Revista Shemá 5780/2019

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Revista da Sociedade Israelita Brasileira de Cultura e Beneficência Número 2 • 2019-5780

SHANÁ TOVÁ! FELIZ 5780!

GOVERNADOR FALA

A BÍBLIA COMO FORMA

“O DEUS

SOBRE DIVERSIDADE

DE DIÁLOGO COM DEUS

ENFORCADO”


Sumário EDITORIAL 3 HOMENAGEM 5 DEMOCRACIA COM RESPEITO VALORIZE O FRACASSO!

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Brasileira de Cultura e

A GARANTIA CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS À POPULAÇÃO LGBTI

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Beneficência (SIBRA)

JUDEUS ACIMA DA RIVALIDADE GRE-NAL

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Número 2, 2019-5780

GENOCÍDIOS E A VITÓRIA DA PULSÃO DA MORTE

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QUANDO A TECNOLOGIA DÁ ACESSO À ARTE

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RESPEITO ÀS DIFERENÇAS NA ESSÊNCIA JUDAICA

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Léo Gerchmann e

O NOSSO JEITO DE SER

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Guershon Kwasniewski

O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO

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ISRAEL E DIÁSPORA CONECTADAS NA REFORMA

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COLÔNIA DE FÉRIAS DE VERÃO

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O DEUS ENFORCADO

44

O OTIMISMO COMO SOLUÇÃO

50

SHEMÁ Revista da Sociedade Israelita

Conselho editorial Daniel Weiss Vilhordo,

Edição Léo Gerchmann [leogerchmann@gmail.com] Design gráfico Carolina Fillmann [designdemaria.com.br] Tradução dos artigos em língua estrangeira Hedy Lorraine Hoffmann Foto de capa SIBRA, em Porto Alegre [Foto: Guershon Kwasniewski] Sociedade Israelita Brasileira de Cultura e Beneficência Rua Mariante, 772, bairro Rio Branco Porto Alegre-RS, Brasil 90430-180 Fone: (51) 3331-8133 E-mail: secretariasibra@gmail.com Site: www.sibra.org.br sinagogasibra @sibrasinagoga SibraPoa 2

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Editorial O Povo Judeu é um mosaico composto por elementos distintos. Há os ashkenazim, os sefaradim, os mizrachim. A diáspora e Israel. Os reformistas, os conservadores, os ortodoxos, os ultra-ortodoxos. Os seculares, os religiosos e os nem tanto. Os de direita, os de esquerda e os de centro. Os que comem o guefilte fish salgado, os que comem o guefilte fish adocicado, e os que não podem ver guefilte fish. Mesmo no deserto, sob a liderança de Moisés, a narrativa bíblica menciona diversos episódios de grupos rebeldes, incluídos os desejosos do retorno ao Egito. A pluralidade e a diversidade com maior ou menor intensidade acompanham o povo de Israel desde sempre, como nas doze tribos, na figura da mulher etíope de Moisés, na história de Naomi e Ruth, na transição de reinado de Saul para Davi, nos Reinos do Norte (Israel) e do Sul (Judá) para citar alguns. Até mesmo os versículos da Torá possuem interpretações distintas segundo os comentadores antigos e atuais. O apogeu pós-bíblico dessa pluralidade ficou registrado no Talmud, principalmente na disputa entre as casas de estudo dos sábios Hilel e Shamai. Na maior parte das vezes, vence Hilel, por ser mais modesto, mais tolerante e por citar a casa adversária antes, em seus comentários. E se existem muitas perguntas para fatos do cotidiano, é verdade também que existem grandes tragédias sem respostas, que seguem desafiando a razão até hoje. O judaísmo moderno e contemporâneo de qualquer linha majoritária é descendente direto do judaísmo talmúdico, também chamado de rabínico. A SIBRA pertence à família do judaísmo reformista, sendo filiada à World Union for Progressive Judaism (WUPJ) e à União do Judaísmo Reformista da América Latina. Como tal, é uma instituição que trata como prioritários os temas de justiça, comunidade, diálogo, inclusão, diversidade e igualdade. O futuro comunitário passa por compreender como cada judeu se encaixa da melhor forma na vida judaica coletiva de hoje e de amanhã, que é um processo muito mais complexo do que um mero convívio social. Quanto de judaísmo há para aprender e para experimentar? Como fazer uma mensagem milenar ter relevância em 2019-2020? É fundamental preservar a memória e os legados. É reconfortante provar sabores conhecidos, ouvir melodias que nos comovem e praticar muitas tradições, mas é preciso também um esforço individual e conjunto para dar novos significados ao que é realizado, acrescentar objetivos na agenda e tornar sempre as novas gerações parte dessa caminhada. Que as mensagens contidas na nova edição da Revista Shemá possam contribuir para essas reflexões, a fim de que possamos sempre ousar sem ter medo, mergulhar em experiências que nos tragam significado, aproximar, incluir, reverenciar a pluralidade, crescer como indivíduos e, como comunidade, ter orgulho de quem somos e deixar a rivalidade nos gramados do estádio de futebol. L’shaná Tová!

Daniel Weiss Vilhordo Presidente da SIBRA

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Atividades da SIBRA A sinagoga SIBRA, consciente de seu papel comunitário em Porto Alegre, oferece os seguintes serviços para seus associados e amigos:

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Homenagem

Curtis Henry Stanton Z”L

(Hamburgo, 21 de agosto de 1929 – Porto Alegre, 1o de agosto de 2019)

SOBREVIVENTE DO HOLOCAUSTO, COMEÇOU A FREQUENTAR A SIBRA EM 1959 E, A PARTIR DE 1963, FOI ACOMPANHADO DE SUA ESPOSA DANIELA. ALÉM DE SEU LEGADO FAMILIAR, SEMPRE TROUXE ÀS NOVAS GERAÇÕES DEPOIMENTOS MARCANTES E MENSAGENS REVELADORAS.

Alav hashalom.

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Parceiros

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EX ERC Í C I O DA PLU RALIDADE

Democracia com respeito GOVERNADOR GAÚCHO, EM TEXTO EXCLUSIVO PARA A REVISTA, FALA SOBRE A IMPORTÂNCIA DA DIVERSIDADE NA POLÍTICA E NA VIDA E DESEJA SHANÁ TOVÁ PARA A COMUNIDADE JUDAICA POR EDUARDO LEITE Governador do Rio Grande do Sul

Entre as virtudes de uma democracia saudável, está o potencial que o sistema embute de conciliação entre diferenças e opostos. Tendo como ponto de partida a disputa pública de ideias e ações, o jogo democrático oferece a oportunidade de negociação e composição permanentes, além da possibilidade de agir, responsavelmente, em benefício da totalidade dos representados depois de encerradas as fases legítimas e produtivas de embate. Claro que esse potencial não é automático: requer maturidade e esclarecimento constantes. Vivo essa situação privilegiada e desafiadora como governador de todos os gaúchos e posso garantir: tenho aprendido muito. O cargo que exerço, por conta da generosidade da democracia, cobra uma enorme predisposição ao entendimento. Mesmo que julgue ter me preparado para atuar politicamente, administrar o Rio Grande do Sul multiplica a exigência por negociação, ainda mais quando se governa com o intuito de transformar um Estado fragilizado por percalços fiscais crônicos. Agentes públicos precisam desenvolver essa habilidade de ouvir e ceder, sobretudo em um ambiente político e social ideologicamente radicalizado. Diante da saturação e da irracionalidade com que grupos adversários disputam ideias e certezas, notadamente nos ambientes digitais que se tornam até mesmo hostis, é indispensável que os detentores de mandato ajam com responsabilidade e sobriedade. A sociedade precisa de bombeiros, não de incendiários. Estes tempos obscuros e obtusos, em alguns aspectos, que estamos vivendo trituram padrões mínimos de convivência e tolerância. Creio

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que mergulhamos em uma era que atropela sutilezas que são verdadeiras conquistas da humanidade. De todas as que têm sido atingidas pela falta de sensibilidade, aponto principalmente o direito às diferenças de opinião e às diversidades de toda ordem. Não há dia em que não assistamos ao ataque a direitos humanos fundamentais, um legado coletivo que deve ser preservado a todo custo. Todo ato de preconceito é um atentado à dignidade humana. Todo desrespeito à memória e à história é um gesto violento contra as lutas individuais e coletivas. Toda agressão a minorias, no fundo, é uma derrota da liberdade das maiorias. Quando vemos, sem reagir ou sem nos indignarmos, o avanço do desprezo às identidades ou o aumento do desrespeito ao outro, admitimos o nosso fracasso como seres humanos integrais. Falhamos – e não podemos falhar. Entre tantos compromissos, a classe política também precisa oferecer respostas saudáveis neste campo do convívio humano. Reproduzir preconceitos e alimentar ódios e incompreensões é desvirtuar o sentido público dos cargos que exercemos. O papel contemporâneo do agente público é o de contemporizar, o de apaziguar os ânimos, o de buscar soluções ponderadas, sensatas e negociadas. Não há respaldo nos princípios civilizatórios da democracia ficar alimentando uma disputa ensandecida em torno de posições ideológicas cristalizadas. Defendo a necessidade, inclusive, de adaptarmos nossas posições político-partidárias, para apresentarmos à sociedade plataformas conceituais e dogmáticas que de alguma maneira

(...) MERGULHAMOS EM UMA ERA QUE ATROPELA SUTILEZAS QUE SÃO VERDADEIRAS CONQUISTAS DA HUMANIDADE

dissipem a polarização ideológica e acolham caminhos conciliatórios e sintonizados com os desafios do nosso tempo. Os partidos devem materializar preocupações contemporâneas com a dignidade dos grupos humanos, sem barreiras ou distinção de cor, sexo, idade e nacionalidade, o que pode ajudar a resgatar a representatividade dos nossos partidos. A democracia deveria ser o sistema de empatia. Deveria estimular que todos os envolvidos no jogo democrático aceitassem o que se desconhece, respeitassem o que assusta em um primeiro momento. Quando penso nas virtudes da democracia sempre imagino que, com o tempo, ela vai aprimorar a capacidade de todos se colocarem no lugar do outro. E quando isso acontecer, creio que a própria percepção sobre o valor da democracia estará consolidada. Aproveito para desejar Shaná Tová a toda a nossa comunidade judaica. 9


