A importância da literatura infanto-juvenil na construção da identidade étnico-racial das crian...

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO –CAMPUS I COLEGIADO DE PEDAGOGIA

LUANA VIDAL DOS SANTOS BORGES

A IMPORTÂNCIA DA LITERATURA INFANTO-JUVENIL NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE ÉTNICO-RACIAL DAS CRIANÇAS NEGRAS DO LAR JOANA ANGÉLICA

Salvador 2008


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LUANA VIDAL DOS SANTOS BORGES

A IMPORTÂNCIA DA LITERATURA INFANTO-JUVENIL NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE ÉTNICO-RACIAL DAS CRIANÇAS NEGRAS DO LAR JOANA ANGÉLICA Monografia apresentada ao Curso de graduação em Pedagogia, Universidade do Estado da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Pedagogia Anos Iniciais, sob orientação do Prof. Dr. Raphael Rodrigues Vieira Filho.

Salvador 2008


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LUANA VIDAL DOS SANTOS BORGES

Monografia apresentada ao Curso de graduação em Pedagogia, Universidade do Estado da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Pedagogia Anos Iniciais, sob orientação do Prof. Dr. Raphael Rodrigues Vieira Filho Salvador, _____ de ________________ de 200___.

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Dedico este trabalho primeiramente a minha mãe Maria Luiza Vidal, meu maior exemplo e primeira mulher negra da minha vida, por todo o seu amor e dedicação ao longo desses 23 anos. Dedico esse trabalho também à família Vidal pelo exemplo de vida , em especial a mulheres desta família: Célia Maria, Márcia Sueli e Celina Ferreira Vidal, esta última in memoriam. Ao meu querido orientador o Prof° Dr. Raphael Rodrigues Vieira Filho, que tanto me ajudou ao longo da minha graduação, mas principalmente na construção deste trabalho.


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AGRADECIMENTOS

Minhas primeiras palavras de agradecimento são para o Lar Joana Angélica pela confiança e acolhimento, mas também por me fazer acreditar que uma educação diferente é possível. E em especial a Jussara Rocha coordenadora da Instituição.

Agradeço as parceiras e amigas que iniciaram comigo esta caminhada Luciana e Patricia Silva, e que em todos os momentos se fizeram presentes, ainda que a distância física tentasse nos afastar. As minhas grandes amigas Michele Abade, Lívia Pereira, Ana Vanine, Suze Tavares, Lílian Carvalho e Patrícia Regina, eu não teria chegado aqui sem o apoio de vocês.

À Zezé Olukemi, pela compreensão e companheirismo em todos os momentos.

Aos inesquecíveis mestres Valdélio Silva, Marcos Luciano Messeder, Delcele Mascarenhas, Teresinha Bottas e Ana Célia Silva pelos ensinamentos.

A minha eterna gratidão à professora Maria Anória Oliveira, por toda a sua generosidade e estimulo ao longo desta caminhada.

Ao Núcleo de Estudos Afrouneb Salvador, pela oportunidade de ampliar os meus conhecimentos acerca das relações étnico-raciais, e estimular o meu interesse por estudos como este aqui realizado. A todos que de forma direta ou indireta me apoiaram, meus sinceros agradecimentos.


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“Desde criança, éramos treinados a observar, olhar e estar com atenção que todo acontecimento se inscrevia em nossa memória como cera virgem”.

(Hampaté Ba)


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RESUMO Este estudo primará por apontar como se forma e quais as principais características da literatura infanto-juvenil brasileira. Para isso o mesmo busca descrever como a tradição oral africana influencia nesse processo e aponta a relevância dos estudos das imagens na construção do imaginário da criança negra. Imaginário este influenciado diretamente pelas representações de personagens negros, trazidas em diversas histórias, tanto na oralidade quanto na escrita. Essas representações são cercadas de elementos pejorativos, depreciativos, de conteúdos racistas, preconceituosos e discriminatórios. Como as mesmas influenciam diretamente no processo de construção da autoimagem desta criança e da sua aceitação enquanto o individuo pertencente ao grupo étnico negro. A partir dos anos 80 o cenário literário infanto-juvenil brasileiro aponta algumas inovações na representação dos personagens e são essa representações que muito chamaram a atenção desta pesquisa e é a partir do que essa obras trazem que irei a campo perceber como as crianças negras se relacionam com essas novas representações negras nas obras literárias e como isso poderá influenciar na construção da identidade dessas crianças. A escola é com certeza um dos principais locais onde a criança negra terá contato com essas representações, então, lançar um olhar sobre esse ambiente se fez necessário neste estudo. Por fim, relatarei como se deu o processo de observação feito na escola comunitária Lar Joana Angélica, a fim de perceber como se configura esta dinâmica, relações étnico-raciais, criança negra e literatura, de forma prática e não mais apenas teórica. Palavras-chave: Literatura Infanto-juvenil.Criança Negra.Identidade Étnico-racial.Educação


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ABSTRACT

This study it will primarĂĄ for pointing as if form and which the main characteristics of Brazilian infanto-youthful literature. This the same searchs to describe as the African verbal tradition influences in this process and points the relevance of the studies of the images in the construction of the imaginary one of the black child. Imaginary this influenced directly for the representations of black personages, brought in diverse histories, as much in the orality how much in the writing. These representations are surrounded of pejorativos, contemptuous elements, of racist contents, prejudiced and discriminatory. As the same ones influence directly in the process of construction of the autoimagem of this child and its acceptance while the pertaining individual to the black ethnic group. From 80 years the literary scene infanto-youthful Brazilian points some innovations in the representation of the personages and is these representations that much had called the attention this research and are from what these workmanships bring that I will go the field to perceive as the black children if they relate with these new black representations in the literary compositions and as this will be able to influence in the construction of the identity of these children.The school is, certainly, one of the main places where the black child will have contact with these representations, then, it look at this environment it is necessary in this work. Finally, I will report as it was happened the process of observation in a community school, Lar Joana AngĂŠlica, aiming to understand how to setup this dynamic, ethnic-racial relations, black child and literature, in a practical way rather than just theoretical

Key-words: Literatureinfanto.Afro Children. Ethnic-Racial


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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Chegada de Luana a Palmares.......................................................................34 Figura 2 - Dança comunitária no batizado.......................................................................35 Figura 3 – A mãe de Adika na feira..................................................................................36 Figura 4 – Mapa de Povos Africanos................................................................................37 Figura 5 – Luana e família.................................................................................................38 Figura 6 – Bintou e sua avó................................................................................................39 Figura 7 – Mzee Odolo pescando.......................................................................................40 Figura 8 – Luana e comunidade de Palmares..................................................................40 Figura 9 - Bintou e sua irmã...............................................................................................42 Figura 10 - Capa do Livro Histórias da Preta..................................................................43 Figura 11 - A Feira..............................................................................................................43 Figura 12 – Festa de Caboclo.............................................................................................45 Figura 13 – Zumbi...............................................................................................................46 Figura 14 – Reunião para refeição....................................................................................47 Figura 15 – Reunião para refeição 2.................................................................................47 Figura 16 – Comunidade festeja Bintou...........................................................................49


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LISTA DE TABELAS

Quadro 1 – Perfil das mulheres do Lar Joana Angélica..................................................58

Quadro 2 – Perfil da Turma de alfabetização..................................................................63


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SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO...............................................................................................................12 2 LITERATURA INFANTO-JUVENIL UM GÊNERO EM CONTSRUÇÃO...........16 2.1 A literatura e suas múltiplas significações.....................................................................16 2.2 A tradição oral africana e a literatura infanto-juvenil....................................................17 2.3 Revelando a linguagem iconográfica.............................................................................20 2.4 Surgimento da literatura infanto-juvenil........................................................................22 3 PERSONAGENS NEGROS NA LITERATURA INFANTO-JUVENIL: CONSTRUINDO UM NOVO CAMINHO.......................................................................28 3.1 Literatura infanto-juvenil pensada para a criança(o) e o jovem negra (o)......................30 3.1.1 Resgate da ancestralidade e releitura da escravização.................................................31 3.1.2 Áfricas..........................................................................................................................34 3.1.3 Origens bem definidas e a representação dos mais velhos para comunidade..............37 3.1.4 Apreço às figuras femininas e a valorização da estética negra ...................................41 3.1.5 A religiosidade em pauta.............................................................................................44 3.1.6 Heróis Negros..............................................................................................................45 3.1.7 Valorização das relações comunitárias........................................................................46 3.1.8 Ações valorizadas por si e pelo seu entorno................................................................48 4 LAR JOANA ANGÉLICA.............................................................................................50 4.1 Identidade e educação das relações étnico-raciais..........................................................51 4.2 Os Caminhos Até O Lar Joana Angélica........................................................................55 4.3 Lar Joana Angélica: Do Surgimento Aos Dias de Hoje.................................................57 4.4 As Mulheres do Lar Joana Angélica...............................................................................58 4.5 A Estrutura Física............................................................................................................61 4.6 O Encontro dos Educandos do Lar Joana Angélica........................................................62 4.7 O Encontro dos Educandos com A Literatura Infanto-Juvenil.......................................63 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................71 REFERÊNCIAS..................................................................................................................72 ANEXOS


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1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa apresentar e discutir a importância da literatura infanto-juvenil na construção da identidade étnico-racial da criança negra. E, para a realização da mesma busquei coletar dados em uma escola comunitária no bairro de Valéria, na cidade de Salvador – durante os meses de agosto a outubro de 2008 – além de um embasamento teórico a partir de pesquisa bibliográfica já realizada sobre as temáticas aqui relacionadas, em diversas áreas do conhecimento.

A idéia de pesquisar sobre a relação que a literatura infanto-juvenil estabelece com a identidade negra, começou a partir de estudos no Núcleo de Estudos AfroUneb Salvador (NEAFROUNEB), naquela ocasião em 2007, eu iria construir um artigo que tratasse desta problemática, mas por outras demandas do próprio Núcleo, esses estudos ficaram um pouco de lado, sendo retomados agora para conclusão do curso de Pedagogia.

Outras questões me motivaram a tratar desta temática, dentre elas o meu passado de criança negra, que foi submetida a uma série de situações sociais que influenciaram e determinaram à construção da mulher negra que hoje sou. Além do fato de como educadora negra, me preocupar com as condições que a sociedade, e em especial a escola, oferecem para que a criança negra construa uma cidadania plena e uma maior consciência de pertencimento ao grupo étnico negro.

A condição de leitora compulsiva de obras destinadas ao público infanto-juvenil também se caracteriza como uma das motivações desta pesquisa. Compreendo que a literatura proporciona para a criança a construção de novos conhecimentos; a infância, ao meu olhar, se caracteriza como uma fase de aprendizagens onde tudo que é direcionado à criança, com intencionalidade ou não, acaba servindo como fonte de novos saberes e novas construções.

Compreender a formação e constituição da literatura infanto-juvenil, enquanto um jovem gênero literário é fundante nesta pesquisa. A literatura exerce um papel mobilizador e promotor


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de modificações em escala individual e coletiva. A partir das mudanças que a sociedade sofre os seus instrumentos também são modificados, então a compreensão histórica do surgimento da literatura infanto-juvenil se atrela sensivelmente às modificações sociais.

Para a compreensão das dimensões e significações da literatura, me utilizei dos estudos de Marisa Lajolo &Vera Zilberman(1988), Nelly Coelho(2005) e Fanny Abramovich(1991), sendo esta última uma forte referência nas discussões acerca do papel das imagens na construção de enredos.

A idéia de infância sofre alterações ao longo dos tempos. Se, em determinado momento histórico a criança não passava de um adulto em miniatura, com a expansão industrial ela ganha um caráter particular, forçando a sociedade a produzir instrumentos direcionados e pensados para a mesma, culminando com o surgimento da literatura infanto-juvenil propriamente dita, embora num momento inicial essa literatura não passe de uma reprodução da literatura destinada aos adultos.

A relação estabelecida entre a tradição oral africana no discurso da literatura infantojuvenil também é contemplada neste estudo. É através da oralidade que um maior contingente de crianças negras terá maior contato com a literatura, visto que, o ato de contar histórias é uma característica muito forte da população brasileira, principalmente entre o segmento étnico negro; mas também devido a esta parte de população não possuir uma condição econômica que a leve a consumir de forma constante obras literárias impressas. Além de não sermos um país em que a leitura de obras literárias tenha grande destaque. Neste cenário, a tradição oral se destaca por poder proporcionar a criança uma leitura de mundo mais próxima, mostrando maior independência de outros mecanismos para chegar ao seu leitor. Neste sentido os estudos de Maria Lúcia Kopernick (1999) ajudaram a elucidar essa questão.

A representação do negro nas obras literárias se mostrou historicamente pejorativa, repleta de significações negativas; e essa representação não se ateve apenas às narrativas, mas também às imagens. As narrativas e as imagens constroem enredos, assim como ambas vêm carregadas de significações. Devido a um escasso repertório de representações da realidade social em que está


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inserida, a criança tem na imagem uma possibilidade de compreender melhor a dinâmica da vida, mais do que na narrativa. A imagem é mais determinista que a narrativa, podendo variar conforme o repertório de vida do seu leitor; sem contar que a imagem constrói enredos independentes da apropriação dos esquemas de leitura.

O lugar destinado ao negro na literatura infanto-juvenil, desde os seus primórdios, nunca foi dos mais dignos. Em tempos recentes, alguns pesquisadores debruçaram-se em investigações que pudessem demonstrar o caráter preconceituoso, racista e discriminatório ao qual o negro foi submetido através dessas representações. Dentre eles destacam-se os estudos de Maria Anória (2003), Heloísa Lima (2005) e Ana Célia Silva (1995) – embora esta trate das representações nos livros didáticos, os seus estudos podem completamente ser utilizados na compreensão das representações literárias, pois em muito se assemelham.

