O Som social

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“profundos” 103 e também verdadeiros, do nosso passado, sobretudo aquilo que de notável, de útil ou, enfim, de belo, foi, durante esses longos tempos — diríamos, mais penumbrosos 104 do que obscuros —, aqui conhecido, pensado, criado ou reproduzido, por uma intelligentsia viva, bem sustida — quase sempre a título de interesses políticos, por grossos ativos financeiros — e capaz de realizar, senão nos campos científicos e tecnológicos, ao menos, no das tradicionais artes — ainda que já tidas como “supérfluas”105 —, façanhas de categoria ou de valor similar àquelas logradas, quer na “civilização europeia”, quer em qual103  Nesse sentido, adotamos o pensamento de Georges Gurvitch (18941965): “Lorsqu’on parle des niveaux plus profonds et plus superficiels de la réalité sociale, il faut libérer ces termes de tout caractère estimatif (...) Les couches plus profondes de la réalité sociale sont donc simplement celles qui exigent pour les saisir et les étudier scientifiquement un effort accru” (GURVITCH, Georges. La vocation actuelle de la sociologie. Paris: Presses Universitaires de France, 1957, v. 2, p. 66). 104  Nesse sentido, vale aqui aproveitarmos as profícuas palavras do Cônego Fernandes Pinheiro (1825-1876), publicadas na Revista do IHGB: “Reconhecemos que na penumbra do regime colonial havia homens que trabalhavam afincadamente para um resultado...” (PINHEIRO, J. C. Fernandes. Os últimos vice-reis do Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, t. 28, parte 2, p. 266, 1865). 105  Fazendo comentários ao reinado de Dom João v , em sua Histoire du Brésil, Alphonse Beauchamp não deixa de criticar — olhando, evidentemente, para o futuro — a maneira “supérflua” com a qual o monarca português consumiu as “riquezas imensas” que as minas brasileiras produziram, ao longo do Século xviii : “Jean v (...) séduit par l’air de grandeur et d’opulence que Louis xiv avait imprimé à son règne et à son siècle, il encouragea les arts superflus et finit par donner un faux éclat à son trône” (BEAUCHAMP, Alphonse de. Histoire du Brésil, depuis sa découverte en 1500 jusqu’en 1810. Paris: A. Eymery, 1815, v. 3, p. 440-441). Em resposta curiosa a tal conceituação, o tradutor desta mesma obra para o português, Pedro Ciríaco da Silva, não deixou de anotar, com visão oposta — ou seja, para o passado —, a seguinte réplica: “Não será fácil perceber o que o autor entende aqui por artes supérfluas em um Estado político. Se entende, como é de supor, da pintura, da escultura, da arquitetura, da música, as quais este soberano animou e fez reviver no seu reinado; como se atreve a escrever que deu ele um falso esplendor ao seu trono, se estas foram as nobres artes que tanto subiram ao seu maior auge os gregos, de quem as receberam os romanos nos tempos antigos, e que que fizeram consistir uma das coisas que muito contribuiu para a sua glória? Esta verdade reconheceram as modernas nações empenhando-se, as que mais se distinguiram, em as promover depois da restauração das letras, e em as aumentar. Donde se deduz claramente, que se elas enobrecem, aperfeiçoam e fazem florescer os Estados dando-lhes lustre entre as outras, quais serão as que se podem ter por supérfluas?” (Idem. História do Brasil desde seu descobrimento em 1500 até 1810, vertida de francês, e acrescentada de muitas notas do tradutor. Lisboa: Tip. de J. B. Morando, 1818, v. 6, p. 182-183).

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