos dos cargos na organização. Desde o início dos trabalhos, Johannes percebeu que era preciso haver um equilíbrio para atrair, sobretudo, profissionais para os cargos de liderança. A companhia não poderia pagar salários altos. Era apenas uma startup e deveria iniciar oferecendo valores menores que os da concorrência. Mas, como convencer pessoas a ocupar cargos de gestão com salários menores que os do mercado? “O que tínhamos de fazer para compensar era trazer gente com espírito de dono. Então, separamos uma parcela da empresa para oferecer como participação. Daríamos ações da Azul para quem acreditasse no projeto”, lembra Johannes.
Assim, surgiu o plano de stock options da Azul, muito parecido com o que David já havia feito na JetBlue. Com a iniciativa, era possível manter a competitividade da empresa, mas não só isso. Como essas ações prometidas só viriam depois de alguns anos, quando fosse aberto o
capital da empresa, as pessoas que aceitassem fazer parte do projeto tinham, de fato, que estar dedicadas a fazê-lo dar certo. “Atraímos, basicamente, gente que se apaixonou pela ideia”.
Muita gente foi atraída pelo programa. O próprio Johannes foi laçado por essa estratégia. Ele atuava como consultor de RH há mais de duas décadas e estava prestes a entrar em uma sessão de coaching com um Cliente, em São Paulo, quando recebeu uma ligação internacional. Atendeu e ouviu um homem falando português, com um forte sotaque americano, dizendo que era David Neeleman. Ele riu e fez algumas piadas. Tinha certeza de que era trote de um amigo que morava nos EUA. Uns cinco meses antes, leu que David estava vindo para o Brasil e ficou com vontade de atuar no projeto. Na época, possivelmente, comentou com o amigo e ele, agora, resolvia brincar. Enquanto tentava encerrar a ligação, foi percebendo que aquela não era a voz de seu amigo. O homem do outro lado da linha seguia
Primeiros aeronautas da Azul no estacionamento da Sede em Barueri ao lado de executivos da empresa
Crédito: Panda Beting
firme em seu discurso, sem rir, sem gaguejar, falando de uma nova empresa aérea e sugerindo um encontro. Era David Neeleman. O próprio.
Johannes aceitou o encontro, que começou às duas da tarde e foi até às oito da noite. Conexão total entre os dois. Johannes também era mórmon, também tinha sido missionário na juventude e já tinha atuado no setor da aviação, quando prestou consultoria à Gol, na época de sua fundação. Na mesma noite, David fez a proposta. Apesar de tanta sintonia, Johannes não aceitou de primeira. Tinha seus compromissos na consultoria e não poderia abandonar assim, de uma hora para outra. Nos dias posteriores ao primeiro encontro, os dois conversaram muito e, em um desses contatos, Johannes sugeriu à David o programa de stock options. David gostou da ideia e, alguns dias depois, chamou o consultor para um jantar e entregou a ele um papel. “Era uma offer letter, com uma proposta salarial e uma oferta de participação. Obviamente, o feitiço se voltou contra o feiticeiro. Ele falou: se você não quiser ser um executivo da Azul, tudo bem, a gente ainda vai trabalhar junto com consultoria. Mas, se você recusar, eu te aconselho a não mostrar essa carta para sua esposa porque ou ela vai pedir o divórcio ou vai colocar você em um hospício. Assim, ele me convenceu a ser o primeiro diretor de RH da Azul”.
Pra que cafezinho?
Logo nos primeiros dias de trabalho no prédio da Surubiju, Marcelo Medeiros – aquele que David tinha conseguido tirar da GE –estava tentando se organizar em sua sala, quando foi chamado pelo chefe. Ele pedia ajuda para entrevistar um novo funcionário. “Vem comigo e me diz o que você acha”.
“Para qual cargo é?”, quis saber.
“Presidente”, respondeu David.
Apesar de estar com praticamente todos os cargos de diretoria já ocupados, até aquele momento a Azul ainda não tinha um presidente. Para o posto, David estava trazendo um homem com carreira toda construída no varejo. Pedro Janot começou na Mesbla, foi gerente de Marketing das Lojas Americanas, fez a startup da Richards e foi um dos responsáveis pela vinda da Zara para o Brasil. Seu último cargo antes de chegar à Azul foi o de vice-presidente de não alimentos do Pão-de-Açúcar. Fazia dois meses que tinha deixado a empresa criada por Abílio Diniz, quando recebeu uma ligação de um head hunter dizendo ter uma proposta meio maluca para fazer e perguntando se ele queria ouvir.
Pedro Janot, o primeiro presidente da Azul, tinha uma carreira toda voltada para o varejo. Com habilidade, conduziu o primeiro time de executivos da companhia
Crédito: Panda Beting
Ele aceitou. Escutou atentamente a história da vinda de David ao Brasil e foi ficando empolgado com o tamanho do desafio. Até que o head hunter começou a falar sobre o perfil desejado para a vaga e Pedro teve a certeza de que ela havia sido desenhada para ele. “Eles estavam procurando alguém people oriented, que já tivesse feito startups e fosse muito focado no Cliente. Não existia outra pessoa com esse perfil”, afirma Pedro.
Passou por uma primeira entrevista com Trey Urbahn, Gerald Lee, Panda Beting e Miguel Dau, que gostaram do que viram. David também não teve dúvidas e a contratação só não foi imediata por um detalhe: ele queria que Pedro passasse pela aprovação do diretor de RH, que ainda não havia sido contratado.
Enquanto isso, foram chegando outros diretores e a cadeira de presidente seguiu vaga. Pedro foi a última peça do tabuleiro. “Lembro que David disse para mim quando fechamos a contratação: quero duas coisas de você. Que cada voo do nosso Cliente seja melhor que o anterior e que as pessoas que trabalhem aqui, ao saírem, levem a gente no coração. Elas deveriam ser amigas da Azul. Era para isso que eu tinha de trabalhar. Sobre aviação, eu podia ficar tranquilo que ele me ensinava”, lembra.
Pedro sempre gostou de velejar, entendia da aerodinâmica do barco e das forças que o movimentam. A vela é uma asa, costuma dizer. Além disso, tinha feito quatro anos de Engenharia, tinha uma vertente matemática muito poderosa e, desde a infância, sempre estava envolvido com alguma traquinagem de mecânica. Mas, de fato, não era alguém do setor. Para suprir essa falta de experiência, o contato diário e direto com Miguel Dau e Flavio Costa foi extremamente importante. Também sempre procurava fazer o que chamava de volta olímpica, indo de sala em sala e conversando com todo mundo que encontrava para saber o que estava acontecendo. E, assim, foi passando a conhecer mais sobre o assunto.
Mas, seu grande foco mesmo eram as pessoas e o negócio. Sabia que para cumprir a missão dada por David de proporcionar viagens cada vez melhores aos Clientes era preciso dinheiro.
Sabia também que, para ter dinheiro em caixa, era preciso evitar desperdício. Era exatamente nisso que Pedro Janot pensava quando fez seu primeiro anúncio ao assumir a empresa: a partir daquele dia, nada mais de garrafas térmicas com cafezinho fresco espalhado pelas salas. Quem quisesse, podia trazer de casa ou comprar fichas e usar em uma máquina que seria instalada na sede. O dinheiro da venda das fichas acabaria virando um fundo de caixa. Além de evitar o desperdício, conseguia-se um dinheiro. Aproveitou ainda para demitir a copeira e o porteiro. Embora muita gente não tenha gostado das decisões, elas eram importantes sinalizações de que a ideia da otimização de custos e recursos seria levada a sério. “Daqui a pouco, estaríamos discutindo qual a melhor marca do café. Isso era uma coisa indesejada e totalmente fora do meu radar”. A necessidade de gastar menos, principalmente com o que era alheio à operação, se justificava pelo alto custo de uma empresa aérea. Combustível, aviões, peças, tudo isso sujeito à variação do dólar. Essa preocupação ganhou ainda mais importância depois que a companhia sofreu seu primeiro revés, antes mesmo colocar um avião no céu. Parte dos US$ 250 milhões colocados no banco desapareceram diante da forte desvalorização da moeda americana, a partir de outubro de 2008. “Devíamos ter deixado tudo em dólares. Mas, não fizemos isso. A cotação estava a 1.6 (R$ 1,60) quando trouxemos o dinheiro e, naquele mesmo ano, chegou a 2.5 (R$ 2,50). Perdemos alguns milhões nisso. Foi a primeira crise da companhia”, lembra David.
Ajustes como os promovidos por Pedro Janot eram essenciais para fazer a companhia nascer no rumo certo. Algo errado nesse momento poderia criar um vício e prejudicar todo o futuro. O controle dos gastos passava também pela clareza dos números e transparência na administração do negócio. Esses eram preceitos que seriam cobrados em breve, quando fosse aberto o capital.
Por isso, nada melhor do que preparar tudo desde já. Esses ajustes, porém, sempre provocam alguns ruídos. A criação de processos relacionados à compra de materiais foi um deles. De um primeiro momento em que os Tripulantes adquiriam produtos e, depois, apresentavam as notas
fiscais para pedir reembolso, a empresa passou a ter um setor de Contas a Pagar. Os gastos deveriam ser aprovados antes para que, somente depois, a compra fosse realizada e devidamente comprovada. “Foi uma mudança de cultura que, no início, engessou todo mundo. Mas, era necessário. A empresa estava crescendo, era preciso organizar. Eu era uma dessas pessoas de controle”, lembra Marcelo Medeiros.
Enquanto garrafas térmicas deixavam de circular e ordens de pagamento esperavam aprovação em um sistema que passava a fazer parte da rotina da empresa, manuais de operações eram produzidos em larga escala nas salas do prédio da Alameda Surubiju. Profissionais como Flavio Costa, Reuel Matos, Augusto Nunes e Antônio Carraça se debruçavam horas a fio para escrever documentos fundamentais como o Manual Geral de Manutenção (MGM), o Manual Geral de Operações (MGO), o Programa de Treinamento de Manutenção (PTM), o Programa de Treinamento de Operações (PTO), o Manual de Security e Safety, o Manual de Manutenção de Linha e o Manual Geral de Aeroportos.
Nesses documentos, era necessário detalhar os procedimentos e os comportamentos esperados em cada situação. “Você precisa ter uma visão bastante holística da operação para escrever tudo isso. Não é algo que se copia de outras companhias, você tem que fazer do zero. Tem que ser um estudioso da área, com conhecimento técnico para escrever tudo aquilo”, conta Flavio Costa. “Havia ainda um outro grupo que trabalhava com operações, escrevendo sobre treinamento e seleção de Pilotos”.
Um time totalmente focado em garantir que tudo estivesse pronto para ser aprovado pela ANAC a tempo de iniciar as operações até o fim do ano. O foco só se perdia por alguns momentos. Poucos, é verdade, mas eles existiam. Na maioria das vezes quando alguém abria a janela e via passar algum artista famoso, modelo de biquini ou equipes de filmagem rumo ao estúdio dos fundos, que ainda era operado pela GGP Produções. “Isso não vai dar certo. Tira o foco”, alguns reclamavam.
Mas, essa intromissão no trabalho de Flávio e seus colegas estava com os dias contados. A empresa crescia a passos largos e já não era mais possível acomodar todo mundo no espaço alugado inicialmente. Além do mais, havia a necessidade de um lugar para abrigar os dois simuladores que seriam adquiridos, em breve, para treinar os Pilotos. Assim, veio a ideia de ocupar também o estúdio dos fundos do terreno. Grande, com pé-direito alto, era perfeito para receber os simuladores. De quebra, colocaria fim ao entra e sai de profissionais ligados à produtora.
O espaço sofreu algumas alterações para receber os simuladores, que exigiam a instalação de sapatas para reforçar o piso abaixo dos pés do equipamento. Para isso, parte do chão do estúdio teve de ser afundado. Enquanto o terreno era preparado, o buraco no chão estúdio foi comparado a uma piscina. De piscina para banheira foi um pulo e, logo, a sala foi apelidada de Banheira do Gugu.
Com a ocupação total dos estúdios por parte da Azul, a GGP Produções deixava o imóvel. Mesmo assim, o apresentador e sua produtora se mantiveram na lembrança dos primeiros Tripulantes, que se recordariam por muito tempo daquele cenário pouco corporativo dos primeiros meses e contariam por muitos anos que trabalharam no mesmo prédio onde foi filmada a inesquecível Banheira do Gugu. Nada mais justo que o apresentador fosse convidado a testar um dos simuladores. “David chamou o Gugu para pilotar um dos aparelhos. No começo, ele ficou com um pouco de medo, mas foi. Resultado: tentou pousar no Galeão e o avião caiu”, divertese Amandio, irmão de Gugu, ao lembrar da cena.
Por enquanto, os voos eram apenas em simuladores. Mas, isso também estava com os dias contados.
Aos poucos, as salas do prédio da Alameda Surubiju iam ganhando a cara da empresa
Arquivo Azul
Afivelem seus cintos 5
Era 25 de agosto de 2008 e o diretor de Marketing da Azul, Panda Beting, dirigiuse até um supermercado, em Orlando, nos EUA. Saiu de lá com algumas sacolas cheias. Rosbife, pastrame, peito de peru, queijos emmental e suíço, mostarda, maionese e picles. Comprou ainda um cooler para encher de gelo e colocar algumas bebidas. No dia seguinte, quando entrou com tudo isso no Embraer 190, que, em poucos minutos, partiria de Orlando rumo à Porto Alegre, com escala em Boa Vista, preparava uma agradável surpresa a todos os que, como ele, estavam prestes a entrar para a história da empresa e – por que não? – da aviação nacional.
Além de Panda, os Pilotos e um time de mecânicos, traziam para o Brasil um dos dois aviões que David Neeleman tinha conseguido com a JetBlue para acelerar a certificação da Azul junto à ANAC. Eram os primeiros aviões da empresa, que, a partir de agora, entrava em outra fase.
Ao anunciar o cardápio e perguntar o que os companheiros de missão queriam para o lanche, Panda tornou-se o primeiro comissário de bordo da Azul. Mas, não ficou só nisso. Ele acumulou ainda outras funções naquela viagem. Tão logo encerrou seu expediente no serviço de bordo, sacou sua máquina fotográfica que está sempre à mão e fez os primeiros registros de um avião da Azul. Imagens que passariam a compor um acervo com mais de 135 mil arquivos que Panda reuniria até 2015, quando deixou a empresa que ajudou a fundar. Algumas delas, como essas do E-190 que vinha de Orlando, ainda traziam uma aeronave sem as caracterizações da companhia, como a barriga azul e o mapa do Brasil na cauda.
Esse avião, batizado de “O Rio de Janeiro Continua Azul”, por razões que serão explicadas mais à frente, foi também o primeiro a receber toda a identidade visual da empresa. “Ele saiu do hangar de pintura, em Porto Alegre, no dia 7 de setembro. Quando vimos a cena, o mecânico do trator que puxou o avião para fora e colocou as travas começou a chorar. Ele me olhou e disse: ver um avião bonito desse, com o Brasil na cauda, a parte de cima branca e a barriga azul, me faz lembrar da Varig”, conta Panda.
Muitos outros tiveram a mesma sensação nas semanas seguintes, quando conheceram as duas primeiras aeronaves. Uma das oportunidades aproveitadas pelos Tripulantes e seus familiares para chegar mais perto dos modelos E-190 foi durante uma simulação de voo feita para que se pudesse calcular o tempo de realização do serviço de bordo. A ideia era inaugurar um sistema bem diferente do que existia na aviação comercial até então, com Comissários circulando com bandeja de bebidas e de snacks, que seriam abastecidas na galley da aeronave. “Boa parte do pessoal tinha vindo da Varig e não gostava da mudança. Preferiam o carrinho com as bebidas. Mas, David não queria o carrinho para não impedir o pessoal de circular”, explica Panda. “Isso gerou muita dúvida e resolvemos fazer um tira-teima. Numa manhã, chamamos 108 funcionários da Azul e seus familiares. Simulamos o voo calculando em quanto tempo esse serviço seria feito e se seria possível servir tudo em bandejas num voo de ponte aérea, que pode durar entre 35 e 40 minutos. Para surpresa dos que eram contra a ideia, deu tempo de servir todo mundo e passamos a usar as bandejas”, recorda.
Mas, o episódio mais emocionante desses primeiros contatos com a aeronave número 1 da Azul, lembrado por todos os Tripulantes com um misto de carinho e encantamento, é o voo rasante realizado sobre a sede da Alameda Surubiju, no dia 5 de novembro. No meio de um dia de trabalho comum, todos os Tripulantes presentes na sede foram chamados ao estacionamento. Lá, olhando para o céu, presenciaram um momento único na história da Azul. Um voo que simbolizava o nascimento da companhia. Um sonho que se tornava realidade e ganhava os céus do Brasil.
Pilotado pelo comandante Álvaro Neto, o E-190 praticamente desfilou sobre o bairro de Alphaville. “Teve ligação para a defesa civil de Barueri de gente dizendo que tinha avião com problema. Tive que conversar no Departamento de Controle do Espaço Aéreo (Decea). E olha que nem foi muito rasante. Eu faria pior”, diverte-se o comandante Miguel Dau, lembrando o episódio.
Mais do que emocionar os primeiros Tripulantes da companhia, o voo rasante marcou outro importante momento. Enquanto boa parte dos Tripulantes se dirigia ao estacionamento, Robson Costa, o especialista em tecnologia do time de Kléber Linhares, voltava para a empresa preocupado. Estava fora da sede tentando resolver um problema que poderia colocar em risco os planos da diretoria de começar a vender as passagens no dia 1º de dezembro, conforme anunciava a campanha de marketing que já estava na rua.
Até essa data, o site da empresa com todo o sistema para a compra de passagens deveria estar no ar. Para isso, era preciso conectar o datacenter da Azul ao datacenter da Navitaire, em Seatle, nos EUA. “Estávamos com a equipe toda trabalhando e não conseguíamos fazer essa conexão. Isso tinha que ser executado dentro de um período determinado de tempo, que já estava chegando ao fim”, lembra o especialista.
Quando chegou à sede, Robson não entendeu nada o que estava acontecendo. Viu todo mundo no estacionamento, olhando para cima, rindo, feliz. E ele extremamente preocupado. Sem essa conexão dos datacenters, não seria possível publicar nem codificar a página, muito menos
colocar as promoções no ar. Sem essa conexão, nada seria iniciado. “Precisávamos sincronizar as duas VPNs. Tem uma série de códigos e configurações que você tem que fazer para a conexão se estabelecer. Reconhece de um lado, reconhece do outro, troca os protocolos adequados e, só depois, a conexão acontece. O site já estava todo pronto, era só entrar e publicar. Era nisso que eu pensava quando vi aquela cena”.
Imediatamente, Robson tentou localizar Kléber entre os Tripulantes. Quando o encontrou, fez o possível para não contrastar com a alegria geral. Chamou-o em um canto, disfarçou a preocupação e explicou a dificuldade. “Quando ele me contou, fiquei desesperado. Voltamos para a sala correndo para fazermos uma reconfiguração total, para conectar e começar a pensar em vendas. Resultado: não vimos o rasante”, conta Kléber.
No fim, deu tudo certo. O voo que encantou os Tripulantes fez com que o pessoal da Navitaire, que também parou para ver a atração, abrisse mais 30 minutos dessa janela para a conexão, tempo suficiente para que VPNs fossem sincronizadas, protocolos fossem reconhecidos e as vendas das primeiras passagens pudessem ser realizadas no dia programado.
Experiência faz a diferença
Não seria nenhum exagero dizer que o Embraer 190 que se preparava para decolar no aeroporto de Viracopos, na manhã de 6 de novembro, carregava quase 500 Tripulantes. Embora dentro da aeronave só estivessem, de fato, a tripulação do voo, três inspetores da ANAC e algumas poucas exceções autorizadas, como o comandante Miguel Dau, havia um enorme efetivo de profissionais que tinham seus futuros diretamente ligados àquele voo. Miguel acompanhou tudo na condição de observador. Não poderia abrir a boca, sob pena de invalidar essa etapa da certificação. Foi definido que o trajeto seria Campinas – Curitiba –Campinas. As equipes da Azul estavam a postos nos dois aeroportos. Em Alphaville, o CCO da companhia monitorava tudo. Em todas essas bases, profissionais extremamente competentes e experientes, a maioria vinda da Varig. Um
Crédito: Panda Beting
O primeiro E-190 da Azul praticamente desfilou por todo o bairro de Alphaville
Todos os Tripulantes foram chamados para o estacionamento da sede da Surubiju para presenciar o rasante
time muito bem entrosado. Eram pouquíssimas as chances de algo dar errado. O comandante Miguel Dau, no entanto, desconfiava que os inspetores da ANAC preparavam alguma surpresa para esse teste final. Só não sabia qual. Eles poderiam, por exemplo, testar a reação da equipe diante da simulação de um motor apagado ou anunciar que não seria possível pousar em Curitiba e pedir um plano B à tripulação. Uma coisa era certa: eles estavam preparando algo.
Essa era a etapa final de todo o processo de certificação, que havia começado há mais de seis meses. Depois que toda a documentação e os manuais foram aprovados pela agência, havia chegado a hora de as aeronaves serem certificadas. Como veio dos EUA com matrícula americana, o primeiro avião da Azul teve de ser registrado por aqui. Para isso, passou por inspeção de manutenção e, depois de aprovado, recebeu o RAB (Registro Aeronáutico Brasileiro) e pôde, finalmente, ser registrado na frota da companhia.
A partir daí, foi utilizado como base para todo o processo. A etapa seguinte foi a certificação de
evacuação de pessoas, com foco nos Comissários de bordo. Feita em Gavião Peixoto, no interior de São Paulo, essa etapa também foi concluída com sucesso com todos os Tripulantes saindo do avião em até três minutos. Com isso, o padrão da empresa estava aprovado. Agora, só restava o voo de certificação para que a Azul estivesse autorizada a operar comercialmente.
Já no alto, tudo transcorria normalmente, até que o temor do comandante Miguel Dau começou a se justificar. Antes mesmo de completar o primeiro trecho da viagem, assim que passaram por Florianópolis, o inspetor da ANAC anunciou que um dos passageiros estava sofrendo um mal súbito, possivelmente um infarto. O médico a bordo sugeria que a aeronave pousasse no lugar mais perto. Esse lugar mais perto era, justamente, Florianópolis, onde a Azul não tinha equipes em terra.
A ideia era testar a capacidade da empresa de lidar com uma situação completamente fora da sua infraestrutura. “Ele sabia que
Crédito: Panda Beting
a equipe de bordo era eficiente, o avião era novo, a frota que viria para a Azul era nova, com comandantes e Comissários experientes. Ele queria ver a infraestrutura da companhia”, lembra o comandante.
Nessas horas, como Miguel gosta de dizer, cabelo branco e a experiência do grupo fazem toda a diferença. Tão logo receberam o comunicado do comandante, os profissionais do CCO da Azul acionaram a equipe de infraestrutura de solo de aeroportos, que fez contato com uma empresa de handling, acionou uma equipe hospitalar com ambulância e deixou tudo preparado para que o avião pudesse pousar, para que o passageiro fosse atendido, a aeronave reabastecida e o voo tivesse continuidade.
Mas, o que já estava bem-organizado poderia ainda ficar melhor. Foi quando o gerente geral de operações de manutenção, Antônio Carraça, lembrou que um técnico da Azul estava em Florianópolis. Ligou para o Tripulante Edgar Elias que, em poucos minutos, chegou ao Hercílio Luz. “Quando desço do avião, tinha um mecânico nosso lá. Ele falou: oi, engenheiro Flávio, me ligaram dizendo que vinha alternado, peguei o carro e vim pra cá. Virei pro pessoal da ANAC e falei: Tem até um mecânico nosso aqui, ó. Tiramos onda”, lembra Flavio Costa.
Com uma atuação dessas, o resultado não poderia ser outro: a empresa tinha conseguido o CHETA e estava, finalmente, autorizada a voar comercialmente. “No final, o inspetor disse: o padrão da Azul, nesse primeiro voo, demonstra uma capacidade que empresas aéreas que já estão operando há anos não têm. Lembrar disso me emociona até hoje”, conta Miguel.
Porém, antes de ganhar os céus carregando passageiros, os aviões da Azul passariam ainda por um importante teste. Uma missão nobre e que já evidenciava importantes características que marcariam a companhia nos anos seguintes.
As primeiras notícias de que fortes chuvas atingiam a região do Vale do Itajaí, em Santa Catarina, começaram a chegar no dia 22 de novembro de 2008. Nos dias seguintes, os
telejornais informavam que mais de 1,5 milhão de pessoas de 60 cidades tinham sido afetadas. Pior: a tragédia havia tirado a vida de 135 pessoas. Brasileiros de todos os cantos do país acompanhavam imagens da destruição de importantes símbolos da infraestrutura local, como os berços de atracação do Porto de Itajaí e estradas que davam acesso aos pontos mais atingidos pela tragédia. Com o passar dos dias, a alternativa mais eficiente para levar à população produtos de necessidade básica, como água, alimentação, roupas e colchões, era pelo alto.
Ocupado com os detalhes do início das operações, que aconteceria a menos de um mês, Miguel Dau recebeu uma ligação de David Neeleman perguntando se o avião da companhia já poderia voar. Embora já tivesse conseguido o CHETA, ainda faltava a assinatura de uma portaria da ANAC.
“Depende, se é um voo de interesse da Azul apenas, pode. Só não posso efetuar voo comercial”, respondeu Miguel.