A partir desses estudos, busquei compreender como se estabelecem algumas dessas representações e de como elas afetam diretamente na construção do imaginário e da identidade da criança negra, para em seguida apontar possíveis inovações em obras mais recentes. Essa análise se justifica, pois ao ir a campo de pesquisa serão essas histórias aqui analisadas que serviram de instrumento para a minha interação com os educandos da Instituição que aqui será analisada. É bom ressaltar que outras obras – que não serão contempladas nesta pesquisa – também serviram de instrumento nesta interação.

A escola é um espaço privilegiado para a interação da criança negra com a literatura infanto-juvenil, e nesse mesmo espaço a criança negra será desvalorizada, estereotipada e ensinada a rejeitar os signos relacionados à sua origem negra. A violência simbólica a qual esta criança é submetida, afetará na sua aceitação e na construção da autoimagem das mesmas.

O desejo de pertencimento ao grupo étnico branco é uma das marcas desse processo de desvalorização da imagem do negro. Os estudos de Eliane Cavalleiro (2000) são hoje, uma fonte indispensável para a construção de um panorama do lugar que a escola brasileira destina a criança negra.


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Paralelamente aos estudos teóricos senti a necessidade de compreender como essas questões se entrelaçam e se mostram de forma prática; tendo em vista essa questão apontei o meu olhar, agora mais crítico, acerca das relações raciais para uma escola comunitária, o Lar Joana Angélica.

Inicialmente o meu objetivo era perceber a influência que a literatura exerce na construção da identidade dos educandos daquela instituição, mas ao longo do meu percurso, percebi que não obteria esses resultados, visto que o tempo destinado a essa observação era ínfimo – de agosto a outubro de 2008 – diante da demanda necessária para essa observação. A partir dessa definição, desnaturalizei o meu olhar para perceber a importância que ela exerce naquele contexto. A diferença parece pequena, mas não é, visto que, a importância diferentemente da influência, ficou mais evidente ao longo desta pesquisa.

A realidade do bairro em que esta escola está inserida é preocupante. A pobreza daquela região salta aos olhos, até dos mais desatentos. Outro fator problematizador para a Instituição estudada é a forte presença de cultos de matriz pentecostal naquela região e a intolerância dos mesmos em relação a iniciativas da Instituição aqui referida.

A escola se mostra muito preocupada em relação aos caminhos tomados hoje pela educação em relação à criança negra, isso em muito se deve a trajetória de militância em movimentos sociais da coordenadora da instituição Jussara Rocha. O Lar Joana Angélica busca promover uma educação diferenciada, preocupada com as relações étnico-raciais, sem esmorecer diante das muitas dificuldades encontradas neste percurso.


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2 LITERATURA INFANTO-JUVENIL UM GÊNERO EM CONSTRUÇÃO

2.1 A literatura e suas múltiplas significações

Os contextos sociais se modificaram, as demandas e necessidades acompanharam essas mudanças e não foi diferente com a literatura e seus produtores. No contexto sócio-cultural de total desequilíbrio em que vivemos, cabe fazermos uma análise sobre o papel da literatura nesse contexto.

A necessidade de uma real mudança nos valores, uma nova consciência de si e do seu entorno, torna a literatura um grande instrumento nesse processo de reconhecimento e mudança. De modo que, historicamente, a literatura de uma forma geral tenta reproduzir nas suas narrativas e imagens as relações sociais dentro de toda a sua complexidade. A literatura é uma das maiores responsáveis por manter vivo a história e os conhecimentos oriundos de tempos em que não vivemos. Sobre isso COELHO (2005) nos diz que:

Ao estudarmos a história das culturas e o modo pelo qual elas foram sendo transmitidas de geração em geração, verificamos que a literatura foi o seu principal veiculo para sustentar a veracidade desses fatos históricos. Literatura oral ou escrita foram as principais formas pelas quais recebemos a herança da Tradição que nos cabe transformar, tal qual outros o fizeram antes de nós, com os valores herdados e por vezes renovados. (COELHO, 2005, p.16).

Consciente ou inconscientemente essa literatura busca construir conhecimentos e formar aprendizagens em seus leitores. Numa leitura destinada ao público infanto-juvenil percebemos que isso fica muito mais evidente. A literatura destinada a este público vem recheada de conteúdos para a formação dos mesmos, mas esses conhecimentos não visam apenas as coisas corriqueira, também trazem conteúdos históricos que os devidos autores possivelmente acreditam serem necessários para a formação de determinados conceitos e procedimentos. (COELHO, 2005) (ABRAMOVISH, 1991)

A seleção desses enredos obedece a uma lógica que não parte apenas do indivíduo, mas também das concepções construídas socialmente dentro das suas respectivas coletividades, ou seja, o ato de escolha desses enredos não é algo de responsabilidade apenas do autor, mas


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também é resultado de construções sociais, de modo que é influenciada por questões extra literárias, que muitas vezes fica implícita no processo de construção da obra, só percebida em algum momento por um leitor ou crítico mais atento.

Os valores muitas vezes trazidos nessas histórias são fruto de construções sociais extremamente complexas e trazem na sua formação uma série de preconceitos e deturpações oriundas das relações sociais numa perspectiva macro (OLIVEIRA, 2003).

A literatura que a um primeiro olhar pode ser vista apenas pelo seu caráter lúdico, mas num olhar crítico poderão ser percebidos os conteúdos, explitos e implícitos que tanto as narrativas quanto as imagens transmitem e disseminam nos seus leitores, ganhando assim um caráter não tão inofensivo como alguns podem considerar.

2.2 A tradição oral Africana e a literatura infanto-juvenil

A oralidade é um traço marcante dos povos africanos, a palavra entre eles ganha um poder de verdade intocada. Por isso falar de oralidade é falar de África, e de como o povo africano durante séculos manteve viva a sua tradição. A oralidade permitiu que a história africana estivesse sempre em movimento – e circulação constante. [...] na África em geral, dada sua condição cultural eminentemente não letrado, este gozo (do texto) se deslocava, e em certa medida ainda se desloca do espaço estático do papel (= livro) para o mundo em mutação da voz. É ela a condutora do gozo e é por ela que o contador de estórias libera a força do seu imaginário e a do seu grupo, fazendo do processo de recepção um ato coletivo, ao contrario do homem branco ocidental que, a partir de um certo momento da história, fez de seu processo de recepção – pela leitura – na essência um ato solitário, um prazer de voyeur. (PADILHA,1995 apud KOPERNICK, 1999, p. 88)

O ato de contar histórias, em oposição à leitura das obras literárias, neste caso, ganha uma dimensão mais coletiva. Não se contam histórias para apenas aprender, mas sim para manter um diálogo, onde você aprende e ensina concomitantemente. E esse ato se dá de forma coletiva; há uma maior socialização da prática neste caso, o que difere de uma simples leitura, onde se estabelece apenas um diálogo entre autor e leitor.


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A oralidade se caracteriza como fonte primária de disseminação de ideologias, costumes, e crenças de um determinado povo. A mesma é responsável direta pela manutenção no imaginário popular, de determinadas marcas. Sobre isso Kopernick (1999) diz que: [...] se perpassam, pela oralidade, fortes marcas do imaginário de um povo, e se esse povo é contaminado de conhecimentos pela palavra – a falada – e pela ouvido, ao invés de ter nos olhos – leitura – o seu ponto básico de apreensão do mundo cultural, é fácil perceber por que pensar literatura infantil é um pouco pensar em oralidade e vestígios de memória (1999, p. 88).

A oralidade desta forma se impõe nesta pesquisa como uma das características fundantes na compreensão da problemática que este trabalho visa estudar – a literatura infanto-juvenil.

A literatura infanto-juvenil possibilita a formação de uma nova mentalidade de seus leitores, consentida ou não. A mesma, proporciona a representação de uma imensidão de coisas através da palavra; compreendo essa terminologia – literatura infanto-juvenil – enquanto expressão escrita e/ou oral. Até mesmo pelo fato de que ambas foram e são formadoras de conceitos, histórias e base para a constituição de muitas sociedades.

Algumas sociedades existentes na África por exemplo, tem na palavra oral um dos seus maiores referenciais de integridade, para estes a palavra faz o homem. Já boa parte dos povos ocidentais têm na palavra escrita a base para o reconhecimento da sua história e cultura. “A literatura é uma linguagem específica que como toda linguagem, expressa uma determinada experiência humana e dificilmente pode ser definida com exatidão” (COELHO, 2005, p.27).

Nesta perspectiva e compreensão de que a sociedade brasileira foi formada por povos de origem africana e européia, além dos indígenas, vou considerar as duas formas, oral e escrita, enquanto legítimas na formação da literatura infanto-juvenil brasileira.

A tradição oral africana traz para a literatura infanto-juvenil, além de uma fonte de instrução e formação humana, um caráter eminentemente lúdico, de prazer constante. Na tradição


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africana a contação de histórias é antes de tudo uma brincadeira organizada que deve interessar, divertir e descontrair (KOPERNICK, 1999).

A tradição oral africana influencia a literatura não apenas como gênero literário, mas também na construção dos seus enredos, visto que, um número considerável de histórias que trazem entre os seus personagens, negros, a de contação de histórias por pessoas tidas como mais velhas é o grande momento de socialização das comunidades negras. É um momento de grande respeito para aqueles ali representados.

É sabido das pessoas que permeiam ambientes escolares, que o espaço dedicado à literatura infanto-juvenil é muito pequeno. Quando está inserida nas atividades escolares é sempre com um teor de cobrança, o prazer de ler é posto de lado com a obrigatoriedade arbitrária de muitas escolas, que exigem leituras como fonte de obtenção de notas, e não como instrumento de aprimoramento dos esquemas de leitura e de obtenção de uma maior repertório vocabular por parte do seu leitor. Os contos na tradição africana possuem um outro caráter, que em nada se assemelha ao descrito acima.

Na África, porém – dada a importância educacional dos contos – divertir e educar têm um papel fundamental na socialização e são indissociáveis. Assim sendo, qualquer hora é adequada e o espaço aberto utilizado para que o conto nutra a memória. Em algumas regiões da África, a educação comporta uma parcela de transmissão oral bastante importante. Ela transmite pelos mais velhos, cujo papel merece o respeito de todos na sociedade, os ensinamentos acontecem de acordo com os eventos e acontecimentos observados no cotidiano (KOPERNICK, 1999, p. 94).

Assim, como o caráter educativo que o conto tem nas sociedades africanos, o mesmo acontece aqui no Brasil. Ambas exercem funções paritárias de formação do indivíduo, desenvolvimento da memória, integração de valores interpessoas, mas existe uma diferença fundamental, enquanto o conto na tradição africana fortalece a autoestima, a literatura infantojuvenil brasileira historicamente foi uma das responsáveis pelo enfraquecimento da autoestima da criança negra.


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2.3 Revelando a linguagem iconográfica

A imagem, assim como a linguagem escrita, exerce um papel fundamental no processo de interação da criança com a literatura. A imagem conta a história tanto quanto ou até mais – a depender da faixa etária da criança – que a linguagem oral e escrita. Uma criança que ainda não domina o processo de leitura verbal pode muito bem ter acesso ao enredo da história a partir das imagens.

O contato com as imagens estimula e desenvolve o repertório imaginário da criança. Com este contato ela pode relacionar o objeto ali ilustrado com outros objetos que fazem parte do seu dia-a-dia, possibilitando a ela explorar e conhecer novas propostas de interação no seu meio.

Na minha experiência de educadora pude perceber que a imagem seduz a criança. Qualquer contador de história pode relatar com que ansiedade elas aguardam o momento de ver as ilustrações nas obras; aquele ato mexe profundamente com os esquemas cognitivos e psicológicos, desenvolvendo e proporcionando novos conhecimentos e novas sensações.

As imagens permitem preencher lacunas provenientes do pouco repertório de vivências reais das crianças; se a linguagem oral e escrita possibilita a criança construir um mundo particular repleto de significações muito singulares a cada indivíduo. A linguagem iconográfica permite a criança conhecer as estruturas de maneira mais próxima do que se pode chamar de real. Porém, nem sempre as representações iconográficas são fáceis de serem lidas pelas crianças. (COELHO, 2005)

Quanto à dimensão simbólica da imagem, ela deriva de sua semelhança com os objetos e significados que variam muito, permitindo ao indivíduo representar o real através dos significados distintos das coisas significadas, passando a assimilar, acomodar e a organizar o mundo em que vive. (MACHADO, 1999, p.78)

No contato com a educação infantil percebi que a leitura da imagem possibilita, dentre outras coisas, que a criança seja protagonista do seu processo de leitura, de modo que a mesma


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não precise de um interlocutor no dialogo entre ela e a obra. A partir do seu contato com as ilustrações ela pode estabelecer ligações com o seu imaginário e tornar esse processo extremamente íntimo e particular.

Ao analisar qualquer obra literária não se pode deixar de por um olhar crítico também sobre as suas ilustrações. Em uma sociedade onde as crianças passam a dominar os processos de aquisição da linguagem escrita muito tardiamente, as imagens ganham um papel de destaque no processo de interação com a literatura, será a partir dela que eles irão de forma autônoma conseguir desvendar este mundo.

Esses livros (feitos para crianças pequenas, mas que podem encantar aos de qualquer idade) são sobretudo experiências de olhar... De uma olhar múltiplo, pois se vê com os olhos do autor e do olhador/leitor, ambos enxergamos o mundo e as personagens de modo diferente, conforme percebemos esse mundo...[sic] (ABRAMOVICH, 1991, p.33).

A imagem, assim como a linguagem verbal, se comunica e, ao comunicar-se transmite conceitos, preconceitos, estereótipos, dentre outras coisas. Acerca da significação da ilustração na constituição da literatura infanto-juvenil ABRAMOVICH (1991) nos diz que:

Não se trata, aqui e agora, de analisar a qualidade dos desenhos ou nossos livros infantis. Mesmo porque temos indiscutivelmente ilustradores de primeirérrima qualidade!! Muito menos de lutar por desenhos do tipo realistas (aliás, em geral feios e duros enquanto traço) ou retirar a magia e o encantamento da página. Mas ficar atento aos estereótipos, estreitadores da visão das pessoas e de sua forma de agir e ser... E ajudar a criança leitora a perceber isso. O resultado visual até pode ser bonito ( e é, muitas e muitas vezes) mas onde vamos parar em termos de preconceitos transmitidos? Afinal, preconceitos não se passam apenas através de palavras, mas também – e muito!!! – através de imagens. (ABRAMOVICH,1991, p.34)

O trecho trazido acima é retirado do livro Literatura Infantil: Gostosuras e Bobices, da escritora Fanny Abramovich, traduz de forma contundente um dos objetivos desta pesquisa, que é analisar a forma com que os personagens negros são retratados nessas ilustrações e perceber, o quão impregnadas de estereótipos e preconceitos ainda estão as ilustrações presentes nas obras da literatura infanto-juvenil.