A PREN DENDO COM OS PERCA LÇOS

Valorize o fracasso! ARTICULISTA DEFENDE A IDEIA DE QUE AS DIFICULDADES TRAZEM LIÇÕES E SUSTENTA: “PRECISAMOS COMO SOCIEDADE ENTENDER QUE O FRACASSO FAZ PARTE DO PROCESSO DE CRESCIMENTO E APRENDIZADO” POR RAFAEL CHANIN Empresário e Professor da PUCRS. Instagram @rafaelchanin

Pode parecer estranho, mas eu convivo com o fracasso diariamente. E sabe o que mais? Eu espero que você também fracasse todos os dias. Provavelmente você não esperava por um início de texto tão impactante, mas o fato é que precisamos desmistificar o fracasso. Quando sou convidado para falar sobre este tema, nunca deixo de dizer que “o sucesso inspira, mas só o fracasso ensina”. Se pararmos para pensar, somos “treinados” desde a infância a evitar erros. Quando pequenos, perdemos a conta de quantas vezes ouvimos um “não” de nossos pais por fazer algo que 10

eles não aprovavam. Na escola, somos punidos quando erramos as respostas, ou mesmo quando questionamos o status quo. O mais interessante é que, quando chegamos no mercado de trabalho, a primeira coisa que ouvimos é: “Você precisa ser criativo! Precisa pensar fora da caixa!”. Como podemos ser criativos e pensar fora da caixa se somos educados a nunca sair da caixa? As maiores disrupções da sociedade surgiram justamente da inquietude e da busca por quebra de paradigmas. Uber, Airbnb, Netflix e Criptomoedas são exemplos de soluções que desafiaram os modelos correntes e trouxeram melhorias (ou propostas de melhorias) nas suas áreas. Temos que aceitar a vida com mais curiosidade e tolerância ao inesperado. São esses momentos que tornam a vida, de fato, interessante. O pior sentimento que levamos para o final de nossas vidas não são os erros cometidos, mas sim, o


arrependimento de não termos feito aquilo que gostaríamos de fazer. Há alguns meses, assisti a um discurso do comediante Jim Carrey que me marcou muito. Ele estava falando para uma turma de formandos em alguma universidade americana: “o meu pai poderia ter sido um grande comediante, mas ele não acreditou em si mesmo e fez uma escolha conservadora; acabou virando um contador (não por sonhar em ser um contador, mas por achar que seria uma escolha segura). Quando eu tinha 12 anos, meu pai foi demitido deste trabalho “conservador”, e nossa família teve que fazer de tudo para sobreviver. Eu aprendi muitas lições com o meu pai, talvez a principal delas é que nós podemos falhar inclusive nas coisas que não queremos fazer; então, por que não arriscar e pelo menos falhar nas coisas que amamos?” Esta mensagem do Jim Carrey me fez refletir muito sobre o caminho que tomamos em nossas vidas. Será que estamos arriscando o suficiente? Será que estamos experimentando o suficiente? Será que o medo do fracasso está nos impedindo de buscarmos aquilo que realmente almejamos? Estamos passando por um momento único na história da humanidade. Nunca estivemos tão conectados. Os avanços da tecnologia propiciaram o surgimento de produtos e serviços espetaculares. Ao mesmo tempo, cresceu o medo e a insegurança sobre o futuro, pois cada vez mais vemos as máquinas substituindo o homem. Neste cenário incerto – para muitos, assustador – o que podemos fazer? O primeiro passo é

entender que o mundo mudou e que precisamos ser parte da mudança, e não ser meros espectadores. Fazemos isso nos mantendo atualizados; além de livros, hoje há uma infinidade de cursos, tanto off-line quanto online, que podem ser muito bem aproveitados. Não há desculpas para não conhecer os conceitos de inteligência artificial, ciência de dados, blockchain, ou internet das coisas. Essas tecnologias dominarão o mundo e precisamos compreender o seu impacto no nosso dia a dia. O segundo passo é estar pronto para o fracasso. Precisamos como sociedade entender que o fracasso faz parte do processo de crescimento e aprendizado. O exemplo mais claro disso é quando aprendemos a andar de bicicleta. Caímos muitas vezes antes de conseguirmos nos equilibrar e nos sentir seguros. E não existe outra forma de aprender; não adianta assistir a vídeos no Youtube, ou observar outros pedalando. A única alternativa é tentar, errar, melhorar e tentar novamente. Se você acha tudo isso muito complicado, talvez uma forma simples de iniciar o processo é dizer para si mesmo todos os dias pela manhã: “hoje é um grande dia para fracassar”. Se preferir algo mais leve, pode começar com: “hoje é um grande dia para eu aprender algo novo”. Claro, somente falar não basta; você deve agir. E vale tudo: jogue um novo esporte, aprenda uma nova língua, comece a tocar um instrumento musical, conheça novas tecnologias. Enfim, busque algo que faça sentido para você. Sair da zona de conforto e internalizar o fracasso (aprendizado) como parte das nossas vidas é o caminho para uma vida de sucesso. 11


Diรกlogo inter-religioso

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P O R UM MU NDO JU STO

A garantia constitucional dos direitos à população LGBTI PRIMEIRA JUÍZA E PRIMEIRA DESEMBARGADORA GAÚCHA, A AUTORA CRIOU A EXPRESSÃO “HOMOAFETIVIDADE” E, COMO DESBRAVADORA, ESTÁ NA LINHA DE FRENTE DAS DECISÕES JUDICIAIS NA ÁREA DA FAMÍLIA. AQUI, ELA FALA PARA A REVISTA SOBRE A IMPORTÂNCIA DO DIREITO À SEXUALIDADE POR MARIA BERENICE DIAS Advogada e desembargadora aposentada 14

A Constituição da República já no seu preâmbulo assegura a todos o exercício de direitos sociais e individuais em uma sociedade sem preconceitos. Do mesmo modo, assume o compromisso de promover o bem de todos sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV). Assim, ao consagrar a dignidade da pessoa humana como fundamento de um Estado Democrático de Direito (art. 1º, III) e assegurar a o direito à igualdade (art. 5º, I) e à liberdade (art. 5º, II), veda qualquer espécie de discriminação, inclusive por orientação sexual ou identidade de gênero. O só fato de estas expressões não constarem do texto constitucional, não exclui das pessoas LGBTI o direito ao livre exercício da sexualidade. O direito à livre orientação sexual e identidade de gênero está albergado em um punhado de princípios constitucionais. Desde o mais significativo de todos, que é o respeito à dignidade da pessoa humana. E também na garantia dos direitos de personalidade, liberdade, igualdade, intimidade, vida privada e liberdade de expressão gozam de proteção constitucional.


O impedimento de tratamento discriminatório não tem exclusivamente assento constitucional. Tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos são reconhecidos como emendas constitucionais. E o tratamento isonômico é corolário de todo o regramento que consagra o primado dos direitos humanos. A sexualidade abrange a dignidade e integra a própria condição humana, sendo um direito fundamental que acompanha o cidadão desde o seu nascimento, pois decorre de sua própria natureza. Como direito do indivíduo, é um direito natural, inalienável e imprescritível. Ninguém pode realizar-se como ser humano se não tiver assegurado respeito ao exercício da sexualidade, conceito que alberga a liberdade à livre orientação sexual e identidade de gênero. O direito de tratamento igualitário exige respeito ao livre exercício da sexualidade, pois sem liberdade sexual o indivíduo não se realiza. A Constituição da República outorga especial proteção não só ao indivíduo, mas também à família (art. 226). A inserção do conceito de entidade familiar no sistema jurídico ensejou o alargamento do próprio conceito de família. O centro de gravidade das

relações de família situa-se na mútua assistência afetiva, elemento essencial das relações interpessoais, ao qual o Direito não pode ficar indiferente. É o afeto que aproxima as pessoas, dando origem a relacionamentos que geram consequências jurídicas. Em nome do respeito à diferença, foi construído um conceito plural de família. Para a configuração de uma entidade familiar, não mais é exigido, como elemento constitutivo: a existência de um casal heterossexual, a prática sexual – chamada pela feia expressão “débito 15


P O R UM MU NDO JU STO

conjugal” – e nem a capacidade reprodutiva. A evolução científica, principalmente na área da biociência, acabou influindo no próprio comportamento das pessoas e se refletiu na estrutura familiar. Assim, é indispensável ter uma visão plural das estruturas familiares e inserir no conceito de entidade familiar os vínculos afetivos que, por envolverem mais sentimento do que vontade, merecem a especial proteção que só o Direito das Famílias consegue assegurar. Por isso é necessário reconhecer que, independente da identidade sexual do par, as uniões de afeto merecem ser identificadas como família, gerando direitos e impondo obrigações aos seus integrantes. A referência à união estável entre um homem e uma mulher (CR, art. 226, § 3º) não significa que somente esta convivência é reconhecida como digna da proteção do Estado. O que existe é uma simples recomendação em transformá-la em casamento. É meramente exemplificativo o enunciado constitucional. Em nenhum momento está dito não existir entidades familiares formadas por pessoas do mesmo sexo. Reconhecido o afeto como o elemento estruturante do conceito de família, não se justifica deixar ao desabrigo as uniões homoafetivas. Excepcionar onde a lei não distingue é a forma mais perversa de excluir direitos. A proibição da discriminação em razão do sexo veda discriminação à homoafetividade. A identificação da orientação sexual está

DESIMPORTA O SEXO DO PAR, SE IGUAL OU DIFERENTE, PARA QUE SE EMPRESTEM EFEITOS JURÍDICOS AOS VÍNCULOS AFETIVOS 16

condicionada ao sexo da pessoa escolhida em relação a quem escolhe, decisão que não pode ser alvo de tratamento diferenciado. Se todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, aí está incluída, por óbvio, a orientação sexual e a identidade de gênero. Atendidos os requisitos legais para a configuração de uma união estável – publicidade, ostensividade e continuidade – é necessário conferir direitos e impor obrigações, a todos que assim vivem. Desimporta o sexo do par, se igual ou diferente, para que se emprestem efeitos jurídicos aos vínculos afetivos no âmbito do Direito das Famílias e das Sucessões. São relacionamentos que, mesmo sem a diversidade de sexos, têm origem em um elo de afetividade. Desse modo, são alvo de proteção os relacionamentos afetivos entre homens e mulheres ou só por mulheres ou só por homens. Não há como exigir a diferenciação de sexos para o casal merecer a tutela do Estado. O estigma do preconceito não pode ensejar que um fato social não se sujeite a efeitos jurídicos.