“Então, prepara essa aeronave que a gente vai levar roupas, remédios, água e tudo o que a gente conseguir para o pessoal de Santa Catarina”, avisou David.
A missão foi aceita imediatamente. Enquanto Miguel montou toda a logística do voo, outros profissionais, como o diretor de RH Johannes
Executivos da Azul posam ao lado do primeiro jato Embraer da companhia
Castellano, articularam para conseguir doações em escala industrial. Ao todo, o avião saiu com mais de sete toneladas de cargas, distribuídas no porão e até em locais pouco convencionais, como a cabine dos passageiros, desde que não colocassem em risco a operação. “O primeiro voo da Azul depois da certificação foi um voo humanitário. Água, medicamento, colchão, roupa, lotamos o avião. Isso já mostra a vocação da empresa para cuidar de gente”, conta Johannes.
Quem é essa azul?
O estacionamento da sede da Alameda Surubiju estava quase se transformando num salão de festas. Importantes momentos da história da empresa foram comemorados ali. Dessa vez, a surpresa não vinha pelo alto, como no voo rasante. A poucos dias do início das operações, todos os Tripulantes foram convidados novamente para ocupar o espaço e recepcionar um grupo de executivos que havia partido uma semana antes para uma missão. Quando o ônibus apontou na porta do estacionamento, os Tripulantes puxaram uma salva de palmas. À medida que se aproximava da entrada do prédio, o ônibus era ovacionado. “Todos os Tripulantes estavam lá embaixo, perfilados, nos aplaudindo. Parecia que tínhamos chegado da Lua”, lembra o então gerente Comercial, Antonio Americo, hoje diretor Comercial da Azul.
Os heróis – entre eles Trey Urbahn, Pedro Janot, Panda, Jason Ward, Alexandre Pupe e o próprio Antonio Americo – tinham desembarcado em Campinas, depois de rodarem as principais capitais do país apresentando a empresa ao mercado. No roteiro, Rio de Janeiro, Curitiba, Porto Alegre, Belo Horizonte, Recife e Goiânia, além de Campinas, a casa da empresa. Nesses eventos, eram reunidos autoridades, jornalistas, agentes de viagens e Clientes importantes para acompanhar uma demonstração do produto. A ação não era muito comum no Brasil e foi sugerida por Panda Beting. Por aqui, até então, eram realizadas as fam trips, viagens que apresentavam rotas já estabelecidas. Mas, mostrar um produto que ainda seria lançado no mercado era algo novo. Nesse curto período de uma semana, os executivos passavam o dia nas
apresentações e, à noite, iam para o hotel. Na manhã seguinte, já estavam em outra capital. “Chegávamos, embarcávamos todo mundo e sobrevoávamos a região por, mais ou menos, uma hora, demonstrando o nosso Embraer. Aquilo dava um resultado fantástico”, conta Antonio Americo.
A iniciativa fazia parte dos esforços da área comercial da empresa para torná-la conhecida e impulsionar a venda de passagens. A área comercial, naquele período, se resumia a Antonio Americo, profissional que havia atuado por 36 anos na Varig e deixou a companhia quando ela foi vendida à Gol. Enquanto vivia um curto período sabático, recebeu uma ligação de Panda Beting, que lhe apresentou o projeto. Ingressou oficialmente em setembro, quando a empresa começou a ter algo para mostrar ao mercado.
Acostumado a uma estrutura menos tecnológica e mais baseada em lojas de aeroporto e call centers, que correspondiam a cerca de dois terços das vendas na Varig, Antonio começou tentando entender como poderia ser útil na nova empresa, que apostaria mais em tecnologia. Logo no início, percebeu que havia uma diferença cultural entre o mercado brasileiro e o norte-americano que provocaria certa divergência nesse início. Com a base dos fundadores vinda da JetBlue, a Azul apostava num modelo B2C, ou seja, na venda direta ao consumidor final, algo bastante difundido nos EUA, onde as agências de viagens não têm tanto espaço. “Por lá, a classe média lota os aviões, comprando nos sites. Mas, no nosso mercado, o segmento mais forte e que melhor remunera é o corporativo e ele depende de agência de viagem”, explica Antonio.
O gerente comercial tinha a convicção de que, além das vendas no site, era preciso dar atenção também aos canais indiretos e aos contratos comerciais com grandes empresas. Mas, era preciso ir devagar. Explicar aos poucos toda essa diferença entre os dois mercados e indicar o que poderia ser feito. Ele sabia o caminho. Começou formando uma equipe. A ideia inicial dos fundadores era de que o atendimento das vendas de todo o país fosse realizado a partir de São Paulo. Algo mais centralizado. Para começar, Antonio argumentou que, no Brasil, precisamos
de ter gente nos lugares. “Somos brasileiros, latinos, o face to face é muito importante”, explica. Foi batendo na tecla de que é preciso ter agentes em todos os cantos vendendo o seu produto, principalmente quando se trata de um produto novo e que ainda não é conhecido.
O passo seguinte era criar uma estrutura de distribuição, algo que Antonio sabia que seria bastante trabalhoso. Uma coisa é uma empresa aérea que já existe e passa a voar no Brasil. Ela já tem todo um sistema de distribuição consolidado e basta iniciar as vendas. “No caso de uma empresa nova, estávamos fora dos sistemas globais de distribuição, o que exigia uma série de etapas”.
Antonio tinha três desafios nesse princípio. O primeiro deles era convencer o agente de viagem a conectar a Azul em seu webservice para que o produto começasse a aparecer nas lojas e pudesse ser vendido. O segundo era capacitar o agente, explicar quem era a empresa, como iria trabalhar, que aviões usaria, quais seriam os preços. E, por fim, estabelecer uma condição comercial, com vantagens para que o produto se tornasse conhecido. “Lembro de ter participado de muitos eventos corporativos. Ia com um banner numa mão e uma caixa de panfleto na outra para apresentar a Azul”.
Os 36 anos de Varig certamente ajudaram
Antonio nesse caminho. Como aconteceu com o pessoal da tecnologia, a confiança em seu nome superava as dúvidas que o mercado tinha na nova empresa, que não se restringiam a saber se a empresa conseguiria sobreviver aos primeiros anos diante do ataque das principais concorrentes. O plano de voar a partir de Campinas também era algo que deixava desconfiado um mercado tão acostumado a Congonhas e Guarulhos. “A Varig já havia feito algumas tentativas frustradas nesse sentido. Uma saída que encontramos foi estabelecer condições especiais de desconto para determinadas rotas para que a roda começasse a girar. Com o tempo, ajudados, principalmente, pelo nosso tipo de aeronave
com dois lugares e poltronas confortáveis, tivemos uma aceitação grande do mercado corporativo”. O trabalho com os canais indiretos chamou a atenção de David Neeleman a tal ponto que, um dia, resolveu acompanhar a equipe do Comercial em uma das visitas para fechar um acordo. Antonio alertou que não se encontraria com nenhum diretor da empresa, mas apenas com o pessoal operacional. Mesmo assim, David insistiu em participar. Esse era exatamente o seu foco: o operacional. Queria entender como funcionavam essas vendas tão comuns aqui no Brasil. Essa não foi a única vez
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que David saiu do escritório para fazer essas pesquisas de campo. Em uma delas, pediu a Anderson Serafim, um dos primeiros contratados por Antonio Americo para o Comercial, que marcasse uma visita a uma agência de viagens. “Fomos recebidos pelo dono e pelos diretores da agência, mas ele queria ver o atendimento. A reunião com os donos durou cinco minutos e, no restante do tempo, ele ficou perguntando aos atendentes como era o trabalho e qual o sistema era utilizado com as outras companhias aéreas. Queria ver tudo isso na prática. Ali, fui aprendendo qual seria a cultura da Azul”, conta Anderson.
Todos os Tripulantes foram convidados para receber o primeiro jato 0 km, na sede da Embraer, em São José dos Campos
Aquele período que antecedia o primeiro voo oficial provocava um misto de sensações em todos os envolvidos no projeto. Tudo acontecia muito rápido e, às vezes, até ao mesmo tempo. Depois de um rasante para apresentar a aeronave número 1, da certificação da companhia pela ANAC, de uma missão especial para demonstrar o produto às principais capitais e do tão sonhado início das vendas, ainda havia espaço para mais acontecimentos antes do dia 15 de dezembro. A apenas três dias do início das operações, boa parte da empresa se preparava para mais um evento que ficaria para sempre na lembrança dos primeiros Tripulantes. Ao receber a notícia de que o primeiro avião encomendado da Embraer estava pronto para ser entregue, Panda Beting sugeriu à David Neeleman algo inédito para marcar a data.
“Que tal convidarmos todos os funcionários para receber o avião?”
David adorou a ideia e, para tirá-la do papel, foram contratados ônibus que levaram de São Paulo para São José dos Campos, na sede da Embraer, os cerca de 500 profissionais que já tinham sido contratados até o momento. “Em todas as empresas, vão cerca de dez pessoas receber os aviões. A Azul foi certamente a primeira companhia aérea do mundo a colocar 99% dos seus funcionários em uma cerimônia desse tipo”, explica Panda. Ao fim da cerimônia, todos os Tripulantes cercaram o avião e ouviram de David uma frase que simbolizava tudo o que sentiam em relação à empresa. Todos os que estavam ali se consideravam responsáveis pelas conquistas recentes. Eram eles que estavam concretizando aquele sonho, que já não era mais só de David Neeleman, mas de cada um que disse ‘sim’ para o projeto. Todos os que abraçavam de maneira simbólica aquele E-190 eram um pouco donos da empresa que nascia e se emocionaram quando David disse: “Esse avião é de todo mundo e nós temos que celebrar isso”.
O
avião
de todos os
Tripulantes da Azul estava pronto para ser o avião de todos os brasileiros.
Batismo do primeiro avião da Azul foi uma tentativa de levar as operações para aeroporto de Santos Dumont, no Rio
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Um aeroporto para chamar de seu 6
O cenário era o dos velhos filmes de faroeste. Com alguma concentração, era possível até ouvir o barulho do vento. Uma pista sem aviões, um saguão sem passageiros, um estacionamento sem carros.
Na entrada do aeroporto de Viracopos, a presença mais vibrante era a de um vira-lata caramelo que descansava junto à porta. De vez em quando, bocejava, espantava uma mosca, e logo voltava ao tédio e ao sono profundo. Talvez, até sonhasse com o dia em que aquele lugar estivesse cheio. Até aquele momento, isso só seria possível mesmo em sonho. A atendente de lanchonete que vendia pão de queijo tinha um ar tão entristecido quanto o do cão. A diferença é que estava acordada, com o rosto enfiado entre as mãos. Sabia que seu emprego estava com os dias contados. Sem passageiros para povoar o saguão e comer pão de queijo, a presença dela ali não se justificava.
No painel do aeroporto, apenas quatro voos. Aquela era a média diária de Viracopos, que funcionava basicamente como um terminal cargueiro. O que o vira-lata caramelo e a atendente da lanchonete não desconfiavam era que suas vidas estavam prestes a mudar radicalmente depois que um carro encostou no estacionamento e, de lá, desceram quatro homens falando um misto de português e inglês.
Quando David Neeleman, Gerald Lee, Panda Beting e Miguel Dau passaram pelo cachorro sonolento e entraram naquele saguão vazio, começaram a mudar definitivamente o destino não só daquele lugar, mas de toda uma região que passaria a ter uma economia ainda mais forte graças ao que Viracopos se transformaria nos anos seguintes.
Enquanto encaravam, pasmos, o painel anunciando aqueles míseros quatro voos, os executivos faziam contas, tinham ideias e tiravam suas conclusões. Imaginavam, porém, cenários completamente distintos. Miguel já conhecia Campinas por causa da Varig. Lembrava de algumas tentativas da empresa de voar por lá. Lembrava também de outras companhias aéreas que tentaram operar ali e não duraram muito, como a RioSul, Vasp e Transbrasil.
Depois de um tempo andando pelo terminal, Miguel encontrou o dono de um bistrô completamente às moscas, que disse estar indo embora. O que ganhava ali não pagava as contas. O desespero do comerciante
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e o abandono daquele saguão davam ao comandante a certeza de que aquilo não poderia dar certo. Chamou Panda de canto e falou o que pensava. O aeroporto era vazio, não tinha estrutura, era afastado da capital. “Quem vai querer vir para cá?”, pensava.
Enquanto isso, viam David andando agitado pelo saguão. Ia de um canto ao outro, olhava cada detalhe, via o número de balcões, calculava o espaço, observava a pista, retornava e olhava o painel, incrédulo. Mas, ao contrário do que esperavam, ele sorria. “Este aeroporto está totalmente vazio. Nós vamos encher ele de avião e encher o avião de passageiros e encher o bolso de dinheiro”, disse, mal conseguindo ficar parado de tanta euforia.
“Nesse momento, entendi a diferença entre um ser humano comum e um visionário. Um visionário enxerga além do horizonte e uma pessoa comum vê possibilidades e dificuldades, mas nunca com essa visão. É uma energia que brota das pessoas especiais. É uma confiança que tem um poder arrebatador”, resume Panda. Essa confiança tinha também muito embasamento. Em 2008, a cidade de Campinas tinha a 13º maior economia do Brasil. Se levada em conta toda a região do interior paulista, o PIB passava dos US$ 135 bi, valor 12% superior ao do Chile àquela época. A demografia do interior de São Paulo também justificava o otimismo de David. A região
já abrigava quase 20 milhões de pessoas. Além disso, basear as operações da Azul em Campinas era a possibilidade de fugir da concorrência direta com Gol e TAM em aeroportos de maior movimento, como Congonhas e Guarulhos.
Mas, por pouco, a empresa não traçou um destino completamente diferente. Um namoro breve com o aeroporto de Santos Dumont, no Rio de Janeiro, quase atrapalhou todo o futuro promissor que já estava reservado para o casamento feliz entre a Azul e Viracopos.
A ideia de operar a partir de um charmoso aeroporto à beira-mar, ao lado do centro da cidade, onde se consegue chegar e sair sem necessidade de táxis, era, de fato, tentadora. Erguer a base da empresa em uma das mais importantes capitais do país, que vivia um boom com a descoberta do pré-sal, abriria inúmeras possibilidades econômicas. Havia também o fato de que boa parte dos aeronautas que estavam sendo contratados pela empresa eram da Varig, que era do Rio de Janeiro. Miguel Dau foi um dos que mais se empolgou com a possibilidade e já até via a empresa ocupando o antigo hangar e o centro de treinamento da Varig, onde trabalhou por anos.
Foi pensando em colocar essa estratégia em prática que o time de David desembarcou no Palácio das Laranjeiras para apresentar a ideia ao então governador do Rio de Janeiro, Sérgio
David Neeleman, em uma de suas primeiras visitas à Viracopos, observa painel anunciando os poucos voos disponíveis na ocasião
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Cabral. “Falamos que queríamos chegar a 40 aviões e gerar até 8 mil empregos diretos. Ele ficou bastante interessado”, explica Panda.
Foi por conta disso que o primeiro avião da Azul, aquele E-190 que veio da JetBlue e onde Panda atuou como comissário de bordo, recebeu o nome de “O Rio de Janeiro continua Azul”. Era um importante aceno da empresa na direção de uma união com a capital fluminense.
Os executivos chegaram a visitar o prédio da VASP para checar a possibilidade de instalarem ali a sede da Azul. Se a proposta fosse para frente, não existiria hub em Viracopos, nem sede na Alameda Surubiju. Muitos dos primeiros Tripulantes já começavam até a estruturar suas vidas na Cidade Maravilhosa quando voltaram ao Palácio das Laranjeiras para convidar o governador para a cerimônia de batismo da primeira aeronave.
Foi aí que a situação começou a mudar. Ao entrarem novamente no escritório do governador, foram recebidos com um discurso completamente diferente. Estranhamente, a Azul já não era mais bem-vinda. “Se quiséssemos, poderíamos ir para o Galeão, e olhe lá”, lembra Panda.
O batismo da primeira aeronave, em 17 de setembro, no Rio de Janeiro, ocorreu sem nenhum representante do governo estadual. A partir desses recados, a direção da companhia voltou atrás em seus planos e passou a direcionar todos os esforços para a criação de sua base em Viracopos. A ideia de substituir o Santos Dumont por Viracopos não convenceu todo mundo imediatamente. Nem mesmo com a animação que David demonstrava. No mercado da aviação, a desconfiança era geral. A decisão era considerada uma loucura. “Quando anunciamos que íamos para Viracopos, apostaram que a gente não duraria de seis meses a um ano”, lembra o carioca Miguel Dau, um dos que discordava de organizar a empresa a partir de Campinas. Ele insistia quase diariamente com David para que mantivesse os planos no Rio de Janeiro. Até o dia em que ouviu uma resposta muito firme. “Ele virou pra mim e disse: Miguel, não
vou mais falar de Azul no Rio de Janeiro. Fiquei com medo de ser demitido naquele dia. Ali, eu resolvi parar de tocar no assunto”, conta.
Miguel não era o único que duvidava do potencial do interior paulista. Certa vez, a caminho do aeroporto de Congonhas, o diretor de Relações Institucionais, Adalberto Feliciano, conversava com um dos executivos sobre essa mudança de planos. Questionado sobre o que achava de Viracopos, Adalberto propôs uma experiência.
Ao deixarem o carro no estacionamento, deveriam contar quantos veículos encontrariam com placa do interior de São Paulo. Fizeram isso e, ao chegarem no elevador, perceberam que metade deles era da região de Campinas. “Uns amigos dele estavam dizendo que ele tinha cometido um grande erro, porque nunca teria passageiros em Viracopos. Quando terminamos nossa experiência, ele disse: esquece o que eu falei”, lembra Adalberto. “Não precisava contratar especialistas para fazer estudo de demanda. No estacionamento de Congonhas, já ficava claro que Campinas tinha um potencial de tráfego muito grande, independentemente do que você conseguisse trazer de São Paulo. Só o interior já tinha uma demanda forte. E foi exatamente o que vimos acontecer”. Uma das medidas decisivas para ganhar apoio das pessoas foi a criação de linhas de ônibus que levassem os passageiros da Capital à Campinas. Ônibus de graça e com ar-condicionado, partindo de diversos pontos de São Paulo. Uma ideia simples e que surpreendeu a todos, tanto o mercado quanto os executivos que ainda tinham dúvidas de que Viracopos daria certo. A simplicidade das ideias de David, inclusive, é algo que vivia surpreendendo sua equipe.
Durante as discussões sobre como controlar o acesso aos ônibus, surgiram inúmeras ideias, como a criação de um voucher que seria entregue aos Clientes e apresentado a
funcionários da companhia estrategicamente posicionados. “A gente já estava inventando talonário e mais não sei quantas pessoas pra controlar o acesso, até que o David perguntou: por que a pessoa não pega o próprio ticket do voo e mostra no ônibus? Uma solução tão simples que deixou a gente até com vergonha de não ter pensado nisso antes”, lembra, rindo, o exdiretor de Controladoria, Marcelo Medeiros.
Iniciativas simples e eficientes, além de uma visão muito clara do negócio, foram transformando o que, para alguns, parecia uma aventura fadada ao fracasso em mais uma história de sucesso. Viracopos tinha um enorme potencial e a desistência de voar a partir de Santos Dumont foi, aos poucos, sendo assimilada por todos. “Foi muito melhor para a Azul. De lá, a gente pode decolar para Paris, Parintins ou Paraíba. Se pode voar de Miami à Mirandópolis. Uma pista só, uma conexão só. Um verdadeiro hub intercontinental que é absolutamente perfeito para esse plano de negócios”, resume Panda Beting.
Mas, para tirar tudo isso do papel, seria preciso muito trabalho. Havia muita coisa a ser feita para transformar aquele terminal cargueiro que servia de abrigo para um sonolento viralata no maior hub da América Latina.
É preciso colocar ordem na casa
Assim como a sede da Alameda Surubiju tinha de ser preparada para receber os primeiros Tripulantes, Viracopos deveria passar por uma pequena revolução para receber a Azul. Tudo tinha de ser organizado praticamente do zero. Para começar, a parte de tecnologia. Eram necessários dois links de dados para garantir conexão de internet. “Sempre dois. Se um cai, continuamos conectados”, explica Robson Costa, especialista em tecnologia e, hoje, gerente Geral de Riscos Corporativos e Conformidade da Azul. Era preciso instalar computadores para o check-in. Além disso, um sistema de rádio comunicação, outro de telefonia e impressoras. Muitas impressoras. “Elas eram fundamentais. Para liberar o avião, tinha que entregar documentação para a tripulação e para o comandante. Pode parecer absurdo, mas se as
impressoras falhassem, não tinha despacho da aeronave, porque tinha de imprimir documentos. Tínhamos que ter links, máquinas, impressoras, papel, uma logística forte”, completa Robson.
A infraestrutura geral era muito aquém do que a companhia precisava para receber seus Clientes. Não havia, por exemplo, uma rede de serviços básicos. Não havia uma lanchonete ou farmácia com potencial para atender a grande quantidade de pessoas que eram esperadas para os próximos meses. Tudo era muito acanhado. O estacionamento era outro gargalo. Ele tinha uma capacidade muito reduzida e não conseguiria acompanhar o crescimento da empresa. “Muita gente pode pensar: mas, isso era função da Azul? Sim, era. Tínhamos que garantir condições mínimas para receber nossos Clientes no nosso aeroporto. Porque sempre consideramos o aeroporto de Campinas como nosso”, conta Elizabete Antunes, que assumiu toda a área de infraestrutura de aeroportos da empresa.
Ela já conhecia Viracopos. Havia trabalhado 27 anos na Varig, sempre na linha de frente e lidando o tempo todo com aeroportos. Nesse período, foi gerente geral de Guarulhos e responsável por todos os aeroportos da Varig no mundo, mas também foi gerente regional e teve Campinas como uma das bases sob sua responsabilidade. Logo nas primeiras visitas ao terminal, acompanhada por David Neeleman, percebeu que havia algo diferente nessa nova tentativa de ocupar Viracopos. “Em várias situações, pude ver o quanto essa dedicação ao Cliente era verdadeira. Uma vez, estávamos conversando e ele saiu do meu lado, caminhou alguns passos, só para pegar um papel no chão e jogar no lixo. Pouco tempo depois, estava ajudando uma senhora a fazer check-in. Nesse início, ele era muito próximo da operação e nos fazia entender qual era o nível de excelência que esperava”. Ao lado de Elizabete havia muita gente que conhecia como ninguém a atividade aeroportuária e estava totalmente dedicada a pensar em como melhorar essa infraestrutura. “O pessoal que veio para o operacional tinha muita experiência. Muita gente era da Varig. Eram profissionais que sabiam exatamente o que precisava ser feito”. E era justamente esse time experiente que
teve a missão de buscar junto ao administrador aeroportuário, que, na época, ainda era a estatal Infraero, soluções para dar ao terminal essas condições mínimas para receber os Clientes. Uma delas era garantir uma sala de embarque um pouco maior. “Construímos um puxadinho para as salas de embarque, que foi um anexo. Desenhávamos os planos, sentávamos com eles e buscávamos ajuda financeira”. A outra necessidade era negociar a expansão do estacionamento. Alguns espaços com bolsões, um deles destinados à Receita Federal, foram sendo eliminados para garantir mais vagas aos Clientes. O fluxo de circulação no estacionamento também foi alterado para melhorar a movimentação. “Tomamos a frente de todas essas negociações”, lembra Elizabete, que, hoje, é diretora de Comissários.
A ausência de mão de obra qualificada para formar as primeiras equipes do aeroporto também foi motivo de muita preocupação. Como Viracopos era um terminal focado em cargas, era difícil encontrar pessoas preparadas, na região de Campinas, para o atendimento a passageiros. A busca era por cargos com remuneração mais baixa, o que não justificava trazer pessoas de cidades mais distantes. Por isso, para compor o primeiro time de agentes, que formam a base do trabalho da empresa no aeroporto, optou-se por pessoas sem experiência e que seriam capacitadas internamente. Ao todo, foram contratados 25 profissionais para atuar fazendo o check-in, embarque e desembarque de Clientes. “Desses, apenas um
tinha experiência. Os outros 24 eram garçons, trabalhavam em hotel, entre outros. Começamos do zero e com pessoas que não sabiam nada de aviação”, lembra o gerente de Operações do aeroporto de Congonhas, Thiago Miotto, um dos que atuou nesse processo de capacitação em Viracopos. Ele e seus colegas ajudavam a transformar tudo o que estava desenhado no Manual Geral de Aeroportos em treinamentos que detalhariam qual era a conduta esperada para cada Tripulante. “Escrevíamos tudo o que seria dito na hora do embarque, o que seria aceito e o que não seria e em que momento fecharíamos o check-in, por exemplo. Tudo isso foi bastante treinado para não ter erro”.
O treinamento era fundamental para fazer todos os novos Tripulantes assimilarem a cultura da Azul. Para que todos entendessem que o Cliente era o principal foco da companhia. Clientes e não passageiros, como em outras empresas. Naquele aeroporto, ninguém estaria de passagem. Todos, assim como a Azul, viriam para ficar. Era preciso entender que, como queria David, quem entrasse em Viracopos para voar com a Azul estava prestes a fazer o melhor voo de sua vida. Não apenas isso, era preciso garantir que o próximo fosse ainda melhor. Em pouco tempo, esses novos Tripulantes e aquele lugar seriam testemunhas da primeira experiência de Clientes em um novo conceito de empresa aérea.