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2.4 O surgimento da literatura infanto-juvenil

Para maior compreensão da relação das questões étnico-raciais com a literatura infantojuvenil, e de como a representação do negro sofre modificações com o passar dos tempos, considero necessária uma breve descrição do surgimento desse tão jovem gênero literário.

A literatura infantil tem relativamente poucos capítulos, começa a delinear-se no inicio do século XVIII, quando a criança passa ser considerada um ser diferente do adulto, com necessidades e características próprias, pelo que deveria distanciar-se da vida dos mais velhos e receber uma educação especial que a preparasse para a vida adulta (CUNHA, 2002, p.22).

Como bem assinala Cunha (2002) no início do século XVIII, a criança ganha da sociedade um novo status; status esse que a distancia cada vez mais do modelo do adulto – a criança passa a ter demandas que a diferem. Partindo desse novo modelo que se instaura, nasce também um novo consumidor que precisa ser atendido.

Este fato não pode ser visto como algo simples e isolado, mas como o resultado de transformações complexas que a sociedade da época estava vivendo. A industrialização estava a todo vapor; a burguesia se consolidava como classe social; o modelo de família já não era mais o mesmo. (LAJOLO; ZILBERMAN, 1988)

A manutenção de um estereótipo familiar, que se estabiliza através da divisão do trabalho entre seus membros (ao pai, cabendo a sustentação econômica, e à mãe, a gerencia da vida doméstica privada), converte-se na finalidade existencial do indíviduo. Contudo, para legitima - lá. Ainda foi necessário promover, em primeiro lugar, o beneficiário maior desse esforço conjunto: a criança. A preservação da infância impõe-se enquanto valor e meta de vida; porém, como sua efetivação somente pode se dar no espaço restrito, mas eficiente, da família, esta canaliza um prestígio social até então inusitado. (LAJOLO; ZILBERMAN, 1988, p. 17).

A criança passa a deter um novo papel na sociedade, motivando o aparecimento de objetos destinados a esse novo público, e é neste momento que surge a necessidade de uma literatura feita especialmente para essa criança. Ela possui agora novas demandas sociais porque assim como a família e os outros pólos da vida social, a escola também passa por mudanças


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estruturantes. Nessa tentativa pioneira de estruturação, a escola vai estreitar os seus laços com a literatura (LAJOLO; ZILBERMAN, 1988).

A literatura infanto-juvenil surge como algo puramente comercial; não há uma preocupação com os seus conteúdos e boa parte das obras publicadas são adaptações de obras destinadas ao público adulto. É com essa característica que ela chega ao Brasil. “[...] aqui no Brasil as produções destinadas às crianças e jovens iniciam-se no século XIX, embora na época tenham constituído, principalmente de obras estrangeiras. Na verdade só depois de Lobato é que começa de fato apogeu de tais produções” (OLIVEIRA, 2003, p. 1).

Sousa chama atenção sobre a representação que Lobato – considerado por muitos o PAI da literatura infanto-juvenil, genuinamente brasileira – traz do negro na sua obra. Um marco da representação do negro na obra de Lobato é Tia Nastácia:

Esse personagem, na condição de empregada de uma família matriarcal branca, passa a maior parte do tempo confinada em sua cozinha, espaço de desqualificação social e quando tem a possibilidade de contar suas histórias, é reprovada pelos ouvintes. Tia Nastácia não tem aliados, uma vez que seus ouvintes criticam constantemente a verossimilhança de suas narrativas e tecem avaliações negativas sobre o conteúdo de suas histórias. Monteiro Lobato reproduz em sua obra uma visão preconceituosa e tratamento tipicamente racista da mentalidade da época, pois chega a identificar Tia Anastácia como uma “negra de estimação” [sic], aludindo á personagem feminina negra a condição de animal ou objeto. (SOUSA, 2008, p.239)

Esse pensamento de Lobato era comum entre boa parte dos escritores brasileiros daquela época. Tanto aos autores de obras infantis quanto às destinadas ao público adulto.

Nos anos 1970 “o Instituto Nacional do livro (fundado em 1937) começa a co-editar, através de convênios, expressivo número de obras infanto-juvenis (...) [sic]. Muitos autores, inclusive consagrados, não desprezaram a oportunidade de inserir-se nesse promissor mercado de livros” (LAJOLO; ZILBERMAN, 1988, p.124).

Segundo OLIVEIRA (2003) esse interesse do mercado editorial se deve à proposta de erradicação do analfabetismo ainda no final dos anos 60 e durante os anos 70, quando a


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alfabetização de jovens e adultos torna-se o centro das atenções. Oliveira ainda aponta na sua obra que é neste momento que os personagens são meios de criticar, de denunciar a pobreza, a miséria social, a injustiça, a marginalização, o autoritarismo, e os preconceitos.

Vale ressaltar que o país vive neste momento histórico uma situação de muita instabilidade devido ao regime militar. A sociedade civil de uma maneira geral reivindicava melhorias em várias instâncias da nossa sociedade, era um cenário de muitas manifestações e mobilizações contra esse regime e alguns desses escritores tentam em suas obras denunciar as mazelas que a população estava vivendo, ainda que, a maioria destes tenham se inclinado às estereotipias vigentes no imaginário da sociedade e comprometendo posteriormente a legitimidade das suas representações literárias.

Em se tratando de literatura voltada para o publico infanto- juvenil, os personagens negros vão aparecer nessas histórias, no final da década de 1920. Sousa, em seu trabalho Cultura AfroBrasileira Em Livros Didáticos informa que:

As histórias , nessa época , mostravam as condições subalternas da personagem negra. Na maioria dessas narrativas, elas não possuíam conhecimento do mundo da escrita, considerado erudito, apenas repetiam o que ouviam de outras personagens como se não tivessem idéias e pensamentos próprios. (SOUSA, 2008, p. 239)

Quando essas produções passam a emergir, podemos observar a proliferação de valores e crenças racistas. Ainda que, algumas dessas obras nasçam com o objetivo de fazer denúncias ou combater o racismo vigente, acabam por colaborar com a disseminação de conceitos e práticas racistas. Essas obras, que originalmente nascem com a bandeira de denúncia, na verdade reafirmam estereótipos vigentes na vida social dos seus pares, negros e não negros, onde, respectivamente, enquanto um tinha as suas características depreciadas, o outro em oposição era tido como um padrão a ser idealizado e seguido.

A sociedade neste tempo, vivia um momento em que teorias racistas vigoravam com muita força no imaginário popular. Teorias como as de Nina Rodrigues, Silvio Romero, Oliveira Viana e Gilberto Freire contribuíam para disseminar no país ideologias racistas. Ideologias como


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a do branqueamento e mitos como o da democracia racial vão ganhar força no país e as produções literárias vão nos mostrar o quanto eles eram fortes e, vão corroborar para a sua disseminação.

Acerca do mito da democracia racial a pesquisadora Ana Célia Silva traz na sua obra Discriminação no Livro Didático a seguinte afirmação:

O mito da democracia racial visa camuflar o racismo e bloquear a organização negra, uma vez que internaliza nos membros da sociedade o engodo da igualdade de oportunidades, reforça o sentimento de inferioridade do negro por não ter “capacidade” de aproveitar tais oportunidades, transferindo mais uma vez para a vitima a culpa da sua situação de miséria e marginalização (SILVA, 1995, p. 34).

Silva no mesmo livro ainda discorre acerca de uma motivação que une os fundamentos do mito da democracia racial e da ideologia do branqueamento:

A ideologia do branqueamento e o mito da democracia racial parecem ter como causa fundamental o medo que a minoria branca brasileira tem da maioria negra e mestiça, e do possível antagonismo a ser gerado a partir da exigência de direitos de cidadania e de respeito às diferenças étinico-culturais. Isso por que a aceitação democrática das diferenças pressupõe igualdade de oportunidades para os segmentos que apresentam padrões estéticos e valores sócio-culturais diferentes. Então, o respeito às diferenças implica numa reciprocidade de direitos em um sistema baseado na exploração do outro, desenvolve-se toda uma ideologia justificadora da opressão e interiorização, objetivando a destruição da identidade, da auto-estima e potencialidades do oprimido (SILVA, 1995, p.25).

A literatura seria então, nessa perspectiva, um dos instrumentos primordiais para a manutenção desta configuração social, no imaginário da população, onde a maioria negra, tem os elementos constituintes da sua identidade de grupo depreciados. Investir em uma imagem literária, socialmente desfavorável do negro, nesta conjuntura se mostrou um eficiente instrumento de manutenção destas ideologias. O preto? Ora, somente ocupa funções de serviçal(setor domestico ou industrial e aí pode ter uniforme profissional que o define enquanto tal e que o limite nessa, seja mordomo ou operário...)[sic] Normalmente é desempregado, subalterno tornando claro que é coadjuvante na ação e, por conseqüência, coadjuvante na vida... [sic] (ABRAMOVICH, 1991, p. 39)


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O problema não está necessariamente em ocupar espaços socialmente desvalorizados, mas sim no fato deles APENAS OCUPAREM ESSES ESPAÇOS nas histórias, é como se ao negro não coubesse outro papel se não os socialmente denominados de serviçais. A aludida pesquisadora Anória Oliveira em artigo1 observa três tendências em relação à temática trazida nessas obras que trazem personagens negros em destaque: “1) a denúncia da pobreza; 2) a denúncia do preconceito racial; 3) e o enaltecimento da beleza “marrom” e “pretinha” dos personagens, com vista à disseminação do mito da democracia racial ” (2003b, p.3).

O descrito acima possui outros entrelaçamentos como cita a própria autora, os personagens são: 1) em grande maioria, associados a pobreza, quando não a miserabilidade humana; 2) desamparados, sem família, por cinta da carência do pai e/ou da mãe; 3) tutelados pelo branco bom; 4) tecidos de maneira inferiorizada e sujeitos à violência verbal e/ou física; 5) enaltecidos pelos atributos físicos e/ou intelectuais, de modo a sugerir a democracia racial (OLIVEIRA, 2003b, p. 3).

Mesmo quando a obra nasce com a intencionalidade de trazer inovações, de construir personagens diferenciados, de buscar uma representação mais próxima ao real, essas ideologias estão tão arraigadas no imaginário desta população, ao qual o autor também pertence, que caem nas mesmas estereotipias que qualquer outra história.

Os entrelaçamentos apontados na obra de Oliveira (2003a) podem desencadear outros tantos, mas o que interessa neste caso é mostrar o quanto de conteúdos pejorativos a literatura infanto-juvenil pode trazer nas suas narrativas e ilustrações e o quão excludentes e depreciativas podem ser. E são exatamente estes conteúdos que serão umas das principais armas do opressor para levar a criança negra à autopercepção negativa e inferiorizada. E não podemos interpretar isso enquanto um ato sem pretensões – os conteúdos trazidos nessas obras estão carregados de

1

Negros personagens nas narrativas literárias infanto-juvenis brasileiras: 1979 – 1989, é um artigo que corresponde ao sexto capitulo da dissertação de mestrado, com algumas pequenas alterações. Texto este gentilmente cedido pala autora.


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intencionalidade e é essa intencionalidade que vem reforçando a cada dia o racismo nas relações infantis. A (auto) percepção inferiorizada dos personagens negros também é uma maneira de compreender as conseqüências do racismo a brasileira, quando se leva o outro (discriminado) a rejeitar a si mesmo e a desejar se assemelhar ao padrão considerado como ideal de beleza, normal: o branco no caso (OLIVEIRA, 2003?, p. 4).

Acontecimentos como esses contribuem para um sentimento de recusa às características raciais do grupo negro e fortalece o desejo de pertencer ao grupo branco. O que desencadeia uma problemática extremamente complexa, que vai desde a sua (auto) rejeição como a rejeição de qualquer aspecto que venha a relacionar-se a da sua identidade originária do povo negro (CAVALLEIRO, 2001, p. 145).

Pode-se perceber nas salas de educação infantil e ensino fundamental uma predileção das crianças por essas características de origem branca. A menina negra por exemplo, nas brincadeiras, com muita freqüência, é vista usando uma toalha na cabeça imitando os longos e lisos cabelos de origem européia. Outra característica marcante da rotina das salas de educação infantil é a freqüência com que as professoras transformam as histórias lidas em sala de aula em peças teatrais, e nesse momento, a inexistência da representação do negro fica muito evidente, principalmente, em papéis de destaque. Quando ele surge é com as suas características depreciadas, tornando palpáveis as representações trazidas nas histórias infanto-juvenis. A criança negra nesse contexto é relegada ao papel de coadjuvante, ou, em dados momentos, é submetida a papéis indignos assim como são trazidos os personagens negros nas história às quais elas estão ali representando. Essas práticas tornam a aceitação, pelas crianças negras, das suas características físicas cada vez mais problemáticas. A sua autopercepção fica comprometida a partir do momento em que a mesma não aceita fazer parte daquele grupo étnico-racial, e passa a ter como referência positiva um outro grupo étnico não-negro.