A OMISSÃO DO LEGISLADOR É do Poder Legislativo a obrigação de resguardar o direito de todos os cidadãos, principalmente, de quem se encontra em situação de vulnerabilidade. E, dentre todos os excluídos, homossexuais, travestis, transexuais e intersexuais são as maiores vítimas. A omissão covarde do legislador infraconstitucional de assegurarlhes direitos e reconhecer seus relacionamentos, ao invés de sinalizar neutralidade, encobre enorme preconceito. O receio de ser rotulado de homossexual, o medo de desagradar seu eleitorado e comprometer sua reeleição inibe a aprovação de qualquer norma que consagre direitos a uma parcela minoritária da população que é alvo de perversa discriminação. No entanto, o conservadorismo religioso vem tomando conta do Congresso Nacional. As igrejas fundamentalistas _ que se multiplicam de maneira assustadora _ não medem esforços para impor suas crenças, como se o país não fosse laico. O PROTAGONISMO DO JUDICIÁRIO As uniões homoafetivas são relacionamentos que surgem de um vínculo afetivo, gerando o enlaçamento de vidas com desdobramentos de caráter pessoal e patrimonial. E a falta de lei não significa ausência de direito. A postura silenciosa do legislador, no entanto, não inibiu a Justiça. Assim, ao longo deste século vêm se consolidando conquistas no âmbito do Poder Judiciário. O florescer dos direitos humanos, a laicização do Estado e principalmente a coragem dos juízes forjaram a construção de um novo paradigma, que se consolidou a partir da histórica decisão do Supremo Tribunal Federal que, em 2011, reconheceu as uniões homoafetivas como entidade familiar, com todos os direitos e iguais obrigações das uniões estáveis. Como recomenda a Constituição que seja facilitada a conversão da união estável em casamento, não demorou para ser garantido acesso ao casamento, mediante habilitação direta. Até que, em 2013,

o Conselho Nacional da Justiça impediu que seja negado acesso ao casamento homoafetivo. Assim, o Brasil tornou-se o primeiro país do mundo a admitir o chamado “casamento gay” por decisão judicial e não por lei. Há que conhecer a coragem dos advogados e juízes deste país que, empunhando a Constituição, ultrapassaram os tabus e romperam o preconceito que historicamente persegue as entidades familiares homoafetivas. Condenar à invisibilidade é a forma mais cruel de gerar injustiças e fomentar a discriminação. O Judiciário tomou consciência de sua missão de criar o direito. Não é ignorando certos fatos, deixando determinadas situações a descoberto do manto da juridicidade, que se faz justiça. O Estado não pode descumprir sua obrigação de conduzir o cidadão à felicidade. Já que a Constituição consagra como princípio maior o respeito à dignidade da pessoa humana, é indispensável reconhecer que todos os cidadãos dispõem do direito individual à liberdade, direito social de escolha e direito humano à felicidade. 17


F UTEBO L

Judeus acima da rivalidade Gre-Nal MEMBROS DA COMUNIDADE JUDAICA LEVAM PARA O AMBIENTE FUTEBOLÍSTICO UMA VISÃO SOLIDÁRIA DE CONVIVÊNCIA ENTRE DIFERENTES

O futebol, esporte cujas peculiaridades o caracterizam como jogo popular por excelência, diante do enredo dramático, do gol catártico e das incidências individuais que se manifestam nas perseveranças e superações, ganha, em terras gaúchas, forte tempero judaico. A presença de judeus na dupla Gre-Nal é uma tradição. Grêmio e Internacional tiveram judeus, como Russinho, Bóris, Léo Lubianca e Victor Gerchmann entre os jogadores já lá pelos anos 1930 e 1940 _ quando a profissionalização no futebol ainda era incipiente. Entre os 18

dirigentes, Gildo Russowsky, Mauro Knijnik, Zélio Hocsman, Dannie Dubin, Daniel Tevah, Gildo Milman, Ricardo Russowsky, Saul Berdichevski e outros tantos, em ambos os grandes clubes gaúchos. Isso sem falar que o Cruzeiro, de Porto Alegre, abrigou muitos judeus e é visto como o clube de futebol judaico da capital gaúcha (era para ele que torcida, por exemplo, o escritor Moacyr Scliar). Nos bastidores do futebol, há cenas exemplares de uma ética respaldada na empatia e que sabe valorizar o respeito às diferenças, como amistosos encontros do colorado Dannie Dubin com o gremista Daniel Tevah para uma salutar troca de ideias a respeito da atuação no marketing _ no caso, Dannie assumia a vice-presidência do marketing no Inter, e Daniel já havia ocupado, com grande sucesso, o mesmo cargo no Grêmio. Ora, nada mais natural que a generosa troca de conhecimentos fosse muito além da rivalidade rasa e da desconstrução do alheio.


Léo Lubianca, o “guardião~no Grêmio

Russinho (o segundo em pé, da esquerda para a direita) no Inter

NUNCA VIVI QUALQUER TIPO DE SENTIMENTO ANTISSEMITA EM TODO O PERÍODO EM QUE ESTOU NO GRÊMIO. TANTO É ASSIM, QUE FUI ELEITO PRESIDENTE DO CONSELHO DELIBERATIVO, CARGO MAIS ALTO NA HIERARQUIA TRICOLOR. SOU AFEITO AO TRABALHO COM AS DIFERENÇAS, A EMPATIA COM GRUPOS DIVERSIFICADOS NUM AMBIENTE PLURAL. PRESIDENTE DO CONSELHO PRECISA TER ESSA CARACTERÍSTICA, PORQUE LIDA COM DIFERENTES CONCEPÇÕES DE GESTÃO, COM CENTENAS DE PESSOAS. E ISSO DIZ MUITO DOS ENSINAMENTOS JUDAICOS MAIS BASILARES. MAURO KNIJNIK (EX-PRESIDENTE DO CONSELHO DELIBERATIVO DO GRÊMIO):

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F UTEBO L

Na produção literária, o jornalista Léo Gerchmann pelo Grêmio e o saudoso pesquisador Abrão Aspis pelo Inter escreveram sobre a história dos dois clubes, numa atividade própria daquele que é conhecido como o “povo do livro”. Pois bem: os dois autores sempre tiveram uma relação de alta cordialidade e profundo respeito por suas respectivas obras. Ou seja, a rivalidade fica no plano da galhofa _ afinal, é o humor judaico que traz a hilária história do náufrago solitário que funda duas sinagogas, a que ele frequentará e aquela na qual ele jamais pisará.Recentemente, por iniciativa da Federação Israelita (FIRS), a campanha mundial “We remember” (pela perpetuação da memória do Holocausto) teve a adesão de Grêmio e Inter. No Grêmio, os próprios jogadores posaram e seguraram a faixa, com os logotipos das entidades

judaicas estampados, para uma foto depois divulgada pelo clube. No Inter, integrantes da comunidade judaica tiveram a permissão para entrar também com uma faixa, contendo o slogan de apelo à perpetuação da memória, na pista ao redor do campo antes de se iniciar um jogo. Em ambos os estádios, sempre houve os nichos de judeus aficionados pelos clubes em suas cadeiras numeradas. E a mesma brincadeira, seja qual for a coloração: seria possível fazer o “minian futebolístico” ou “núcleo do Bom-Fim”. Nas redes sociais, tanto Grêmio quanto Inter têm grupos no whatsapp em que os assuntos são judaísmo e o clube de preferência das pessoas que dele participam. Enfim, o futebol é um exemplo de ambiente no qual o judaísmo participa ativamente da comunidade ampla sem abrir mão de suas raízes e sabedoria ancestral.

CURIOSIDADES: •

Certa vez, o colorado Bóris acertou uma bolada, com seu chute potente, num torcedor do Força e Luz que o ofendia com palavras antissemitas

Na Hebraica Petrópolis (antigo Grêmio Esportivo Israelita), ainda há uma placa do Grêmio em alusão à inauguração do ginásio, em 1970

Houve um clube, o Fussball (1903-1944), integrado por descendentes de alemães. O fundador tinha o nome de Leopoldo Rosenfeld

O principal fundador do Grêmio (rival do Fussball no início do século 20) tinha o nome de Candido Dias da Silva, de origem portuguesa. O do Inter era Henrique Poppe, de origem italiana

Iara Linei Salgado, sobrinha-bisneta do mítico goleiro gremista Eurico Lara, conta que ele, oriundo de Uruguaiana, era descendente de judeus

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Bóris (Inter) se preparando para o jogo

Vitor (irmão de Bóris) na sua carteirinha de jogador do Grêmio, em 1942

CLUBES DE FUTEBOL DEVEM SER AGENTES DE INCLUSÃO, E, NÓS JUDEUS, TEMOS SEMPRE QUE LUTAR POR ISSO, POIS SENTIMOS NA PELE, DESDE OS NOSSOS PRIMÓRDIOS, O QUE É SER EXCLUÍDO/PERSEGUIDO. SEMPRE PAUTEI MINHAS ATITUDES NO CLUBE POR ISSO. OUTRA COISA EM QUE ACREDITO É NA TRADIÇÃO (NO CASO DA RELIGIÃO, SOU CÉTICO EM RELAÇÃO A EXISTÊNCIA DE DEUS, MAS MUITO LIGADO NA TRADIÇÃO E NA CULTURA JUDAICAS). NO FUTEBOL, TODAS AS COISAS TAMBÉM SE MOVEM PELA TRADIÇÃO E POR UMA CULTURA FORJADA HÁ DÉCADAS. DANNIE DUBIN (EX-VICE-PRESIDENTE DE MARKETING DO INTER) 21


MA L DA DE R ENIT ENT E

Genocídios e a vitória da pulsão da morte PSICANALISTA, AUTOR DE LIVROS QUE DESBRAVAM O INTERIOR DO SER HUMANO EM VIAGENS A LUGARES REMOTOS COMO COREIA DO NORTE E RUANDA, ESCREVE SOBRE A TRÁGICA REPETIÇÃO DE MÉTODOS DO HOLOCAUSTO NO GENOCÍDIO EM RUANDA POR NELSON ASNIS Psiquiatra, escritor e professor universitário

Ao longo dos últimos anos tenho me dedicado a viajar a locais que foram palco de intenso sofrimento humano, tendo em vista meu trabalho como psiquiatra e psicanalista e principalmente por minhas origens judaicas. Duas de minhas viagens mais tocantes do ponto de vista emocional foram as realizadas a Aushwitz, na Polônia, e a Ruanda, na África. Gostaria de fazer algumas aproximações entre essas duas das maiores tragédias da humanidade que expuseram toda a capacidade destrutiva do ser humano. Aushwitz foi um dos mais terríveis palcos do Holocausto. Lá as câmaras de gás matavam 2 mil pessoas em apenas 15 minutos. Noventa por cento da população de Aushwitz era de origem judaica, oriunda de todas as partes da Europa, e quase a sua totalidade perdeu a vida por meio de gás, fuzilamentos ou por fome e frio. Em Aushwitz, 1,5 milhão de judeus perderam a vida. 22