Chegada da Azul deu nova vida ao aeroporto de Viracopos, até então, destinado a cargas
Arquivo Azul
Para o alto e avante 7
Quando o Embraer 190 da Azul pousou no Aeroporto Internacional de Salvador, às 13h28 do dia 15 de dezembro de 2008, um novo capítulo na história da aviação nacional estava começando a ser escrito.
Enquanto a aeronave taxiava na pista e se aproximava do terminal de passageiros, o comandante Ary Nunes abriu a janela da cabine e colocou as mãos para fora erguendo uma bandeira do Estado da Bahia. O gesto tradicionalmente feito pelas companhias aéreas que estão chegando em uma nova cidade foi combinado antes do voo com o diretor de Marketing, Panda Beting. “Anos antes, tinha feito alguns voos inaugurais internacionais da Transbrasil e também tinha tido essa ideia de colocar a bandeira para fora”, lembra Panda, que estava na cabine no momento do pouso, junto com o coPiloto e o Comandante.
O avião transportando os primeiros 88 Clientes da Azul pousava com alguns minutos de atraso, consequência de imprevistos ocorridos em Viracopos. O maior deles envolvendo David Neeleman, que veio dos EUA para o primeiro voo. Uma semana antes, sua secretária, Aurora Vezzelli, organizou tudo: como ele chegaria no Brasil apenas no dia 15, a poucas horas do voo inaugural, foi feita a reserva com uma empresa de táxi aéreo. Assim, ele desceria em Guarulhos e, pouco minutos depois, chegaria à Viracopos. Por via das dúvidas, um motorista estaria a postos. “Quando ele desceu do avião, estava tudo pronto, mas, não tinha teto em Guarulhos. Não teve jeito, ele teve de ir de carro”, lembra Aurora.
Ainda assim, estava tudo sob controle. O trajeto de pouco mais de 100 quilômetros poderia ser feito, tranquilamente, em uma hora e 20 minutos. David não chegaria com a antecedência desejada, mas, mesmo assim, seria o suficiente para sair no horário. O que não podia ser previsto, porém, era que o motorista erraria o caminho e chegaria em Campinas em cima da hora prevista para a decolagem. David desembarcou, fez rapidamente os procedimentos de check-in e o avião, finalmente, ganhou os céus de Campinas cerca de 15 minutos depois do horário programado.
Houve ainda outra situação que saiu do roteiro: uma sabotagem que deixou a companhia sem energia elétrica para fazer o embarque dos Clientes. “Uma hora antes de o avião sair cortaram os cabos elétricos que alimentavam o sistema de check-in da Azul e a gente teve de fazer o procedimento final de peso,
Aérea
Arquivo Azul
balanceamento e check-in manualmente, porque o sistema caiu e levou um tempo para refazer”, conta Panda.
Esses, no entanto, não foram os únicos obstáculos enfrentados pelo time da Azul às vésperas do voo inaugural. O empenho das equipes para deixar o aeroporto de Campinas preparado para receber os primeiros Clientes tirou o sono de muita gente até a noite anterior. Algumas horas antes do pouso do E-190 em Salvador e do comandante Ary Nunes empunhar a bandeira da Bahia, a dupla Flavio Costa e Miguel Dau se dirigiu à Viracopos para resolver um problema que, embora não inviabilizasse o voo, poderia atrapalhar a logística dos primeiros Clientes.
Ao chegarem no terminal, se dividiram: Flávio foi até uma pequena farmácia instalada no saguão e Miguel ficou com os taxistas, do lado de fora. A missão dos dois não era das mais fáceis: garantir que comerciantes e prestadores de serviço da região estivessem trabalhando no dia 15 de dezembro. Havia rumores de que, desiludidos com a baixa movimentação, eles estivessem
pensando em deixar Viracopos. Flávio e Miguel pediram uma chance ao novo aeroporto que estava surgindo naquele momento. Falaram do projeto de voar a partir daquele terminal, da ideia de concentrar ali todos os voos da companhia e da expectativa de crescimento de Viracopos. Com muito jogo de cintura foram dobrando os taxistas até que receberam um voto de confiança.
Superados os imprevistos, o voo transcorreu normalmente. David Neeleman se apresentou aos Clientes, como faz até hoje em todos os voos da Azul em que está presente. O momento era único. “Ele estava eufórico, falou bastante, andou ao longo do corredor e conversou muito com o presidente da Embraer, Fred Curado. Fez questão de falar também com cada um dos passageiros. A tripulação estava muito feliz. Eram pessoas mais experientes que sabiam exatamente o que fazer. Foi um voo muito normal do ponto de vista aeronáutico. A gente decolou com um pequeno atraso e chegou com um pequeno atraso por causa dos imprevistos em Viracopos”, lembra Panda.
A maior parte dos ocupantes da aeronave eram
Primeiros bilhetes emitidos do vôo inaugural
Antes da decolagem, David Neeleman falou a todos os Clientes e Tripulantes
Crédito: Panda Beting
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Clientes. Entre os representantes da companhia, além de David e Panda, estavam profissionais como o diretor Jurídico, Renato Covelo; o presidente, Pedro Janot; e a dupla Gerald Lee e Trey Urbahn, só para citar alguns. Com cerca de duas horas de duração, o voo inaugural teve significados distintos para cada um dos que estavam ali. Para Gerald Lee, por exemplo, além da realização de um sonho, aquele momento tinha ainda mais um componente capaz de emocioná-lo. Ele fez questão de comprar uma outra passagem além da sua, em nome de seu então sogro, que tinha falecido poucas semanas antes. Apaixonado por aviação, ele estava eufórico com o surgimento de uma nova empresa brasileira que usaria aviões da Embraer. E é possível dizer que ele acompanhou de perto a criação da Azul, já que Gerald utilizou um imóvel seu, no Rio de Janeiro, para algumas reuniões sobre os primeiros passos da empresa. O sogro certamente estaria entre os primeiros Clientes e, pensando nisso, quando foi comprar seus bilhetes, Gerald achou justo fazer a homenagem.
Mas, nem todos estavam eufóricos, felizes ou emocionados. Havia os que estavam curiosos e com uma pontinha de incredulidade. Para esses, o primeiro voo era a oportunidade de verificar de perto tudo o que a nova companhia aérea estava apresentando. O que era esse novo padrão de serviço que estava sendo anunciado? E essa história de chamar passageiros de Clientes e prometer um tratamento diferenciado? Era essa a missão de alguns enviados de empresas concorrentes que também estavam a bordo. Ao fim do voo, eles teriam muita coisa surpreendente para contar. Por exemplo, a maneira como a nova empresa fazia o serviço de bordo, dispensando os tradicionais carrinhos que atravessavam de ponta a ponta o corredor da aeronave.
Na Azul, Tripulantes carregavam cestas de vime cheias de lanches, que poderiam ser consumidos à vontade. Assim como as bebidas, também servidas sem limite por pessoa.
O avião era outra novidade. Poltronas de couro, com um espaço entre elas maior que o das concorrentes, distribuídas em duplas dos dois lados da aeronave, sem a famigerada poltrona do meio. Apenas janela ou corredor. Tudo isso
pôde ser visto também no segundo voo da companhia, que partiu de Campinas com destino a Porto Alegre, algumas horas mais tarde. E ainda em todos os outros voos da Azul a partir daquele dia. Não se sabe ao certo o que os enviados das concorrentes disseram aos seus colegas quando retornaram às suas companhias, mas é possível afirmar que eles presenciaram o início de uma nova era na aviação nacional.
Uma companhia cada vez mais brasileira
Era sexta-feira, quase uma semana após o primeiro voo e a sensação de dever cumprido tomava conta de toda a equipe, na sede da Alameda Surubiju.
Panda Beting se preparava para deixar o prédio quando foi chamado por David. Ele tinha uma encomenda para seu diretor de Marketing: queria que fosse criado um padrão de atendimento da Azul. “Precisamos saber o que vamos ensinar aos nossos Tripulantes”, disse David.
Panda concordou e perguntou ao chefe para quando ele gostaria de ver alguma proposta. Ouviu um “Pode ser para segunda-feira” como resposta. Tentou argumentar, mas não teve muito sucesso. As coisas caminhavam a passos largos agora. Era preciso acelerar para começar 2009 a todo vapor. “Vim para casa e acordei, no sábado, pensando nisso. Tenho muita experiência em publicidade e sei que grandes ideias acontecem quando você tem pouco tempo”.
Panda partiu do princípio de que era necessário criar um padrão diferente do que já existia no mercado. Entre uma concorrente super tradicional, que prioriza a formalidade no relacionamento, e outra que não está muito para conversa com os passageiros, era preciso pensar em algo que fosse mais parecido com a alma do brasileiro. Mais caloroso, informal e verdadeiro. “O David é assim: um brasileiro preso no corpo de um gringo”, afirma Panda.
O primeiro passo para buscar essa informalidade, pensou Panda, é ter flexibilidade. “Não vamos ser nós que vamos falar para o pessoal da linha de frente como eles vão ter de cuidar das pessoas. Vamos transferir essa responsabilidade para eles. Vão precisar de bom senso”. O bom senso a que
Panda se refere está ligado a três ações principais. A primeira delas é observar quem são os Clientes que estão sendo atendidos. A segunda é perceber o que eles precisam e desejam. A terceira é atender a esses Clientes de maneira a suprir seus desejos. Observar, Perceber e Atender. O, P, A: Opa. Uma sigla que é também uma interjeição, uma espécie de sinal de alerta para os Tripulantes. “Pintou Cliente na sua frente: OPA”, resume Panda.
A ideia é lembrar ao Tripulante que, mais importante que seguir um padrão, é ter flexibilidade e entender o que o Cliente quer. Entender que o atendimento não deve ser feito apenas levando em conta as faixas econômicas, etárias ou sociais. Como diz Panda, a questão é o clima que você encontra, o astral. “A gente é um Cliente indo e um Cliente voltando. Se você brigou com seu companheiro ou companheira é uma coisa, se está voltando de uma semana da Bahia, é outra. É a mesma pessoa, mas tem outras necessidades”.
Com o OPA, a diretoria deixava claro aos seus Tripulantes que não queria um serviço burocrático e robotizado. Pelo contrário, sinalizava que estava disposta a testar e, se fosse o caso, até errar, para aprender a melhor maneira de atender cada pessoa. Foi com esse mesmo princípio que se começou a estruturar o crescimento da malha.
Os novos aviões que a companhia já começava a receber da Embraer abriam caminho para a expansão dos destinos. Depois dos primeiros dias viajando apenas para Salvador e Porto Alegre, a empresa anunciava que Curitiba e Vitória seriam as próximas cidades a receber seus aviões. A ideia era que os Clientes chegassem a Campinas e, de lá, pudessem fazer alguma conexão. Mas, houve um erro de cálculo nos primeiros dias, o que provocou desencontro dos voos. Quem chegava de Porto Alegre, por exemplo, não conseguia seguir para Vitória. O equívoco demorou alguns dias para ser percebido e corrigido. “Eu fiz errado e os horários não batiam. Tive que esperar mais 15 dias para arrumar a malha e, só depois, os voos se conectaram. Erramos muito nesse começo”, conta Abhi Shah, atual presidente da companhia.
Abhi também veio da JetBlue, mas não naquela
primeira leva de fundadores. Quando David, Gerald e Trey já tinham se juntado aos brasileiros por aqui e estruturado a empresa, Abhi ainda estava nos EUA. Tomou conhecimento do projeto em uma das visitas que David fez à sede da JetBlue, em abril de 2008. Os dois se encontraram no corredor da empresa e David o convidou para uma conversa. Quando entraram em uma das salas, abriu um grande mapa do Estado de São Paulo sobre a mesa e começou a explicar onde ficava Guarulhos, Congonhas e Viracopos. Abhi não tinha a menor ideia do que David estava falando.
“O que é Campinas? Quem é Congonhas?”, perguntou Abhi.
“Você precisa ir com a gente”, argumentou David.
Durante a conversa, Abhi conseguiu entender o que era Campinas, Congonhas e saber detalhes da ideia que David já tirava do papel no Brasil. Mas, negou a proposta. Achou que não era a hora. Nascido na Índia, Abhi começou a construir sua carreira nos EUA, sempre no setor da aviação. Passou pela Boeing antes de chegar, em 2004, na empresa fundada por David para trabalhar no planejamento de malha. Nessa função, foi se aproximando do fundador. “Tínhamos um relacionamento de quatro anos e eu era de confiança. David valoriza muito mais a confiança do que dados e habilidades”.
Apesar de ter negado a proposta, Abhi não fechou totalmente a porta para uma possível transferência. O fato de ter a confiança de alguém que estava começando uma empresa do zero, com todos os seus desafios e possibilidades, era algo que deveria ser levado em conta. Cinco meses depois, quando começava a pensar nos próximos passos de sua carreira, telefonou para o amigo John Rodgerson, que já estava estabelecido no Brasil. Ouviu John bastante animado, dizendo que ele tinha de vir para São Paulo, que a vida por aqui era boa e que o novo negócio daria certo. Tanta confiança fez com que Abhi aceitasse fazer uma visita à Azul.
Conheceu a sede da Surubiju, reencontrou antigos companheiros, como Trey Urbahn e
Gerald Lee, e, no fim do encontro, pensou que não era todo dia que surgiam oportunidades como essa. “Se não der certo, a gente sempre vai poder voltar para os EUA”, disse para sua esposa antes de aceitar o desafio. Um mês depois, desembarcava novamente em São Paulo para organizar não só a vida em um novo país, mas também a malha da empresa. Em uma mesinha redonda instalada na sala de Trey Urbahn, ajudou a pensar nos próximos passos da Azul. “Em janeiro e fevereiro, já começamos a receber, em média, uma ou duas aeronaves mensais”.
Mas, as primeiras rotas planejadas naquela mesinha redonda não eram unanimidade. Muitos Tripulantes não entendiam a oferta de tantos voos logo no início das atividades. Achavam estranho que alguns destinos já surgissem com três ou quatro horários por dia. Mas, em pouco tempo, foi sendo descoberta uma demanda reprimida e mesmo os mais descrentes entenderam que saber trabalhar essa demanda seria um dos diferenciais da empresa. Desse jeito, a Azul começou a ter regularidade na operação e foi agradando os Clientes cada vez mais satisfeitos com a possibilidade de se deslocarem do interior para capitais sem ter de passar por Guarulhos e Congonhas.
Esse modelo de voar para cidades menores, lembra Flavio Costa, já havia sido utilizado pela Varig, mas foi abandonado por conta, principalmente, da mudança na composição das frotas, que passaram a ser formadas por aviões maiores. Como a capacidade de infraestrutura dos aeroportos não acompanhou a nova realidade, essas rotas foram sendo abandonadas. “O David dizia: o melhor lugar para se dormir é a sua cama. A ideia, ao fazer as rotas, é que se tivesse a possibilidade de sair para trabalhar e voltar para casa. Para isso, é preciso muitos horários. Não precisa muitos Clientes. Tem que ser um voo que se pague, claro, mas era preciso que fossem vários por dia, que tivesse frequência. Quando não der mais pra você aumentar a frequência, aí você aumenta o avião. Todo o desenho da malha se baseava nesse conceito”, recorda Flávio.
A frase de David – de que o melhor lugar para se dormir é sempre a sua cama – se confirmava
a todo instante. Em um dos primeiros voos para Campo Grande, o fundador da Azul se apresentou e, durante a conversa com os Clientes, ouviu a seguinte pergunta: “Quando a Azul vai para Sinop?”. Ele se voltou para os outros Tripulantes, intrigado, perguntando o que era Sinop. Ainda descobrindo o mercado do Centro-Oeste, David não tinha ideia da importância da cidade mato-grossense para o agronegócio do país. Mas, ao saber do que se tratava, voltou rapidamente ao autofalante e quis saber quem estava indo para Sinop e viu mais da metade dos Clientes levantar a mão. Quando desembarcou, procurou Abhi imediatamente e disse que a empresa deveria voar para Sinop. Como resposta, ouviu de Abhi: “Quem é Sinop?”.
Pouco tempo depois, a Azul aterrissava na cidade do norte do Mato Grosso e David viu a situação se repetir. Durante um voo para Sinop, foi questionado quando a Azul voaria para Sorriso, município localizado a menos de 100 quilômetros. Quando descobriu que era para lá que ia boa parte dos Clientes, encomendou para sua equipe de planejamento de malha uma rota para Sorriso. “E, assim, fomos descobrindo essas coisas. O maior desafio nos primeiros anos foi o conhecimento local. Sabíamos pouco sobre a cultura brasileira. Demorou tempo para construirmos isso”, conta Abhi.
Entender as principais diferenças entre Brasil e Estados Unidos era o maior desafio para os executivos vindos da JetBlue. No início, ignoravam alguns aspectos essenciais para entender a alma do brasileiro: suas necessidades, medos e outros comportamentos que interferiam diretamente na venda de passagens e poderiam determinar o fracasso ou o sucesso de algumas rotas. Apostavam, por exemplo, que a população de dois países com dimensões continentais, como é o caso de Brasil e Estados Unidos, agiria de maneira parecida. Enquanto lá é comum que pessoas nasçam em um estado, façam faculdade em outro e trabalhem em um terceiro, por aqui, são poucas as pessoas que fazem essas migrações e, as que fazem, ficam
David e Pedro Janot, o primeiro presidente da Azul
Crédito: Panda Beting
muito focadas nas regiões Sul e Sudeste. Daniel Tkacz, atual vice-presidente de Operações, era um dos brasileiros que sentavam na mesinha redonda da sala de Trey. Ele procurava fazer o contraponto a algumas ideias do time dos norteamericanos. Vindo da Gol, onde atuou por cinco anos também na área de planejamento de malha, Tkacz acabou exercendo um papel difícil naquele momento: o de tentar demover os gringos de algumas ideias que julgava equivocadas. Uma delas era a de criar uma rota Campinas – Campos dos Goytacazes, com cerca de dez voos por dia. Localizada na região dos Lagos, no Rio de Janeiro, a cidade tinha um PIB bastante elevado devido aos royalties de petróleo e à cadeia de serviços criada pela presença da Petrobras na região. “Quando você olhava o PIB, os dados de demanda, os modelos, tudo indicava uma coisa surreal. A gente explicava que não era isso, mas eles não acreditavam. Aos poucos, fui ganhando a confiança deles”, lembra. “Mas, não era sempre assim, o contrário também acontecia: deram chance para fazermos muita coisa que eu sugeri e que também deu errado. Mas, esse era o aprendizado do dia a dia”.
Uma das parceiras de Tkacz nessa tarefa de ajudar os americanos a entender o mercado brasileiro era Cláudia Dias Gomes, uma das primeiras contratadas para a equipe de Abhi. Ela atuou por sete anos com análise de demanda e precificação na TAM e sabia muito bem tudo o que influenciava diretamente na venda de passagens. Cláudia era do time dos que achavam loucura vender bilhetes apenas pela internet. “Naquele contexto, com internet ainda pouco desenvolvida no país, precisávamos de outros pontos de venda. Além disso, a internet exigia cartão de crédito e um bom limite para compras, algo que uma parte considerável da classe C não tinha”, lembra.
Foi a partir daí que surgiu outra ideia que rendeu muitas discussões. David dizia que, para facilitar a vida dos Cientes, queria oferecer todas as formas possíveis de pagamento, incluindo o famigerado cheque pré-datado. Marcelo Medeiros, da Controladoria, e Kléber Linhares, da TI, acharam aquilo uma grande loucura. Tentaram argumentar, mas o chefe estava irredutível. Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Marcelo e
Kléber tinham juízo. Tomaram, então, todas as medidas necessárias para viabilizar a iniciativa e apresentaram a David, que deu o ok. Em março de 2010, a companhia anunciava na imprensa a nova possibilidade de pagamento focada nos mais pobres. Durou pouco. Com os primeiros cheques sem fundo, David percebeu que os Tripulantes tinham razão, mas, ainda assim, fez um balanço positivo da tentativa. “Vamos pensar pelo lado bom. Mesmo essas pessoas que viajaram de Azul e são fraudadores vão falar para outras pessoas que são do bem o quanto gostaram da empresa e isso vai ser bom pra gente”.
A diferença cultural entre os fundadores que vieram dos EUA e o grupo de brasileiros que foi se integrando ao projeto era evidente, e não apenas na maneira como imaginavam vender passagens. Durante uma visita ao antigo estúdio da GGP Produções, nos fundos da sede da Surubiju, que estava sendo preparado para receber os recém-comprados simuladores de voo, o atual CFO da Azul, Alex Malfitani, foi surpreendido com uma cena que, para ele, foi bastante inusitada. Era necessário cavar um buraco no espaço para construir sapatas que reforçariam o solo para suportar o peso e as movimentações do simulador. “Eu, que estava chegando de alguns anos nos Estados Unidos, e os americanos ficávamos nos perguntando que máquina faria aquele trabalho e que tecnologia utilizaria. Quando chegamos, encontramos um homem lá dentro, cavando, com uma pá e um baldinho. Aquilo foi um choque cultural para os gringos e quase gringos, como eu”, lembra.
Algumas dessas diferenças culturais causaram situações desconfortáveis. O atual VP de Pessoas, Jason Ward, passou por uma saia justa nesse sentido. Uma revista de grande circulação o entrevistou para uma matéria sobre estrangeiros que trabalhavam no Brasil. Em determinado momento, questionado pelo repórter se já estava compreendendo bem a língua portuguesa, respondeu que conseguia entender bem as palavras, mas estava tentando compreender o que elas realmente significavam. E deu um exemplo: “A expressão ‘pode deixar’ não é o que parece. Não significa que você realmente pode esquecer o assunto, mas que você precisará
cobrar a pessoa que te falou isso uma semana depois”. A resposta descontraída não ficou somente entre ele e o repórter e foi publicada na revista. Preocupado com a repercussão, Jason perguntou a Panda se ele achava que alguém ficaria ofendido com as declarações. “Panda respondeu: pouca gente, só 200 milhões de pessoas”, diverte-se Jason. “Mas, isso era uma coisa que nós realmente estávamos aprendendo. Eu confio em você, mas preciso verificar”.
Essas desconfianças eram naturais naquele período. Brasileiros achavam que os americanos não confiavam neles o suficiente. Os americanos pensavam que, muitas vezes, os brasileiros não tinham plena certeza do que diziam, mas, ainda assim, insistiam na resposta.
Os brasileiros acreditavam que os americanos não conheciam o Brasil e traziam propostas arriscadas. Americanos julgavam que os brasileiros tinham análises já viciadas e não queriam tentar algo novo. A situação tinha um alto potencial de causar problemas, se não existissem pessoas dispostas a apaziguar os ânimos. “Sabe por que a Azul não desandou? Tinha uma pessoa que foi o elo disso tudo: Pedro Janot. O Pedro foi um maestro de voo pra gente. Ele soube conciliar todas as idiossincrasias dos gringos e dos brasileiros em prol do projeto, para obter a melhor sinergia daquilo e para que pudéssemos seguir em frente”, acredita o comandante Miguel Dau.
A experiência de Pedro como executivo foi determinante para controlar as tensões não somente entre americanos e brasileiros, mas entre os outros grupos que eventualmente se chocavam no dia a dia da empresa. Havia, por exemplo, os variguianos, o pessoal da Gol, os mórmons e os não-mórmons, que achavam que a religião era um fator de preocupação. “O Pedro foi uma pessoa importantíssima nesse processo, até porque ele foi o último dos executivos a ser contratado. Não conseguiu montar a equipe dele, então, quando chegou, percebeu que existiam esses conflitos já instalados. Quando percebia uma faísca, conversava com um, conversava com outro, e trazia todo mundo para mesa”,
argumenta o então diretor de RH, Johannes Castellano. Sob a batuta do maestro Pedro Janot, a Azul seguiu ganhando espaço no mercado. Em agosto de 2009, com menos de oito meses de operação, completou um milhão de passageiros, sendo a empresa aérea que mais rapidamente chegou a essa marca no mundo. A conquista merecia uma comemoração. Diferentemente do voo inaugural, que teve uma festa tímida, essa deveria fazer muito barulho. “Quando a Azul começou, a instrução era não gastar dinheiro. Mas, depois do primeiro voo, David me chamou e falou que achou muito sem graça, sem banda, sem festa. Eu disse que estava seguindo a orientação dele. Festa custa dinheiro. Comentei isso com um colega da companhia, o Fábio Marão, e ele disse que conhecia uma banda muito legal, com metais, bateria, saxofone, trompete”, relembra Panda. A banda foi contratada para celebrar a marca em uma festa que aconteceu em Viracopos e se repetiu a cada milhão, sempre em um aeroporto diferente, mas com a mesma animação. “A gente calculava a data em que daria 1 milhão de passageiros e, nesse dia, a gente escolhia randomicamente um dos Clientes, que ganhava diploma, tirava foto, aquela festa toda”.
Em 2010, já eram cinco milhões de Clientes e, assim, a companhia seguiu contrariando as projeções dos mais descrentes. Terminou o ano com 26 aeronaves e voando para 15 destinos. A companhia crescia e ia se preparando para alçar voos cada vez maiores. Ainda que, para isso, fosse necessário desviar um pouco a rota pensada por seus fundadores quando a Azul nem era Azul, mas apenas um projeto sem nome guardado num arquivo em Power Point.