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3 PERSONAGENS NEGROS NA LITERATURA INFANTO-JUVENIL: CONSTRUINDO NOVOS CAMINHOS

A depreciação da imagem do negro na literatura infanto-juvenil aponta para uma possível mudança. Podemos notar alguns avanços já em meados da década de 1980, ganhando maior força nos anos 2000. Se antes era difícil encontrarmos obras com personagens negros destacados positivamente, hoje elas dividem as prateleiras das livrarias com outras histórias já conhecidas do público infanto-juvenil. Ressalto que, o frisson em relação a esse filão editorial pode ter muito mais a ver com a demanda do mercado devido à lei federal 10.639/03, do que necessariamente a uma consciência real acerca da necessidade da inclusão de personagens negros bem estruturados nas narrativas destinadas às crianças e aos jovens.

A literatura como um dos principais instrumentos de inserção dessas crianças e jovens em outros mundos – e um posicionamento crítico sobre o mesmo – possibilita a esta criança e/ou jovem conhecer aspectos culturais de sua origem que a história oficial os negou, podendo ajudar inclusive, junto com seus pares a reconstruir essa história e, a partir dela, construir outras tantas. Ela conduz estes há tempos até então desconhecidos. Proporciona aos seus leitores e/ou ouvintes sensações e vivências fundamentais para a sua formação. Sobre isso Machado2 diz: Com o tempo aprendo o quanto é importante escutar e contar o que se escuta, e que a vida em sua motivação, se traduz no ato de contar acontecimentos. Contamos histórias para encantar, convencer, para ser desculpado, para comunicar fatos, sentimentos, magoas e alegrias. E quando contamos histórias passamos a fazer parte do narrando. Somos participes de todas as histórias que contamos. Percebi também que o ato de contar histórias também implica em compreender a dinâmica da vida que vivemos. (MACHADO, 2006, p.3)

Compreender essa dinâmica que Machado nos traz no trecho acima, se torna ainda mais problemático, pelo fato de que, a literatura que a criança negra encontra ao seu alcance não permite nem que ela se identifique, imagine compreender ou recriar qualquer coisa que seja. A necessidade de reconstruir a história e o legado dos africanos trazidos para o Brasil, e para os seus descendentes, é urgente, mas como tornar a literatura um instrumento dessa construção? 2

Citação retirado da pasta de textos da professora e do professor, distribuída pela Prefeitura da cidade de Salvador e pela Secretaria da Educação e Cultura


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Como construir uma auto-imagem mais saudável nas crianças negras? Será mesmo que a literatura pode auxiliar nessa construção? São muitas as indagações a cerca dessas questões, mas uma coisa podemos perceber, a literatura não é um instrumento neutro, sendo assim carrega uma serie de ideologias, e serão essas ideologias que influenciarão de forma direto, no papel que ela exercerá em relação ao seu interlocutor – aqui no caso a criança e o jovem.

Conforme descreve Lima, “A literatura é, portanto, um espaço não apenas de representação neutra, mas de enredos e lógicas, onde ‘ao me representar eu me crio e ao me criar eu me represento” (2005, p. 102).

É essa percepção de recriar-se que os atuais autores, entre eles Diouf (2004), Chamberlim (2005), Lima (1999), trazem nas suas obras. Os personagens negros vêm construindo uma nova história – bem devagar diga-se – mas ainda assim devem ser exaltadas as narrativas já existentes nessa tentativa devido as singularidades que eles representam hoje na nova história da literatura infanto-juvenil.

Há uma real necessidade de mudanças de pensamento, de revolução das mentes – revolucionar para modificar – a fim de remover ideologias vigentes que vêm acarretando um desequilíbrio preocupante na sociedade brasileira, representado pelo conflito étnico-racial. Mas, essa revolução social passa por uma revolução pessoal, baseado em um pensar mais consciente de si e do outro, que leve esses seres a uma real descoberta; refletindo sobre esse novo pensar a autora sustenta: “A verdadeira evolução de um povo se faz ao nível da mente da consciência de mundo que cada um vai assimilando desde a infância. Ou ainda não descobriram que o caminho essencial para se chegar a esse nível é a palavra. Ou melhor, é a literatura” (COELHO, 2005, p.15).

Baseado em afirmações como esta acima é que considero fundamental, dar uma maior atenção à literatura, seja em um contexto escolar ou em outros espaços sociais.


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3.1 Literatura infanto-juvenil pensada para a criança (o) e o jovem negra (o).

Os estereótipos presentes hoje na maior parte da literatura destinada ao jovem e a criança deprecia a imagem dos negros e faz com que as crianças e jovens afro-descendentes tenham uma auto-percepção negativa de si. “Assim eu não vou querer ser nem negra nem preta”, esse trecho retirado da obra Histórias de Preta (LIMA, 1998, p. 54), define bem o que deve passar na cabeça da criança/jovem negra (o) ao deparar-se com as habituais representações que os negros têm nas narrativas e ilustrações.

Nenhuma criança, nem jovem se identificaria com algo julgado como feio, mau, animalizado, humilhado, castigada, etc. A maneira indigna com que esses personagens foram e ainda são retratados violenta o imaginário e o real vivido por seus leitores, à medida que degrada com toda e qualquer referência que os mesmos têm de si e do seu entorno, caracterizado por tudo que venha a representar o sujeito leitor. Daí a importância de uma nova literatura infanto-juvenil, que pense as questões étnico-raciais de forma seria.

Se antes os negros não possuíam famílias, nomes, emprego, dentre outras características, hoje podemos encontrar obras literárias em que os personagens não só possuem essas características descritas acima, mas também tem uma postura bem diferente dos antigos personagens, é notória nessas obras mais contemporâneas um protagonismo social como nunca antes (OLIVEIRA, 2003).

Algumas pesquisadoras, Lima (2005), Oliveira (2003) e Sousa (2001) entre outras, já se debruçaram sobre a análise de algumas dessas obras que vêm destacando o negro de forma positiva, ainda assim acredito ser fundamental na elaboração desta pesquisas a análise de alguns exemplos de representações inovadoras na literatura infanto-juvenil.

A partir da observação dessas mudanças selecionei quatro obras literárias que apontam de forma contundente essas mudanças. Luana e as sementes de Zumbi (2000) de Aroldo Macedo e Oswaldo Faustino; As tranças de Bintou (2004) de Sylviane Diouf; As panquecas de Mama


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Panya (2005) de Mary Chamberlin e Richard Chamberlin e Histórias de Preta (1998) de Heloisa Lima.

Considero que cada uma delas representa uma vitória dos seus autores, pois os mesmos conseguem dar um novo contexto a esses personagens e ao seu entorno. As mesmas trazem nas suas narrativas e ilustrações uma série de novos fazeres e novos dizeres que direciona a literatura infanto-juvenil para a possibilidade de uma nova história da representação do negro e da sua história na literatura infanto-juvenil. Serão essas narrativas e ilustrações os objetos de uma breve análise acerca das possíveis inovações que essas obras trazem no contexto da literatura infanto– juvenil brasileira e para os estudos sobre representação do grupo étnico negro nessas histórias.

Destaquei algumas categorias e a partir das mesmas trarei uma análise acerca dos conteúdos trazidos tanto nas narrativas quanto nas imagens destas obras.

3.1.1 Resgate da ancestralidade e releitura da escravização

A literatura é um lugar favorável ao desenvolvimento do conhecimento social e construção do conceito (LIMA, 2005, p. 101) com as demandas da Lei Federal nº 10.639/03, do ponto de vista da necessidade da criança e do jovem, não podemos deixar de aproveitar esse espaço fértil para o reconhecimento de uma ancestralidade que lhes é de direito e que por circunstâncias já sabidas historicamente, lhes foi negada e mais que isso, seja forjada com um viés negativista impregnado no inconsciente coletivo da sociedade brasileira.

Reconhecer as sua origens é a oportunidade de libertação das amarras eurocêntricas que há tempos faz parte do imaginário criativo das crianças e jovens deste país; é permitir que elas construam o seu presente afro-brasileiro a partir do conhecimento do seu passado africano.

As obras aqui analisadas são compostas de elementos que contribuem com essa construção. Trazer a trajetória histórica do povo africano até o Brasil é muito importante. Compreender como as relações sociais africanas se estabeleciam é uma forma interessante de


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compreender os porquês da sua escravização; compreender o próprio processo de escravização é de vital importância na construção de uma identidade negra.

A relação do personagem negro com a escravização é recorrente nas obras de uma maneira geral; o personagem é descrito e ilustrado geralmente como fruto e espelho deste processo, é como se ele estivesse fadado à condição de eterno escravizado. Na obra Histórias de Preta, a personagem faz uma leitura bem diferente desse processo. O tráfico de gente existe sempre desde a história antiga do nosso mundo. Olhe só isso: os gauleses capturavam as pessoas na região onde hoje é a Inglaterra e vendiam aos romanos. E ai vinham os vikings, que capturavam essas e mais outras e as vendiam em outro lugar. Mulçumanos e cristãos se capturaram mutuamente por séculos [...] Na África dos faraós, há menos de 2 mil anos... [sic] (quando foi mesmo o ano zero? e no zero para quem?), conta-se que eles enviavam expedições militares para capturar mulheres e homens, tornando-os fornecedores desse tesouro em outros lugares. Roubavam também crianças. (LIMA, 1998, p.32)

Esse trecho contra-argumenta uma questão já posta no imaginário do brasileiro, de que antes dos europeus escravizarem os africanos eles já se escravizavam. Preta, na sua narrativa, mostra que não foi o povo africano que inventou a escravização e que a mesma é uma construção social ao qual o povo africano não ficou de fora. Mas, é bom salientar que os motivos que levam a esse processo vão variar conforme os interesses dos envolvidos, ou seja, o motivo pelo qual os povos africanos escravizaram-se, não tem a mesma fundamentação das motivações que levaram os europeus a escravizar os africanos.

Preta continua a descrever como se dava o processo de dominação na África dos faraós como a mesma denomina:

O pavor era tanto que as populações roubavam as crianças de outros povos para entregá-las quando os agressores chegassem, salvando assim as suas. Então, o roubo de crianças uns dos outros alastrou-se, bem como o de mulheres e homens, que eram negociados com esses mercadores. (LIMA, 1998, p.32)

Embora a África acima descrita, diga pouco acerca dos africanos trazidos para o Brasil, visto que, o que os povos que aqui chegaram eram de outras partes e não da África dos faraós,


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considero interessante a observação que a escritora faz em relação a como se deu o processo de escravização em algumas localidades da África.

Em Luana e as sementes de Zumbi, a personagem conta a sua trajetória até chegar a Palmares3, durante essa aventura a personagem encontra “um homem negro, debaixo de um chapelão de palha” (FAUSTINO; MACEDO, 2004, p. 16), o homem ao vê-la assusta-se, mas os dois ainda assim estabelecem um diálogo.

“Desculpe se eu assustei o senhor”[sic]. Só então ele percebe que é apenas uma garotinha inofensiva: “O que tu estas fazendo aqui? Se capitão-do-mato te descobre, te leva de volta pra senzala, te prende no pelourinho, chibata come teu coro, te bota cangalha e não vai ter mucama que consiga te manter na casagrande [...] (FAUSTINO & MACEDO, 2004, P. 16)

Pessoalmente não gosto da alternativa que os autores utilizam para mostrar a escravização no Brasil, os vinculam diretamente a imagem do escravizado a sentimentos de penalidade e sofrimento. Em seu artigo Personagens Negros: um breve perfil na literatura infanto-juvenil, Heloisa Lima dá maior aprofundamento a essa questão:

Geralmente, quando personagens negros entram nas histórias aparecem vinculados à escravidão. As abordagens naturalizam o sofrimento e reforçam a associação com a dor. As histórias tristes são mantenedoras da marca da condição de inferiorizados pela qual a humanidade negra passou. Cristalizar a imagem do estado de escravo torna-se uma das formas mais eficazes de violência simbólica. Reproduzi-la intensamente marca, numa única referência, toda a população negra, naturalizando-se, assim, uma inferiorizarão datada. A eficácia dessa mensagem, especialmente na formatação brasileira, parece auxiliar no prolongamento de uma dominação social real. O modelo repetido marca a população como perdedora e atrapalha uma ampliação dos papéis sociais pela proximidade com essa caracterização, que embrulha noções de atraso (LIMA, 2005, p. 103).

Podemos ver que mesmo as obras que buscam trazer inovações, acabam caindo em armadilhas construídas no nosso imaginário. Isso em nada desmerece o trabalho realizado pelos autores, destacando-se na simbolização do Quilombo. O que me chama atenção na obra de Faustino e Macedo é a forma como os mesmos trazem o quilombo, a sua configuração social, 3

Palmares é até hoje considerado o maior quilombo que já existiu no Brasil, ele se localizava em Alagoas, na antiga capitania de Pernanbuco.


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distante da realidade que era bem mais complexa, a sua representação como símbolo de resistência do povo escravizado naquela ocasião, pode ajudar a desconstruir a imagem de um negro indolente e acomodado com a sua condição de escravizado, pois sabemos que não era verdade.

Palmares está aí pra comprovar que essa afirmativa não é verdadeira, muitos negros fugidos das casas dos senhores encontraram em Palmares e em outros quilombos a possibilidade de construir uma outra história. Os autores mostram tanto nas narrativas, quanto nas imagens um espaço onde se podem construir relações de cooperação e liberdade.

Figura 1 – Chegada de Luana a Palmares

Luana e as Sementes de Zumbi (FAUSTINO & MACEDO, 2004, p. 23).

3.1.2 Áfricas

Quantas histórias sobre a África nos foram contados quando éramos crianças, ou mesmo jovens? Não sei por você leitor, mas de uma maneira geral percebo na fala das minhas colegas – professoras, graduandas de Pedagogia – que poucas tiverem na sua infância e adolescência a oportunidade de ter acesso a histórias que contassem e/ou mostrassem imagem de países africanos.


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As histórias que me foram contadas sobre a África, foram todas proferidas por mulheres da minha família – de forma oral – ou mesmo através das músicas de blocos afros e/ou afoxés. Imagens eram um pouco mais comuns, mas sempre imagens de crianças famintas ou de animais selvagens, salvo pelos belos quadros que um dia fizeram parte de meu lar. Acredito que essa seja a realidade de boa parte das crianças negras da cidade de Salvador. O contato com aspectos relacionados à África deve ser raro, e quando se dá é através das suas famílias, podendo ainda ser de forma estereotipada e pejorativa.