Em Ruanda, o Genocídio contra os tutsis promoveu em menos de cem dias a morte de quase 1 milhão de pessoas, a maioria assassinada cruelmente a golpes de machetes. A intensidade da crueldade e a sistemática de promoção da morte faz com que esse Genocídio guarde enormes semelhanças com o Holocausto. Judeus e tutsis foram desumanizados e covardemente massacrados. O mundo se omitiu nos dois terríveis massacres. As práticas nazistas foram reeditadas em Ruanda. Façamos um breve comparativo entre os métodos de extermínio empregados no Holocausto e no Genocídio de Ruanda. Toda a sistemática de matar nazista foi exercida à risca em Ruanda. Sob a batuta francesa, os hutus discriminaram, excluíram, demonizaram e eliminaram tutsis, seguindo o mesmo modelo pelo qual os nazistas discriminaram, excluíram, demonizaram e eliminaram os judeus. Tanto os nazistas quanto os hutus preconizavam que suas vítimas eram inimigos da nação, invasores a serem extirpados tal qual se extirpa um tumor maligno do corpo. Sabidamente, os nazistas se intitulavam a raça pura. Já o líder genocida hutu Juvenal Habyarimana igualmente preconizava serem os hutus o grupo de pureza étnica. O processo de extermínio executado pelos nazistas no Holocausto e pelos hutus em Ruanda seguiu os mesmos métodos, ou seja, cumpriu os Estágios de Stanton, quais sejam: Classificação, Simbolização, Desumanização, Organização, Polarização, Preparação, Extermínio, Apropriação e Negação. Incluí, nos estágios de Stanton, o Encarceramento. Examinemos os estágios 1. Classificação (discriminação) O nazismo e o genocídio ruandês exploraram o “nós e eles”, incentivando respectivamente uma pesada discriminação entre alemães e judeus, tutsis e hutus. Muitos judeus alemães pagaram com suas vidas por se negar a fugir frente às ameaças da barbárie de Hitler por não se considerarem menos alemães, vários inclusive com histórico

de heroica defesa da Alemanha durante a Primeira Grande Guerra. Em Ruanda, muitos tutsis igualmente se mostraram incrédulos frente ao prenúncio do genocídio por serem parte atuante da sociedade local. 2. Simbolização Pessoas são distinguidas pelos perseguidores a partir de símbolos que procuram marcar sua “identidade”, facilitando seu extermínio. Tantos os judeus quanto os tutsis eram excluídos e discriminados baseados em critérios subjetivos tanto somáticos quanto (i) morais. A identificação da pureza racial ariana e hutu era demonstrada, dentre outros critérios, a partir de medições do nariz. Baseados nesses falsos critérios, muitos judeus e tutsis pagaram com a vida. 3. Desumanização (demonização) Tanto os judeus quanto os tutsis foram equiparados a animais, vermes, insetos ou doenças. A desumanização burla a natural e superegóica censura ao assassinato. Tanto judeus quanto tutsis não deveriam ser considerados como seres humanos. 23


MA L DA DE R ENIT ENT E

foram sendo condicionadas a aceitar o massacre e apoiá-lo incondicionalmente.

(...) PROPAGANDA FOMENTOU A MATANÇA. (...) PROIBIÇÃO DE CASAMENTOS E DE INTERAÇÃO SOCIAL COM OS MESMOS TAMBÉM FOI DECRETADA Para os nazistas, os judeus eram vermes propagadores de doenças; para os hutus, os tutsis eram considerados como baratas. 4. Organização No Nazismo, o próprio partido nacional socialista e seu exército se encarregaram de organizar o extermínio. Em Ruanda, igualmente o governo hutu e seu exército, junto com milícias armadas pelos franceses, foram treinados para matar o maior número de vítimas, no menor tempo possível. 5. Polarização Tanto em Ruanda quanto na Alemanha nazista, uma intensa e organizada propaganda fomentou a matança. Leis foram instituídas nos dois países, proibindo o comércio com judeus e tutsis. A proibição de casamentos e de interação social com os mesmos também foi decretada. Aqueles que ousassem desafiar estas leis seriam mortos. Em Ruanda, a Rádio e Televisão das Mil Colinas foi utilizada diariamente para incitar o ódio e enviar instruções sobre como perpetrar o massacre e por quê. As populações alemãs e hutus 24

6. Preparação Vítimas são identificadas e separadas em função de sua identidade étnica (tutsis) ou religiosa (judeus). Listas eram elaboradas com nomes das vítimas a serem assassinadas. As vítimas eram obrigadas a utilizar uma identificação para facilitar a matança tais com uma carteira étnica (tutsis) ou uma estrela amarela (judeus). 7. Encarceramento Judeus eram trancafiados em guetos para, com maior facilidade, serem enviados aos vagões e câmaras de gases mortais. Tutsis eram trancafiados em igrejas, estádios e escolas para serem cruelmente mortos a golpes de machetes. 8. Extermínio O extermínio deveria ser realizado sem nenhuma permissão para um enterro ou memorial digno, executados covardemente sem nenhuma possibilidade de defesa. A exclusão consistia inicialmente em confinar os judeus em guetos e após em campos de concentração. Já os tutsis eram identificados e retirados de casa ou de seus carros à força e mortos selvagemente a golpes de facão. 9. Apropriação Nazistas na Europa e hutus radicais em Ruanda se apropriaram dos bens de suas vítimas sem nenhum constrangimento ou ética. No pós-guerra muitas questões jurídicas ligadas a esta perversão estão em curso tanto na Europa quanto em Ruanda no sentido de devolver aos seus donos e herdeiros as propriedades e bens roubados.


10. Negação O negacionismo tem sido prática corrente tanto em relação ao Nazismo quanto em relação ao Genocídio em Ruanda. Os negacionistas ao invés do genocídio de Ruanda falam em “acontecimentos infelizes” ou que houve “tão somente” mais uma das inúmeras guerras intertribais, comuns no continente africano. Quanto ao Holocausto, sistematicamente o mesmo é negado, como tem acontecido, nos últimos anos, por exemplo, pelo Irã dos Aiatolás. CONSIDERAÇÕES FINAIS Bertrand Russell denunciou o genocídio ruandês como o massacre mais terrível e sistemático desde o Holocausto. Os limites da crueldade e do sadismo foram extrapolados tanto no Holocausto, quanto no Genocídio de Ruanda. Limites éticos foram completamente desprezados. As pulsões de morte triunfaram absolutas, e a maldade alcançou

limites inimagináveis. O processo civilizatório foi completamente desconstruído. Homens passaram a desconsiderar seus semelhantes, exterminados como ratos e baratas. Do dia para a noite, pessoas dignas, trabalhadoras, orgulhosas de pertencer ao seu país eram obrigadas a abandonar seus lares, sua profissão e sua família sendo cruelmente assassinadas pelo simples fato de serem judeus ou tutsis. Ruandeses e judeus não abrem mão de preservar e lembrar suas trágicas histórias. Quando Ruanda organizou o seu Memorial do Genocídio, contou com a experiência de Israel e seu tocante Museu Yad Vashem em memória das vítimas do Holocausto. Tutsis e Judeus, novamente sintonizados na dor, sabem que a única forma de minimizar os riscos de que um novo Holocausto ou Genocídio volte a acontecer é JAMAIS DEIXAR DE LEMBRÁ-LOS.

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Estudos

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C I N EMA PARA TODOS

Quando a tecnologia dá acesso à arte FESTIVAL DE CINEMA ACESSÍVEL, COM VERSÕES PARA O PÚBLICO ADULTO E INFANTO-JUVENIL, PERMITE QUE OLHEMOS O OUTRO, EM AÇÃO INCLUSIVA E EDUCATIVA IMPREGNADA DE PRINCÍPIOS DA ÉTICA JUDAICA POR SID SCHAMES Músico e diretor do Festival de Cinema Acessível

Você sabia que, de acordo com o mais recente censo do IBGE (o de 2010), 45,6 milhões de brasileiros têm algum tipo de deficiência? Isso equivale 23,9% da população, quase um quarto do total. É muita gente, convenhamos! Reflita bem sobre esse dado oficial. Perceba como é importante incluir essas pessoas. Ponha-se no lugar delas. É muito importante que enxerguemos tal realidade e olhemos uns aos outros com atenção e carinho, que desfrutemos a vida lado a lado, percebendo-nos, respeitando-nos. Por trás desse apelo, há uma lógica entranhada na cultura judaica, de olhar o outro. E sublinho essa influência natural ao escrever para a revista da Sibra e expor o nosso trabalho. É algo que deve sempre estar presente na vida dos seres humanos em geral e dos judeus muito em especial, por toda a ética que nos foi repassada de gerações para gerações. Faz cinco anos que vivenciamos essa diversidade e trabalhamos intensamente em cima dela, com enorme gratificação. Com o Festival de Cinema Acessível, temos a experiência incrível da acessibilidade plena. No evento, há audiodescrição para cegos,

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para quem tem baixa visão e para quem tem deficiência intelectual ou cognitiva, há legendas explicativas e LIBRAS para surdos e, no Cine Santander Cultural (onde ocorreu o mais recente Festival de Cinema Kids), há rampas para quem tem deficiência de mobilidade. Tudo é elaborado com tecnologia que equipara as oportunidades de diversão e entendimento da obra, possibilitando a todas as pessoas, mesmo a quem jamais teve, a oportunidade de ir ao cinema. A experiência é marcante! Mesmo quem não tem alguma deficiência vai e se emociona. O objetivo do festival é de realmente fazer um mundo melhor e uma sociedade mais justa. O foco não são só as pessoas com deficiência. A ideia é de fazer com que todos compartilhem de um evento cultural, algo que pode ser chamado também de “inclusão ao contrário”, a um universo único. O festival provoca reflexão sobre conceitos e preconceitos. É a democratização do direito de escolha e uma oportunidade, em especial para as crianças, no caso do festival Kids, ao processo educativo de conviver com as diferenças. Acredito que tudo para todos e ao mesmo tempo é possível. O festival “kids” nasceu quando já tínhamos o festival de cinema com toda a sua tecnologia a favor do respeito às diferenças. E por que ele nasceu? Porque meu filho David certo dia me olhou e me falou algo até óbvio: que ele, uma criança, não estava incluída. Claro! O exercício de se pôr no lugar do outro