Pedro Janot e David Neeleman ao lado do Cliente 1 milhão
Crédito: Panda Beting
Dois mais dois, cinco
Crédito: Panda Beting
A então diretora de aeroportos, Elizabete Antunes, estava de férias, na Turquia, quando seu telefone tocou. Do outro lado da linha, no Brasil, o Comandante Miguel Dau. Sem muitas firulas, foi direto ao ponto: “Olha, você se prepara porque estamos partindo para uma fusão com a Trip”. Bete quase caiu da cadeira. Em um instante, fez uma lista mental de tarefas que deveriam ser cumpridas nos próximos dias, semanas e meses. Já havia participado de quatro fusões na época da Varig e lembrou de tudo o que aquele longo processo envolvia. Era muito trabalho.
Bete nem desgrudou do telefone, ligou imediatamente para a amiga Izabel Reis, também da diretoria de aeroportos. Enquanto ela não atendia, ecoava na cabeça de Elizabete uma informação importante: o número de aeroportos sob responsabilidade dela e de sua equipe iria praticamente dobrar, de uma hora para outra.
Era domingo e Izabel estava em uma festa de família. “Está sentada?”, perguntou Bete. “Acabei de receber um telefonema e fui informada que estamos indo para uma fusão com a Trip”. Agora, foi a vez de Izabel quase cair da cadeira. Fez uma conta rápida e viu que a Trip tinha mais aeroportos que a Azul naquela época. “Você tem certeza? É fusão? É aquisição?”, quis saber. Bete disse que não tinha nenhum detalhe e que só sabia que, no dia seguinte, seria feita uma primeira visita à sede da Trip, em Campinas.
A negociação toda transcorreu em total sigilo, o que explica o espanto de Elizabete e Izabel quando foram informadas. Mas, mesmo sem saber o que, de fato, estava acontecendo, alguns Tripulantes percebiam que havia algo estranho no ar. Dias antes, cinco analistas da equipe de Planejamento de Malha foram parar em um bar em Alphaville e gastaram boas horas especulando o que estaria acontecendo. Porque os chefes estavam daquele jeito? Todos tensos. Nesse grupo de analistas, estava Victor Silva, atual gerente Geral de Malha e Planejamento Estratégico. No dia seguinte, Victor reparou que os chefes nem apareceram e, assim como Bete e Izabel, também se espantou quando ficou sabendo da fusão. Imediatamente, pensou que estaria na rua, afinal de contas, tinha acabado de ser contratado, ainda não tinha tido tempo de mostrar trabalho. “A equipe de planejamento de malha da Trip é imensa, vão engolir a gente”, pensou.
O medo, a ansiedade e as dúvidas de Bete, Izabel e Victor compunham o misto de sentimentos que, em poucos dias, tomou conta de milhares de Tripulantes. A sede da Alameda Surubiju, já lotada e sem conseguir acompanhar o crescimento da companhia, estava em polvorosa. Passados os primeiros momentos de susto, os principais temores foram dando espaço a expectativas positivas. Sim, a companhia estava mudando. Mas, isso, em vez de significar instabilidade, demissões ou riscos, poderia sinalizar uma oportunidade. Uma, não. Várias. Foram exatamente essas oportunidades que os executivos vislumbraram, em 2010, quando tiveram uma ideia: por que não incorporar um novo modelo de avião à frota da Azul?
“Lembro do David chegando na minha mesa e me dando um monte de panfleto da ATR. Ele falou para eu dar uma olhada naquilo porque ele achava que a gente precisava operar ATR”, lembra o atual CFO, Alex Malfitani. Nas aulas que teve em seu MBA, nos EUA, Alex ouviu muito que empresa aérea bem-sucedida só pode ter um tipo de aeronave. Ajuda a reduzir custos. Para ele, não fazia muito sentido aquela mudança de rumo. “Eu disse: David, o primeiro mandamento da lowcost é só voarás um tipo de aeronave. E ele
me respondeu para eu colocar os ATRs no meu modelo, calcular e, depois, conversar com ele”. Alex e os outros executivos do time colocaram os ATRs em seus planos e fizeram contas, como pediu David. Foram entendendo que, em um país onde o combustível é tão caro, utilizar um avião que só queima um terço do que é consumido pelos jatos da Embraer poderia ser uma excelente alternativa. Além disso, pensou Alex, em rotas curtas, o ATR é tão rápido quanto um jato. De repente, um avião turboélice de 70 lugares começou a fazer sentido e o novo plano começou a ganhar espaço entre os executivos.
Havia ainda uma importante questão estratégica. O ATR permitiria à Azul chegar a aeroportos menores, de cidades mais distantes, algo que as duas maiores companhias do setor não conseguiam fazer justamente porque tinham aviões muito grandes, que eram antieconômicos. Com o ATR, seria possível utilizar essas cidades menores para alimentar os grandes hubs da empresa, aumentar a conectividade e sua rentabilidade.
Uma conversa entre Panda e Trey Urbahn exemplifica bem essa estratégia. Ao anunciar que a companhia passaria a operar a rota
Aeronave batizada em homenagem ao aniversário de 1 ano da fusão
Arquivo
Campinas – Londrina, o vice-presidente de malha foi questionado. “Londrina? A gente não voa ainda para Brasília. Vamos para Brasília que tem mais passageiro”.
“Tem mais passageiro, mas tem mais concorrência. Quem voa para Londrina?”, respondeu Trey.
“De Campinas para Londrina? Ninguém”.
“Exatamente, Panda. A gente vai pegar todos os passageiros de manhã cedinho em Londrina, trazer para Campinas e, daqui, vai mandar cinco para Salvador, dez para Manaus, 15 para o Rio de Janeiro, 12 para Belo Horizonte, 14 para Porto Alegre, cinco para Maceió. A gente vai aumentar a capilaridade da Azul e transformar o hub de Viracopos em uma fortaleza voadora”.
Assim, em julho de 2010, quando o mercado achava que a Azul partiria para modelos maiores, como Boeing ou Airbus, ela surpreende e anuncia a compra de aeronaves ATR. As concorrentes ficaram abismadas: como assim vão trazer aviões menores? Aviões que tem um custo por assento maior que o do Embraer, que, por sua vez, já é maior que Boeing e Airbus.
“Riram muito da gente, assim como riram quando fomos para Viracopos. O cemitério de companhias aéreas brasileiras está lotado de empresa regionais que faliram. Mas, eles não entenderam que a Azul estava trazendo o ATR para fazer algo que é fundamental em qualquer sistema de transporte, que é capilaridade. É como se a Azul tivesse colocado aviões para voar a um quarteirão da casa das pessoas no Brasil todo. Quando uma empresa jovem surge no mercado de aviação, ela precisa ter características que a diferenciem do que o mercado tem naquele momento. Do contrário, será destroçada. Foi o que a Azul fez. Depois disso, um negócio que já vinha forte, ficou irrefreável com a chegada dos ATRs”, explica Panda.
A partir daí, o crescimento da Azul foi exponencial. Em 2011, a companhia chegou a dez ATRs e, seguindo rigorosamente seu plano de aumentar a capilaridade, começou a expandir o número de aeroportos atendidos. No fim do ano, já eram mais de 40, com destaque para a região
Sudeste. Com isso, aumentou ainda mais sua participação no mercado, se consolidando na terceira posição, com cerca de 10% de market share. Atrás, vinha a Trip, com 5%.
A estratégia das duas tinha alguma semelhança. A Azul nasceu voando jatos da Embraer e, recentemente, estava expandindo sua frota com os ATRs. A Trip, nasceu com os ATRs e, agora, se aventurava a utilizar os E-190 e E-195. Com frota parecida e ambas buscando atender cidades menores, elas começaram uma intensa batalha. O grande embate entre as duas acontecia em Belo Horizonte. Além de ter uma atuação forte em Campinas, a Azul começou a ganhar espaço em Confins, onde quem dava as cartas era a Trip. A frota da Azul era maior, permitia que se tivesse mais horários e, assim, a concorrente foi ficando sufocada. “A gente vivia em cima deles. Eles publicavam uma tarifa, a gente estava em cima. Sempre monitorávamos as rotas em tempo real. A Trip não tinha a mesma estrutura que a Azul para trabalhar demanda e precificação. Lá, eles só analisavam a demanda e quase não acompanhavam a concorrência”, explica a gerente de receitas, Cláudia Dias Gomes.
A disputa fez com que os executivos da Azul recalculassem a rota. Duas empresas fazendo praticamente a mesma coisa e se digladiando em um dos principais aeroportos do país não fazia muito sentido. Ainda mais se levado em conta que a malha das duas era complementar e que, juntas, poderiam cobrir uma porção do país maior que do que qualquer outra empresa. “Dois mais dois, nesse caso, vai dar cinco. Era uma fusão que criaria demanda nova em vez de diminuir oferta. Ninguém estava comprando a outra para acabar com a concorrência. A Trip era mais conhecida no Centro-Oeste e na Amazônia.
A Azul, mais no Sul e Sudeste”, detalha Alex.
Ou seja, uma fusão ajudaria a Azul a acelerar toda a estratégia traçada com a chegada dos ATRs. Sem a fusão, o crescimento viria, mas seria mais lento. A compra de uma empresa que possuía uma ampla estrutura de malha de ATR já operando era a possibilidade de realizar mais rapidamente o sonho de conectar o Brasil. O que seria feito, progressivamente, em dois
ou três anos, poderia acontecer em alguns meses. “Além disso, traríamos a expertise de manutenção da Trip. Eles tinham 100% de conhecimento do avião. Nós, ainda não. Estávamos aprendendo. Com a fusão, traríamos, inclusive, Pilotos já treinados. Tudo se encaixou”, lembra o vice-presidente técnico, Flavio Costa.
À frente da negociação, David Neeleman e John Rodgerson representando a Azul. Pela Trip, seu fundador e presidente, José Mário Caprioli. As inúmeras reuniões envolvendo os executivos e seus respectivos bancos de investimentos – Itaú, pelo lado da Azul; Credit Suisse com a Trip – ganharam um ritmo acelerado, no primeiro semestre de 2012, para evitar que a entrada em vigor da Lei de Defesa da Concorrência (12.529/2011), aprovada no ano anterior, representasse um obstáculo à fusão.
Até aquele momento, as operações desse tipo poderiam ser consumadas primeiro e, depois, comunicadas ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica - Cade. Era um controle de estruturas a posteriori, adotado em poucos países do mundo. Com a nova lei, a ordem dos fatos se inverteria. Seria necessário, primeiro, informar ao Cade a intenção da fusão. A operação seria analisada pela autarquia em um prazo máximo de 240 dias, prorrogáveis por mais 90, e, somente depois, poderia ser liberada. Então, era preciso correr. Do contrário, a união das duas empresas poderia acontecer com mais de um ano de atraso. “Lembro da madrugada antes de assinar. Fechamos o negócio era umas 11 da noite e o Itaú disse que precisava elaborar os documentos. Fomos jantar, voltamos e ficamos lendo e assinando documento a madrugada toda. Saímos do escritório quando o sol estava nascendo, umas 6h da manhã, a algumas horas da data limite. Esse dia ficou na memória”, conta Alex.
Apesar das madrugadas em claro e das horas e horas de reuniões e negociações, essa foi a parte fácil, segundo Alex. Agora, começaria a implementação da fusão e a integração das duas empresas. Era hora de manter o cinto afivelado para superar algumas turbulências.
O melhor das duas
Antonoaldo Neves estava no aeroporto, aguardando um voo, quando viu sua carreira dar uma importante reviravolta. Ele estava voltando naquele dia para a McKinsey, consultoria norteamericana que está entre as mais importantes do mundo. Depois de um tempo atuando no mercado imobiliário, tinha reassumido o posto há poucos minutos. Ainda nem tinha computador da empresa, como gosta de lembrar. Havia retornado para tocar um projeto de real estate, no Nordeste, e era para lá que estava indo com o CEO da McKinsey na América Latina, Heins Peter, para dar o pontapé inicial no projeto. Mas, as coisas começaram a mudar quando Heins recebeu uma mensagem dizendo que a Azul queria contratar uma consultoria para fazer um projeto de fusão. Heins olhou para Antonoaldo, olhou para a mensagem, olhou novamente para Antonoaldo – espantado com a coincidência – e avisou: “É você quem vai fazer essa proposta”. Antonoaldo tentou argumentar, dizendo que estava acabando de chegar, que ainda nem tinha computador, mas não teve jeito. Heins usou um argumento ainda melhor: “Você fez fusão e aquisição e entende de aviação. Não tem pessoa melhor”.
Heins tinha razão. Antonoaldo havia sido sócio da McKinsey, onde permaneceu por dez anos em sua primeira passagem. Nessa etapa, participou de um projeto inédito no Brasil, um planejamento de longo prazo para o setor, feito em parceria com o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e representantes do Governo Federal. A experiência rendeu a ele um convite para ser membro do conselho da Infraero, onde participou ativamente do processo de privatização dos aeroportos e na definição da regulamentação das empresas aéreas. Antonoaldo também tinha uma boa experiência em fusões e aquisições. Trabalhou na integração do Itaú Unibanco e da BMF com a Bovespa. Isso, sem contar a experiência na Cyrela que, por mais que não tenha ligação com a aviação ou fusão, ajudou a traçar seus futuros passos como executivo.
Comissárias de bordo à frente dos aviões ATR da Trip e da Azul. Uma nova companhia estava surgindo
Antonoaldo fez a proposta e, mais tarde, assumiu o comando do processo de integração da fusão. Um projeto de seis meses, com muito planejamento e decisões importantes a tomar. Passou a ir todo dia para a Azul, onde foi abrigado em um contêiner. Desse escritório improvisado no estacionamento da sede da Surubiju, onde já não havia mais espaço para receber novos Tripulantes, ele comandou sua equipe de seis pessoas e realizava reuniões diárias com os times da Azul e da Trip para colocar tudo nos eixos. “Usamos um modelo super analítico para projetar a integração das duas malhas, rota a rota, avião a avião, horário a horário. Queríamos tentar estimar qual a sinergia em dinheiro com a integração das duas malhas. Passamos 45 dias com gente dos EUA, especialistas estudando números, com computadores rodando cenários sem parar. Quando fomos mostrar o resultado para o Trey Urbahn, ele nos mostrou uma planilha em Excel, com as estimativas dele. Para nosso espanto: os números do Trey e os do grupo de especialistas que utilizavam os modelos modernos foram praticamente os mesmos. Isso mostra o quanto de talento tinha ali dentro da Azul”, lembra Antonoaldo.
A integração das malhas era justamente um dos pontos sensíveis que deveria ser analisado pelos profissionais que faziam esse trabalho. O atual gerente Geral de Malha e Planejamento Estratégico, Victor Silva, foi um dos que atuou nessa etapa. Depois de superar o medo da demissão, o então analista Jr. entendeu que sua preocupação deveria ser outra: como dar conta de tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo.
“Na Azul, tinha três pessoas no planejamento. Na Trip, umas dez. Acontece que praticamente todos da Trip pediram demissão quando foi definido que a empresa viria para São Paulo. Só ficou um. Do dia para noite, a frota dobrou e nossa equipe ganhou apenas um reforço”, conta. Eram tantas bases para conhecer, que Victor chegava a confundir as siglas dos aeroportos, chamando GVR (Governador Valadares) de SNJR (São João Del Rey), troca que, felizmente, nunca chegou a ter grandes consequências. As rotas foram todas redesenhadas para que ficassem complementares. “A Trip tinha muito avião ATR-42 e ATR-72 um pouco mais antigos,
que foram devolvidos. Aproveitamos muita coisa da Trip no Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Em cerca de seis meses, desenvolvemos um novo conceito de malha”, lembra Victor.
Passar a administrar o dobro de bases significava também preparar uma série de estruturas e tecnologias para que todas funcionassem da mesma maneira. Para que bases da Azul e da Trip falassem a mesma língua, era preciso, por exemplo, preparar a fusão das operações de check-in. “Tínhamos que manter as duas estruturas funcionando juntas para que, quando chegasse o dia certo, a gente fizesse a virada. Teve de ser uma coisa muito precisa”, lembra Robson Costa, especialista em TI. Além disso, todos os Tripulantes tinham que estar treinados no sistema da Azul, que foi o adotado após a fusão. Todo mundo com usuário e senhas cadastradas e contando com uma equipe de apoio após a virada da chave, para fazer os ajustes necessários.
Aos poucos, com a rápida expansão do número de bases operadas pela companhia, a área de tecnologia foi desenvolvendo estratégias para facilitar a abertura de bases. Uma delas foi a criação de kits que já ficavam prontos para facilitar esse trabalho e já dispunham de um número certo de equipamentos –como rádios, computadores e impressoras – para aeroportos de variados tamanhos.
Era preciso ainda reavaliar processos e modelos de gestão. Em algumas localidades, por exemplo, a Azul tinha gerentes. A Trip, coordenadores. Qual o melhor? Era preciso conversar, analisar. Muitos detalhes precisavam ser ajustados. Com a entrada da frota de ATRs da Trip, aviões menores passaram a entrar também em aeroportos que só recebiam jatos da Embraer. Era preciso checar se a mesma empresa de handling – serviço de apoio às aeronaves, aos Clientes e tratamento de carga e bagagens – sabia atender os novos aviões e investir muito em treinamento. “Tivemos de reescrever todo o manual de aeroportos e todos os procedimentos de catering. Os Pilotos da Trip, por exemplo, estavam acostumados a outro padrão de liberação de aeronave. Tivemos de perceber o que era melhor e adaptar”, conta Izabel Reis.
Para entender essas novas demandas, nada melhor do que fazer a mala, embarcar em um avião e mergulhar fundo na nova realidade. Izabel, Elizabete e Angelina Di Crisci, as três da diretoria de aeroportos, fizeram isso. Era uma época que não existiam ferramentas como o Microsoft Teams para reuniões virtuais. “Então, não tinha jeito: a gente pegava o avião na segunda-feira e só voltava no sábado. Na minha estrutura, existiam os gerentes regionais. Tinha gerente que cuidava de dez bases. Visitava cada um deles para ajudá-los a passar essas informações para frente e unificar os processos. Era o trabalho de escolher qual era o melhor e padronizar. O lema era escolher o que existia de melhor das duas”, explica Angelina.
No roteiro de Angelina, Bete e Izabel, estavam aeroportos como o de São Gabriel da Cachoeira, no interior do Amazonas, com um cercadinho e uma pista praticamente de terra. “Quando a gente começou a viajar, olhei o mapa do Brasil e pensei: eu não sei nada de geografia. E olha que eu sou boa em geografia. A Trip operava cidades muito pequenas e muito no Norte. Humaitá, Lábrea, São Gabriel da Cachoeira. Tivemos de conhecer. Foi uma experiência incrível”, recorda Bete. A partir dessas visitas, sua equipe fez um extenso levantamento para avaliar a situação dos aeroportos. Alguns eram apenas uma casinha com uma sala. “Eu perguntava como ia colocar um balcão de check-in ali e as pessoas respondiam que a Trip conseguia. Ok, mas era um avião menor. Íamos operar um ATR um pouco maior, de 70 lugares, era preciso fazer ajustes”, conta. “Teve até um aeroporto que tivemos de puxar luz da Casa do Pão de Queijo”, completa Izabel.
Nessas visitas, além de identificar os melhores processos para padronizá-los, havia uma missão bastante espinhosa: controlar os medos e ansiedades das equipes, principalmente das localizadas nas bases mais afastadas da sede das duas empresas. Da parte dos Tripulantes de nível operacional, o medo maior, sem sombra de dúvida, era o da demissão. Algumas operações recentes no mercado, como a compra da Webjet pela Gol, davam farto material para a criação de assustadoras teorias. “Vão mandar embora todo mundo da Trip”, era o que mais se ouvia nos bastidores.
Bete estava naquele começo da Azul, quando a companhia teve de implantar as primeiras bases, criar e difundir uma cultura baseada nas pessoas. Para ela, a missão agora, de trabalhar a questão cultural em um ambiente já constituído, era muito mais complexa. “Quando você começa do zero, você começa do seu jeito. Depois da fusão, as culturas estavam instaladas. A Trip tinha uma cultura legal, muito parecida com a da Azul, focada em gente, o que facilitou muito. Mas, ainda assim, foi muito mais difícil do que no começo”, lembra. “O trabalho prévio que tivemos foi o de fazer com que as pessoas de Azul e Trip não se detestassem”, lembra.
Outro receio de Bete era o de ser injusta na definição das pessoas que ocupariam os novos postos das bases. Isso porque havia muita sobreposição de funções. Cerca de 50 bases eram operadas pelas duas companhias. Como organizar sem, simplesmente, demitir um dos dois? Uma das saídas encontradas foi observar com muita atenção as necessidades desses Tripulantes. Alguns tinham a possibilidade e até o desejo de serem transferidos. Com as novas bases, a companhia estaria em lugares que, antes, não eram imaginados, alguns mais próximos da família ou de regiões de interesse desses profissionais. Outros foram promovidos. Demissão, só em último caso. “Foi um processo bem cuidadoso. Em oito meses, a gente estava atendendo Clientes conjuntamente, com estruturas de balcão, sistema e atendimento unificados. Foi muito rápido”, conta. “Não sei se tive medo, sei que tive muito trabalho. Acho que era tanto trabalho que não dava tempo para ter medo”, define.
Apesar de todo o temor das equipes operacionais, foi no nível executivo que ocorreram as principais mudanças, com a saída de importantes nomes no decorrer do processo. A mais importante delas, no entanto, não ocorreu por causa da fusão. No dia 13 de novembro de 2011, o então presidente Pedro Janot sofreu um acidente ao cair de um cavalo, na região da Serra da Mantiqueira, durante um dia de folga. O episódio provocou uma grave lesão e ele ficou tetraplégico. Em agosto de 2012, Pedro deixou o cargo para focar em sua recuperação. Em seu lugar, assumiu o fundador da Azul, David Neeleman.
John Rodgerson, Pedro Janot e José Mario Caprioli
Arquivo
Azul
Ajustando os ponteiros
São muitas as arestas a se aparar quando se juntam duas companhias aéreas. São duas culturas e dois modos de atuar que, vistos de longe, podem até ser bem semelhantes, mas basta colocar uma lente de aproximação para visualizar os mínimos detalhes e entender o tamanho do desafio. Uma das discussões mais complexas no processo foi a que permitiu um acordo para unificar a folha e os métodos de pagamento dos aeronautas. Para uma pessoa desavisada, tratava-se apenas de um detalhe: a Azul pagava seus aeronautas por hora voada. A Trip, por quilômetro. Isso, porém, não tinha nada de detalhe. Era um tema que estava causando um racha na companhia e tirando o sono do então diretor de RH da Azul, Johannes Castellano, que já estava ficando conhecido no Ministério do Trabalho, em Brasília, onde esteve cerca de 15 vezes para resolver o imbróglio.
O objetivo de Johannes era mostrar que era possível converter o modelo de remuneração aplicado pela Trip, com base na distância percorrida, no modelo usado pela Azul, de hora voada – os dois aceitos pela legislação trabalhista brasileira. Os argumentos de Johannes eram simples. “Em uma viagem de São Paulo ao Rio de Janeiro são 450 km. Uma situação hipotética: o aeroporto está fechado por mal tempo. O avião ficou meia hora sobrevoando e alternou para o Galeão com uma hora de atraso. No modelo da Azul, esses Tripulantes ganhariam mais pelo tempo extra de viagem. No da Trip, não, eles ganhariam a mesma coisa”, conta.
Nas contas apresentadas pelo diretor de RH da Azul, mostrou-se que os aeronautas ganhariam mais com o formato da Azul. Os novos Tripulantes, porém, tinham receio de que, como o salário da Azul era menor, eles saíssem perdendo. Johannes contra-argumentava que, mesmo com o salário menor, a escala da companhia favorecia o Tripulante. Pronto: o impasse estava criado. “Eles (Sindicato Nacional dos Aeronautas – SNA) tiveram uma assembleia geral e reprovaram a proposta de conglobamento salarial. O sindicato queria mudanças que poderiam aumentar em 50% a folha de pagamento e tornaria a empresa inviável”, conta.
Lá se ia quase um ano de reuniões, consultas a advogados, contadores, especialistas do Ministério do Trabalho e não se chegava a nenhuma solução. A falta de um acordo e a ameaça de demissão dos Tripulantes descontentes para que fosse possível concluir o acordo chegou a preocupar até representantes do Governo Federal.
Faltava colocar na mesa de negociação algo a mais para convencer os Tripulantes. Assim, surgiu a ideia de ceder a uma reivindicação antiga dos aeronautas, mas que sempre esbarrava no custo: refeição quente a bordo. “Era caro colocar forno nas aeronaves e a Anvisa dizia que não podia trazer refeição aquecida, porque não ia manter a temperatura”, explica Johannes. “Fomos na Anvisa e perguntamos qual era exatamente a regra. Eles disseram: a comida tem que estar a 70ºC, 30 minutos após o embarque. Então, fizemos um acordo com a empresa de catering para desenvolver uma caixa térmica que armazenasse a refeição superquente. Colocaríamos dentro do avião apenas minutos antes da decolagem. Era a última coisa que entrava no avião. Quando apresentamos essa proposta, o jogo virou e, finalmente, o acordo foi fechado”.
Outro ponto que causou bastante tensão e que o sindicato acompanhou de perto pelo alto potencial de conflitos foi a definição da lista de senioridade dos Pilotos. Havia muita posição radical, lembra o ex-diretor de qualidade e segurança operacional, Ivan Carvalho. “O grande desafio era definir quem seria o 01. A Trip tinha os Pilotos mais antigos de idade. O mais antigo deles tinha quase 70 anos. A questão começou a ser resolvida quando o mais antigo da Azul abriu mão e deixou o posto para o mais antigo da Trip. Isso foi uma mensagem muito positiva para o grupo. Pacificou? Não. Levou muito tempo para pacificar”, explica Ivan.