Como havia evidenciado no capítulo em que trato, dentre outras coisas, da influência das imagens na construção de enredos. As imagens trazidas na literatura infanto-juvenil, de uma maneira geral, são carregadas de preconceitos e estereótipos.

Das obras que serão aqui analisadas apenas Luana não traz ilustrações da África, todas as outras três histórias trazem ilustrações que em muito se aproximam das imagens que temos hoje sobre a África.

Figura 2 - Dança comunitária no batizado

As tranças de Bintou (DIOUF, 2004, p. 16)


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Figura 3 – A mãe de Adika na feira

As Panquecas de Mama Panya (CHAMBERLIN, 2005, p. 21)

Não podemos e nem devemos esquecer do sofrimento e dos maus tratos sofridos pelos africanos trazidos para o Brasil, mas em nenhum momento podemos esquecer das contribuições herdadas dos povos africanos aqui trazidos. Contribuir para a construção da imagem de um povo sofrido, sem origens não me parece uma boa estratégia, dentro deste projeto de construção histórica. Exaltar as belezas, a grandiosidade, a diversidade ética dos povos africanos é predominante nas histórias, como se caracteriza na narrativa abaixo, retirada da obra Histórias de Preta, do capítulo: A África é negra ou muito colorida?.

Em todos os cantos do mundo há belezas. Acho que quando penso nos povos orientais minha lembrança é esta: como são leves! (Menos quando lembro das lutas de sumo.) [...] Mas a África é uma lembrança em que vibram várias cores eletrizantes: parecem somar um calor como o do sol com uma força que vem de dentro da terra.Tive e tenho uma amiga – Lia – que adora ler. Lia sempre lia de tudo, e eu prestava atenção quando ela me contava sobre o que os africanos faziam, pintavam e bordavam. Fui crescendo com Lia, que me ensinou a escutar e a sonhar e às vezes a ter pesadelos com essas histórias. Às vezes líamos juntas. Depois comecei a ler de tudo, até que virei uma Lia. E Lia agora escreve livros. Foi assim que aprendi que são muitos os povos que preenchem aquele continente, e todos ricos em histórias. Vou contar algumas que conheço. Mas primeiro quero mostrar que a África tem muitas etnias, isto é, muitos jeitos diferentes de ser num mundo aparentemente igual. Olhe aí no mapa: São centenas de etnias distribuídas entre dezenas de paises. (LIMA, 1999, p. 12)


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Figura 4 – Mapa de Povos Africanos

Fonte: Histórias de Preta (LIMA, 1999, p. 15)

Além de trazer ao cerne da discussão a questão da diversidade étnica do continente africano, através da narrativa descrita, essa ilustração – ainda que de forma bem resumida, dada a vastidão de etnias e línguas faladas na África – mostra um recorte diferente dos que os jovens estão acostumados a ver nas escolas; aquela divisão da África feita a régua, como são vistos nos mapas deste continente. E constituem-se neste panorama não uma África e sim Áfricas completamente diversas.

Esse trecho ainda possibilita uma reflexão acerca de uma questão que trago desde o início desta pesquisa, a importância da leitura – aqui através da literatura infanto-juvenil – para a construção de uma nova imagem do negro e do seu entorno. A construção das histórias individuais passam primeiramente por uma construção coletiva.

3.1.3 Origens bem definidas e a representação dos mais velhos para a comunidade

A origem dos personagens negros na maioria das histórias sempre foi desconhecida. Sobre isso na sua dissertação de mestrado a pesquisadora Maria Anória Oliveira nos mostra que:


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Alguns personagens negros são caracterizados “desamparados”, por não contarem com uma família normal, tendo como única referência a mãe, já que para outros o pai é ausente. E isso significa que a família desses seres é fragmentada, como se além da carência financeira, eles não tivessem nem referência familiar (OLIVEIRA, 2003, p.126).

Nas quatro histórias aqui analisadas busquei esse tipo de referência e pude perceber que todos os personagens possuem família, embora a predominância da imagem da mãe ainda prevaleça. A família se caracteriza nessas histórias para além dos pais, são ilustrados irmãos, avós, parentes – ainda que não estejam denominados os graus de parentescos.

A criança negra que antes não podia ver a sua família ilustrada nas obras infanto-juvenis, hoje tem a possibilidade de deparar-se com imagens como a seguinte:

Figura 5 – Luana e família

Luana e as Sementes de Zumbi (FAUSTINO & MACEDO, 2004, p. 10).

A narrativa que é atrelada a esta imagem nos diz o seguinte (MACEDO; FAUSTINO):

Esta é Luana. Você a conhece? Não? Apesar de ter 8 anos, ela é uma verdadeira guerreira. Joga capoeira como ela só. Vive em Cafindé, com papai, mamãe e o irmãozinho. Sempre que olha no espelho abre um sorriso: sabe que é uma menina linda. Isso ela aprendeu com seus familiares, principalmente com a avó, que lhe conta histórias da origem do seu povo. São histórias que a fazem ter orgulho de ser uma criança negra, como a maioria dos moradores desse remanescente de quilombo. (2004, p.10)


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A figura dos mais velhos enquanto portadores do conhecimento através da palavra, é uma marca em comum entre as histórias aqui analisadas. Elas aparecem através da Vovó Josefa, de Luana; da Vó Lídia, de Preta; da Vovó Soukeye, de Bintou; ou mesmo através da figura de Mzee Odolo – amigo mais velho – de Adika.

Nessas histórias cabe aos mais velhos a papel de transmitir para os mais jovens o conhecimento, a tradição. É papel destes manterem viva – através da oralidade – a história do seu povo. A vovó Soukeye, por exemplo, como nos mostra Bintou quando fala da sua avó: “Vovó Soukeye sabe de tudo. É o que mamãe sempre diz. Ela me explicou que os mais velhos sabem mais por que viveram mais, e que por isso aprenderam mais. E, já que a vovó sabe tudo, eu lhe pergunto por que meninas não podem usar tranças” (2004, p. 8).

Figura 6 – Bintou e sua avó

As tranças de Bintou (DIOUF, 2004, p. 9)

As outras duas avós não são ilustradas, apenas citadas nas narrativas, e o amigo mais velho de Adika, Mzee Odolo aparece em algumas ilustrações como a seguinte, em que ele é visto pescando.


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Figura 7 – Mzee Odolo pescando

As panquecas de Mama Panya (CHAMBERLIN, 2005,p. 12)

Figura 8 – Luana e comunidade de Palmares

Luana e as Sementes de Zumbi (FAUSTINO; MACEDO, 2004, p. 27).

No caso de Luana, é quando ela chega ao Quilombo de Palmares que essa questão da sabedoria dos mais velhos fica mais evidente. “[...] à noite, em torno da fogueira, os mais velhos as contam para os mais novos. É o que se chama de tradição oral... aqui ninguém sabe escrever, mas um por um sabe tudo sobre o povo de Palmares” ((FAUSTINO; MACEDO, 2004, p. 27).


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3.1.4 Apreço às figuras femininas e a valorização da estética negra

Uma característica curiosa nessas histórias é que são poucos os personagens masculinos que protagonizam as mesmas – lógico que essa representação aqui caracterizada, por um único livro em que o protagonista é masculino, impõe-se como uma amostragem pequena – mas ainda que analisasse aqui mais obras a presença das personagens femininas ainda assim seria predominante. Constato isso através do contato com a leitura de outras obras, que não foram contempladas nesta pesquisa – pelo menos não na análise. A estética negra ganha destaque nessas obras, seja nas ilustrações ou nos enredos construídos pelas narrativas.

A estética negra sempre foi um dos principais alvos dos detratores da imagem destes povos. A cor da pele e o cabelo crespo sempre foram os preferidos, falas tipo: mulata, cor de fusca, marrom, cabelos ruços/duros e etc; são recorrentes nas narrativas da literatura infantojuvenil (OLIVEIRA, 2003).

Em oposição a essa postura vale ressaltar a obra As tranças de Bintou que de maneira instigante destaca a estética africana e afro-brasileira, tanto na sua narrativa quanto na sua ilustração de forma admirável, a riqueza de detalhes é de um primor absoluto. “Meu nome é Bintou e meu sonho é ter tranças. Meu cabelo é curto e crespo” (DIOUF, 2004, p.3). Tudo o que essa bela menina africana deseja é possuir tranças em seus cabelos crespos, desejo esse muito pouco provável em personagens da literatura infanto-juvenil a qual estamos acostumados a ver fazendo parte do repertorio de leitura das crianças negras.

Esse desejo de possuir tranças vem atrelado a admiração que a menina sente pelo ornamento que ela percebe na irmã e nas outras mulheres, ornamento esta que a mesma deseja também ostentar e acaba não se contentando com os seus birotes – outra marca da estética negra assim como as tranças.


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Figura 9 - Bintou e sua irmã

As tranças de Bintou. ( DIOUF, 2004,p. 7)

Ainda sobre essa questão da estética negra Hamilton Vieira em seu texto, Tranças: a nova estética negra, nos coloca diante de uma questão que ultrapassa as linhas estéticas.

Na Bahia, embora as trancinhas afro sejam usadas apenas como elemento estético, sua função política é indiscutível. A mulher negra, ao usar o cabelo ao natural, dispensando o recurso do alisamento e usando penteados de inspiração africana, rompe com toda uma pedagogia de embranquecimento onde lhe foi transmitido que o ideal era se aproximar dos padrões brancos de beleza. (VIEIRA, 1989, p.87)

Explorando ainda as imagens das obras para justificar as argumentações acima podemos perceber o predomínio das tranças também na personagem Preta. Há personagem se mostra durante o livro com alguns penteados, mas o que marca e chama mais a atenção são as tranças da capa do livro.


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Figura 10 - Capa do Livro Histórias da Preta

Histórias da Preta( LIMA, 1999)

As ilustrações da obra As Panquecas de Mama Panya, nos mostram uma outra variação estética, mas que também deve ser considerada neste contexto, que é o caso do lenço e do turbante, tão relacionado – no imaginário da cidade de Salvador – com as mulheres que cultuam orixás.

Figura 11 - A Feira

As panquecas de mama panya ( CHIMBERLIM, 2005, p.22)


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Ainda sobre a estética negra e sua diversidade, Bintou, nos diz que:

Observo as mulheres por trás da mangueira. Fatou, minha irmã, esta junto com elas. Fatou passou um óleo perfumado em seus cabelos, que o faz brilhar e ajuda a trançá-los apertado. As amigas de mamãe usam franjas trançadas com moedas de ouro na ponta. Dizem que isso é para mostrar a nós, crianças, como nossos tataravôs, que nunca conhecemos, penteavam o cabelo. As tranças de tia Ainda levaram três dias para serem feitas. São tantas que nem Maty, minha irmã mais velha, conseguiu conta–las. (DIOUF, 2004, p.19)

Fica caracterizado assim nessas obras a forte presença da figura feminina, a diversidade das mesmas e a beleza sem que isso signifique cair nas estereotipias relacionadas a sexualidade ou a inferioridade, tão recorrentes em relação a mulher na literatura brasileira, em especial a baiana.

3.1.5 A religiosidade em pauta

É sabido de todos – ou pelo menos deveria ser – que a escola brasileira é laica, mas o que observei ao longo da minha experiência enquanto educadora, e através das falas das colegas que possuem mais experiência em sala de aula, é que as questões religiosas hoje são muito presentes nas escolas soteropolitanas, principalmente das religiões de matriz pentecostal. A presença da igreja católica já foi completamente legitimada pelo sistema escolar: as datas comemorativas, os feriados sempre seguem a vertente católica. E como é que ficam as outras representações dentro da escola? Que fique bem claro que não me refiro a cultuar nada em ambiente escolar, mas de saber como fica a representação das outras religiões nesse espaço. Não seria isso uma falta de delicadeza com as outras crianças que não fazem parte desses cultos?

É imprescindível que todas as religiões sejam respeitadas. E a escola poderia servir como um interlocutor no processo de desnaturalização do olhar das crianças acerca de determinados cultos religiosos, como por exemplo o candomblé. Cabe aqui descrever como Preta narra de forma delicada o seu primeiro contato com uma festa de caboclo:

Era de tardinha para o anoitecer quando entrei num corredor comprido naquela casa toda branca e com uma bandeirinha no telhado. Dentro do pátio, pelos cantos, algumas mesas carregadas de frutas coloridas [...] As pessoas batiam


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palmas ritmadas, acompanhando o som dos três atabaques[...] Esse dia era também o do meu aniversário, e foi assim, como um presente dos céus, que conheci o candomblé[...] A festa foi como uma flecha que me atirou para dentro de um mundo desconhecido. Até crescer, eu havia estudado em escolas de freiras católicas, e, geralmente, quando se é criado numa religião aprende-se a evitar as outras. (LIMA, 1999, P. 54)

Neste capítulo do livro várias ilustrações me reportaram as tradições baianas – ressignificadas a partir de tradições africanas – como o candomblé que é uma religião brasileira, mas que foi instituída a partir de tradições religiosas oriundas de África.

Figura 12 – Festa de Caboclo

Histórias de Preta (LIMA, 1999, p.56)

3.1.6 Heróis Negros

Encontrar heróis negros na literatura – sem que tenham sua imagem deturpada – já é difícil, pensar isso na literatura infanto-juvenil se torna ainda mais complexo. Quando isso acontece, ainda que não seja de forma expressiva, acredito que deve ser destacado. Como na história de Luana e as sementes de Zumbi, onde a personagem vai ao encontro do líder de Palmares.


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Figura 13 - Zumbi

Fonte: Luana e as Sementes de Zumbi (FAUSTINO & MACEDO, 2004, p.32).