O OBJETIVO DO FESTIVAL É DE REALMENTE FAZER UM MUNDO MELHOR E UMA SOCIEDADE MAIS JUSTA

deve ser amplo, e assim foi. O David, que hoje tem 13 anos, é o seu promotor. As exibições mais recentes ocorreram nos dias 6 de outubro e 10 de novembro, no Santander, com os filmes Divertidamente e Frozen. Antes, já apresentamos diversas atrações de ponta, como O Palhaço, Tropa de Elite, O Tempo e o Vento. Além de a entrada sempre ser gratuita (o que oportuniza também o acesso econômico às pessoas sem recursos financeiros), o Festival de Cinema Acessível proporciona toda essa vivência e a experiência de compartilhar a arte. No caso do festival “kids”, isso vem ainda com o evidente apelo educativo. A próxima atração será “Ficção e aventura”, previsto para 2020 e já em processo de captação. Mas toda essa tecnologia de acessibilidade ampla vai além dos festivais. Agora mesmo, estamos lançando um clipe da banda de rock Os Eles (da qual o articulista é baterista) com o mesmo formato que os filmes têm, com a mesma tecnologia _ com áudio-descrição, legenda e libras. 29


O L HA R O OU T RO

Respeito às diferenças na essência judaica “O AUTISMO É MAIS UMA DESSAS DIFERENÇAS, O QUE É NORMAL E FAZ PARTE DA DIVERSIDADE HUMANA, SENDO ENTENDIDO NÃO COMO UMA DOENÇA, MAS UMA CONDIÇÃO QUE FAZ PARTE DA IDENTIDADE” POR MARCOS WEISS BLIACHERIS Advogado da União e ativista pela diversidade

A definição do manual DSM-V, publicado pela APA (American Psychiatric Association), que é a mais utilizada mundo afora diz que as pessoas que estão no espectro autista têm em comum a inabilidade social e a presença de comportamento restritivo e repetitivo. É evidente que não se pode explicar em um parágrafo o que é autismo, hoje considerado um espectro que reúne condições que variam de pessoa para pessoa. Essa definição evoluiu bastante 30

desde os pioneiros na descrição do autismo: Leo Kanner e Hans Asperger. Kanner, judeu, fugiu do nazismo e se radicou nos Estados Unidos, onde participou do esforço para dar abrigo a outros cientistas judeus na América. Ao mesmo tempo, Asperger continuava suas pesquisas na Viena nazista. Somente este fato já bastaria para apontar as polêmicas envolvendo judeus e autismo. Mesmo em uma leitura apressada sobre a história do autismo, chama atenção os inúmeros médicos, pais e autistas judeus. Na área da ciência, tivemos o contestado Bruno Bettelheim, mas também Ami Klin, Simon Baron-Cohen e, aqui em Porto Alegre, Ricardo Halpern. Pais judeus como Bernard Rimland e Tom Fields-Meyer, mudaram


e popularizaram o conceito do que é autismo, humanizando-o e lhe dando rostos e nomes. Autistas judeus como Judy Singer e Ari Ne’eman trouxeram um novo modelo para a inclusão dos autistas na sociedade – a neurodiversidade. Este pensamento defende que todas as pessoas são neurodiversas, isto é, tem cérebros diferentes com distintas configurações e formas de ver o mundo. O autismo é mais uma dessas diferenças, o que é normal e faz parte da diversidade humana, sendo entendido não como uma doença, mas uma condição que faz parte da identidade da pessoa. Ari Ne’eman é um dos nomes mais famosos desse movimento sendo fundador da ASAN (Autistic Self-Advocacy Network). Em seu ativismo aponta que se fala muito sobre autismo mas não se ouve os autistas. Nascido nos Estados Unidos de pais israelenses, costuma comparar os autistas aos judeus pois ambos os grupos querem ser iguais aos demais, tendo respeitadas e reconhecidas suas diferenças. Assim como não queremos ter nossa identidade judaica apagada para sermos aceitos na sociedade, tampouco podemos exigir isso dos autistas, defende ele. Ari e sua família sempre foram ativos participantes da comunidade judaica local, havendo estudado em uma escola judaica até o quinto ano, quando recebeu o diagnóstico do autismo. Ele aponta que as escolas e demais instituições judaicas são menos acessíveis e inclusivas que as demais. Ao ser perguntado sobre como

seu judaísmo é visto na comunidade autista respondeu que “gostaria de ser recebido como um autista na comunidade judaica da forma como sou recebido como judeu na comunidade autista. Há um longo caminho a ser percorrido, a comunidade judaica necessita dar mais valor à inclusão, o que senti na minha pele”. Não dar a devida importância à inclusão afasta não só as pessoas com deficiência como também suas famílias. Mas mais que isso, estamos nos afastando dos valores judaicos. Como uma vez disse o Rebe de Lubavitch em uma carta para um de seus chassidim: “qualquer um que pratique o judaísmo com alegria deve desejar compartilhá-lo com outros. Como pode alguém se conformar com a ideia de que há pessoas com necessidades especiais às quais não foi dada a oportunidade de fazer parte dessa experiência?”

NÃO DAR A DEVIDA IMPORTÂNCIA À INCLUSÃO AFASTA NÃO SÓ AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA COMO TAMBÉM SUAS FAMÍLIAS. MAS MAIS QUE ISSO, ESTAMOS NOS AFASTANDO DOS VALORES JUDAICOS 31


ESTA DO P LU RAL

O nosso jeito de ser RIO GRANDE DO SUL É FORMADO POR PESSOAS DE DIFERENTES ORIGENS, QUE, LIGADAS POR SUAS PECULIARIDADES, FORMAM UM POVO SÓ, COM A CARACTERÍSTICA DA PLURALIDADE EURICO SALIS Fotógrafo

Recentemente, a convite do amigo Guershon, apresentei fotografias publicadas no livro Cultura e Identidade, em uma exposição na Sibra. Para produzir estas imagens, esquadrinhei a topografia de nosso Estado, entre 2018 e início de 2019. Viajei por todas as regiões em busca de histórias de imigrantes. Passei em vales, serra, montanhas e planícies iluminadas pela tênua luz do sol que dá cor e nuances ao solo gaúcho. No texto de apresentação da mostra, escrevi que “nós, os gaúchos, somos um povo que mistura cores, credos, costumes e sotaques. Temos um rosto africano, latino, europeu, asiático, oriental, indígena e americano. Somos a síntese de uma cultura forjada por várias etnias, a nossa identidade”. Sim, são muitas as faces do gaúcho, e as imagens que produzi podem mostrar o recorte de um povo formado por diferentes origens, que somadas compõem um rico mosaico da nossa cultura e da nossa identidade. Nossos antepassados chegaram aqui em busca de um novo mundo e de oportunidades. Outros deixaram seus familiares em cenários de guerras devastadoras para virem construir a nova pátria. Todos, porém, trouxeram na bagagem suas tradições, seus hábitos, suas crenças religiosas e o jeito de celebrar a vida. Isso é o que chamamos de identidade cultural, um conceito amplo, as vezes difícil de definir.

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Sobre o conceito de identidade, escreveu o antropólogo Roberto DaMatta, no seu livro O que faz o brasil, Brasil?: “De saber quem somos e como somos, de saber por que somos. Sobretudo, quando nos damos conta de que o homem se distingue dos animais por ter a capacidade de se identificar, justificar e singularizar: de saber quem ele é.” Pois identidade é aquilo que faz com que nos 32

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reconheçamos como um povo, nos mínimos e mais variados gestos. Anthony Giddens, sociólogo britânico, ao nos explicar sua noção de cultura, esclarece que “ela faz alusão às características socialmente herdadas e aprendidas que os indivíduos adquirem a partir de seu convívio social. Entre essas características, estão a língua, a culinária, o jeito de se vestir, as crenças religiosas, normas e valores.” E complementa sua explicação sobre identidade

afirmando que ela “relaciona o conjunto de entendimentos que uma pessoa possui sobre si mesma, como gênero, nacionalidade ou classe social, e que passam a ser usadas pelos indivíduos como plataforma de construção de sua identidade. Nós, gaúchos, somos a composição de culturas longínquas. A soma de imigrantes que preservaram suas raízes. O caleidoscópio de povos que agrega, num mesmo solo, judeus, árabes, russos, poloneses, alemães, italianos, espanhóis, açorianos, japoneses, senegaleses e índios. Somos o resultado da perseverança de imigrantes que vieram para cá, e que souberam manter vivos na memória os valores de seus ancestrais, que nos deixaram como herança princípios baseados nos conceitos morais e éticos dos seus antepassados, base da construção de uma nova sociedade. Essa é nossa cultura e essa é nossa identidade, e é ela que nos permite, hoje, viver em paz e harmonia.

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F É CO MPA RTILH ADA

O diálogo inter-religioso OS DIÁLOGOS CONTIDOS NA BÍBLIA HEBRAICA NOS ENSINAM QUE A PERENE EXPECTATIVA DIVINA É DIALOGAR COM O HOMEM POR RABINO DR. ABRAHAM SKORKA Institute for Jewish-Catholic Relations, Philadelphia, PA

A Bíblia hebraica, texto fundamental das três grandes religiões da humanidade, é constituída essencialmente por diálogos. O texto nos ensina que a perene expectativa de Deus é de dialogar com o homem. Depois que o homem primigênio e sua mulher comeram o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, transgredindo o mandamento divino, Deus não abandonou a sua criatura à sua própria sorte, mas, mediante uma pergunta retórica, procurou voltar a contatá-la. “Chamou o Senhor ao homem e lhe disse: ‘onde estás?’ O mesmo aconteceu quando Caim matou Abel, Deus quis dialogar, ao perguntar-lhe: ‘onde está Abel, teu irmão?’“ 34

Todos os textos proféticos documentam o diálogo entre o indivíduo, ou o povo, e seu Criador. Mesmo os grandes silêncios bíblicos fazem parte essencial do mesmo diálogo (confira a respeito no excelente estudo de André Neher em seu livro L’Exil de la Parole (O Exílio da Palavra), Seuil, 1970). Um dos castigos mais duros com o qual se pode punir o povo de Israel por suas transgressões é descrito no Deuteronômio (31:18) dizendo que Deus afirmava “esconderei Meu rosto” do povo, em clara alusão ao seu distanciamento de toda a sua atitude dialogal. Por outro lado, o diálogo do indivíduo com o seu próximo é essencial na cosmovisão bíblica. Os dias de real paz, nos quais o Criador se voltará novamente para o homem, são visualizados por Sofonias (3:9) como aqueles nos quais o próprio Deus ajudará ao homem a encontrar o idioma claro que permita a todos os povos invocar o Seu nome e servir-Lhe ombro a ombro.