Situações tensas como essa são comuns em processos de fusão, por mais bem sucedidos que eles sejam. Algumas estratégias ajudavam a amenizar atritos e mal-entendidos. Um boletim divulgado por e-mail, toda sexta-feira, assinado pelas duas companhias, era uma dessas tentativas de melhorar a comunicação com os Tripulantes.
O material trazia informações relacionadas à fusão e também uma novidade para a época. Quando ainda não se falava em fake news e agências de checagem de notícias, o boletim já apresentava uma seção que desfazia os boatos que circulavam nos bastidores. “Algumas pessoas de confiança nos passavam o que o povo estava falando pelos corredores. Um exemplo: disseram que todo mundo da base de Vitória da Trip vai ser demitido.
Aí, a gente ia atrás da história e explicava o que, realmente, ia acontecer”, conta Johannes. “Falar de forma franca ajudou a trazer credibilidade”.
Nada será como antes
Assim que a fusão foi anunciada, o diretor de marketing, Panda Beting, entrou em contato com o pessoal da Trip e perguntou se eles teriam aeronaves disponíveis no próximo fim de semana. Pediu um Embraer e um ATR. Reservou outras duas aeronaves dos mesmos modelos na Azul. No domingo seguinte, levantou cedo, sob protestos de sua esposa, e chegou às 6h no aeroporto de Viracopos, em Campinas. Pediu para que deixassem os aviões alinhados na pista, um ao lado do outro, e chamou Tripulantes das duas companhias para ficarem de braços dados, uma corrente humana na frente das aeronaves. Panda subiu em uma grua, como aquelas que se usa no cinema, e fotografou. “Queria criar a imagem dessa fusão”, explica.
A foto, que foi utilizada nas divulgações da companhia e simbolizava a união das duas empresas, foi apenas uma das primeiras ações nesse sentido. Muitas outras vieram depois, como o anúncio de lançamento da fusão, produzido por Panda e pela Agência DPZ, com duas irmãs comissárias de bordo. Uma que trabalhava na Trip, outra na Azul.
Panda era do time dos que acreditavam que a fusão criaria uma nova cultura entre as empresas. Que não seria nem a cultura da Azul e nem da Trip, mas algo inédito. Nesse ponto, discordava de David Neeleman. “David dizia que deveríamos passar a cultura da Azul para a Trip”, lembra Panda, que tentava argumentar com o chefe. Para o diretor de marketing, uma fusão era como colocar na mesma xícara café com leite.
Depois que mistura, não dá mais para dizer o que é café e o que é leite. Ele chegou a ir até a sede da Trip, em Campinas, para conversar com um grupo de 200 funcionários logo no início do processo. Queria minimizar a sensação de que a empresa deles estava sendo comprada e de que as tradições e cultura daquelas pessoas desapareceriam. “A gente tem que imaginar que está nascendo uma nova cultura, que vai absorver fatos, pessoas e processos que vêm das duas partes e que a cultura da Azul não vai mais ser a mesma. É inevitável que sofra alteração. Estamos recebendo milhares de colaboradores de outra empresa que têm modos diferentes de operar”.
As irmãs comissárias de bordo, uma da Trip outra da Azul, que se tornaram um dos símbolos da união das duas companhias
Arquivo Azul
Inicialmente, o diretor de RH, Johannes Castellano, também pensava como David e achava que a cultura da Azul deveria predominar. “No final do processo, percebi que não era bem assim, que eu estava enganado. Entendi que cultura boa não é uma cultura forte que não muda, mas uma cultura flexível, uma cultura que aprende”.
David também chegou à mesma conclusão e, num jantar feito para celebrar um ano da fusão, agradeceu a Panda pelo empenho.
Todo o esforço para unir as duas companhias de maneira verdadeira e definitiva deveria passar também pela definição da nova marca. O pedido que Panda havia recebido do presidente da Trip, José Mário Caprioli, era para que incluísse algo que remetesse à companhia que ele havia criado, já que ficou decidido que o nome Azul era o que continuaria no mercado. Panda olhou bem para a marca da Trip toda em azul marinho, com o ‘i’ em azul claro. “A marca ficava com uma bossa, moderninha”, conta Panda. “Trip e Azul têm quatro letras, a terceira do nome Azul é o U. Pensei: vou pegar esse U e deixar azul clarinho, assim como é a terceira letra da palavra Trip”.
Quando apresentou a nova marca, Panda foi questionado por Trey Urbahn o motivo de a letra U estar num tom diferente das outras.
“Eu respondi que era uma homenagem à marca Trip. Que a gente devia isso a eles”
“Mas, porque o U?”, quis saber Trey.
“U de união. A partir de agora, Azul e Trip estão unidas e esse U clarinho vai representar essa União. Olhei para o lado e vi o José Mario abrir um sorrisão. Quando acabou a reunião, ele me puxou de lado, me deu um abraço e agradeceu”, recorda Panda.
Uma das principais movimentações no sentido de unir as duas companhias foi a mudança da sede. Embora fosse algo natural e que, muito provavelmente, aconteceria mesmo sem a chegada da Trip – já que, devido ao crescimento da Azul, a sede da Alameda Surubiju já não comportava mais tanta gente – a fusão foi determinante para a definição da estrutura montada a partir de
então. Procurar um espaço novo, mais amplo, que comportasse os Tripulantes das duas companhias e que fosse desconhecido para todo mundo havia sido uma sugestão da consultoria McKinsey. O bairro foi mantido: Alphaville. Mas, agora, em vez de uma casa com um ar mais informal, em uma ruazinha sem saída, foi escolhido um prédio de escritórios, às margens da rodovia Castelo Branco.
A mudança proporcionou situações que aproximaram as pessoas. Tanto os Tripulantes que vinham da Azul quanto os que vinham da Trip entraram na sede ao mesmo tempo. Procuraram banheiros ao mesmo tempo, aprenderam os caminhos juntos e até se ajudaram para entender como chegar às salas. Logos nos primeiros dias, circulou entre os novatos a história de que o elevador do prédio da sede nova era inteligente. A saída de um imóvel sem elevador para um prédio até com elevador inteligente, independente do que isso significasse, dava um ar de progresso, mas também certa insegurança. “A gente não sabia o que significava esse negócio de elevador inteligente e não sabia também onde apertar para entrar. Ficamos um bom tempo olhando aquilo até entender”, diverte-se Angelina Di Crisci. “Parecia que os caipiras da Surubiju, agora, estavam de salto alto. Estávamos indo para um prédio chique. Mas, a essência, a humildade, a paixão, a coisa do fazer mais com simplicidade e qualidade, a gente não perdeu”.
Aos poucos, a fusão ia fazendo sentido e os primeiros efeitos positivos apareciam. O período mais crítico da integração já havia passado, o que não significava que a fusão estava totalmente superada. As mudanças eram graduais e envolviam aspectos culturais, operacionais e financeiros. A nova Azul estava em constante evolução. Em meio a esse clima de transição, a empresa procurava um novo presidente. A definição seguiria a mesma lógica da utilizada na escolha da nova sede: deveria ser alguém que não era Trip e nem Azul e que simbolizasse esse atual momento da companhia. Imediatamente, um nome surgiu de maneira unânime: Antonoaldo Neves, o profissional que tinha coordenado as atividades da McKinsey no início da integração e que conhecia bem essa nova empresa que surgia com a fusão.
Crédito: Panda Beting
Houve uma primeira proposta, que Antonoaldo negou. Passados nove meses, seu telefone tocou novamente. Era John Rodgerson, insistindo no convite. Dizendo que ele tinha de voltar, que a empresa estava superbem e só faltava ele assumir. Antonoaldo conversou com sua esposa e decidiu assumir o desafio. Sua missão principal era finalizar o trabalho de integração e acabar com a sensação de ‘Azul versus Trip’ que ainda era percebida nos corredores. Apostou, sobretudo, na sua neutralidade, reconhecida pelos Tripulantes de ambos os lados. “Quando eu cheguei, claramente ainda existiam duas empresas lá dentro. Eu queria, no fim do meu primeiro ano como presidente, acabar com aquilo. Investi muito tempo me aproximando das pessoas”, lembra.
Uma das estratégias adotadas por Antonoaldo foi bastante simbólica. Ele fez as malas e partiu para conhecer o maior número possível de bases espalhadas pelo país. A rotina se repetia quase toda semana: terça-feira à noite, ele embarcava para um aeroporto de referência da região, onde fazia uma reunião com todos os Tripulantes. No dia seguinte, entrava em um Pilatus, aeronave menor utilizada para serviços de manutenção, e seguia para todas as bases da região. Em uma, conversava com cinco pessoas. Em outra, oito. E, assim, ia conhecendo pessoas que muitas vezes
não estavam trabalhando nas condições ideais e, juntos, pensavam no que poderia ser feito para melhorar. “Foi uma coisa que me ajudou muito: eu ia para bases da Trip que nunca tinham sido visitadas por um representante da Azul do meu nível hierárquico. Uma coisa que parece pequena, mas que ajudou a disseminar a cultura da empresa. Isso tinha um impacto fenomenal”, lembra. “Acho que fui a pessoa que mais visitou bases da Azul até hoje. Fui a mais de 90 aeroportos no Brasil. Não teve um momento específico que podemos dizer que a situação foi resolvida. Foi uma coisa gradual, ao longo do tempo”.
E entre uma visita e outra, em meio a pequenos avanços, um novo foco foi aparecendo. De repente, no início de 2014, novas planilhas, mapas, ideias e orçamentos começaram a pular de mesa em mesa e a ocupar os executivos da nova companhia. Uma outra missão começava a tomar forma. Conectar o Brasil já era pouco. A fusão com a Trip deu capilaridade e permitiu à Azul abastecer os hubs de Viracopos e Confins. Mais do que isso, possibilitou que se virasse a página de uma disputa por mercado com outra companhia aérea e fortaleceu a empresa para novos desafios.
A Azul, agora, se preparava para ultrapassar fronteiras.
Primeiro avião a receber as cores da nova marca
Yes, nós temos a Azul!
1º de dezembro de 2014. Mais uma estreia estava para acontecer. À medida que os Clientes chegavam, um clima de euforia e expectativa tomava conta do aeroporto de Viracopos. Quando entravam no novo terminal, ansiosas e empurrando malas, as pessoas eram recepcionadas pelos sósias de Elvis Presley e Marilyn Monroe.
Eles davam as boas-vindas e ajudavam todo mundo a entrar no clima da próxima parada. Mais do que isso, a festinha temática ajudava a dar a dimensão do sonho que estava sendo realizado naquela noite. Seis anos antes, a companhia fazia seu voo inaugural e ninguém imaginava que chegaria a voar internacionalmente em tão pouco tempo. Aliás, ninguém imaginava que tanta coisa aconteceria em tão pouco tempo. A expansão da frota, o crescimento rápido de rotas que interligavam o país, a fusão com a Trip, a mudança da sede e, agora, um passo gigantesco que colocava a companhia, definitivamente, em outro patamar.
O voo marcava também a inauguração oficial do novo terminal de passageiros de Viracopos. O antigo espaço, já pequeno e defasado, teria sua função modificada aos poucos. Seria transformado apenas em terminal de carga. Todas as rotas de passageiros passariam para o novo espaço, maior, mais moderno e já dimensionado para o crescimento projetado pela Azul. Mas, não seria de uma hora para outra. Esse era apenas o primeiro passo. A área internacional do aeroporto já havia sido testada pelas sete seleções que escolheram a Região Metropolitana de Campinas como base para a Copa do Mundo de futebol realizada no Brasil, seis meses antes. Depois do torneio, a companhia passou a operar alguns voos, ainda em fase de testes.
A construção de um novo terminal, que só seria inteiramente concluída em 2016, era consequência da privatização dos aeroportos e, no caso de Viracopos, atendia a uma forte demanda criada após o aeroporto centralizar as operações da Azul. O Airbus A330 que já estava na pista preparado para decolar rumo à Fort Lauderdale, na Flórida, nos EUA, era, portanto, um sinal do quanto a companhia estava crescendo e do quanto ela estava fazendo também o Brasil crescer junto.
Boa parte do comitê executivo estava ali. Dessa vez, nenhuma sabotagem, como ocorreu no primeiro voo da companhia. Nada também de atraso de David Neeleman, até porque ele não estaria presente. Ele já estava nos EUA e recepcionaria o A330 em Fort Lauderdale.
Crédito: Panda Beting Arquivo
O atual CEO da Azul, John Rodgerson, gosta sempre de lembrar que nada disso teria sido possível sem a fusão. “Foi uma conquista de todos nós, juntos”, ele reforça. A lógica utilizada por John não era apenas um discurso. Os voos internacionais só se tornaram uma realidade de maneira tão rápida por conta das conectividades criadas após a fusão com a Trip. “Havia tanta conectividade com aqueles voos de quase 60 cidades que chegavam em Campinas, que começou a fazer sentido ter voos internacionais”, explica o vice-presidente técnico, Flavio Costa. “Porque quando a gente fala de voo internacional, não falamos só da cidade que sai à cidade que chega. Isso é só o voo. Mas eu tenho que ter conectividade que entra e que sai. Não dá para imaginar que Campinas vai alimentar Fort Lauderdale. O Brasil todo tem de sair por Campinas. E não adiantava voar para fora partindo de Guarulhos, porque não era nossa base, não tínhamos voos lá para conectar. A gente tem que sair do nosso hub”, completa.
Uma vez decidido que a companhia já tinha condições de voar internacionalmente e que esses voos partiriam de Campinas, era necessário bater o martelo em relação às primeiras rotas. Quanto a isso, David Neeleman não teve dúvidas. “Vamos para onde os brasileiros querem ir”, cravou ele. “Hoje, 90% das pessoas dos nossos voos internacionais são brasileiros. Ou seja, é neles que estamos pensando quando definimos as nossas rotas”.
E para onde queriam ir os brasileiros? Segundo dados do Ministério das Relações Exteriores, em 2014, havia cerca de 1,4 milhão de brasileiros vivendo nos EUA, quase metade do contingente dos que decidiram deixar o país. Nos EUA, já naquela época, os principais redutos de cidadãos nascidos no Brasil estavam na Flórida, mais precisamente em Orlando e Miami. Além disso, em 2014, foram 2,26 milhões de brasileiros visitando os EUA, 10% mais que o ano anterior. Portanto, o pensamento foi simples: se é para Orlando e Miami que os brasileiros estão querendo ir, é para Orlando e Miami que a Azul vai.
Outra lógica utilizada nessa escolha foi a de optar por destinos cuja demanda pudesse ser
estimulada. “Por exemplo: hoje, em um voo diário do Brasil para Zurique, capital da Suíça, conseguimos 98% de ocupação. Mas, não temos gente para um segundo voo, porque não é um mercado que vai ter muita gente querendo ir para lá. Você não consegue estimular ele. É diferente de Miami e Orlando”, explica o gerente de planejamento de malha, Victor Silva.
Havia ainda uma última definição: onde pousar. Eram duas opções: o Aeroporto Internacional de Miami e o Aeroporto Internacional de Fort Lauderdale, cidade vizinha a Miami, mais ao norte. Para resolver a questão, os executivos utilizaram o mesmo princípio de quando definiram Viracopos como base da companhia, seis anos antes. Um aeroporto onde não haveria concorrência, longe do burburinho e onde não seria preciso disputar espaço com outras companhias. Sem sombra de dúvidas, esse aeroporto era o de Fort Lauderdale. “Essa foi uma descoberta do David quando iniciou voos de Nova York para lá com a JetBlue. Algumas partes mais ricas de Miami estão mais ao norte, justamente na região de Lauderdale. O trânsito é melhor e tem um outlet gigantesco. Além disso, é um aeroporto mais simples que o de Miami.
A Azul é a única companhia aérea brasileira pousando lá”, explica Victor. “A gente brinca que esse é o voo queridinho dos ricos. Para quem mora em Alphaville, por exemplo, é mais fácil sair de Campinas e pousar em Fort Lauderdale”.
A alternativa encontrada pela Azul acabou expandindo a visão que muitos turistas tinham de Miami. Se antes, as pessoas pousavam em Fort Lauderdale e iam para Miami, agora, já tem muita gente que aprendeu a ficar naquela região. “Ia muito para Miami. Não vou mais. Fort é muito melhor, muito mais agradável. Faço as mesmas coisas que faria em Miami, só que com mais facilidade. Você entra no aeroporto mais fácil, tudo é mais fácil”, conta o VP técnico, Flavio Costa.
Não há como negar que a aposta da Azul deu certo. Hoje, ela está entre as maiores operadoras brasileiras na Flórida e, assim como fez com Viracopos, é a responsável também por boa parte do crescimento do aeroporto de Fort Lauderdale.
Deixa comigo que a gente vai voar internacional
Internamente, a decisão de realizar voos internacionais permitiu a consolidação de algumas movimentações no comando da empresa. Era um momento em que a companhia se preparava para viver trocas importantes no comando de algumas diretorias e se adaptava a um novo presidente disposto a unificar a empresa e fazêla avançar. “Os voos internacionais permitiram que eu entrasse para liderar junto com os meus colegas. Porque tinha uma coisa ali para gente avançar juntos. Eu tinha acabado de chegar e o David fez questão de estar muito próximo de mim”, recorda Antonoaldo Neves.
Quando assumiu o comando da empresa, em janeiro de 2014, a ideia de voar para fora do país ainda estava numa planilha no computador do vice-presidente de malha, Trey Urbahn. Ou seja, em menos de um ano, a empresa conseguiu os aviões, treinou Pilotos, recebeu autorização para voar nos EUA, criou uma estrutura de vendas por lá e montou um produto competitivo. “O que a Azul fez em nove meses, saindo do zero, foi impressionante. Toda semana reunião sobre internacional, três horas, 40 pessoas na sala, tudo isso me dá um baita orgulho”, conta Antonoaldo.
Era início de 2014 – entre janeiro e fevereiro –quando David perguntou a Flavio Costa quanto tempo era necessário para tirar do papel os voos internacionais. Entre os executivos, Flávio era um dos poucos com essa experiência, adquirida nas mais de duas décadas em que atuou na Varig. Era a pessoa certa para tirar essa dúvida. Flávio disse que precisaria de, pelo menos, 11 meses para ter condições de realizar a operação. David argumentou que seria bom ser um pouco mais rápido, para começar em dezembro e aproveitar o movimento de turistas do fim do ano. “Acho que dá”, respondeu Flávio, mesmo um pouco receoso.
“E os Pilotos?”, quis saber David.
“Eu tenho”, disse Flávio e, diante da desconfiança do chefe, garantiu: “Deixa comigo que a gente vai voar internacional”.
Flávio confiava muito em sua equipe. Não era para menos, todos os seus Pilotos já tinham experiência em voos internacionais, na Varig. Mesmo os da Trip já tinham atuado internacionalmente. Eram Pilotos antigos. Tinham que passar por um treinamento, claro, mas conheciam o tráfego aéreo internacional e não teriam qualquer dificuldade com a nova missão.
Essa reaproximação com os widebody, como são chamadas as aeronaves maiores utilizadas em voos internacionais, foi tão marcante que Flávio se recorda até hoje de quando foi conhecer um dos sete aviões que seriam adquiridos para a empreitada. “Quando vi o A330, achei aquele negócio um monstro. A gente já estava acostumado com os menorzinhos da Embraer. Tivemos de nos acostumar com os maiores novamente. A partir daí, começou o trabalho: fizemos o curso, fomos lá nos EUA fazer a certificação e conseguimos aprovar todos os aviões a tempo de voar em dezembro”.
Os comandantes Augusto Nunes e Ary Nunes e o diretor de operações João Macari ao fim do primeiro voo internacional
Arquivo Azul
Primeiro voo internacional
Crédito: Panda Beting
Assim como já ocorria nos voos domésticos, a preocupação com a segurança dominou a lista de preparativos. Além do respeito a todas as normas e exigências operacionais, a Azul resolveu implantar algumas precauções extras nos voos internacionais. Uma delas foi a ampliação do número de comandantes nas aeronaves, de um para dois. “Não é uma exigência operacional, não está escrito no regulamento. Isso é padrão Azul. Tem um custo. Poderíamos deixar dois coPilotos e só um comandante, como diz a legislação. Sairia mais barato. Mas, esse é o nosso padrão operacional. Elevamos a régua da segurança”, explica Flávio.
O número de Comissários também está acima do exigido. “Pelo regulamento, a quantidade mínima de Comissários depende do número de saídas de emergência que a aeronave tem. O número mínimo são seis, a gente vai com oito, às vezes dez”, detalha o comandante Augusto Nunes.
Os voos internacionais exigem mais atenção, explica Nunes, porque tudo o que acontece a bordo ganha dimensão muito maior devido à duração das viagens. Numa emergência no meio do oceano ou num lugar remoto, a aeronave pode demorar de duas a três horas para conseguir um lugar para pousar. Num voo doméstico, a oferta de aeroportos é muito maior. “O gerenciamento disso requer outra abordagem”, explica Nunes. “Por isso, antes do voo, sempre temos uma boa conversa para que todos saibam os recursos disponíveis naquele voo e para combinar o que fazer em situações de emergência”.
O primeiro voo internacional foi um sucesso à medida que abriu caminho para uma série de outras rotas e deixou claro que a empresa estava chegando a um nível que muita gente do mercado não acreditava que seria possível. Mas, foi um voo que teve falhas no serviço de bordo. A forte presença de diretores e membros do comitê executivo atrapalhou um pouco. Deixou o pessoal nervoso. Além disso, pesou o fato de a equipe ter tido pouco tempo para preparação do serviço. “Foi tudo muito rápido entre a decisão de voar e o início da operação. Não tínhamos essa experiência no serviço de bordo. Estávamos acostumados com o Embraer e o nosso serviço de snack. A galley,
a cozinha do avião, era desconhecida para nós. Tivemos um curto espaço de tempo para definir tudo: maletas, gavetas para colocar o serviço de bordo, menu. Lembro que, nos primeiros voos, usamos a mesma louça dos voos domésticos”, recorda Marcelo Ferrari, gerente geral de catering.
O estranhamento dos Comissários tinha inúmeras justificativas. Por exemplo, até então, a companhia não tinha refeição quente para os Clientes e teve de apreender, na prática, a calcular o tempo dos processos durante o voo. “Lembro que demorou muito o serviço de bordo. Quando acabou, a gente estava perto de Manaus, quase três horas de voo. O avião decolou 11 da noite. Erramos também o timing de servir o café da manhã. Quando serviram, a gente já estava quase em Cuba, quase no final do voo, faltava meia hora para acabar. Me lembro da correria para tirar o serviço de bordo”, conta Victor Silva.
Para piorar, alguns diretores ficaram irritados com a demora e chegaram a se levantar e dar ordens. “Por mais que você treine no solo, na hora do voo, é outra coisa. Chamei o presidente na cabine e pedi para ele se sentar e fingir que
Recepção ao primeiro voo internacional da Azul, no aeroporto de Fort Lauderdale
Crédito: Panda Beting
estava dormindo, para não botar pressão no pessoal. Depois disso, o serviço fluiu melhor”, lembra o comandante Augusto Nunes. “De modo geral, a equipe foi muito bem, no sentido de que foram dando jeito nas coisas”.
A diferença entre o interior das aeronaves que faziam os voos domésticos e as que iniciaram as operações internacionais também chamou a atenção. Com a intenção de começar a voar ainda em 2014, a companhia optou por deixar a modernização do interior dos aviões para um segundo momento. Eram equipamentos que estavam sendo utilizados pela Emirates, principal companhia aérea dos Emirados Árabes Unidos, e tinham sido fabricados no início dos anos 2000. Ou seja, antes do retrofit realizado pela Azul só no fim de 2015, não tinham o mesmo acabamento interno que os jatos zero quilômetro da Embraer. “Aviões internacionais, em geral, são pouco ciclados, ou seja, não pousam e decolam muitas vezes, como um doméstico. O que gasta muito o avião é o ciclo e não o tempo de voo. O fato de ter avião mais antigo é ruim porque o custo de manutenção é mais alto. Mas, de resto, é normal. Prefiro dizer que são aviões vintage”, explica Flávio.
Apesar de um pouco atrapalhado, o primeiro voo internacional da Azul ficou guardado na memória de todo o time. Quando pousou, o A330 foi recepcionado por David Neeleman e outros executivos na porta de embarque. “À medida que o avião foi chegando, a gente abriu a janela, colocou a bandeira para fora e vimos o David fotografando, saudando, batendo palmas. Depois, ele recebeu a gente na porta do avião. Acima de tudo, foi um voo muito emocionante”, resume o diretor de Marketing Panda Beting, que estava na cabine, junto com os comandantes Augusto Nunes e Ary Nunes, e o diretor de operações João Macari.
Depois desse primeiro pouso em Fort Lauderdale, a companhia lançou uma série de destinos. Logo na sequência, realizou seu primeiro voo para Orlando. No ano seguinte, anunciou acordos com United Airlines, JetBlue e TAP para oferecer conectividade para os EUA, Europa e África. O relacionamento com a TAP foi também um incentivo para a criação de voos para Lisboa, uma porta de entrada de brasileiros para o
Velho Continente. A rota para Montevidéu, por sua vez, marcou a estreia da companhia em voos para outros países da América do Sul. E, assim, a Azul foi ampliando o mapa. Não conectava apenas o Brasil das grandes capitais com o Brasil do interior, mas fazia uma ponte para que os brasileiros pudessem chegar cada vez mais longe. Encurtava distâncias e começava a chamar atenção de investidores.