3.1.7 Valorização das relações comunitárias

Outra peça deste quebra-cabeça é a comunidade, muito representada em todas as histórias; cada uma com as suas particularidades. Talvez de todas as histórias aqui analisadas a que mais evidencia o valor da mesma, seja As panquecas de Mama Panya. Nessa história o menino Adika, é convidado por sua mãe para comprar materiais para fazer panquecas. A mãe lhe mostra as poucas moedas que possui para comprar tudo que precisa. Mesmo sabendo disso o menino durante todo o percurso de compras, convida todos os amigos que encontra no caminho. Quando eles menos esperavam chegam os seus amigos, todos com alguma coisa para contribuir. O que seria uma pequena janta, entre mãe e filho, se torna uma grande confraternização entre toda a comunidade; graças ao garoto.

Neste caso ele constrói a idéia da importância da contribuição de cada indivíduo que compõe a comunidade, para a formação das relações que ali se estabelecem. Todos os presentes são peças fundamentais na formação da identidade daquele grupo.


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Figura 14 – Reunião para refeição

As panquecas de Mama Panya (CHIMBERLIM, 2005, p.35)

Figura 15 – Reunião para refeição 2

As panquecas de Mama Panya ( CHIMBERLIM, 2005, p.36)

Nas histórias de uma maneira geral a comunidade exerce uma função determinante na ação dos personagens. Toda a ação realizada por eles sofre influência direta do pensar e do dizer dessas comunidades. As relações de parentescos, embora existam, são exercidas de uma maneira bem diferente da que as sociedade brasileira está acostumada. Essas relações em muito me


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remetem, às estabelecidas pelas pessoas que cultuam orixá; onde existe um sentido de parentesco que vai além das questões sangüíneas.

A interação constante me parece uma característica nas relações comunitárias. A idéia de conjunto fica muito evidente tanto nas narrativas quanto nas imagens. Para maior compreensão da dinâmica desses povos se torna necessário perceber e compreender o significado dessa núcleo que é a comunidade.

3.1.8 Ações valorizadas por si e pelo seu entorno

As maneiras como os personagens são mostrados de uma forma geral nessas histórias, buscam sempre, construir uma imagem positiva, tanto desses personagens individualmente, quanto dentro da sua coletividade, no caso a comunidade. Há uma primazia nessas histórias de personagens que se valorizam e que são de uma foram geral valorizados pelo seu entorno, o que se mostra muito interessante; enquanto instrumento de significação para a criança e o jovem leitor, que pode identificar-se agora com algo que a narrativa evidencia como valoroso.

A forma como o narrador apresenta Luana e sua família – já descrita acima – é um bom exemplo dessa valorização. A maneira com que os autores a denominam também segue esta tendência de valorização; “Luana é a Primeira heroína infantil afro-brasileira” (FAUSTINO; MACEDO, 2000).

Os personagens nessas histórias, tem a todo momento suas ações valorizadas; a construção desta imagem de herói, de vencedor, é recorrente. Em Bintou, por exemplo, quando a personagem percebe que dois meninos da sua comunidade, estão em perigo, ela imediatamente busca uma solução, para ajudar a salvá-los. Embora não seja ela, diretamente a autora do salvamento, a sua astúcia ao chamar os pescadores na vila, é recompensada com os olhares de admiração e de gratidão de todos na comunidade, como mostra a ilustração a seguir.


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Figura 16 – Comunidade festeja Bintou

As tranças de Bintou. (DIOUF, 2004,p. 26) As análises feitas acima buscam caracterizar alguns indícios de inovações presentes nessas histórias. A representação do negro para a criança e o jovem, é um grande instrumento para auxiliar na construção de uma identidade étnico-racial mais positiva. Reconhecer enquanto pertencente de uma sociedade e protagonista, em muitos momentos, do processo de construção da mesma é essencial na formação desses sujeitos.

A escola se mostra nesse sentido, um espaço privilegiado, para a construção dessa identidade – utilizando a literatura como instrumento fundamental – visto que, é na escola que essas crianças irão construir e fortalecer as ideologias vigentes em nossa sociedade.


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4 LAR JOANA ANGELICA

A construção deste texto se deu não só através da observação e interação com o objeto de pesquisa, mas também a partir da leitura de documentos cedidos pela direção da instituição e conversas com pessoas do Lar Joana Angélica e do seu entorno.

Pensar uma educação baseada na diversidade étnico-racial é uma questão problemática e muito pouco recorrente, de modo que quando visões e posturas deste tipo surgem, se torna necessário um olhar mais apurado nessa pratica. E é pensando nessa perspectiva que se justifica a escolha do Lar Joana Angélica como referencial da prática da literatura infanto-juvenil em sala de aula, para essa pesquisa.

O Lar Joana Angélica fica no bairro de Valéria, um local de extrema pobreza, as dificuldades e a precariedade em relação às atividades profissionais fica evidente em trecho do Projeto Político Pedagógico da escola:

A comunidade Valéria enfrenta vários problemas sociais e outros. As pessoas, no geral possuem trabalhos informais, mulheres trabalham como empregadas domésticas, os homens de pedreiro. Existe um número grande de catadores de papelão, catadores de latinhas, lavadeiras, faxineiras. Em 2005, a região de Valéria possuía aproximadamente 50 mil habitantes. Desse número apenas 3.276 possui rendimento mensal de até um salário mínimo, enquanto o número de quem não possui qualquer rendimento mensal é de 8516.Os que possuem maior rendimento mensal, que é de até 20 salários mínimos o número é de 45 habitantes. (PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO DO LAR JOANA ANGÉLICA, 2007)

A situação relatada acima faz com que os jovens que ali vivem tenham a necessidade de ingressar no mercado de trabalho muito cedo, para ajudar nas despesas das suas famílias, geralmente trabalham em lugares próximos as suas residências, a necessidade de trabalhar faz com que muitos jovens abandonem a escola o que influencia diretamente no nível de escolaridade da população de Valéria, como indica o projeto político pedagógico da instituição pesquisada: O nível de escolaridade é ainda mais escandaloso. Segundo dados colhidos pelo IBGE os habitantes de Valéria que atingiram o ensino fundamental são 5286, o ensino médio 1146, o curso pré-vestibular 17 habitantes, o curso superior 47, os


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que atingiram o doutorado são 0. (PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO DO LAR JOANA ANGÉLICA, 2007)

Esses dados são apenas uma pequena amostragem da carência de educação para essa população. O bairro possui outros tantos problemas muito comuns a bairros da periferia de Salvador, como por exemplo: falta de água constantemente, precariedade no saneamento básico, condições de vida realmente difíceis.

O Lar Joana Angélica esta inserido geograficamente nesta realidade, mas ao adentrar ao ambiente físico desta instituição você se depara com uma construção diária de muita luta, mas fundamentalmente de muita esperança e trabalho, o Lar no seu dia-a-dia é uma instituição carregada por mulheres, mulheres de todos os tipos e origens, mas que em comum possuem um desejo muito claro de mudança, mudanças essas, tão diversas e complexas quanto estas mulheres.

Antes de entrarmos de cabeça nas histórias e vivencias do Lar Joana Angélica, considero importante relatar o caminho que me fez chegar até este ponto.

4.1 Identidade e educação das relações étnico-raciais

A escola se estabelece hoje como um dos principais espaços para a disseminação e fortalecimento de ideologias racistas. A mesma não sabe lidar com as diferenças existentes na constituição da população brasileira, consequentemente não consegue conceber a idéia do diferente no seu cotidiano. (CAVALLEIRO, 2000)

No seu dia-a-dia os aspectos multiraciais ganham pouca atenção, embora a mesma reconheça a existência desta multiracialidade, ela não esta disposta a colocar essas questões em pauta no cotidiano escolar. Trazendo esta realidade para a educação infantil Cavalleiro (2006) nos mostra que: Há uma ausência de preocupação com a convivência multiracial no interior da pré-escola, o que colabora intensamente para a construção de indivíduos preconceituosos e discriminadores. Tal fato leva inúmeras crianças e adolescentes a cristalizarem aprendizagens básicas, muitas vezes, no comportamento acrítico dos adultos a sua volta. (CAVALLEIRO, 2006, p. 227)


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As questões raciais, de uma maneira geral, não são contempladas pelos professores, na sua prática diária. Pelo contrário, os mesmos se mostram através de falas e comportamentos, disseminadores de práticas racistas, ou seja, se não bastasse o fato de não contemplarem a temática racial no cotidiano escolar, os mesmos ainda reforçam nesses espaços, práticas e ideologias racistas.

O silêncio do professor sobre as questões raciais facilita novas ocorrências, reforçando inadvertidamente a legitimidade de procedimentos preconceituosos e discriminatórios no espaço escolar e, a partir dele, para outros âmbitos sociais. Confirma dessa forma o direito de crianças brancas e não-brancas a exercerem discriminação contra crianças negras (CAVALLEIRO, 2006, p.227).

O professor é um referencial para a criança no âmbito escolar, possivelmente ele seja a primeira referência de valores construída pelas crianças fora do seu habitat familiar mais próximo. Por isso as atitudes e comportamentos proferidos por ele ganha nesta perspectiva, uma força fundamental na formação daquele indivíduo, seja ele negro ou não-negro. A construção de valores compreendidos como certo ou errado, nesta faixa etária, sofre muita influência do pensar e agir do professor.

Esse tipo de postura reforça atitudes discriminatórias das crianças não-negras em relação às crianças negras, além de influenciar diretamente no rebaixamento da autoestima e reforça uma autoimagem negativa por parte da criança negra. Tanto a criança negra quanto a branca, passam a estabelecer relações de poder, legitimadas por um discurso de superioridade branca e inferioridade negra (CAVALLEIRO, 2000).

A criança e o jovem, de uma maneira geral são ensinados, dentro e fora da escola, que o grupo étnico branco apresenta uma série de características genuínas que a torna superior ao grupo étnico negro. “É notável também, no cotidiano escolar, uma desvalorização sistemática das características estéticas das crianças negras, paralelamente a valorização de um modelo estético branco” (CAVALLEIRO, 2006, p. 230).


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O desejo de ser branco e, conseqüentemente ser aceito socialmente, faz com que a criança negra vivencie um conflito interno: o da não aceitação da autoimagem. Fato este que influencia diretamente na construção de identidades relacionadas ao grupo étnico negro.

O processo de construção de identidades em si, já é complexo – posto diante desta dinâmica que se estabelece hoje nas relações sociais, mas principalmente nas relações escolares – se torna ainda mais complicado. Lopes (2006) defende que é preciso entender a identidade como uma construção contrastiva, e diz mais:

Ela se dá na medida que eu me diferencio e reconheço minha diferença em relação ao outro e aos vários outros que, ao mesmo tempo me dizem quem sou eu, fornecendo assim parâmetros para o sentimento de pertencimento. Este sentimento de pertencimento realiza-se por meio de uma rede de relações que envolvem o sujeito, traçando representações que internalizadas, dialogam todo o tempo com o exterior. (LOPES, 2006, p.257)

Compreendo então que a construção de uma identidade na perspectiva de Lopes, se dá a partir de construções individuais e coletivas, que dialogam-se e com elementos externos, a todo o tempo. É necessário ainda neste processo que o individuo reconheça e construa a sua imagem, compreendendo-a dentro de uma diversidade. Direcionando a construção de identidades, para esse olhar de Lopes, as representações interiorizadas, ao dialogar com o mundo exterior, acaba por fortalecer no individuo negro as imagens que lhes são direcionadas socialmente.

Na concepção da Ataíde, a construção da identidade depende de duas questões; a maneira como nos vemos e como somos vistos socialmente. A maneira como somos representados socialmente, influencia diretamente, na forma como construiremos a nossa identidade. Desta forma as ideologias racistas, presentes na nossa sociedade, passam a determinar e a influenciar a forma com que construiremos a nossa auto-imagem. (ATAÍDE, 2003, p. 90)

Assim, sob essa perspectiva e acreditando que a escola é um dos principais palcos, onde se estabelecem essas construções; faz-se necessário uma maior compreensão acerca desta dinâmica escola e identidades.


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O que a prática pedagógica escolar tem privilegiado ao longo da história da educação em nosso país não é uma igualdade na base e sim o privilégio de um grupo social. Os conteúdos e os materiais escolhidos para o ensino do saber escolar não ofereceu encontros positivos com a imagem da população negra e, portanto, favorece um outro encontro positivo com a população branca. (LOPES, 2006, P. 258)

As argumentações aqui já postas evidenciam o lugar que a escola, historicamente destinou ao negro, lugar este aquém do destinado ao branco. As imagens construídas socialmente e legitimadas pela escola, arraigaram no imaginário da criança e do jovem negro uma posição de inferioridade. Os símbolos relacionados ao grupo étnico negro, foram depreciados, sendo também ressignificados ganhando adjetivações como: feio, fedido, mau, demoníaco, dentre outras adjetivações que até hoje povoam o imaginário da população negra brasileira.

E essa depreciação se fortaleceram a partir das atividades pedagógicas, tendo no livro didático e na literatura infanto-juvenil grandes instrumentos para o fortalecimento dessas idéias. Acerca dos livros didáticos a pesquisadora Ana Célia Silva destaca que:

Os materiais pedagógicos têm papel fundamental na reprodução das ideologias, uma vez que expandem visões estereotipadas dos segmentos oprimidos da sociedade. Entre ele sobressai-se pela importância que lhe é conferida pelos pais, alunos e professores, o livro didático, considerado o depositário da verdade, a memória conservada das civilizações. Contudo, muitos processos civilizatórios e muitas visões de mundo são omitidos ou distorcidos pelo livro, que veicula na maioria das vezes a visão de mundo e o processo civilizatório das classes dominantes. (SILVA, 1995, p. 47)

O livro didático privilegia de uma forma geral, o grupo étnico branco, em detrimento dos outros grupos. Além de conferir, a esses grupos características depreciativas, o mesmo deturpa os processos históricos aos quais esses grupos foram submetidos e ignora a contribuição dos mesmos na constituição da nação brasileira.

Neste processo a literatura infanto-juvenil – objeto de estudo desta pesquisa – também demonstra grande influencia na construção dessas representações. Como já foi referenciado no anteriormente a representação do negro na literatura infanto-juvenil já passou por algumas mudanças, trazendo hoje algumas obras representações extremamente positivas do personagem negro.