Cabe perguntar então: por que esse ideal bíblico continua a manter-se tão distante da realidade humana? Centenas de séculos nos quais a História registra um sem número de guerras, matanças atrozes, perseguições, que em muitos casos foram cometidos “em nome de Deus”, são o triste testemunho de uma esperança que parece impossível de se materializar no seio do humano. Como explicar tal fenômeno do ponto de vista bíblico? Nos textos bíblicos, Deus se revela ao homem exigindo que o mesmo realize os atos da sua vida baseado em dois conceitos: a crença Nele e a rejeição absoluta a todo o pagão.

No texto dos Dez Mandamentos aparecem esses conceitos com total clareza. No primeiro, Deus se revela ao povo dizendo “Eu sou o Eterno, teu Deus”, no segundo exige a rejeição a todo culto pagão. “Não terá outro deus adiante de Mim. Não farás para ti imagem alguma…” O paganismo não deve ser entendido exclusivamente como o mero culto a imagens ou às forças da natureza. Ao antepor um sentimento com características egoístas, egolátricas e egocêntricas a todo outro que permite e é coadjuvante de um diálogo sincero com o próximo e com Deus, nos encontramos diante de uma atitude claramente pagã.

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F É CO MPA RTILH ADA

A Bíblia oferece, em seus relatos e escritos proféticos, muitos exemplos de personagens que, sob as vestes da devoção a Deus, sustentavam uma abjeta atitude pagã. Nem sempre o povo era capaz de diferenciar entre o falso e o verdadeiro profeta, e é por isso que, em várias ocasiões, o texto ensina padrões e normas para distinguir entre um e outro. Com um léxico excelso em bocas inescrupulosas, pode-se propagar, às vezes, o paganismo mais miserável. As religiões foram utilizadas frequentemente, no passado, como um elemento político, e sua mensagem, seus fins e essências foram tergiversados por líderes carentes de escrúpulos, incautos, ou espiritualmente superficiais. É por isso que, a partir dos tempos modernos, as religiões foram acerbamente julgadas e, frequentemente, não se costumava distinguir nas críticas entre a religião como instituição e a religião como a universal expressão de profundo componente do espírito humano. Nesses tempos pós-modernos nos quais alegremente se proclamou o fim dos ideais, por ocasião das tragédias que a cegueira espiritual

perpetrou no século XX, um asfixiante vazio espiritual oprime grande parte da humanidade. A proposta dialogal, que antepõe a Bíblia ao homem de todos os tempos, permanece como um dramático desafio pendente na realidade humana. A mesma dá forma à essência que permitirá ao indivíduo reconhecer o sublime que se encontra nele, pois, para poder dialogar com o outro, devese primeiramente aprender a dialogar consigo mesmo. Tal atitude, por outro lado, lhe permitirá reconhecer plenamente a seu próximo e a seu Criador. Sob essa perspectiva devem ser analisados os esforços dos homens de fé de todos os credos, que buscam com afã erguer as barreiras de desencontro, encravadas em um passado obscuro, que impedem de alcançar um futuro no qual as profecias, que permitiram aos nossos antepassados manterem-se incólumes mesmo nos momentos mais obscuros, possam materializar-se. Sirvam essas reflexões como esperança renovada para nossas vidas e como uma saudação afetuosa à Comunidade SIBRA, junto com meus melhores votos de Shaná Tová Umevorechet

A BÍBLIA HEBRAICA, TEXTO FUNDAMENTAL DAS TRÊS GRANDES RELIGIÕES DA HUMANIDADE, É CONSTITUÍDA ESSENCIALMENTE POR DIÁLOGOS. O TEXTO NOS ENSINA QUE A PERENE EXPECTATIVA DE DEUS É DE DIALOGAR COM O HOMEM 36


Continuidade

37 SIBRA, EM PORTO ALEGRE (FOTOS: ROBINSON ARONIS)


N O RUMO DA EVOLU ÇÃO

Israel e Diáspora conectadas na reforma EXERCÍCIO CONSCIENTE DO JUDAÍSMO ABRE PERSPECTIVAS DE ESPERANÇA EM UM MUNDO QUE ENFRENTA OBSTÁCULOS PARA O PROCESSO CIVILIZATÓRIO POR REUVEN MARKO Ex-Presidente do Israel Movement for Reform and Progressive Judaism (IMPJ)

Caros amigos, as distâncias físicas podem cobrir muitos quilômetros _ no nosso caso, a distância entre Israel e o Brasil é de mais de 11 mil quilômetros. Todavia, para nós judeus a distância, por enorme que seja, significa pouco, porque estamos sempre próximos nos corações. No momento em que Rosh Hashaná e Iom Kipur pairam sobre nós, as distâncias tornam-se cada vez menores, os nossos corações batem em harmonia ao celebrarmos mais uma vez o início de um ciclo de antigas tradições judaicas. Podemos dar-lhes um toque e uma sensação modernos, mas nos ligam às nossas raízes comuns mais profundas, não importa se somos judeus há muitas gerações, ou se acabamos de nos converter para a nossa fé. É uma grande oportunidade anual de olharmos para o ano que passou e esperarmos ansiosamente o ano vindouro. Aqui em Israel estamos enfrentando uma série de desafios, algumas que ocorrem apenas na nossa região, outras comuns em todo o mundo. Eu sei que o mesmo também ocorre com vocês. Ao pensarmos sobre nós mesmos, nossas famílias, comunidades, países e o mundo, encontraremos muitos assuntos em comum que podemos celebrar ou que requerem a nossa atenção para medidas a curto e longo prazo. Ficamos com o coração partido quando vimos a grande devastação na Amazônia, incêndios em níveis sem precedentes numa época em que todos precisamos dar

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a nossa atenção à saúde do globo que compartilhamos e do qual dependemos. Há desafios políticos de muitos tipos, especialmente porque a política de hoje tornou-se mais agressiva e com uma linguagem muito abusiva que nos lembra de períodos passados que nunca mais queremos vivenciar. Dito isso, ainda precisamos olhar o ano vindouro com otimismo. Eu acredito no espírito dos seres humanos, tanto homens como mulheres, no espírito que exige mudança, que busca igualdade e que exige justiça. Esses são valores que compartilhamos e que prezamos; esses são valores que conhecemos no fundo do nosso coração. Mesmo quando parece que estamos dando passos para trás, ainda assim há esperança, porque o espírito está sempre presente. É uma chama interior de liberdade que nos impulsiona para a frente. Recentemente, encerrei meu mandato como presidente do conselho de administração do Movimento pelo Judaísmo Reformista e Progressista de Israel. Foi um privilégio e um desafio servir ao mundo judaico nessa atividade. Durante meu tempo no conselho, o número de congregações dobrou, e nos tornamos um fator que precisa ser levado em conta na política de Israel. Nem sempre somos bem-sucedidos, mas estamos no jogo para ganhar. Também estamos comprometidos com nossos irmãos e irmãs em todo o mundo, e nos esforçamos para alcançar um nível cada maior de cooperação, intercâmbio e reuniões. Neste ano, a bienal do IMPJ será em 5 e 6 de junho de 2020, e queremos incentivá-los a participar do nosso International Track e celebrar a vida do judaísmo reformista em Israel. Shana Tová U’Metukah para todos vocês!

PARA NÓS JUDEUS A DISTÂNCIA, POR ENORME QUE SEJA, SIGNIFICA POUCO, PORQUE ESTAMOS SEMPRE PRÓXIMOS NOS CORAÇÕES 39


A PREN DENDO COM LAZ ER

Colônia de Férias de Verão ARTICULISTA EXPLICA COMO ESSES EVENTOS CONSEGUEM FORTALECER A IDENTIDADE JUDAICA E MOSTRAR AS AMPLAS MANEIRAS DE EXERCÊ-LA POR ANDREW KEENE Membro do Comitê Executivo da World Union for Progressive Judaism, Washington D.C.

No decorrer da história judaica moderna, poucas experiências têm sido melhores para criar amor pelo Judaísmo do que a colônia de férias de verão. Embora essa colônia de férias judaica faça parte do ambiente comunitário judaico desde a virada do século passado, o Judaísmo reformista está, há muito tempo, na vanguarda dessas experiências. Além disso, as colônias de férias progressistas, tanto nos Estados Unidos quanto no resto do mundo, servem como laboratórios vivos para o movimento, criando um ambiente aberto a experiências e à exploração – redefinindo o que é possível na vida judaica moderna. Essas experiências de 40

colônias de férias penetram na vida da sinagoga e, em muitos casos, com o tempo tornam-se uma tendência dominante. Há muitas maneiras pelas quais as colônias de verão servem como o motor que propulsiona o avanço do nosso movimento. Essa foi certamente a minha experiência após quase uma década de envolvimento com a colônia de férias URJ Kurtz Camp, a colônia de verão para lideranças adolescentes do movimento reformista, localizada em Warwick, Nova Iorque. A minha vida foi profundamente impactada pela colônia de férias de verão, e as minhas experiências como participante, funcionário, docente e dirigente comunitário conformaram não apenas a minha identidade judaica, mas também as minhas ambições profissionais e filosofia de liderança. Agora que penso em como fui impactado pela colonia de férias, e como a colonia de férias teve impacto no nosso movimento, três temas


principais me vêm à mente: o Povo Judeu, a Identidade Judaica e a Exploração Pessoal. Um dos marcos da experiência da colônia de férias é a riqueza de uma comunidade temporária constituída de jovens de muitas comunidades diferentes. Algumas colônias ficam em regiões do país onde determinado participante talvez seja o único aluno judeu na sua escola, onde a maior congregação possivelmente seja de 50 famílias. Para jovens como esses, a colônia de férias é uma experiência reveladora – conhecer judeus de muitos lugares e compreender, talvez pela primeira vez, que fazem parte de um Povo muito maior. Para mim, a experiência reveladora foi conhecer outros participantes de todo o mundo. Os verões que passei ligado à colônia me permitiram fazer amizade com judeus de Israel, Países Baixos, África do Sul, Reino Unido, e outros lugares. A oportunidade de passar algumas semanas junto com judeus de outras regiões do mundo mudou profundamente minha maneira de ver e entender o conceito de Povo Judeu. Essa diversidade também permite às colônias de férias serem um ponto de encontro onde costumes e tradições de uma parte do movimento global penetram outra parte. Por meio do meu envolvimento com a WUPJ, muitas vezes visito congregações e fico sabendo que uma melodia ou tradição singular foi trazida à comunidade por um estudante que voltou de uma colônia de férias em outra região do mundo. A colônia de férias de verão também dá aos jovens a capacidade de continuar a desenvolver, de se evolver e de solidificar sua identidade judaica de uma forma que não pode ser feita em

outros ambientes. A confluência do ambiente informal, comunidade diversificada e rotatividade de professores e músicos convidados cria uma atmosfera na qual os jovens podem dar forma à sua identidade judaica em duas direções. Por um lado, um professor ou membro do corpo docente poderá criar uma experiência de oração ou espiritualidade da qual o participante não tem outra escolha senão participar – esperemos que isso expandirá a sua visão daquilo que é possível na vida judaica. Por outro lado, os jovens podem assim escolher experimentar outras maneiras de expressar a sua identidade judaica. Para alguns, isso poderá significar usar uma quipá pela primeira vez, ler uma reza em inglês ou hebraico, ou tentar uma nova melodia. Ao passo que as congregações dão valor à consistência no culto, a colônia de férias serve como campo de testes para os jovens. Minha experiência pessoal na colônia de férias deu forma a toda a minha identidade judaica. Enquanto a congregação à qual eu pertencia instilou um compromisso com o