Ao mesmo tempo em que a companhia desbravava rotas internacionais e continuava se fortalecendo no mercado doméstico, o país começava a se recuperar de uma das maiores crises econômicas de sua história. Superado o pior momento da operação Lava Jato, que abalou a república com investigações de crimes de corrupção, a economia brasileira iniciava 2017 dando sinais de que poderia viver uma retomada. Após três anos de uma profunda recessão, os juros começavam baixar, a inflação caia e criava condições para que os executivos começassem a pensar em tirar do papel mais um sonho.
Era preciso acertar os últimos detalhes para que, em breve, a Azul fizesse mais uma estreia. Uma estreia que já havia sido adiada algumas vezes e que permitiria um crescimento ainda mais robusto.
Chegada do Airbus A330 à Fort Lauderdale marcou o início de uma nova etapa na história da Azul
Crédito: Panda Beting
Um novo tempo 10
No palco, estavam o presidente da Azul, Antonoaldo Neves; o presidente da holding Azul S/A, José Mario Caprioli; e nomes como Sami Foguel, vice-presidente de pessoas e Clientes; Flavio Costa, vice-presidente técnico operacional; e Alexandre Pupe, gerente de Comissários de bordo. Vestidos de terno, gravata e sorrisos, estavam realizando um sonho antigo.
Sim, era mais uma estreia da Azul, companhia tão acostumada a ressignificar conceitos como limite e superação. Essa estreia, porém, acontecia longe de Viracopos ou de qualquer outro aeroporto no interior do país. O palco era a Bolsa de Valores de São Paulo.
Quando soou na manhã daquela terça-feira, 11 de abril de 2017, o tradicional toque da campainha da B3 anunciou que uma nova Oferta Pública Inicial (IPO, na sigla em inglês) estava acontecendo, a terceira daquele ano de retomada e a maior desde 2013. A Azul passaria a negociar suas ações na bolsa e se tornava a 20ª empresa listada no nível 2, segmento que reúne companhias comprometidas com elevadas regras mais elevadas de governança corporativa.
A campainha anunciava também o primeiro IPO realizado na casa depois da mudança de nome. Não mais como BMF&Bovespa. Agora, era B3. A chuva de papel picado que caia sobre os executivos da Azul completava a imagem da vitória, da concretização de um plano antigo, talvez o que tenha exigido mais paciência do time de executivos. Ao som de Aquarela do Brasil, na voz de Gal Costa, eles se cumprimentavam e tiravam fotos. Escrita por Ary Barroso 78 anos antes, a canção exalta as maravilhas de um país “lindo e trigueiro, terra de samba e pandeiro”. Belezas que, somadas a tantas contradições, encantaram David Neeleman e o fizeram empreender por aqui.
Sob palmas efusivas, Antonoaldo e José Mario receberam um certificado e um troféu comemorativo para celebrar a oferta que movimentou R$ 2 bilhões. Recursos que deixariam a companhia mais forte para enfrentar os desafios do dia a dia e também para viabilizar importantes investimentos. As ações também passavam a ser negociadas na Bolsa de Nova York. “Desde o começo, sabíamos que seríamos uma empresa listada, porque o setor é de capital intensivo. Com o crescimento que estávamos projetando, teríamos que
ter a possibilidade de acessar capital em todo lugar que quisesse dar capital para uma empresa aérea. Então, esse já era o nosso plano”, lembra o CFO da Azul, Alex Malfitani.
Esse plano, no entanto, foi adiado algumas vezes. A primeira delas em 2011. O ano começou com a economia de vento em popa, colhendo os bons frutos de medidas adotadas pelo governo para estimular a atividade e superar a crise financeira de 2008. Em 2010, o PIB registrou um salto de 7,5%, o maior desde 1986, com uma economia baseada na exportação de commodities e no impulsionamento do mercado interno. Um cenário que favorecia a chegada da Azul na bolsa. Era hora de preparar tudo, encarar a lista de tarefas necessárias para realizar uma oferta pública inicial e concluir item a item. Por mais que a empresa tenha nascido com a ideia de que seria, em breve, listada na bolsa, já tivesse números auditados e mantivesse diálogo constante com os investidores, ainda assim, havia muito a ser feito. Eram relatórios, auditorias e reuniões, uma série de exigências legais que podem levar meses para serem concluídas.
Para que fosse possível colocar esse plano em prática, nada melhor do que ter alguém inteiramente dedicado a esse processo. Alex decidiu, então, contratar uma gerente de relação com investidores. Quando anunciou a vaga no mercado, recebeu o currículo de uma profissional com carreira focada nessa área e com experiência justamente no setor da aviação. Uma pessoa que já havia trabalhado na Embraer e com larga experiência no exterior. Melhor, impossível. Andrea Ina Bottcher retornava de um MBA fora do país quando foi chamada para integrar o time. A ideia era bastante clara: a empresa precisava de recursos para continuar crescendo e, para isso, abriria capital.
Andréa sabia que o desafio não era pequeno. Até porque, o objetivo era fazer uma listagem dupla, ou seja, no Brasil e nos EUA, o que demandaria praticamente o dobro do tempo para preparar toda a documentação. A primeira etapa era construir uma narrativa para a companhia. “Precisávamos definir como queríamos vender nossa estratégia. São as chamadas draft sessions. A gente
sentava com os advogados e escrevia o texto para mostrar como queríamos nos posicionar. Demoramos vários meses para ter o primeiro esqueleto do documento pronto”, detalha Andrea.
A grande dificuldade para a abertura de capital, porém, não era o enorme volume de relatórios, reuniões e auditorias que deveriam anteceder a abertura de capital. Mas, um aspecto que não estava no controle dos executivos: a boa vontade do mercado. Entrava nessa conta, além dos números da empresa e do mercado de ações, o apetite dos investidores à risco e as turbulências políticas. “Lembro que falei para a Andrea que ela teria que chegar forte porque nossa ideia era abrir capital em seis meses. Mas, o cenário mudou”, lembra Alex.
O segundo semestre de 2011 marcou uma reversão das expectativas de crescimento da economia e uma escalada da inflação. Embora o PIB acumulado do ano tenha fechado em alta de 2,5%, esse crescimento foi praticamente todo concentrado no 1º semestre. Outro fator determinante para que a Azul adiasse a abertura de capital foi a fusão com a Trip. As conversas foram iniciadas ainda em 2011 e esfriaram a intenção de realizar o IPO. “Depois de uma fusão, é preciso mostrar ao mercado, pelo menos, um ano dos números combinados. Por isso, é muito difícil abrir capital de uma empresa que ainda está em um processo de integração. Naquele momento, a decisão foi focar na fusão e deixar o IPO mais para frente, porque os números seriam muito melhores. Isso aumentaria o valor da empresa”, lembra Andrea.
A oferta pública inicial da Azul ficou na gaveta até 2013, quando o processo foi retomado e, logo em seguida, cancelado novamente na esteira dos protestos de junho que sacudiram politicamente o país. Em 2015, a companhia fez outra reunião de lançamento do IPO, como já havia acontecido em 2011 e 2013. Os números do balanço anterior eram positivos e o mercado até mostrava certa animação. Andrea, então, voltou a trabalhar pesado para levar a Azul à Bolsa. Coordenava todo processo de atualização de narrativa, avaliação dos números e auditoria de relatórios, quando o mercado começou a
dar sinais de que a abertura de capital poderia não ser uma boa ideia. Pelo menos, não naquele momento. O ano de 2015 marcou o mergulho do país em uma profunda recessão diretamente ligada à crise política que culminou no impeachment da presidente Dilma Rousseff no ano seguinte. Foi um período marcado por recessão, arrocho, famílias parando de consumir e empresas cortando orçamento de viagens. Foi o primeiro momento em que houve retração na demanda da companhia. Definitivamente, era hora de engavetar o IPO mais uma vez.
Apesar desses adiamentos, a Azul seguia buscando outras fontes para sustentar seu crescimento. Concluiu a integração com a Trip, ampliou sua frota com financiamento do BNDES e passou a voar internacionalmente. “O fato de não ter sido listada deu à Azul muita flexibilidade em termos de decisões estratégicas. Se fossemos uma empresa pública, provavelmente a fusão e os voos internacionais teriam sido muito questionados e resultariam em volatilidade no preço. Portanto, de certa forma, esses adiamentos acabaram ajudando”, avalia Andrea.
Logo após o adiamento do IPO em 2015, houve um aporte de US$ 100 milhões da norte-americana United Airlines, do grupo United Continental. Em seguida, a empresa iniciou os diálogos com o grupo chinês HNA, que adquiriu 23,7% do valor econômico da Azul e conquistou direito a assento no Conselho de Administração. O acordo foi anunciado em novembro de 2015 e concluído em agosto de 2016. Envolveu o aporte de US$ 450 milhões, o equivalente a R$ 1,7 bilhão na época. “A HNA representou um IPO antes do IPO. Representou não só o fortalecimento da Azul, como proporcionou investimentos importantes que, se não chegaram a dar o retorno esperado, significaram a possibilidade de movimentações relevantes na empresa”, conta Antonoaldo.
Acima de tudo, o investimento da HNA deu fôlego para a Azul esperar com mais tranquilidade o momento ideal de se lançar ao mercado. Não demorou muito. Um ano depois, em meados de 2017, o cenário começou a mudar novamente. Dessa vez, para melhor. Depois de dois anos de recessão, a economia voltou a crescer em
2017, ainda que de maneira tímida. O PIB per capita subiu, o consumo das famílias também e a demanda que havia caído bruscamente depois de 2014, se aproximava do patamar anterior à crise. Depois de trabalhar cinco anos sozinha na área de RI, Andrea ganhou uma coordenadora para ajudá-la. “Dá trabalho atualizar uma série de tabelas, informações e análises que precisam ser feitas. É frustrante ter de fazer tudo novamente, mas já estávamos no Piloto automático”, conta.
O primeiro passo foi colocar em ordem todos os documentos produzidos nas tentativas anteriores de abrir capital. Toda a estratégia foi revista e atualizada. Foram acrescentados dados novos, como os números após a fusão e o início dos voos internacionais. Ao mesmo tempo, era necessário que tudo estivesse muito alinhado com os auditores. “É um processo que envolve várias áreas e também muita gente de fora da empresa: auditoria, advogados, bancos. Essa questão de coordenação é a que leva mais tempo no cronograma”.
Com esses materiais já preparados, a companhia deu início aos roadshows, quando os executivos visitam os investidores e apresentam sua estratégia, uma prática que já ocorria, mas que foi intensificada no período pré-IPO. A existência de uma área de relação com investidores estruturada há tanto tempo também fez o mercado olhar diferente para a empresa. Ao longo desses seis anos, os executivos foram sendo orientados dentro dessa cultura de uma companhia listada. Aprenderam e tiveram tempo para praticar a maneira mais adequada de divulgar os resultados, entenderam como se trabalham informações sigilosas e qual o papel da clareza e da transparência na divulgação de estratégias e de assuntos que ainda não são públicos. Essa era uma das missões de Andrea: criar essa cultura e checar se todos estavam seguindo o script. “Normalmente, as empresas pensam em IPO e contratam um monte de advogado e banqueiro, que querem ir lá para tocar o sino. Mas, no dia seguinte, tem que ter um time estruturado para divulgar o resultado e tocar o dia a dia de relação com investidores da empresa. Meu papel foi esse: estruturar e criar padrões de comunicação”, conta Andrea.
Outra etapa bastante intensa foi a que envolveu as reuniões com analistas que produzem relatórios de recomendação de compra e venda das ações. É o momento de explicar aos profissionais que influenciam o mercado como é feita a precificação dos papeis. Nessa etapa, o alinhamento foi fundamental. “John, Alex e Abhi sempre foram muito acessíveis. Conversávamos muito para saber quem faria essa comunicação com o mercado e também o que a gente ia falar, para estar todo mundo na mesma página. Sempre tivemos isso muito claro na Azul. Outro ponto positivo era a velocidade nas respostas. Tudo muito rápido, a gente sempre foi bem responsivo. Essa velocidade da Azul é impressionante”, analisa.
A estratégia de listar a companhia também na Bolsa de Nova York foi importante para o sucesso da operação aqui no Brasil. Apesar de envolver mais custos e muita burocracia, já que as leis dos EUA são mais rigorosas, um
IPO no mercado norte-americano elevaria o grau de governança da empresa e aumentaria o grupo de investidores que poderiam aportar recursos, já que muitos deles, por questões de compliance, eram impedidos de investir no Brasil. Além disso, David já tinha esse relacionamento com o investidor estrangeiro, o que facilitaria o acesso a essa base acionária internacional.
Essa facilidade fez também com que David resolvesse inverter o caminho comum de precificação das ações. “Em vez de sair para o mercado aqui no Brasil para estabelecer o preço da ação, como é feito geralmente, ele começou pelo mercado estrangeiro para construir essa credibilidade e, depois, veio falar com o investidor local, que ficou um pouco bravo com a gente. A gente precificou fora e os investidores daqui tiveram que entrar no preço estabelecido lá. Foi uma jogada que achei boa. No fim das contas, o preço foi justo”, conta Andrea.
Time de David Neeleman celebra IPO da companhia na Bolsa de Nova York
Arquivo
Foi assim que, precificadas a R$ 21, as ações da Azul começaram a ser negociadas na B3, a partir de 11 de abril de 2017. O momento foi perfeito. Caso a companhia esperasse mais, provavelmente, teria de adiar a operação mais uma vez. Isso porque, um mês depois do IPO da Azul, a imprensa revelou conversas entre o então presidente da República, Michel Temer, e o empresário Joesley Batista, que mergulharam o país em uma nova crise política e financeira, com impactos severos no mercado de ações.
Os meses seguintes ao IPO comprovaram que todo o trabalho feito pela companhia ao longo desses seis anos de preparação tinha deixado uma firme estrutura que elevava seu grau de maturidade e, sobretudo, credibilidade. A greve dos caminhoneiros, em maio de 2018, foi um bom exemplo. Era um dos primeiros grandes testes e, tão logo se identificou os impactos do episódio, convocou-se uma teleconferência pública para explicar como aquele cenário influenciaria nos resultados. “Essa cultura de transparência é um diferencial bem forte da Azul. É uma cultura muito parecida com a preocupação que se tem com a satisfação do Cliente. Criou-se também essa cultura de satisfação do investidor”, explica Andrea.
A abertura de capital abria um novo mundo para a Azul. Criava a possibilidade de fortalecer o caixa, continuar seu plano de renovação de frota, amortizar dívidas e realizar investimentos. “Tudo isso permitiu à empresa retomar sua rota de crescimento e a colocou em um patamar ainda mais alto. A Azul cresceu muito depois disso. Tenho muito orgulho de ter participado dessa história, entre 2014 e 2017, que culminou com o IPO”, conta Antonoaldo Neves, que deixou a presidência poucas semanas depois de sua entrada na B3. Ele seguiu para a TAP, companhia aérea portuguesa que recebeu forte investimento da Azul naquele período. Em seu lugar, assumia John Rodgerson, homem de confiança de David e um dos que vieram com ele dos EUA para tirar o sonho de uma companhia aérea do papel.
A chegada da Azul à B3 e de John ao comando da companhia marcaram um novo tempo. Em 2019, a Azul registrou recorde em termos de rentabilidade. As ações, que começaram a ser negociadas a R$ 21, já estavam a R$ 60. A companhia havia sido eleita pelo Trip Advisor a melhor empresa aérea do mundo e um hangar estava sendo erguido em Campinas. Algo grande, que fazia jus ao seu crescimento e, principalmente, ao seu tamanho atual. Uma enorme festa estava sendo organizada para abril de 2020. Do teto do hangar, mais novo símbolo do sucesso, cairia uma bandeira comunicando a todos sobre o prêmio que seria entregue pela maior plataforma de viagens do mundo. Além disso, devido ao sucesso financeiro de 2019, a companhia anunciaria aos Tripulantes o pagamento do maior bônus da sua história. Mas, alguma coisa saiu dos eixos. Um novo cenário se impôs e atingiu uma dimensão que não poderia ser prevista em nenhum plano de contingência. Algo que, um mês antes da grande festa no novo hangar, escapou completamente do controle e abalou todas as economias do mundo. Não era mais a hora de estreias, mas o momento de se reinventar para renascer. E, para isso, a Azul precisaria como nunca do apoio de seus Tripulantes.
Alex Malfitani, John Rodgerson, Jason Ward e Abhi Shah, em NY, no início das vendas das ações da Azul
Arquivo
Azul
Algo maior que todos nós
A Azul nunca tinha ido para tão longe. As 55 pessoas que estavam a bordo do Airbus A330-900 neo, a caminho do outro lado do mundo, sabiam que estavam fazendo história. Uma história que, embora não estivesse em seus planos, tinham orgulho de ajudar a escrever. Haviam sido convocadas para uma missão e sabiam que muita gente precisava delas.
Batizado de Azul Sem Fim, o A330 que atravessava o Atlântico era uma das duas primeiras aeronaves da nova geração do modelo Airbus que a empresa recebeu em 2019. Era simplesmente o maior e mais moderno avião da frota. Um avião do tamanho da importância da missão. Era maio de 2020 e o mundo vivia uma tensão inédita. A aeronave decolou de Viracopos no dia 21 daquele mês. Faria uma breve escala em Amsterdã, na Holanda, e seguiria rumo à Pequim, capital da China. Lá, seria carregado com um equipamento que ganhava cada vez mais importância nos últimos dois meses e podia significar a diferença entre a vida e a morte: respiradores.
Dois meses antes, a Organização Mundial da Saúde (OMS) havia declarado que o mundo vivia uma pandemia. A Covid-19 tinha se espalhado em praticamente todo o território, com surtos em vários países e regiões do globo. Hospitais de campanha eram erguidos às pressas e pessoas adoeciam numa velocidade em que nenhum sistema de saúde, por mais organizado que fosse, conseguia atender. Algo que encontrava comparação apenas na pandemia de gripe espanhola, 100 anos antes.
Os Tripulantes a bordo – desde Pilotos e mecânicos até os profissionais responsáveis pela carga e pelo handling – receberam treinamento especial e deveriam seguir regras rígidas. Quando chegassem ao destino, por exemplo, não poderiam ultrapassar uma área delimitada em volta da aeronave, utilizada para manter pessoas e equipamentos afastados e evitar incidentes. Se qualquer Tripulante saísse dessa marca, entraria em território chinês e teria de fazer quarentena por lá, antes de voltar ao Brasil. Era preciso ter muito cuidado. Além disso, não poderiam ocorrer atrasos na operação. A China exige visto para cidadãos brasileiros, algo que demoraria para ser concedido durante uma pandemia. A solução foi conseguir uma autorização diferenciada para que os Tripulantes da Azul pudessem entrar no país asiático. “Foi bem difícil. Pedimos ajuda ao governo brasileiro para conversar com a embaixada da China. Conseguimos uma autorização especial para permanecer por apenas 48 horas”, lembra Izabel Reis, diretora da Azul Cargo Express, Unidade de Negócio de logística da Azul, criada em 2009, e que enfrentaria durante a pandemia seu maior e mais importante desafio.
Cada regra dessa foi definida em uma sequência interminável de reuniões ocorridas via Teams. Participavam profissionais de praticamente todas as áreas da empresa: Frota, Malha, CCO, Manutenção, Pilotos, Cargas, Aeroportos e Segurança. Devido ao fuso horário, muitos desses encontros virtuais entravam pela madrugada. Era preciso também fazer toda a coordenação com os laboratórios e equipes médicas que receberiam esses insumos aqui no Brasil. Eram muitas exigências para que o transporte fosse feito de maneira adequada, sem colocar em risco a qualidade dos produtos. Foi alugado um contêiner especial para armazenar a carga nos porões do avião e mantê-la com temperatura controlada. “Nunca tínhamos trabalhado com esse tipo de contêiner. Tivemos de falar com um fornecedor de fora do Brasil. Ele nos deixou esse contêiner lá na China.
Comissários do voo AD9714, antes do embarque para a China
Registro feito pela Tripulante Bianca Marques Vieira para o concurso fotográfico em comemoração aos 15 anos da Azul
Negociamos tudo com os dias contados, para usar e devolver, porque havia muita demanda para esses equipamentos e não existem muitos no mundo”, explica Izabel.
Tudo saiu conforme o planejado: a carga estava pronta quando o avião pousou, ninguém saiu da área delimitada para a tripulação e todo o material foi carregado para o avião, que chegou em São Paulo no dia 26 e foi recebido pelas autoridades.
Uma segunda aeronave modelo A330-900 Neo, batizada de O Mundo é Azul, também foi enviada à China com o mesmo objetivo. No dia 29 de maio, deixou o aeroporto de Viracopos rumo à Qingdao, nas proximidades de Guagzhou, interior da China. Retornou ao Brasil dia 1º de junho trazendo 1,6 milhão de testes rápidos de Covid, fundamentais para detecção da doença e definição de estratégias para conter seu avanço.
Com a conclusão da missão, a Azul entrava definitivamente na luta contra a Covid-19. Três meses antes, o cenário era completamente diferente. A empresa havia sido eleita a melhor
companhia aérea do mundo pela TripAdvisor e apresentava ótimos resultados financeiros. Havia muito a comemorar naquele início de 2020. “Em fevereiro, eu, John e Jason fomos com nossas famílias para Bahamas, passar o Carnaval. Nos EUA, o pessoal da United já havia avisado que tudo estava fechando por lá. Achávamos que não chegaria aqui. Lembro de quando o pessoal da Comunicação me ligou para dizer que uma Cliente vinda da Itália havia desembarcado com Covid. Ali, começamos a entender o que estava acontecendo”, lembra Abhi Shah, atual presidente da Azul.
Em pouco tempo, a situação mudou completamente. Em março, na semana em que foi realizada a teleconferência para apresentação dos resultados do trimestre anterior, os executivos acompanhavam as vendas caindo assustadoramente. Diante da realidade inédita que se configurava, a festa para apresentar o novo hangar da empresa, em Campinas, para comemorar a tão sonhada premiação da TripAdvisor e anunciar a distribuição aos Tripulantes do maior bônus da sua história, foi cancelada. Não era hora para isso. “Corríamos o sério risco de quebrar, porque, além de não ter receita entrando, tínhamos receita saindo, já que tinha muita gente com passagem marcada querendo o dinheiro de volta. O pior era não saber por quanto tempo aquela situação se arrastaria”, recorda John Rodgerson, CEO da Azul. Do dia para a noite, a companhia tinha de seguir protocolos rígidos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), entre eles, ler mensagens que desestimulassem novas viagens até que a situação fosse controlada. “Imagina isso: esse é o nosso negócio e tínhamos que falar para as pessoas não voarem. Foi algo muito difícil. Mas, era uma obrigação”, lembra.
A euforia de John com os ótimos resultados recentes da companhia foi dando espaço à tristeza de ver tudo o que havia sido construído nos últimos anos correndo o risco de se acabar. Em um desses dias em que tentava entender o cenário e pensar em como salvar a empresa, John recebeu em sua sala o CFO, Alex Malfitani. Diante de um CEO preocupado e triste, Alex tentou motivá-lo. “John, olha quantas pessoas estão aqui
Arquivo Azul
para ajudar. Isso é muito maior do que a gente. Com todo mundo querendo fazer a coisa dar certo, nós conseguimos fazer qualquer coisa”.
Sim, Alex estava certo. Era preciso encarar a situação de frente. Com tanta gente disposta a se doar pela empresa, era possível ir muito mais longe. “Pensar nisso me deu forças para, em primeiro lugar, ligar para todos os fornecedores e negociar prazos”, conta John.
Esse era apenas um dos primeiros passos. Era preciso gerenciar uma série de problemas operacionais. Na sala ao lado, Abhi se reunia com o atual VP Operacional, Daniel Tkacz, para discutir o que fazer. As cidades estavam fechando e alguns Tripulantes já não conseguiam chegar para voar. “Em março, ainda estávamos com 700 voos por dia, mas isso foi caindo bruscamente e ficou inviável rodar uma operação. Depois, veio a ideia de criar uma malha essencial, com 70 voos por dia”, explica Abhi.
O mês de março terminou com as escolas fechadas, assim como as repartições públicas e boa parte do comércio. Não restava outra opção a não ser reduzir custos. A primeira medida foi mandar os Tripulantes para casa. A decisão ajudaria a mantê-los protegidos, à medida que minimizaria os riscos de contágio, mas também teria um importante papel na redução dos custos. Já não fazia mais sentido manter toda a estrutura da sede em operação. Não havia mais gente e nem demanda para aquilo tudo. Assim, sob grande tensão, os Tripulantes esvaziaram dois dos quatro andares ocupados pela Azul no Castelo Branco Office Park, em Barueri. Os profissionais recolhiam seus pertences sem saber quando, e se, voltariam.
Demitir não era uma opção. A diretoria sabia que, mais cedo ou mais tarde, as atividades seriam retomadas e sobreviveria quem tivesse capacidade de colocar o maior número de aviões nos céus mais rapidamente. Para isso, era preciso não desmobilizar equipes. Mas, como fazer isso sem dinheiro?