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A construção da identidade da criança e do jovem precisa do apoio de imagens confirmadoras positivas. Isto é necessário para todos eles, mas no caso de crianças e jovens negros, está é uma tarefa essencial, pois os jovens e as crianças que não são negras já encontram naturalmente na sociedade essa confirmação. (LOPES, 2006, p.271)

Embora já encontremos nas prateleiras das livrarias obras que contemplem a atual necessidade de reconstrução da imagem do negro na sociedade. A minha experiência em escolas de educação infantil e ensino fundamental me mostra uma realidade bem diferente.

Essas obras não chegam às escolas, e essa é uma questão problemática. Como fazer com que os alunos das escolas públicas e/ou comunitárias tenham acesso a essas obras e construam a partir das mesmas novas significações de si e do mundo que as cercam? Acredito que esse distanciamento se deva a uma questão já discutida aqui, a falta de interesse da escola em trazer para a pauta pedagógica das instituições, a problemática racial brasileira.

Há uma emergente necessidade de mudanças de posturas por parte da escola, as praticas exercidas por elas, devem ser pautadas em uma educação que rompa com as amarras ideológicas hoje predominantes em boa parte das instituições escolares. A mesma não pode mais silenciar-se diante dos conflitos raciais, vivenciados hoje no cotidiano escolar e social.

Foi diante dessa perspectiva de busca por novas realidades que fui ao encontro do Lar Joana Angélica, acreditando que é possível uma educação que combata as ideologias racistas vigentes hoje no âmbito escolar.

4.2 Os caminhos até o Lar Joana Angélica

No primeiro dia que cheguei ao Lar Joana Angélica uma das primeiras perguntas que a fundadora e coordenadora daquele espaço me fez foi: Porque o Lar Joana Angélica, e não outra escola comunitária de periferia?


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Naquele momento dei-lhe uma resposta em parte sincera, mas ocultei alguns dos motivos, pois acreditava até então, que ao revelar completamente as minhas motivações poderia comprometer a minha pesquisa, de modo que o verdadeiro motivo para que fizesse a escolha pelo Lar Joana Angélica, se justificava na pessoa que me fez a pergunta, Jussara Rocha.

Entre as certezas que existiam no início desta pesquisa, uma delas é que qualquer que fosse a escolha da escola seria um tiro no escuro, visto que até então as opções de escola que eu possuía eram de completamente estranhas para mim, não importa para onde eu fosse seria uma nova realidade. Mas uma coisa eu sabia, não queria encontrar no meu caminho respostas vagas e prontas, pessoas temerosas, um ambiente onde parecesse que você era uma ameaça as pessoas que ali estão.

E foi neste ponto que o Lar Joana Angélica através da pessoa de Jussara Rocha me instigou. Em um encontro de educadores negros, onde a mesma discursava em nome de uma educação diferenciada, pude perceber que ali talvez seria o melhor lugar para a minha pesquisa, a honestidade e paixão com que a mesma falava sobre o Lar e os projetos desenvolvidos naquela instituição,como por exemplo África, Corações em Verde e Amarelo, me fez acreditar que aquela seria a melhor escolha.

Após este encontro tomei algumas referencias sobre o local e sobre essa fundadora, e entrei em contato, neste momento tive mais uma agradável surpresa. Diferentemente do que geralmente acontece em pesquisas de graduandos, onde os locais possivelmente pesquisados geralmente exigem apenas uma documentação da instituição de origem para posteriormente liberar ou não, a diretora do Lar fez diferente. Ao telefonar para a instituição a mesma disse-me que consultaria as pessoas que trabalham na instituição e que posteriormente nos falaríamos. Como já disse esta é uma postura muito pouco comum, se fosse mais praticada nas escolas que recebem esses graduandos, tornaria a presença do mesmo, menos resistente, visto que, a má vontade e as caras feias das pessoas que ali não desejam essa presença seriam cada vez menos freqüente; fora que isso é uma grande mostra de que uma instituição é formada por varias camadas e que ambas são igualmente importantes e necessárias, cada uma dentro do seu contexto


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evidentemente. As decisões não são tomadas isoladamente pela coordenação e sim em conjunto por todos que ali trabalham.

Voltando aquele primeiro dia onde me foi feita àquela pergunta, a todo o momento a coordenadora me analisava, provavelmente para perceber qual tipo de pessoa estariam abrindo as portas daquela escola comunitária que mais tarde se mostraria um verdadeiro lar para todos que lá trabalham, estudam, e vivenciam todas as dificuldades existem naquele ambiente e no seu entorno.Felizmente a minha presença foi autorizada naquele espaço, onde pude então realizar a pesquisa. De antemão se torna necessária uma analise dos diversos contextos que formam aquele ambiente, pois são esses que em muito influenciam nos indícios apontados por esta pesquisa.

4.3 Lar Joana Angélica: Do surgimento aos dias de Hoje

O Lar Joana Angélica é uma entidade civil, de caráter educativo sem fins lucrativos ou religiosos. A idéia inicial era de fundar uma ONG para trabalhar apenas arte e educação com jovens e adolescentes. Em abril 1999 no final de um curso de teatro alguns membros do grupo resolveram criar o projeto Noite Feliz, no qual foram realizadas oficinas de artes plásticas, poesia, musica com a finalidade de montar um espetáculo infantil que seria apresentado nos bairros das periferias de Salvado. A partir dessas oficinas foi criado por Eurípides Brassenato, membro do grupo, o texto infantil Natal Sem Lua e logo em seguida adaptado pelo grupo e transformado em uma peça teatral sendo apresentada em algumas escolas comunitárias e creches de Salvador. Essas apresentações resultaram em articulações com o Movimento Hip-Hop e o Movimento de Intercâmbio artístico Cultural Pela Cidadania (MIAC).

As ações sociais pela qualidade de educação e por justiça social desenvolvidas pelo Movimento Hip Hop e o Miac viria a se tornar o elo de ligação entre o Grupo do projeto Noite Feliz.Essa parceria se fortaleceu resultando em articulações que ajudaram a viabilizar a consolidação do Lar Joana Angélica e sua fundação em 28 de abril de 2000.


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Em janeiro de 2003, com o apoio da CESE (Coordenadoria Ecumênica de Serviço) e o Grupo Insieme (Juntos) o Lar conseguiu produzir o seu primeiro vídeo e a peça de teatro –A Nossa Historia- que conta todo o percurso de nossa entidade e a História do bairro de Valéria. Em 09 de agosto de 2003 o resultado desse trabalho foi apresentado para a comunidade, professores da escola do Bairro, educadores e jovens de outros segmentos sociais.

Com a aplicação de novos planos na realização dos novos projetos e diante das demandas da comunidade e a carência de escolas que atendessem às necessidades da mesma surge a idéia de uma escola comunitária e em 2004 ela se configura devido a um aumento significativo do número de crianças que chegam ao Lar Joana Angélica. As atividades de educação infantil em 2004 somente com o curso de alfabetização. Hoje existem no Lar turmas de Educação Infantil à primeira série ou segundo ano de escolaridade, nos turnos da manhã e tarde.

4.4 As mulheres do Lar Joana Angélica Busquei neste momento da pesquisa ampliar o repertório de conhecimentos do meu leitor acerca da instituição pesquisada trazendo um quadro que mostra, em breve perfil das mulheres do Lar Joana Angélica. Quadro 1 – Perfil das mulheres do Lar Joana Angélica NOME Jussara Cremilda Ione

FORMAÇÃO ESCOLAR Superior incompleto

FUNÇÃO NA INSTITUIÇÃO

IDADE

COR

Coordenadora

41 anos

Negra

Professora da 2°grau/magistério alfabetização

40 anos

Negra

23 anos

Preta

17 anos

Negra

19 anos

Preta

26 anos

Negra

20 anos

Negra

28 anos

Parda/Morena

2° grau

Taiane

2° grau em curso

Rose

2°grau em curso

Nadja

Magistério

Jaciara

2° grau

Sheila

1°grau incompleto

Secretária Ajudante e educanda Ajudante, artesã e educanda Professora da 1° série Professora do Jardim de Infância Serviços Gerais


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A Faixa etária das mulheres do Lar Joana Angélica variam entre 17e 41 anos, todas essas mulheres possuem o fenótipo que possivelmente as caracterizariam, enquanto negras, embora uma das funcionarias tenha classificado-se como parda. Segundo a mesma pelo fato de possuir esta descrição na sua certidão de nascimento.

A presença majoritária de mulheres nos ambientes escolares não é uma grande novidade, mas essa presença no Lar Joana Angélica é de uma relevância singular. Embora existam homens que de uma maneira ou de outra fazem parte dessa escola, a presença deles no seu dia-a-dia não se mostra. Oficialmente a presença masculina se mostra através do contador, que é também um dos fundadores da instituição, mas em geral essas mulheres se mostram muito mais ativas na lida com os deveres que mantém o Lar em funcionamento, sem desmerecer logicamente a participação masculina neste processo.

Essa forte presença feminina se manifesta através de três professoras, Jaciara (jardim de infância), Nadia (primeira série) e Cremilda (alfabetização), sendo que esta foi de fundamental importância para esta pesquisa, pois a historia dela enquanto professora do Lar se confunde com a implementação da escola, visto que ela é uma das fundadoras do Lar Joana Angélica,. Nenhuma das três professoras possuem formação superior, apenas a formação de magistério, embora todas manifestem interesse em obter mais este titulo, possibilitando um crescimento não só como profissional, mas também como pessoa.

Conhecimento nunca é demais, e no caso de educadoras de uma instituição situada em uma local com características tão problemática, isso se torna urgente. E esse olhar é partilhado pelos gestores da instituição que comungam desta opinião, um dos objetivos mais urgentes dos mesmos, é qualificar o quanto antes o seu corpo docente. Os mesmos acreditam que melhor que contratar alguém que não conhece a realidade do bairro e consequentemente das crianças que ali estudam, é possibilitar que pessoas oriundas das proximidades e dos próprios projetos componham o corpo de funcionários da instituição.

O que se caracteriza na presença das duas auxiliares, Rose e Taiane, ambas oriundas de projetos destinados ao público jovem e realizados pelo Lar Joana Angélica. A uma evidente


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preocupação da coordenadora da instituição com os jovens que fizeram parte dos projetos, destinados a este público. Hoje o Lar Joana Angélica, vem dando maior atenção a escola que aos projetos com os jovens, porque elas perceberam as dificuldades da escola, e resolveram dar maior atenção a mesma. A presença de Taiane e Rose, é resultado da preocupação que as pessoas que trabalham no Lar possuem em relação aos jovens dos projetos. Rose além de auxiliar a professora no Jardim, ocupa outras funções no Lar, visto que a mesma também é artesã do projeto de artesanato.

Uma das mulheres que sustenta esse Lar numa perspectiva de trabalho, é Ione, a Secretária Administrativa, a mesma faz de um tudo no Lar, na ausência da coordenadora, ela é quem resolve as pendências, é uma pessoa muito atenta às necessidades das crianças, ela tem o que se pode chamar de espírito de pedagoga, embora não tenha tal formação, a mesma tem um olhar bem apurada para as necessidades mais urgentes da instituição e de todos que a compõe, principalmente das crianças.

Outras mulheres transitam pelo Lar com muita freqüência, as mulheres das oficinas que são realizadas na instituição, mães de alunos como é o caso de Sheila, uma mulher que possui três filhos na escola e que não mede esforços para apoiar as ações do Lar, durante toda a minha observação a mesma esteve presente em todos os dias. O reconhecimento do seu trabalho e dedicação é tamanho que sua contratação como funcionário da Lar, já esta sendo providenciada.

Mas tem uma mulher que muito me chamou a atenção durante a pesquisa, a mesma que me fez a pergunta lá no inicio da minha estada na instituição, Jussara Rocha, desde o nosso primeiro encontro em um congresso a mesma me chamou à atenção. Mulher negra, muito bem articulada, e com um discurso sobre educação que fez muito bem aos meus ouvidos e as minhas expectativas durante e após a minha busca por um local de pesquisa. Jussara vive o Lar Joana Angélica, em uma simples conversa com a mesma pode-se perceber o quão importante aquela instituição é para a mesma. Parece que existe uma relação intrínseca entre ela e o Lar, é como se um não vivesse sem o outro e como se o que elas são fosse resultado deste encontro.


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No seu discurso a necessidade de uma educação que percebe que a criança negra e pobre existe, e faz parte da formação do povo brasileiro é constante, a todo o momento essa necessidade vem à tona. A preocupação com essas questões não se manifesta apenas no discurso, mas como também na sua pratica, nas suas escolhas desde as mais simples como a decoração do Lar até as mais complexas como a produção de peças teatrais que dêem destaque a essas necessidades. Jussara possui uma trajetória de vida que em muito explica a formação que o lar possui hoje, mas seria impossível tentar descrever a sua trajetória neste trabalho. Por isso vou me limitar as palavras acima escritas.

Poderíamos falar outras tantas coisas dessas mulheres – porque embora poucas quantitativamente – numa perspectiva qualitativa elas são múltiplas, pois as sua ações as tornam singulares num mundo onde nas posições de poder elas são tão preteridas. Mas um fato ocorrido em uma das minhas visitas representa muito bem a força e o poder dessas mulheres que compõem o Lar Joana Angélica.

Em uma manhã quando eu chegava ao Lar pude observar que já haviam iniciado as obras no Lar. Fiquei um pouco na sala com os meninos, depois subi até a parte administrativa para cumprimentar as outras pessoas, ao chegar lá me deparei com essas mulheres que eu acabei de descrever acima, todas sujas de tinta, empoeiradas, rindo e brincando. Ao ver tal cena perguntei, ingenuamente quem terminaria a reforma, e Jussara me respondeu: - Nós mesmas. Claro! Até por que se formos esperar pra contratar alguém isso não fica pronto nunca. Continuaram a reforma e me integraram ao mutirão. Essas são as mulheres que sustentam em pé esta instituição.