MINHA EXPERIÊNCIA PESSOAL NA COLÔNIA DE FÉRIAS DEU FORMA A TODA A MINHA IDENTIDADE JUDAICA. 41


A PREN DENDO COM LAZ ER

judaísmo, a colônia converteu esse compromisso em amor ao judaísmo, e uma disponibilidade para praticar meu judaísmo de novas maneiras, decidir o que era mais significativo para mim. Todo dia tornou-se uma oportunidade de ser judeu de maneira um pouco diferente, fazer perguntas e buscar continuamente um significado no texto e na tradição judaicos. Afora o conteúdo judaico, a colônia de férias é uma comunidade diferente de uma congregação, escola ou lar, já que não apenas leva em conta, mas incentiva o crescimento pessoal e a exploração proposital. A colônia expõe os jovens a uma ampla série de novas habilidades, atividades e desafios. Enquanto um jovem pode estar profundamente comprometido com um passatempo em casa, a colônia é maneira sem risco de tentar coisas novas apoiado por um ambiente que não julga, onde os pares incentivam e torcem pelos colegas. Erros e fracasso são celebrados na colônia de férias de uma maneira que abre o crescimento pessoal e impele os jovens à realização pessoal. Para mim, o dia em que eu pude subir a torre alpina foi muito 42

significativo, porque venci o medo que eu sempre tive de alturas. Além disso, devido à natureza do pessoal que trabalha lá e dos docentes que passam tempo na colônia, os jovens são expostos a uma grande variedade de profissões, universidades, carreiras a seguir. Os membros do corpo docente que foram meus mentores quando eu era participante acabaram por dar forma à minha paixão pelo desenvolvimento organizacional e de liderança, habilidades que viriam a ser fundamentais para a minha vida profissional. A colônia de férias não é apenas divertida – é uma experiência profunda que forma jovens confiantes, judeus comprometidos e mentes curiosas. A colônia de verão não é apenas um lugar – é uma comunidade que transcende o tempo e a geografia. Sinto-me abençoado por ter sido formado e inspirado por minhas experiências na colônia de férias, sortudo por ter feito amigos para vida toda e energizado para assegurar que os jovens judeus de todo o mundo tenham capacidade e oportunidade de serem transformados para sempre pela colônia de férias.


Raízes

Família

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REFL EXÕ ES S OBRE A FÉ

O Deus enforcado TEXTO ABORDA A PRESENÇA DIVINA EM MOMENTOS DA HISTÓRIA POR DENIS ROSENFIELD filósofo

Elie Wiesel, em seu livro “A noite”1, relata a cena impressionante de enforcamento de uma criança, “um anjo com olhos tristes”2, em um ritual que propriamente deveríamos denominar de tenebroso, de macabro. Dois adultos foram também simultaneamente enforcados. Acontece que esta criança, devido a seu pequeno peso, agonizou, dependurada, durante meia hora, com a língua ainda vermelha e os olhos não apagados. Um silêncio absoluto reinava no campo. De repente, atrás de Wiesel, um homem lhe fez a seguinte pergunta: “- onde está então Deus? E eu sentia em mim uma voz que lhe respondia: - onde está ele? Aqui, - ele está pendurado aqui, nesta forca...”3. Choca nesta morte a sua falta de sentido. Há mortes que correspondem a um ciclo natural de vida que, por mais que nos afetem no caso de familiares, por exemplo, não deixam de fazer sentido, pelo menos considerando as condições da finitude humana. As diferentes religiões encontram formas de dar sentido a elas, seja assegurando uma outra vida, seja obedecendo a rituais de passagem com suas preces correspondentes. Há, em todo caso, um arcabouço religioso e conceitual que lhes confere significação. Tudo, no entanto, muda se nos confrontamos com um tipo de morte que foge a todos os arcabouços filosóficos, religiosos e teológicos, suscitando, então, a pergunta – plena de sentido – “onde está então Deus?”, feita em um contexto sem sentido. 1 Wiesel, Elie. La nuit. Paris, Les Éditions de Minuit, 2001. 2 Ibid., p. 102-3. 3 Ibid., p. 103. 44

Formulações do conceito de Deus que estariam baseadas em posições do tipo “Eclipse de Deus” ou “Deus absconditus” são manifestamente insuficientes, pois sempre caberia a pergunta de “por que ele teria se eclipsado em um momento destes?”; ou “a de que pode bem significar um Deus que se esconde diante de um mal que afeta o próprio conceito de existência humana?”; ou “a de onde estariam os atributos da bondade e da onipotência divinas?”; ou “a de se seriam eles falhos ou incompletos, em cujo caso perderiam o seu caráter de absoluto e de perfeição?”. Trata-se de perguntas sensatas, elaboradas segundo os parâmetros conceituais de toda uma tradição filosófica, teológica e religiosa. Ainda desde uma perspectiva filosófica, poder-se-ia colocar a questão do significado da


existência de Deus, pois o que bem poderia dizer um Deus existente destituído de sua onipresença. Deus existiria, porém não teria estado presente em Auschwitz, como se não existisse naquele momento. Ora, o conceito de Deus enquanto existência perene e necessária não poderia prescindir, precisamente, de sua presença atual em todos os momentos temporais, dada a sua eternidade que se situa para além do tempo e de sua sucessão. Quando falamos corriqueiramente de algo existente, vinculamos implicitamente a ideia de sua presença atual, de algo que se encontra ao alcance da mão ou de algo que pode ser reativado ou, se ausente, tornado presente de uma ou outra maneira. Ocorre que, com Auschwitz, surge uma ruptura radical entre a existência de Deus e a sua presença em um universo concentracionário e de extermínio. Tampouco poderíamos recorrer à fórmula nietzscheana de que “Deus está morto”, pois ele não teria aguardado o “enforcamento concentricionário” para morrer, correspondendo, mais bem, a uma discussão interna entre filósofos, situada, igualmente, no interior de uma certa tradição, onde adquire significação. Há uma necessidade presente de criação de um novo conceito que dê conta de algo teologicamente e filosoficamente novo a ser pensado. E talvez o caminho desta elaboração poderia consistir na seguinte expressão: tratar-se-ia do “Deus enforcado”? A voz da resposta provém, no caso, da interioridade de um judeu cuja fé foi arrasada nos campos de concentração e, ainda assim, dá uma resposta cuja forma paradoxal ecoa a

própria tradição teológica judaica. A resposta, em seu caráter paradoxal mesmo, em seu caráter propriamente aterrador, situa-se dentro de toda uma tradição religiosa e teológica que tem no Livro de Jó um dos seus pontos marcantes. Contudo, inclusive no seu interior, coloca-se a questão de um tipo de morte que visa não somente à existência dessa criança ou desses dois adultos, mas à existência mesma do povo judeu. O que poderia bem significar o Deus de Abraão, Isaac e Jacó se o objetivo de eliminação do povo judeu enquanto tal tivesse sido atingido? O que poderia bem significar Deus cuja existência foi enunciada por um povo e, por seu intermédio, ganho uma outra forma de universalidade pelo cristianismo? Os pensamentos de Pascal, por exemplo, nem poderiam ter sido enunciados. Ou ainda, o que poderia significar o monoteísmo sem a existência do povo judeu, o povo que o enunciou e lhe deu forma? A expressão “Deus enforcado” sinaliza para uma postura filosófica de novo tipo, não restrita a argumentações filosóficas contrapostas a outras argumentações filosóficas, a formas de fazer

DEUS EXISTIRIA, PORÉM NÃO TERIA ESTADO PRESENTE EM AUSCHWITZ, COMO SE NÃO EXISTISSE NAQUELE MOMENTO. 45


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filosofia que se limitem à análise das formas lógicas da linguagem ou a novos enfoques de filósofos e de suas obras à luz de novas questões linguísticas; ela remete, mais bem, à necessidade de introdução de uma nova relação entre a história e a filosofia, colocando a história no centro da reflexão filosófica propriamente dita. A filosofia deveria confrontar-se ao mundo real e deixar o conforto da Academia e de suas formas de retribuição e reconhecimento. Em outra linguagem, Auschwitz coloca a questão de outra forma de formulação das relações entre o a posteriori e o a priori, pois o seu próprio evento se situa fora – ou à margem – dos que pensam a partir dessas distinções. Ou ainda, poderíamos redizer a mesma coisa perguntando-nos pela forma de ingresso do empírico no conceitual. Repensar a condição humana aponta para esta direção. Nos campos de concentração, o mundo está invertido, a reviravolta é completa. Nem a prece possui a mesma significação, em uma situação limite em que tudo parece perder sentido. A busca de sentido não deixa de ser, de certa maneira, insensata. Outra cena de reverso da realidade é descrita por Wiesel4, quando sozinho com seu pai, sua mãe e irmãs já tendo sido encaminhadas aos fornos crematórios, ele observa que os homens começam a recitar o Kadisch, a reza dos mortos. Acontece o mais inusitado, a saber, os recitantes rezam para si mesmos, à espera de seu fim próximo. Ora, o Kadisch é recitado por familiares que, assim, honram os seus mortos, jamais uma reza de vivos em relação à sua própria morte. A sua pergunta é das mais pertinentes, significando, precisamente, essa reversão da realidade e da normalidade: “não sei se já aconteceu, na longa história do povo judeu, que os homens recitem a reza dos mortos em relação a eles mesmos”5. Para uma morte única, a desta forma extrema de maldade, uma reza também única, numa completa reviravolta da realidade e, mesmo, daquilo que a humanidade tinha, até então, por natureza humana. Se a natureza humana cessa de ser aquilo que era considerado enquanto tal, se essa espécie de mal invade a vida dos homens, se mortos4 Ibid., p. 57. 5 Ibid., p. 57. 46