A resposta partiu dos diretores. “Um diretor disse que não aceitaria o bônus. Depois, outro fez o mesmo. E mais um e mais outro, até que todo o comitê executivo abriu mão. Eu dizia
que não era justo porque esse bônus era algo que já havia sido ganho, era referente a 2019. Mas, com aquele gesto eles queriam mostrar que a empresa era maior do que todos nós. Foi isso que salvou a Azul”, recorda John.
A partir daí, o que se viu foi uma total união de milhares de Tripulantes dispostos não só a preservar o melhor emprego de suas vidas, mas também garantir a sobrevivência de uma empresa que tanto significava para o Brasil. Diante da redução brusca do número de voos, a empresa criou uma campanha sugerindo aos Tripulantes que pedissem licenças não remuneradas. “Tínhamos 13.500 Tripulantes. Desses, 11.716 aderiram à iniciativa e tiraram licença para salvar a empresa. Eles abriram mão do salário para ajudar a Azul. Naquele momento, nos tornamos ainda mais uma empresa de pessoas”.
Além das licenças não remuneradas, foi criado também um plano de aposentadoria antecipada e elaborados acordos tanto de redução de jornada e salários quanto de demissão voluntária. Tudo para preservar minimamente a saúde financeira da empresa.
Hora de recuar
O gerente geral de tecnologia, Robson Costa, é um dos Tripulantes que chegou na Azul para tirar o projeto do papel, em 2008. Participou de todo o processo inicial de transformação da startup em companhia aérea. Estava acostumado a enfrentar desafios. Passou pela fusão com a Trip, pelo aumento repentino do número de aeroportos, pelo início dos voos internacionais e todos os obstáculos que esses cenários representavam. Mesmo com tanta experiência, teve de respirar fundo quando foi comunicado que boa parte dos Tripulantes passaria a trabalhar de casa. “Sem dúvida, a pandemia foi o maior desafio da minha carreira. De uma semana para outra, tivemos que decidir como liberar sistema e computadores de forma segura para os Tripulantes”, conta.
Dois meses antes da pandemia, a equipe de TI tinha recebido 100 licenças da plataforma Teams para testar. Foi feita uma campanha para estimular o uso e Tripulantes receberam treinamento.
Mas, a ideia de passar a se reunir virtualmente não foi bem recebida. Por algum motivo, que nem deu tempo de se descobrir qual era, a plataforma não estava agradando. Agora, com a decisão de praticamente todos os Tripulantes atuarem em home office, não havia outra opção. O pessoal da TI quase perdeu as contas de quantos computadores, teclados, mouses e licenças do Teams eram liberados diariamente naquele começo de pandemia. “Liberamos, mais ou menos, uns 4 mil Teams”, conta Robson.
Dispensar as pessoas para trabalhar em casa não era algo simples. Havia uma série de medidas de segurança que deveriam ser tomadas. Com computadores instalados dentro do datacenter, as atualizações ocorrem de maneira mais simples, quase automaticamente na rede local. O mesmo não aconteceria com esses computadores instalados nas casas dos Tripulantes. “Na empresa, é como se isso estivesse no mesmo andar. Uso o mesmo fio para fazer atualização de antivírus, PET (tecnologias de aprimoramento de privacidade) de segurança, atualização sistêmica. Mas, quando esse equipamento foi para a casa das pessoas, a gente tinha de fazer aquele computador conectado na internet encontrar o nosso sistema de proteção e o nosso sistema de proteção achar o computador para fazer as atualizações”, explica Robson.
A solução foi colocar todo o sistema de proteção na nuvem. Assim, os antivírus, as proteções de navegações de internet, as tecnologias de aprimoramento de privacidade de dados e identidade dos usuários passaram a ser acessadas sempre que o computador instalado na residência do Tripulante acessava a internet e se conectava a essa nuvem. Isso permitia o total monitoramento da máquina. A recriação de algumas estruturas mais complexas na casa dos Tripulantes, como o call center e o CCO, também exigiu bastante da equipe. “Tudo isso foi algo sem planejamento. Tivemos de fazer na hora”, lembra.
Além dos desafios técnicos, o pessoal de tecnologia teve de enfrentar importantes obstáculos na área de gestão de pessoas para manter a equipe completa. Era intenso o assédio de outros setores que também precisavam de profissionais de tecnologia e viviam um momento
de forte demanda, como o farmacêutico. Durante uma conversa com membros da equipe, Robson foi questionado por um Tripulante porque deveria permanecer na Azul durante a pandemia. “Todo mundo está parando de voar. Isso aqui dá medo”. Ele ouviu o argumento e respondeu: “Esse vai ser o único momento em que você vai enfrentar uma crise que o mundo inteiro está enfrentando e vai aprender como tocar uma operação desse porte, com falta de recurso, toda hora tendo que mudar uma situação. Só aqui você vai aprender isso. Amanhã, quem sabe, esse aprendizado poderá te transformar num grande executivo”. Nesse dia, Robson conseguiu vencer a discussão. Mas, a equipe chegou a perder bastante gente, até porque o convencimento era todo na base da palavra. Não havia margem para negociar aumento ou qualquer outra condição especial. Quem ficou, foi porque realmente aceitou a missão de fazer a empresa renascer.
Processo semelhante ao de enviar as pessoas para casa preservando a segurança deveria ser realizado com os aviões. À medida que as operações foram sendo canceladas, surgiu a necessidade de criar uma estratégia para recolher as aeronaves e cuidar de sua preservação. Uma das saídas encontradas foi utilizar o recémconstruído hangar, em Campinas. Aquela estrutura que estava pronta para ser inaugurada com toda a pompa e circunstância e que representaria a evolução da Azul nos últimos anos, passou, então, a sinalizar a gravidade da situação. Olhar para aquele espaço repleto de aviões dava a dimensão da crise provocada pela pandemia. Chegou a ser necessário um planejamento para que fosse possível otimizar o espaço, aumentando sua capacidade, sem comprometer a segurança e a possibilidade de realizar manobras. “Foi um período triste. Chegamos perto de 14 aeronaves paradas. No início, estacionávamos dentro do hangar, mas, quando conseguimos autorização para usar o pátio, começou a chegar uma atrás da outra. Foi um dos poucos momentos em que chorei”, lembra a gerente de Relações Aeroportuárias, Milene Konno. “Trabalhamos tanto para ter aquele hangar, para usar aquele espaço para os serviços de manutenção. Não era para estacionar aviões. Foi um revés muito grande para nós. Para piorar, não havia qualquer previsão de melhora da situação”.
John Rodgerson e Izabel Reis faziam parte do grupo restrito que continuava indo para a sede da companhia. Além dos dois, apenas uns poucos diretores e um ou outro membro de equipe com alguma missão especial e que demandava atuação presencial. Em um desses dias incomuns, marcados pela falta de rotina e de qualquer sequência lógica nos acontecimentos, John chamou Izabel Reis para uma conversa. Tinha uma missão para a diretora da Azul Cargo. “Bel, você tem 150 aeronaves para voar com carga. Você e a sua equipe é que vão ajudar a Azul a sobreviver”. As palavras do CEO da companhia foram como uma injeção de ânimo para Izabel. “Vamos fazer tudo o que pudermos para a sobrevivência dessa empresa”, ela respondeu, já imaginando todas as possibilidades que se abriam, agora, que tinha disponível a frota que, antes, era destinada para o transporte de passageiros.
Uma das primeiras medidas foi o envio dos dois A330 para a China, para trazer respiradores, testes de Covid e demais insumos para o combate da doença. Esses voos humanitários passaram a cumprir um importante papel. Cada avião trazendo produtos essenciais para o combate à pandemia era uma tentativa de trazer de volta a normalidade. O quanto antes a doença fosse eliminada, menores os estragos e maiores as chances de recuperação. Mais tarde, quando as vacinas começaram a chegar, boa parte delas foi distribuída gratuitamente, o que, com a capilaridade das rotas da Azul, era a garantia de que os insumos chegariam aos mais distantes rincões do país. “Um momento muito marcante foi quando começou a faltar oxigênio e tivemos de levar, às pressas, cilindros para o Amazonas. Havia toda uma complexidade porque esse tipo de material só pode ser transportado em aeronaves cargueiras, por questões de segurança. Foram cerca de 15 dias voando em nossos 737, para ajudar a salvar a vida aquelas pessoas”, relembra Izabel.
Mas, nem só de voos humanitários pode sobreviver uma companhia aérea. Durante a pandemia, com boa parte da população trancada em casa, o comércio passou a ser feito quase inteiramente por meio da internet. Refeições,
livros, compras de mercado, móveis, roupas, utensílios domésticos, tudo passou a ser adquirido em alguns cliques, expandindo de uma hora para outra um nicho que, até então, crescia de maneira regular no Brasil: o e-commerce.
Antes da pandemia, uma parte do transporte de cargas era feito pela Azul Cargo Express na barriga dos aviões de passageiros. Agora, com a redução brusca na quantidade de Clientes, esses aviões poderiam ser utilizados inteiramente para atender a demanda crescente por transporte de carga. Para isso, no entanto, seriam necessárias adaptações nas aeronaves. Uma delas foi transportar as cargas nos bancos, mudanças que, por questões de segurança, deviam ser autorizadas pela Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), que regula o setor e apresentou todas as normas de segurança que deveriam ser seguidas pela companhia. “Tivemos de criar umas bags, espécie de capas, para cobrir a carga e proteger os bancos. Tinha uma altura correta para a ANAC aprovar. Tínhamos de colocar uma rede para amarrar nos bancos e garantir que a carga não ia se mexer. Tínhamos que ter também uma pessoa devidamente treinada a bordo, para saber quais as necessidades específicas
Comissários do voo AD9714, no Aeroporto Internacional de Qingdao. Aeronave trouxe para o Brasil milhares de testes para diagnosticar Covid.
Registro feito pela Tripulante Bianca Marques Vieira para o concurso fotográfico em comemoração aos 15 anos da Azul
Arquivo Azul
daquele tipo de carga e saber como agir em caso de imprevistos”, lembra Angelina Rosa, gerente de cargas domésticas da Azul Cargo.
Outra mudança bastante ousada foi determinante para a expansão dos negócios da Azul Cargo a partir da pandemia: a transformação de aviões E-195 da Embraer em unidades Classe F, como são conhecidos os cargueiros. A companhia foi a primeira do mundo a fazer essa adaptação, que foi realizada toda dentro da empresa, com o apoio da ANAC e dos órgãos fiscalizadores. “Adaptamos toda a parte interna do avião: arrancamos todos os bancos, colocamos câmeras de segurança e criamos bags anti-incêndio. Só não mexemos no piso e nas portas da aeronave. O transformamos em um meio cargueiro que não leva passageiros, só carga. Hoje, temos cinco aviões desses ainda em operação”, conta Izabel. Aos poucos, a Azul Cargo ia ocupando parte do espaço deixado vago pelos voos com passageiros. Durante a crise humanitária, a unidade de carga da Azul chegou a ser responsável por mais da metade do faturamento da empresa e, ao contrário dos outros setores que paralisaram suas atividades, a Azul Cargo demandou mais profissionais. Muitos deles foram deslocados de outras áreas para atuar nos terminais de carga.
O período deixou legados importantes. O foco no e-commerce foi um deles. “Tivemos que mudar nossos processos, criar tecnologia e agilizar as entregas. Hoje, entregamos carga no interior do Amazonas em menos de dois dias. Atualmente, nosso maior nicho é o e-commerce. Representa 28% da receita da Azul Cargo. Isso foi conquistado com o apoio de todas as áreas da Azul. Todas, sem exceção”, explica Izabel.
Uma dessas unidades decisivas para o sucesso das operações foi a UniAzul, universidade corporativa da Azul, criada em 2012, que estava ganhando uma nova sede em Campinas e passava a ter o tamanho necessário para acompanhar o crescimento projetado para os próximos anos. Foi ali que foram formatados todos os treinamentos necessários para preparar os profissionais para os voos, seguindo todas as normas de segurança impostas pela ANAC. Mais do que isso, foi graças a estrutura existente na UniAzul que foi possível
manter equipes treinadas e preparadas para retomar as operações o mais rapidamente possível.
Essa era uma das principais preocupações do vice-presidente Técnico, Flavio Costa. Passado o susto inicial dos três primeiros meses de pandemia, ele entendeu que já era preciso planejar o retorno dos Pilotos, mesmo sem ter a menor noção de quando isso aconteceria. No final de maio, comunicou o comitê executivo que todos os Pilotos que estivessem voltando para suas atividades deveriam passar por sessões no simulador antes de serem escalados para algum voo. Foi questionado sobre o motivo. “Afinal de contas, eles estão parados há 30 ou 40 dias. Não é como se estivessem de férias?”, perguntaram os membros do comitê. E, Flávio, então, expôs seus argumentos: “Essas pessoas pararam de voar compulsoriamente. A maioria delas teve familiares e amigos envolvidos com Covid. Estão emocionalmente abalados. Toda a sociedade parou repentinamente. Eu vou ter que dar para o meu Piloto um refresh para ele entender como vai ser a nova vida e também para colocar os reflexos em dia novamente”, explicou Flávio e, como se já não tivesse dado argumentos suficientes, acrescentou: “Quando você está de férias, você pegou dinheiro e passeou. Na pandemia, não. A questão financeira está apertada e, além disso, tem todos os incômodos: colocar a máscara, tirar a máscara, é difícil de comer, tem que lavar a mão o tempo todo, não pode fazer isso, não pode fazer aquilo. É uma situação completamente diferente”.
O argumento foi indiscutível. Estava decidido: para voltar, tem que passar pelo simulador. Flávio e sua equipe montaram uma sessão de quatro horas para cada Tripulante. Havia muita dificuldade para isso. A companhia dispõe de cinco simuladores no total: dois de jato Embraer E1, dois de A320 e um de ATR. Depois de cada sessão, era necessário um intervalo de uma hora para higienizar todo o ambiente do simulador. Pulverizavam os produtos necessários e passavam panos com álcool até deixar tudo livre da presença do vírus. Ou, pelo menos, até que se acreditasse – baseado nas informações que se tinha até então – que o vírus não estava mais ali. “Claro que só pudemos fazer isso com todos os nossos Pilotos porque os simuladores eram nossos, o que barateou
Criada em 2009, a Azul Cargo Express oferece soluções logísticas desde encomendas expressas até envio de encomendas críticas e cargas paletizadas
um pouco. Mesmo assim, gastamos dinheiro para que eles treinassem. Alguns agradeceram o cuidado de passar pelo simulador, outros não gostaram muito, acharam perda de tempo. Mas, todos fizeram e o resultado foi que o retorno das atividades foi perfeito, nenhum problema registrado. No mercado, tivemos alguns incidentes com outras companhias aéreas, que, para mim, aconteceram porque as pessoas perderam o ritmo. A aviação é uma rotina”, explica Flávio.
Com as primeiras notícias de que a taxa de transmissão da doença estava perdendo força, a empresa começou a reestruturar a volta. Ainda eram necessários inúmeros protocolos, como a utilização de máscaras. Além disso, todo o serviço de bordo, que havia sido suspenso logo no começo da pandemia para diminuir os riscos de contaminação, continuava indisponível. Foi uma das primeiras baixas das companhias aéreas. O corte repentino da oferta de lanches, em 2020, deixou o estoque da companhia cheio. Não havia qualquer previsão de retomada. A solução, então, foi doar tudo para instituições de caridade. Desde então, apenas água era servida nos voos. E permaneceria assim por um bom tempo. Apenas em maio de 2022 é que as companhias foram autorizadas a retomar o serviço. E, quando isso aconteceu, foi preciso coordenar muito bem as ações entre a gerência de catering e os fornecedores para que fosse possível encher os estoques e atender a demanda a tempo. “Um pouco antes, eu havia recebido uma sinalização de que o serviço de bordo poderia voltar. Imediatamente, conversei com nossos parceiros de catering e fornecedores de snacks. Pedi para que retomassem a produção e eles abraçaram a ideia. Quando recebi o sinal verde, já começamos a abastecer nosso centro de distribuição e, em 30 dias, conseguimos voltar”, lembra Marcelo Ferrari, gerente de catering.
Com a retomada do serviço de bordo, a rotina já se assemelhava a do período pré-pandemia. Máscaras deixaram de ser obrigatórias, embora ainda fossem recomendadas, e, aos poucos, o pânico de 2020 foi ficando para trás. Aparentemente, tudo voltava ao que era antes. Mas, no fundo, a Azul e seus Tripulantes já não eram mais aqueles de 2020. Ninguém
era. Além dos aprendizados pessoais, a crise que aterrorizou o mundo trouxe algumas certezas. A mais importante delas era de que o modelo de negócios da Azul, que foi se adaptando aos diferentes cenários econômicos dos últimos anos, foi determinante para que a companhia sobrevivesse a uma crise dessa dimensão. O mercado também passou a entender a importância de uma frota diferenciada nesse processo de recuperação. “A gente voa desde um Cessna Grand Caravan de nove assentos até um Airbus A330 de 300 assentos. Durante a pandemia, existia demanda. Pequena, mas existia. E éramos os únicos que conseguiam colocar aeronaves menores para voar em determinadas rotas onde essa demanda existia. Com isso, retomamos mais rápido”, explica a gerente de relação com investidores, Thais Harbelli.
A maneira como a empresa administrou suas dívidas também foi fundamental. Ao renegociar o pagamento do aluguel das aeronaves, empurrando-o mais para frente, conseguiu uma certa folga no caixa para que conseguisse retomar a operação mais rapidamente. “A pandemia mostrou que nosso modelo de negócios funciona. Por mais complexo e custoso que seja administrar diferentes tipos de manutenção e fornecedores, há muita vantagem em ter uma frota como essa, principalmente em um país como o Brasil, com infraestrutura de aeroportos nem sempre muito boa, regiões mais afastadas e demanda pequena. Sem essas aeronaves menores, algumas regiões não teriam recebido vacinas e doações”, completa Thais.
A alegria da retomada foi lentamente tomando o espaço ocupado pelo medo e pela desconfiança. Já não se achava mais que tudo poderia fechar a qualquer momento. Já era possível olhar para frente, com um mínimo de previsibilidade. Isso animava os Tripulantes, dava a confiança necessária para que continuassem. Dava também a certeza de que, os que ficaram, fizeram a escolha correta. “Os profissionais que ficaram parados, quando voltaram, estavam tão engajados, com tanta gana de trabalhar, que nós viramos a empresa aérea mais pontual do mundo no ano seguinte”, conta John Rodgerson. “Nascemos em 2008, mas renascemos em 2020. Diferentemente do começo, na pandemia não tínhamos dinheiro, nenhuma receita entrando e todas essas obrigações. Quem estava aqui em 2020, também fundou a Azul”, completa.
Eram mais de 13 mil fundadores de uma empresa que retomava suas atividades a pleno vapor. Eram mais de 13 mil pessoas que apostaram no sonho de ver uma empresa aérea seguir conectando cada vez mais os quatro cantos do país. E tantas pessoas sonhando juntas e mirando o mesmo objetivo não era algo que poderia passar em branco. O desejo e o empenho de tanta gente reservavam incríveis surpresas.
Depois de um longo e tenebroso inverno
Eram os primeiros dias da retomada dos trabalhos presenciais. Os Tripulantes ainda se acostumavam à nova realidade, sem saber se colocavam máscara, com que frequência deveriam lavar as mãos ou quais os novos códigos de etiqueta pós-pandemia. Mas, existiam preocupações ainda mais complexas. Não sabiam, por exemplo, se a Azul conseguiria retomar o excelente ritmo que estava em 2019, nem como se comportaria o mercado da aviação nos meses seguintes. Eram tempos de desconfiança. Por mais animados que todos estivessem por estarem retomando o trabalho presencial, havia muita dúvida.
Foi nesse clima de expectativa que o VP técnico Flavio Costa foi abordado por um Comandante extremamente animado, nos corredores da UniAzul. Uma empolgação que o deixou desconcertado. Ao ouvir um agradecimento pelo empenho e ser parabenizado pelos bons resultados que a empresa estava conseguindo na condução da pandemia, ponderou, disse que o trabalho não era só dos executivos, mas de todos os Tripulantes. Flávio nem conseguiu esticar muito a explicação. Foi rapidamente interrompido pelo Comandante que queria lhe contar uma história. Disse que foi um dos que aderiu ao programa de licença não-remunerada. Contou que, pelo acordo, recebeu dinheiro do FGTS e também da previdência privada e, com esses recursos, que eram os únicos de que dispunha já que estava sem salário naquele período, comprou ações da Azul.
Flávio quase engasgou de susto. “Comprou o quê?”, perguntou para ter certeza.
“Ações da Azul”, confirmou o Tripulante otimista.
Flávio ficou sem palavras. Olhou para John Rodgerson e resmungou um ‘não acredito’. A reação de Flavio evidencia o quanto as demonstrações constantes de confiança dos Tripulantes ainda são capazes de espantar e emocionar os executivos. “Olha o nível de confiança. O dinheiro que ele ganhou para ter uma garantia caso perdesse o emprego ele investiu na gente. É muita confiança de que tudo daria certo. A força dessa empresa está nisso. Não está na tecnologia, no hangar ou nesse prédio. Está nas pessoas. Foram elas que fizeram a Azul acontecer”.
A animação daquele Comandante não era algo isolado. Aos poucos, Flavio e os outros membros da diretoria começaram a perceber que havia um sentimento de gratidão por se ter atravessado a pandemia. Por estar com saúde, emprego e disposição para reconstruir tudo o que foi destruído pela crise.
Aérea
Arquivo Azul
Para John, essa força indomável vinda de milhares de Tripulantes foi a principal responsável por um importante reconhecimento conquistado logo no início de 2023. Em janeiro, a companhia foi anunciada como a líder no quesito pontualidade do ranking da Cirium, uma consultoria que analisa dados globais da aviação. O resultado rendeu à Azul o título de empresa aérea mais pontual do mundo. Dos 280 mil voos da companhia analisados pela Cirium em 2022, 89% respeitaram os horários programados. No ano seguinte, a empresa manteve os excelentes resultados e ficou em segundo lugar, atrás apenas da Avianca. Embora John acredite que essa empolgação e confiança dos Tripulantes foram ingredientes essenciais para a conquista desses resultados, ele sabe que não foram os únicos.
Houve também muita organização de processos ao longo dos últimos anos, o que permitiu que se chegasse a um padrão de pontualidade mesmo com toda a complexidade da operação da Azul. Seus aviões pousam e decolam em mais de 160 aeroportos, dos maiores e mais importantes do país a terminais situados em locais remotos e com pouca infraestrutura. Além disso, a companhia não tem uma frota padronizada. Situação bem diferente das concorrentes, que pousam em cerca de um terço das cidades operadas pela Azul e usufruem das facilidades de uma frota única. “Temos seis frotas diferentes aqui, oito motores diferentes. Tudo é motor, tudo é avião, mas cada um tem as suas especificidades. É uma operação que muda para cada tipo de aeronave e temos que garantir que tudo isso funcione”, explica Flavio.
Na coordenação desse trabalho, uma estrutura tem papel fundamental. O centro de controle operacional (CCO), que fica na sede da companhia, em Alphaville, tem a função de fazer todo o planejamento de curto prazo dos voos e, principalmente, garantir que todos os setores operacionais estejam se comunicando muito bem.
Quem está à frente de toda essa engrenagem é Bianca Penelas, que chegou na Azul em fevereiro de 2009, logo no início da companhia, dois meses depois do primeiro voo. Bianca está na aviação desde 1994. Começou no call center da Varig e, depois de dois anos, foi para o CCO,
que estava sob a gestão de Flavio Costa, o atual VP técnico da Azul. Ali, foi coordenadora de voos e supervisora de execução de escala. Quando a Varig faliu, trabalhou um tempo por conta própria e foi para o CCO das barcas que fazem a travessia Rio-Niterói. Até que, em 2008, fez um processo seletivo para a Azul e foi aprovada. O salário, no entanto, era o mesmo que ganhava nas Barcas. Pior: teria de deixar a família no Rio de Janeiro e se mudar para São Paulo. Se colocasse na ponta do lápis, desistiria. Por sorte – dela e da Azul – ela não fez isso. Ou, se fez, levou em conta outra variável tão ou até mais importante. “Sempre fui apaixonada por aviação. Era a chance de voltar. Aceitei”, lembra.
Começou como controladora de voos, foi líder da coordenação de voos, gerente de turno, gerente da coordenação de voos, gerente geral e, hoje, é diretora do CCO e a responsável por tudo o que acontece na operação. Comanda cerca de 300 pessoas diretamente. Esse número salta para 450 quando falamos dos comandados indiretamente. Isso porque há muitas equipes que não estão sob a gestão de Bianca, mas trabalham ali no CCO. É importante que fiquem fisicamente juntas para aprimorar a comunicação. Profissionais da engenharia de operações, manutenção, carga, aeroportos, membros do time que cuida do administrativo de aeronautas e integrantes da área de inteligência de dados. “Essa complexidade da operação é um diferencial que exige da gente uma capacidade de reação muito rápida a qualquer contingência. Temos de estar muito juntos para dar tempo de trocarmos informações com rapidez”, explica Bianca.
O CCO tem algumas frentes de atuação. Uma delas é a gestão de cada voo realizado pela empresa. É o CCO que define o plano de voo, a rota, a quantidade de combustível e outras demandas extraordinárias, como a necessidade de alternar por causa da meteorologia. Tudo isso é planejado com cerca de seis horas de antecedência.
Há também a preocupação diária com a malha, atividade realizada em conjunto com a equipe de manutenção que também está instalada no CCO. Todas as manutenções previstas para cada aeronave são coordenadas por esses profissionais.
“Imagina que um avião está escalado para fazer cinco etapas em um dia e ele quebra. Quando isso acontece, temos de desmontar tudo o que está planejado e remontar novamente. É preciso escalar Tripulante reserva, utilizar outro avião, cancelar outros voos para poder atender esse e, em alguns casos, levar material de Campinas para consertar o avião quebrado. Temos uma logística para levar peças e mecânicos para lugares mais remotos. Para fazer isso com mais rapidez, usamos dois aviões menores, o Pilatus”, detalha o VP operacional, Daniel Tkacz.
Outro aspecto importante sob gestão do CCO é a escala dos Tripulantes que vão operar esses aviões. É ali, no CCO de Alphaville, que se cuida de cada detalhe que envolve, por exemplo, transporte e estadia desses profissionais. “O CCO garante a execução do plano da empresa. Garante a execução da malha que foi pensada estrategicamente pela diretoria”, define Tkacz, que comandou o CCO por quase três anos,
depois de um longo período inicial na Malha. “A primeira área a saber de tudo é o CCO. As salas de crise são abertas ali, como na época da greve dos caminhoneiros, em 2018”.
Embora defina o CCO como o grande maestro da operação e o responsável por cobrar melhorias de todas as áreas, Tkacz afirma que o mérito do prêmio de empresa mais pontual do mundo dado pela Cirium não é apenas do Centro de Controle. “Não existe uma área responsável pela pontualidade. É uma obrigação de todo mundo. A pontualidade é um pilar da companhia, observado por todos os Tripulantes. A operação na Azul é responsabilidade de todas as áreas”, afirma.
A tecnologia tem sido importante aliada na busca por reduzir o tempo perdido nos processos em solo e que provocam a maioria dos atrasos. Em Viracopos, câmeras com inteligência artificial já trabalham para identificar procedimentos que podem ser feitos com mais agilidade, um
Cerimônia de celebração pela conquista da Azul como Companhia Aérea Mais Pontual do Mundo de 2022, pela Cirium
Crédito: Guilherme Ramos
monitoramento que era feito manualmente até bem pouco tempo atrás. Desde setembro de 2022, esses equipamentos reconhecem processos como embarque e desembarque de passageiros e Tripulantes, reabastecimento da aeronave, limpeza e catering, e medem o tempo de movimento para corrigir e melhorar o processo. Cada frame é analisado pela inteligência artificial e os técnicos, além de poderem se dedicar a outras atividades, recebem relatórios muito mais precisos que os produzidos anteriormente.
Muita coisa mudou na Azul nesses 15 anos, principalmente no quesito tecnologia. A descentralização dos sistemas é uma dessas evoluções marcantes. Ambientes que, antes, eram voltados para os datacenters, hoje, estão praticamente todos distribuídos na nuvem. “Havia uma limitação de crescimento nos datacenters. Quando você leva seus dados para uma estrutura compartilhada na nuvem, com uma empresa grande, você muda completamente a maneira como se trabalha. Nosso papel, agora, é mais o de monitorar nossos parceiros”, conta o gerente geral de tecnologia, Robson Costa.
A inteligência artificial usada nas câmeras de Viracopos deve trazer ainda muito mais mudanças a curto prazo. Robson vê a possibilidade de desenvolvimento de agentes de viagens virtuais que, baseados no histórico de consumo do Cliente, conhecerão seus hotéis e passeios preferidos e até a poltrona do avião em que ele gosta de viajar. “Teremos também robôs que responderão aos Clientes perguntas feitas em qualquer língua. Ele receberá a pergunta, identificará o idioma, buscará a resposta na base de dados e traduzirá imediatamente”, revela.
Toda essa evolução esperada tem uma importante função: aproximar ainda mais a empresa dos Clientes e Tripulantes. “A IA nos dará informações preciosas que nos permitirão conhecer mais os nossos Clientes. Além disso, a tecnologia sempre estará nas mãos dos seres humanos. Ou seja, não queremos nos afastar dessa interação, mas estar cada vez mais conectados. Sabemos que conexão fideliza os Clientes”, afirma John Rodgerson.
John acredita tanto nessa conexão com as
pessoas que faz o possível para ampliá-la sempre que pode. Toda semana, reserva um tempo para entrar em contato com alguns Tripulantes. Dois ou três, não mais que isso. Um número restrito que o permita ter um diálogo tranquilo, verdadeiro e capaz de criar laços importantes. “Somos uma empresa de pessoas e não uma empresa aérea. Uma das únicas companhias desse setor em todo o mundo que não recebeu aporte do governo e nem entrou em recuperação judicial. Só conseguimos isso graças a esses Tripulantes e a essa nossa cultura. Todos nós abraçamos esse sonho”.
Os desafios atuais
A nova realidade pós-pandemia trouxe um cenário bastante desafiador. Todo o setor da aviação vem sofrendo, sobretudo, com a complexa cadeia global de suprimentos. Com a crise sanitária, todas as empresas pararam e uma boa parte delas não teve fôlego para retomar as atividades quando foi necessário. Hoje, com a quebra dessa cadeia de fornecedores, faltam desde peças para a confecção de motores até material para a fabricação de poltronas. “Aeronaves e motores são fabricados com peças que vêm de diferentes partes do mundo. O parafuso vem de uma empresa, o rebite de outra. Todas homologadas, mas com uma capacidade de produção pequena e específica”, explica Flavio Costa. “A situação ainda deve levar um tempo para voltar à normalidade com o padrão de qualidade antigo. A entrega de um avião hoje é uma dúvida”, explica.
Paralelamente, a companhia também vem trabalhando para retomar a normalidade e se posicionar para uma nova curva de crescimento. Quando se olha a operação, é possível afirmar que a pandemia já ficou para trás. “Estamos maiores do que éramos. Neste ano, teremos praticamente o dobro de receita do que tínhamos em 2019, estamos gerando muito mais Ebitda e voamos para muito mais cidades que antes da pandemia. Hoje, já falamos bem menos daquele período e já conseguimos olhar muito mais para as oportunidades à frente”, explica o CFO, Alex Malfitani. “Mas, a pandemia deixou a gente muito machucado, principalmente no nosso balanço. Estamos no caminho certo, mas vai demorar alguns anos para esses hematomas sumirem”.
Depois
Registro feito pelo Tripulante Erick Evandrus Bueno Silva para o concurso fotográfico em comemoração aos 15 anos da Azul.
O principal desses hematomas a que Alex se refere é a alavancagem. A Azul saiu da pandemia muito mais endividada e, agora, busca reverter a situação. O plano, segundo a Diretora de Relações com Investidores, Thais Haberli, é desalavancar o balanço liquidando as dívidas mais caras, já que a reestruturação da companhia foi feita em um momento em que o custo de capital estava muito elevado. “A estratégia, daqui para frente, é voltar a gerar caixa e liquidar dívidas caras, seja via amortização, seja por meio de substituição das mais caras por dívidas mais baratas. A restruturação já foi feita, agora, precisamos retomar o plano de crescimento e a nossa geração de caixa”, explica Thais.
Uma importante etapa desse plano ocorreu em outubro de 2024, com a conclusão da negociação entre a Azul e seus arrendadores
de aeronaves e com o anúncio de um acordo com os detentores de títulos existentes. Com o sucesso dessas negociações, a companhia abriu caminho para o recebimento de um financiamento total de R$ 2,7 bilhões e deu mais um passo importante no processo de fortalecimento de seu balanço e caixa. Até o fim de 2024, a Azul renegociou 98% de suas obrigações com arrendadores de aeronaves e fabricantes de equipamentos originais (OEMs), em um total de cerca de R$ 3 bilhões em acordos, resultando em significativa redução de sua dívida, e garantiu também uma adicional redução potencial de seu passivo em mais de R$ 4,4 bilhões.
Apesar de algumas fragilidades, como a forte exposição ao dólar e ao preço do petróleo, a companhia segue ocupando uma posição privilegiada no mercado, principalmente por
Registro do Airbus A330 PR-AIU, na aproximação final da pista 36 do Aeroporto Internacional do Recife (PE), feito pelo fotógrafo Carlos Eduardo Azevedo de Lima para o Concurso Fotográfico
ter uma frota diversificada e conseguir voar para destinos que nenhuma outra companhia voa. Em cerca de 80% das rotas operadas pela Azul não há concorrentes. Além disso, boa parte dessas regiões está em áreas que têm exercido forte protagonismo econômico, como é o caso do Centro-Oeste, mais importante polo do agronegócio brasileiro.
O alto potencial de crescimento do número de Clientes é outro aspecto positivo. Desde a entrada da Azul no mercado, no fim de 2008, até 2019, o mercado brasileiro dobrou e a empresa foi responsável, sozinha, por metade desse crescimento. Ainda assim, há muita gente no Brasil que não tem o costume de voar e que deve passar a fazer isso nos próximos anos. “O fato de saber que a gente vai crescer muito sem precisar tirar Clientes dos outros é algo muito bem-visto pelos investidores. Essa é a maneira mais fácil e mais sólida de crescer”, conta Alex.
Todo esse crescimento previsto está sustentado por números bem robustos. A Azul recebeu, até o fim de 2024, mais oito novas aeronaves, o que elevou em 15% sua oferta de assentos. Somente na temporada de verão, serão 43,3 mil voos, incluindo destinos internacionais.
Aliás, esse processo de internacionalização da empresa tem sido um importante movimento no período pós-pandemia. Em 2023, a criação de três rotas ajudou a fortalecer esse processo. Além da consolidação da operação da companhia para Lisboa, destino muito querido dos brasileiros, em abril, a companhia passou a voar para Paris. Foram mais de 300 voos e cerca de 190 mil Clientes no primeiro ano de operação. Uma demanda em constante crescimento que fez com que a companhia terminasse 2024 com sete voos semanais para o Aeroporto de Orly, na capital francesa. Dois meses depois, outra rota foi aberta: Curaçao, ilha caribenha que, assim como todas as rotas operadas pela Azul, é destino de muitos brasileiros. O sucesso da iniciativa também fica nítido nos números: nos 12 primeiros meses, foram 167 voos que transportaram 22 mil Clientes.
A companhia vem apostando também na diversificação dos negócios. Com um cenário tão desafiador, ter públicos diferentes ajuda a distribuir melhor o risco. Assim, ainda que a demanda do principal negócio da companhia seja reduzida repentinamente, haverá receita das outras unidades. Uma delas é a Azul Fidelidade, que até o início do ano se chamava Tudo Azul. Criado em 2009, o programa de fidelidade da companhia tem gerado uma receita recorrente que cumpre um papel importante. “A gente morre de inveja das empresas de distribuição de energia, porque ninguém para de consumir energia. O nosso negócio não é assim. Se vier uma recessão, nossa receita pode cair bastante. Mas, com o Azul Fidelidade e produtos como o cartão de crédito Azul Itaú, mesmo que o Cliente não esteja voando, ele vai consumir, pagando mercado, restaurante, posto de gasolina. Isso traz receita”, explica Alex. O programa já está perto dos 18 milhões de membros e também vem crescendo bastante depois da pandemia. Somente no 1º semestre de 2024, a companhia registrou o recorde de 2,7 milhões de passagens emitidas, mais que o dobro do registrado antes da Covid. O programa também se fortalece por meio das parcerias que permitem aos Clientes o resgate de produtos e serviços.
A Azul Viagens é outra unidade que tem função relevante nessa estratégia. A operadora de turismo da Azul oferece pacotes e roteiros variados e conta com mais de 100 lojas no Brasil e no exterior. Criada em 2010, a unidade vem registrando forte avanço pós-pandemia. Entre 2021 e 2023, teve crescimento médio de 73%. Para seguir ampliando o acesso a destinos em alta demanda, a Azul Viagens vem consolidando rotas estratégicas e, com isso, permitindo tarifas mais competitivas e atraentes. Destinos como Ilhéus (BA), Jericoacoara (CE), Bonito (MS) e Corumbá (MS) foram reforçados com ofertas exclusivas de pacotes turísticos. A unidade está diversificando também seu portfólio de destinos internacionais e produtos temáticos. Destinos como Bariloche, Nova York e Chile registraram crescimento de demanda de 1.836%, 233% e 262%, respectivamente. Outros destaques da
unidade em 2024 foram as vendas de resorts (alta de 85%, com um ticket médio 77% superior ao ticket geral) e o segmento cruzeiros (alta de 86%, com um ticket médio 140% acima da média).
Em 2020, uma nova unidade passou a integrar o time: a Azul Conecta. Originada a partir da compra da TwoFlex Aviação Inteligente, fundada em 2013, a unidade tem o objetivo de fortalecer a malha aérea da Azul, conectando cidades do interior do país aos principais hubs da empresa. A unidade possui 27 aviões modelo Cessna Grand Caravan (capacidade para nove passageiros), três deles dedicados exclusivamente ao transporte de cargas.
Nesses quatro anos, foram cerca de 290 mil Clientes transportados para mais de 100 destinos, sendo 52 regulares. Muitos desses Clientes, antes da Azul Conecta, tinham como única opção as viagens de barco, principalmente pela região Norte, em trajetos que levavam dias para ser concluídos. Hoje, todos os destinos atendidos pela Azul Conecta se ligam aos principais hubs da companhia, em Campinas (SP), Belo Horizonte (MG) e Recife (PE), além dos minis hubs em Manaus (AM), Curitiba (PR), Fortaleza (CE), Cuiabá (MT), Belém (PA) e outros. Em agosto de 2024, a unidade inaugurou um novo hangar em Jundiaí, no interior de São Paulo. No local, com capacidade para nove aeronaves, são realizados os serviços de manutenção das máquinas e o treinamento de Pilotos. A unidade tem se destacado também pelo uso de inteligência artificial no planejamento de manutenção dos aviões, na elaboração da escala dos Tripulantes e treinamento dos Pilotos. Desde abril de 2023, a Azul conta com uma unidade voltada ao mercado aeronáutico, que oferece serviços técnicos especializados na manutenção de aeronaves, tanto do setor civil quanto militar. Em pouco mais de um ano de operação, a Azul TecOps já obteve importantes resultados, como a celebração de um contrato com a Airbus Defense & Space para suporte técnico e logístico à Força Aérea Brasileira (FAB), envolvendo o atendimento técnico a aeronave KC-30 (A330-200). Destacam-se também serviços prestados à Clientes renomados, como a Força Aérea Francesa, a Atlas Air e a Modern Logistics. Outra importante conquista
da unidade foi a certificação da European Union Aviation Safety Agency (EASA) para realizar serviços de manutenção em aeronaves e componentes de companhias da União Europeia.
Entre as subsidiárias da companhia, a Azul Cargo Express é a mais antiga delas. Criada em 2009, totalmente voltada ao transporte de cargas, é responsável por aproximadamente 10% da receita da companhia. Sua frota é composta por cinco aeronaves cargueiras E1 classe F, dois 737-400, dois A321 e quatro ATRs quick change. “Das mais de 10 mil toneladas de carga transportadas por mês, 80% vão no porão das aeronaves e 20%, nos nossos aviões cargueiros”, explica Izabel Reis, diretora da unidade.
Boa parte disso vai para o exterior. Todo o mamão papaia consumido na Europa, por exemplo, vem do Brasil. Das aeronaves que partem para lá, pelo menos 50% delas carregam mamão e manga. Mas, não é só. Todo tipo de frutas exóticas, muitas delas desconhecidas até dos brasileiros, é embarcada na frota da Azul Cargo. “De vez em quando, recebo uma caixa com uma frutinha diferente que a gente está exportando. É impressionante a diversidade da produção brasileira”, conta Izabel. Ocorre o caminho inverso também: no Velho Continente, representantes da unidade vendem o serviço da Cargo por toda a região e transportam produtos por via terrestre até Paris ou Lisboa, de onde partem de avião até o Brasil.
Para os EUA, o destaque é o transporte de atum, que sai do Nordeste e chega a Fort Lauderdale em até 24 horas. “O produtor vai para alto mar e, enquanto pesca, já vai deixando tudo pronto para ser embarcado. No aeroporto, há um controle de qualidade, que analisa cor, cheiro e tamanho”.
Para a Ásia, é enviado um produto chamado grude, feito com a bexiga natatória de peixes, bastante utilizado na indústria alimentícia e de cosméticos. O grude sai de Belém e vai para São Paulo, de onde parte para a Europa e, de lá, segue para a Ásia. “Estamos começando a transportar ovos férteis para a América Central. Ele sai de Fortaleza, passa por Manaus e é exportado. Transportamos de tudo”, conta Izabel, orgulhosa.
Depois de um longo
Registro feito por Yan de Sousa Magna para o concurso fotográfico em comemoração aos 15 anos da Azul
Aeronave Cessna Gran Caravan da Azul Conecta pintada em homenagem ao Pantanal brasileiro
Crédito: Guilherme Ramos
Aeronave Embraer 195 PR-AYV, batizado como “Azul Brasil”, faz parte da frota especial pintada com a bandeira do Brasil
Arquivo Azul
O sonho de David e daquele grupo de fundadores que compraram a ideia de uma empresa aérea brasileira está mais vivo do que nunca. Hoje, há outros objetivos, outras urgências, mas a essência de uma empresa informal, ágil, inovadora e focada nas pessoas permanece. Alex Malfitani acredita que isso não se perderá, independentemente do tamanho que a empresa tenha daqui para frente. “Não precisamos fazer escolhas. Lembro quando estávamos em terceiro lugar no índice de pontualidade no Brasil e queríamos ser os primeiros. Tinha gente que falava que era impossível porque nossa malha, com muitos tipos de aeronaves diferentes, é muito mais complexa. Mas, não precisávamos escolher entre ter uma malha abrangente ou ter pontualidade. Dava para ter os dois. Tanto dava, que conseguimos. A gente acredita que dá para ser uma empresa com R$ 22 bilhões de faturamento, 16 mil Tripulantes, listada em Nova York, listada em São Paulo, com processos, controle, certificações e, ao mesmo tempo, ser ágil, informal e próxima das pessoas. Você não precisa sacrificar a cultura”, analisa o CFO.
O presidente Abhi Shah vai pelo mesmo caminho. Ele acredita que o fato de a Azul ser uma empresa cada vez mais brasileira é, hoje, uma de suas principais qualidades. “Seremos maiores e não perderemos nossa essência.
Teremos mais voos internacionais, um dia, quem sabe, teremos voos para Nova York, Santiago, Madrid. Mas, cada uma delas é só mais uma cidade. O importante é que nossa brasilidade está cada vez mais forte”, acredita.
Alex e Abhi não são os únicos empolgados com os próximos anos da Azul. David Neeleman e John Rodgerson continuam projetando
um futuro promissor. Reconhecem o espaço ocupado hoje pela companhia, mas estão sempre imaginando o que pode ser ainda melhor. “Hoje, 25% de nossa receita não é bilhete. É o que vem além do bilhete: carga, Azul Viagens, Azul Fidelidade. Vamos continuar fazendo o que os outros não estão fazendo. Vamos continuar a fazer coisas incríveis”, garante David.
A julgar pelo que foi feito até aqui, é possível acreditar em novas agradáveis surpresas imaginadas por essas pessoas. Imaginar e realizar é uma especialidade do time da Azul. Um dia, conectar o Brasil foi apenas um sonho. Assim como voar internacionalmente, ter ações negociadas na bolsa, ser a melhor e a mais pontual companhia aérea do mundo. “A Azul é muito importante para o Brasil e vai seguir conectando as pessoas. Conectamos o engenheiro do ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica), que está se formando e depende da Azul porque ele vai trabalhar na Embraer, às pessoas que vendem queijo nas praias do Nordeste e também dependem da Azul para levar os turistas para lá. Sem a Azul voando, nem o engenheiro e nem o vendedor de queijo teriam emprego. Esses vários brasis são conectados pela Azul”, analisa John.
Toda essa conexão era um desejo há pouco mais de 15 anos, quando a Azul era apenas um Power Point e David Neeleman sonhava em voltar a sua terra natal para transformar o mercado da aviação e agradecer ao país por tudo o que aprendeu em sua juventude. Uma história que você já conhece bem. Que começou lá atrás, com uma grande ideia na cabeça e a promessa de US$ 200 milhões em investimentos.
Em 2023 a Azul anunciou a duplicação das operações de pousos e decolagens no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo (SP)
A UniAzul, Universidade Corporativa da Azul é responsável pela formação e capacitação de profissionais.
Inaugurado em 2020, o Hangar de Manutenção da Azul em Campinas possui 35 mil m² de área construída em um terreno de 94 mil m²
Snacks que se tornaram uma marca registrada da Azul
Festa em comemoração aos 15 anos da Azul realizada em dezembro de 2023
Arquivo Azul
Panda Beting
Arquivo Azul
Arquivo Azul
Tripulantes de diferentes áreas da Azul com o Airbus A350 ao fundo, aeronave que fez parte da frota da companhia até o início de 2024
A UniAzul, Universidade Corporativa da Azul é responsável pela formação e capacitação de profissionais.
A Frota Mais Mágica do Mundo fruto da parceria firmada em 2021 entre a Azul e a Walt Disney World Resort
Guilherme Ramos / Azul
Guilherme Ramos / Azul
Guilherme Ramos / Azul
Guilherme Ramos / Azul
Arquivo Azul
John Rodgerson, CEO da Azul Linhas Aéreas e um dos fundadores da Companhia em 2008
Diretoria da Azul reunida em celebração dos 15 anos da Companhia
Tripulação da Azul preparada para o voo inaugural de Campinas para Orly, em Paris, em abril de 2023
Guilherme Ramos / Azul
Arquivo Azul
“A Azul é o nosso grande Cliente. Tem sido muito importante para nos ajudar a mostrar para linhas aéreas de outros países o quão bom e eficiente é o nosso avião e como ele pode colaborar para uma linha aérea ser lucrativa”
Francisco Gomes Neto, CEO da Embraer
“A Copa do Mundo foi muito marcante para mim. Muita demanda rápida. Lembro que trabalhamos três semanas seguidas para ter um plano e ele mudava o tempo inteiro, porque, conforme as seleções avançavam no torneio, tudo precisa ser refeito da noite pro dia, porque os torcedores queriam acompanhar os times. Mudávamos avião, tripulação, foi muito trabalho”
Daniel Tkacz, vice-presidente de operações da Azul
“Logo no início da companhia, eu conversava com o David no aeroporto quando passou por trás da gente uma senhorinha cheia de malas, com jeito de quem não estava acostumada a viajar. Quando vi a cena, me virei para ajudar e o David, em poucos segundos, já tinha ajudado ela com as malas, arrumado tudo e estava levando ela pra área de embarque. Éramos o fundador e o presidente da empresa. Foi aí que eu entendi onde é que a barra de exigência ia ficar. Sempre exigimos muito e, por isso, nossos retornos também sempre foram muito altos”
Pedro Janot, primeiro presidente da Azul
“Ninguém sabia muito bem o que ia acontecer. Ninguém imaginava que a Azul chegaria nesse tamanho, com esse impacto no mercado. Nosso plano inicial foi bem diferente do que temos hoje”
Abhi Shah, presidente da Azul
“Qual o segredo da Azul? A cultura. David sempre quis fazer essa cultura. Sempre quis focar no Tripulante. Nossa cultura não está somente escrita nas paredes, mas está viva nos Tripulantes”
Jason Ward, vice-presidente de Pessoas da Azul
“Quando a gente saiu do imóvel da Surubiju marcamos uma reunião para discutir detalhes da rescisão. Eu fui representando a Azul. O Gugu estava presente nessa reunião. Ele estava muito bravo porque tinham sumido alguns itens de coleção pessoal, quadros, tapete, coisas compradas em viagens pelo mundo e que estavam no imóvel quando alugamos. Ele começou a contar a história de cada item que tinha no prédio e que, ao longo das reformas, foram sumindo. Essa reunião foi terrível. Internamente, eu estava achando um negócio muito interessante porque estava numa reunião com o Gugu – nunca pensei que estaria numa reunião com o Gugu – mas foi tudo muito tenso. Quando voltei pra Azul, fui procurar as coisas. Não achei quase nada, só um tapete que, parece, foi cortado no meio e encontrado cobrindo um caminhão. Como eu ia falar isso pra eles? A solução que encontramos foi eles darem um valor para cobrir esses prejuízos e nós pagamos”
Cesar Grandolfo, gerente de Relações Institucionais da Azul
Registro feito pela Cliente Daniela Cunha para o Concurso Fotográfico em comemoração aos 15 anos da Azul
Memórias com a Azul
Equipe de Produção
John Rodgerson CEO
Abhi Shah Presidente
Alexandre Malfitani CFO
Daniel Tkacz Vice-Presidente Operacional
Flavio Costa Vice-Presidente Técnico
Jason Ward Vice-Presidente de Pessoas, Clientes, Marketing e ESG
Fábio Campos Diretor Institucional
Felipe Zboril Gerente de Comunicação
Leila Coelho, Rita Midori e Rodrigo Moraes Coordenação de Comunicação Institucional
Alexandre Bertani, Alzira Duarte, Aurora Vezzelli, Caio Bueno, Danilo Alves, Guilherme Ramos, Panda Beting, Pedro Janot e Rodrigo Moraes Curadoria de conteúdo e de imagens
Bianca Neves Diretora
Maykon Souza Redação e entrevistas
Thiago Barreto Projeto Gráfico e Diagramação
Registro de voo a caminho de Maceió feito pelo Tripulante Guilherme Paixão Vilares para o Concurso Fotográfico de 15 anos da Azul