vivos recitam a sua própria reza de morte, nossas categorias e pensamentos já não mais servem para descrever e explicar tal tipo de realidade. Wiesel, teologicamente perplexo, faz a seguinte exclamação: “pela primeira vez, senti a revolta crescer em mim. Por que deveria santificar Seu Nome? O Eterno, Senhor do Universo, o Eterno todo poderoso e Terrível se calava, pelo que iríamos agradecer-Lhe?”. De onde poderia vir a santificação de seu nome se os judeus foram de tal maneira abandonados? Qual seria o nome de Deus se o seu mundo criou essa forma de maldade? Que criação é esta? A questão, portanto, dirige-se à natureza mesma de Deus, ao que ele é. Não se trata de uma questão ancorada apenas no nome de Deus, em suas diferentes denominações, mas de algo mais profundo por assim dizer, concernente à sua própria essência. Considerando o que permitiu

que fosse feito ao povo judeu, ele termina por colocar em xeque a sua própria mensagem, começando na particularidade desta tribo, e dirigindo-se universalmente ao gênero humano, ao seu aperfeiçoamento moral. Ou seja: “O que és Tu, meu Deus, pensava com cólera, comparada a essa massa dolorida que vem Te gritar a sua fé, a sua cólera, a sua revolta [nesta noite de Rosh Hashaná]. O que significa a Tua grandeza, senhor do Universo, frente a toda essa fraqueza, frente desta decomposição e desta podridão?”6. A pergunta, encolerizada, sobre a natureza de Deus se cruza com a reza em um campo de concentração tendo como contexto maior a festividade de Rosh Hashaná, o ano novo judeu, em uma situação onde não há nada a ser comemorado. Como pode Deus ser louvado, honrado e reconhecido se os seus “crentes” são remetidos à podridão, à desonra, à completa 6 Ibid., p. 105. 47


REFL EXÕ ES S OBRE A FÉ

falta de reconhecimento, deixando progressivamente de ser humanos? Como podem esses não mais humanos bem-dizer Aquele que os criou? Ou teria Ele os criado para ser tragados na total desumanidade, no mal extremo? Como pode se produzir uma situação de mútuo reconhecimento se não-mais-homens nada mais podem esperar, senão que maldade se exerça com ainda mais força sobre eles? Em situações deste tipo, formulações como a de Abraham Joshua Heschel7, segundo o qual Deus responde aos que O procuram, aos que por Ele clamam, carecem de significação, pois os que pereceram nos campos de concentração foram os que clamaram por Deus. Disseram, mesmo, o Kadish em relação a si mesmos em uma condição extrema. Deus omitiu-se diante dos que O procuraram e louvaram, escondeu-se deles. O oficiante do serviço religioso, pois disto mesmo ainda se tratava nesta condição extrema, parava a cada instante, “como se ele não tivesse a força de reencontrar sob as palavras o seu conteúdo. A melodia se estrangulava em sua garganta”8. Qual é bem o significado de bem-dizer a Deus, de pronunciar essas palavras se elas perdem o seu sentido no contexto em que são proferidas? As palavras se divorciam do seu significado dado por toda uma tradição religiosa, que, na nova condição, é praticamente e teologicamente questionada pelos nazistas, por aqueles que se colocam, precisamente, enquanto instrumentos desta nova forma de maldade? O que pode bem ser a melodia religiosa se não há nada a ser cantado, nada a ser comemorado? Wiesel, então, qualifica a sua própria posição como a de um “observador estrangeiro”9, estrangeiro a toda essa tradição religiosa, teológica e filosófica, o que lhe permite fazer, precisamente, esse tipo de indagação. Ou ainda, ao se situar fora desta comunidade de linguagem, fora desta forma de vida, fora dessas regras que a regem, dentre as quais as religiosas, ele pode, assim, elaborar uma outra forma de questionamento, onde conceitos tais como vida, morte, transcendência e condição – e natureza - humana ganham uma outra significação. 7 Heschel, Abraham Joshua. God in Search of Man. New York, Farrar, Straus and Giroux, 1976. 8 Wiesel, op. cit., p. 106. 9 Ibid., p. 107. 48


Futuro

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P RATA DA CASA

O otimismo como solução NO LABIRINTO DA VIDA, O IMPORTANTE É SER SEMPRE OTIMISTA PARA ENCONTRAR A SAÍDA POR RABINO GUERSHON KWASNIEWSKI

Estamos prontos para iniciar um novo ano conforme o calendário judaico. Rosh Hashaná é a entrada no labirinto. Entramos todos juntos, mas será que conseguiremos sair todos juntos? Tem gente que gosta arriscar, tem instinto aventureiro, se separa do grupo ou não tem paciência de esperar pelos outros. Terá sucesso em encontrar a saída? Quantos terão que enfrentar os seus próprios medos para encarar o desafio do caminho? Quais serão as preocupações e os obstáculos que teremos que enfrentar: cansaço, preguiça, dores, enjoos, doenças, insatisfação pelo rumo, inimigos 50

internos ou externos, desesperança, falta de motivação para prosseguir? A intuição me leva para um lado, a realidade para outro. Confio no grupo, estou à vontade com aqueles que me rodeiam, posso revelar os meus palpites e segredos, posso confiar a minha palavra sem ser ridicularizado? Que haverá de novo entre a entrada 5780 e a saída 5781? Tenho alguma outra chance, as regras não me permitem ficar parado, o tempo para chegar ao destino está correndo e não o posso deter. Posso deixar de jogar? Consigo sair do labirinto ou acabarei entrando em outro? Estão aqueles que fazem parte do grupo, os visionários. Mas não podemos incomodálos. Estão os que se lembram de nós quando necessitam algo – somos tratados como seres descartáveis. Estão os que dão pena e não podemos abandonar. Se continuarmos unidos e com respeito, teremos maiores oportunidades de trocar conhecimentos e experiências que nos levem a encontrar a saída.


Juntos, jovens, velhos, adultos, crianças. Os sábios e os experientes nos ajudarão a calcular o ritmo dos nossos passos, os momentos de parada, a hora do descanso, a distribuição de alimentos e agasalhos, a administração da carga e as reservas, eles orientarão o rumo e nos motivarão a cada passo. O GPS da Fé será acionado por Ele, o sinal não vai cair, temos que confiar. Assim como confiaram os nossos antepassados, assim como confiaram os nossos avos na hora de atravessar o oceano, assim como confiam os nossos filhos na hora de partir à procura de seus próprios destinos. As forças estão intactas, o otimismo gigante. Não penso na saída, penso em curtir cada passo, necessito estar bem rodeado, um sorriso no rosto de alguém no qual possa espelhar o meu sorriso, uma palavra de estímulo que alimente o meu ser a cada dia. Um abraço, uma caricia, que me façam sentir amado, uma lágrima que me torne mais humano. Iremos encontrar surpresas, contratempos, pausas no andar. Shemá Israel, Escuta Israel!!!!! Acorda, estás pelo bom caminho, falta pouco, falta muito, não sabemos. Temos a vantagem de carregar um manual de 5780 anos de histórias, temos um passado e uma memória que nos torna fortes, uma fé cega no Criador. O importante não é apenas chegar, é como chegar. Estaremos plenos, radiantes ou não teremos coragem de olhar o espelho da vida? Guardaremos boas lembranças do caminho ou desejaremos apagar o nosso HD interno e externo? Não temos escolha, o ano começou, não podemos nem temos direito de voltar. Vamos encarar, e, se formos juntos, melhor. Aqueles que querem arriscar sozinhos boa sorte! O tempo que tenha que estar entre vocês, que possa ser pleno, que seja intenso, mas que não seja cansativo nem esmagador. Que o esforço seja compensado, os pedidos atendidos e as palavras muitas para agradecer por termos chegado ao destino. Labirinto da vida, atravessando o portal do ano 5780, em nossas marcas, prontos, já!

GUARDAREMOS BOAS LEMBRANÇAS DO CAMINHO OU DESEJAREMOS APAGAR O NOSSO HD INTERNO E EXTERNO? 51


Calendário judaico

5780 •

Rosh Hashaná começa ao pôr do sol do dia 29, termina ao anoitecer do dia 2 de outubro.

outubro. Sucot começa ao anoitecer do dia 13 de outubro, termina ao anoitecer do dia 20 de outubro. •

Purim começa ao pôr do sol de 9 de março e termina ao anoitecer do dia 10 de março

Pêssach começa ao pôr do sol de 8 de abril, termina ao anoitecer do dia 16 de abril.

Iom HaShoá, 21 de abril

Iom Hazikaron começa ao pôr do sol de 27 de abril, termina ao anoitecer do dia 28 de abril.

Iom Haatzmaut, 72 aniversário do Estado de Israel, começa ao pôr do sol de 28 de abril,

Shemini Hatzeret e Simchat Torá começa ao pôr do sol do dia 20 de outubro e termina ao

termina ao anoitecer do dia 29 de abril.

anoitecer do dia 21 de outubro. Hakafot- dança

Lag Baômer, 12 de maio.

com as Torot, na noite de 21 de outubro; a

Shavuot começa ao pôr do sol de 28 de maio,

festividade encerra no por do sol do dia 22/10. •

Iom Kipur começa ao pôr do sol do dia 8 de outubro, termina ao anoitecer do dia 9 de

Tu Bishvat, 10 de fevereiro.

Visita aos cemitérios, 29 de setembro, pela manha.

Chanuka começa ao pôr do sol de 22 de dezembro, termina no anoitecer do dia 30 de dezembro.

termina ao anoitecer do dia 30 de maio. •

Tishá be Av, começa ao pôr do sol do dia 29 de julho, termina ao anoitecer do dia 30 de julho.

84 aniversário da SIBRA, 29 de agosto.

CONTRIBUA COM A SIBRA Se você deseja realizar uma contribuição para a nossa entidade ou quer apoiar algum dos nossos projetos, faça o seu donativo realizando um depósito no banco Unicred Porto Alegre (136), agência 2710, conta 64050-6, CNPJ 93014926/0001-17 ou entre em contato com a nossa secretaria pelo telefone (51) 3331-8133. 52


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