4.5 A estrutura física

As pessoas que administram o Lar não se preocupam apenas com as questões pedagógicas, as questões relacionadas à estrutura física também são muito discutidas. As mesmas acreditam que um lugar fisicamente sem estruturado influencia e muito nas questões pedagógicas. É necessário para que se tenha uma educação satisfatória ambientes físicos bem estruturados, e pensados para tais praticas. E é o que acontece no Lar Joana Angélica, que vive em constantes reformas. Existe hoje um projeto em andamento para ampliar e dar mais conforto as pessoas que


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ali estudam, e/ou trabalham, ou desenvolvem qualquer tipo de atividade no Lar Joana Angélica. Mas até então a escola possui, duas salas de aula com turmas manhã e tarde, uma sala inacabada, dois banheiros, uma área de recreação que esta dividida em dois espaços e um mini parque com piscina para crianças, cozinha com área de serviço, escritório e dispensa.

4.6 O encontro com os educandos do Lar Joana Angélica

Das três turmas existentes hoje na escola pude fazer as intervenções em apenas duas devido às demandas de finalização de curso na Universidade. Dediquei-me inicialmente as turmas de educação infantil e alfabetização. Dando maior atenção a turma de alfabetização. Que posteriormente se impôs como maior referencial prático nesta pesquisa.

É bom destacar que as turmas no Lar Joana Angélica são multiseriadas, ou seja, nas turmas do infantil existem crianças entre 3 e 5 anos e na de alfabetização de 5 a 8 anos.Essa questão se mostra extremamente problemática de modo que na alfabetização por exemplo, as crianças que pela faixa etária estariam no grupo 5 estão avançando com muito mais rapidez que as crianças de 6 e 7 anos que estariam propriamente na alfabetização ou no 1° ano de escolaridade como é nomenclatura atualmente. O nível de dominação da leitura desses últimos está comprometido pelo fato da professora procurar meios de contextualizar as aulas, de forma que possa ser compreendido por ambos. Uma coisa interessante é que embora na mesma sala e com conteúdos iguais os livros variam conforme a faixa etária. De uma maneira geral enquanto os meninos mais novos avançam de forma acelerada os maiores progridem muito lentamente.

A grande preocupação que se mostra na fala da professora é que aquelas crianças aprendam a ler e a escrever, preocupação essa dividida com os pais destas crianças. Não pude ter um contato constante com os mesmos, devido ao tempo disponibilizado para conclusão deste trabalho, como o tempo era curto dei preferência às pessoas que vivenciavam mais de perto as práticas dentro do Lar Joana Angélica. Segundo relato da professora da Alfabetização o perfil, de uma maneira geral dos pais, são de pessoas com pouca escolarização e que vêm na escola uma possibilidade dos seus filhos aprenderem a ler e a escrever para posteriormente ingressarem no mercado de trabalho informal, uma realidade muito comum no bairro de Valéria.


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A professora tem no seu discurso uma evidente preocupação com as práticas desenvolvidas na sua sala de aula. A mesma embora já tenha 25 anos em sala de aula, não demonstra cansaço, nem falta de estimulo, apesar de estar enfrentando alguns problemas de saúde na família, ela me recebeu de braços abertos; e via na minha presença ali uma possibilidade de obter novos conhecimentos. Acredito que se não fossem as dificuldades que se apresentam do dia-a-dia desta educadora, a mesma já teria feito um curso de graduação:

Quadro 2 – Perfil da Turma de alfabetização

NOME

COR

ADRIELSON BRANCO BEATRIZ BRANCA BIANCA NEGRA ENZO NEGRO FÁBIO NEGRO LENNON NEGRO LORRANA NEGRA LORRANE NEGRA MARIANA NEGRA MILENA BRANCA SAMARA NEGRA VANDERSON BRANCO VINICIUS NEGRO VITÓRIA NEGRA Fonte:Pesquisa direta com a professora Considero importante a inclusão deste quadro de modo que fique evidente a amostragem quantitativa de negros e brancos naquela sala de aula.

4.7 O encontro dos educandos com a literatura Infanto-Juvenil

Meus encontros com os educandos do Lar Joana Angélica, se deram de agosto a outubro de 2008. As professoras Cremilda e Jaciara me apresentaram aos seus alunos respectivamente, dizendo para eles que eu iria alguns dias a escola e ficaria com eles na sala, e que em alguns momentos contaria histórias.


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Essa palavra ‘histórias’ de imediato, me abriu todas as portas em relação aos meninos. Eles ficavam empolgadíssimos com a minha presença sempre. Na turma de Jardim eu tive poucos encontros, consequentemente não pude colher muitas evidências para esta pesquisa, mas o que percebi naquela turma, é que a literatura é sim, um instrumento poderoso e essencial na prática em sala de aula.

O espaço físico dedicado às obras literárias, em sala de aula, é bem precário. As poucas obras literárias que ficam ao alcance das crianças encontram-se sobre uma pequena prateleira na sala de aula. Isso se dá pelas dificuldades financeiras e de investimentos, encontradas pela instituição no seu dia-a-dia. Existe hoje em tramitação, um projeto, que visa, dentre outras coisas a aquisição de um acervo literário4. Dentre as obras ali requeridas estão também as analisadas aqui nesta pesquisa.

A literatura só não ocupa nesta instituição um espaço mais privilegiado, por falta de recursos, vontade por parte dos seus gestores é o que não falta. A própria escolha das obras deste projeto demonstra a preocupação dos seus gestores com as questões étnico-raciais. Todas as obras solicitadas trazem nas suas narrativas e ilustrações a presença efetiva dos indigenas, mas principalmente dos negros. Outra questão interessante nesta lista é que também propõe uma série de livros para os professores; os livros destinados aos mesmos trazem as discussões a cerca das relações étnico-raciais. Essa preocupação fica evidente em conversas com a coordenadora da instituição, Jussara Rocha. A mesma sempre trazia como pauta das conversas, questionamentos acerca dessas relações.

Voltando as crianças do Lar Joana Angélica, como já havia dito acima, eles apreciavam muito o momento em que eu contava as histórias. Contei-as de diversas formas: oralmente, só com as imagens, com imagens e narrativas, contei histórias tiradas de livros, histórias colhidas da minha infância. Mas todas essas histórias tinham em comum a presença do negro de forma positiva e enquanto protagonistas dessas histórias.

4

Segue em anexo a lista dos livros solicitados neste projeto.


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Um fato interessante, que se deu em um dos primeiros encontros com os educandos, foi que: ao contar uma história em que a personagem possuía um berimbau mágico, que a transportava a qualquer lugar e qualquer tempo, um dos meninos me disse o seguinte: “Você fica contando essas histórias, depois eu não consigo dormir”. Aquela fala foi encarada por mim, como algo normal, não dei muita importância até então, até porque ao falar isso ele sorria. Ele repetiu isso mais algumas vezes e encontrou apoio em um colega mais jovem, que se mostrava um pouco desconfortável, com aquela história.

Naquele dia por coincidência o grupo de capoeira, do qual, alguns daqueles alunos faziam parte iria à escola fazer uma apresentação. Terminei de contar a história e pouco tempo depois o grupo de capoeira chegou. Imediatamente, o colega mais jovem saiu do salão e foi para a sala de aula e lá se pôs a chorar, dizendo que aquilo era coisa do diabo. O mesmo colega que dizia, que não iria conseguir dormir, acompanhou ele no chorou e passou a comungar da mesma idéia em relação à designação da capoeira, enquanto algo demoníaco.

Em conversa com a professora e a coordenadora, percebi que ambas já estão habituadas a esse tipo de manifestação. Em relato feito pela professora pude perceber, que a reação da criança menor, se justifica devido a questões familiares, a mãe do mesmo, sempre indaga a professora em relação ao fato da criança gostar tanto da professora – negra – visto que, ele – branco – não gosta de negros, segundo a mãe. Não percebi em momento nenhum na fala e/ou nas ações da criança – salvo esse momento em relação a capoeira – qualquer elemento que me levasse a crer na afirmação da mãe.

Ainda sobre este fato pude perceber na fala da coordenadora, pouca surpresa em relação a esta rejeição. A mesma passou a me relatar uma série de represálias direcionadas ao Lar Joana Angélica. Episódios como ter arrancada uma faixa que divulgava um caruru, oferecido para a comunidade, pela instituição.

Pude presenciar neste mesmo dia um episódio, em que ao começar a tocar os atabaques e o berimbau na roda de capoeira, a Igreja, de matriz pentecostal, que fica bem próxima a escola,


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colocou o som em alto volume, e alguns dos que seguem aquela religião, começaram a cantar na porta daquela casa de culto.

A fala da professora e da coordenadora me remetem a três componentes extra-literários, que em muito influenciam na construção da identidade étnico-racial dessas crianças. A religião, a comunidade e a família. Todas se entrelaçam e tornam ainda mais complexo o papel da literatura. “A educação formal brasileira vem deparando com questões que outrora não tinham qualquer visibilidade no cenário nacional devido ao silenciamento a que eram submetidas. Entre elas podemos destacar o estranhamento das tradições culturais de matrizes africanas” (SILVA, 2005, p. 121).

A escola e os estudiosos da área de educação, vêm direcionando o seu olhar para as tradições culturais de matriz africana muito recentemente, na prática podemos perceber que poucas escolas estão verdadeiramente atentas a essas questões. O Lar Joana Angélica certamente é uma dessas poucas instituições.

A comunidade de Valéria nesse processo de reconhecimento das contribuições do povo de origem africana me parece ainda aquém dessa problemática. Não percebi durante o período em que estive naquela instituição, qualquer indício de que a comunidade se preocupe com essas questões, pelo contrário, constatei principalmente através dos relatos feitos pela professora Cremilda – em relação à comunidade – a ausência do interesse da mesma em discutir sobre essas temáticas, salvo os jovens do projeto.

Um exemplo da falta de abertura da comunidade para discutir assuntos ditos polêmicos, se caracterizou no episódio em que a grupo de jovens, que fazia parte do projeto de Hip Hop compôs uma música falando sobre relações entre pessoas do mesmo sexo. Segundo a coordenadora e a professora, essa música tirou vários jovens do projeto, visto que, os pais que não comungavam da mesma opinião acerca do relacionamento entre pessoas do mesmo sexo, não mais os queriam ali.


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A relação família e escola no Lar Joana Angélica é bem mais complexa que o relato acima. Em comum eles possuem o desejo de uma vida melhor para essas crianças, que as mesmas aprendam a ler e escrever, mas o Lar, pelo que pude perceber, vai além disso. O mesmo busca a formação de um sujeito consciente da problemática que a sociedade vive hoje, dos acirramentos das disputas vividas em sociedade, e que a partir daí construa mudanças.

Essas mudanças começam com a construção de uma nova consciência de mundo, e da ressignificação dos seus signos. O negro está procurando, construir uma identidade positiva do grupo. No seu dia-a-dia o mesmo vem buscando conquistar espaços sociais que até então lhe tem sido vedados, isto é, o negro quer ir além dos espaços que historicamente a sociedade brasileira lhe tem reservado (PEREIRA, 2002).

Pautada nesta afirmação busquei, apresentar aos educandos do Lar Joana Angélica, uma literatura que corrobore com esse pensamente, da construção da identidade positiva do negro. Onde as personagens ali expostas, pudessem servir de inspiração e identificação para os seus leitores e/ou ouvintes.

De uma maneira geral não houve uma rejeição as histórias, pelo contrário, eles gostavam muito delas. Interagiam, faziam relações entre as atitudes dos personagens e algumas vivências pessoais, e muito corriqueiramente identificavam semelhanças físicas entre esses personagens e pessoas próximas a eles, em compensação poucos foram os que relacionaram espontaneamente essas semelhanças a si próprios.

Os alunos demonstravam certo incomodo quando algum dos colegas relacionava os personagens a eles. Falas como: “Ele não é igual a mim, não! Parece com Enzo (aluno negro)”, por parte de alunos negros e brancos era muito comum. Por vezes os mesmos relacionavam as personagens femininas; a mim, a professora Cremilda e/ou a coordenadora Jussara – todas negras, mas nunca a si. Embora alguns insistissem em nos adjetivar, como morenas.

Outro comportamento recorrente foi esse, o de nomear pessoas negras, como morenas. Ivone Martins Oliveira (1994), em seu livro Preconceito e Autoconceito: identidade e interação


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na sala de aula, dentre outras coisas discute a importância da terminologia morena, para maior compreensão das relações raciais brasileiras. Esse termo, segundo a autora sugere o embranquecimento do negro. Ainda sobre esse ideal de branqueamento disseminado no país Oliveira nos diz mais:

Para o branco pós-abolicionista, a ideologia do branqueamento implicava a possibilidade de uma sociedade mais “pura”, “bela” e “superior”, como a do velho mundo. Por outro lado, para o homem com traços físicos de negritude, livre, discriminado e marginalizado, sem meios de subsistência, embranquecer estava ligado à possibilidade de ser aceito e de ascender social e economicamente em uma estrutura dominada por “brancos” – quanto maior o nível de embranquecimento, maior a possibilidade de integração è estrutura social e econômica emergente ao fim da escravidão e com os primórdios da industrialização no país. (OLIVEIRA, 1994, p.93)

E esse desejo de embranquecer, de se afastar das características do fenótipo negro, ainda é muito presente na sociedade e se caracteriza aqui a partir das falas dos educandos do Lar Joana Angélica. A autoclassificação enquanto negro e consequentemente semelhante aos personagens, naquele contexto que se apresentou gerou discordâncias. Mas quando indagados se possuíam nas suas famílias alguém negro, a maioria dos educandos negros da sala, responderam que sim, que possuíam em suas famílias pessoas negras, e alguns chegaram a fazer comparações entre essas pessoas e os personagens.

Em um momento da pesquisa eu pedi aos educandos que fizessem uma representação da personagem da história que havia contado, através de um desenho, neste momento o comportamento de uma das educandas negra, me chamou a atenção. Ela se negava a representar a personagem, a mesma dizia a todo o tempo que não iria desenhar a personagem, que iria apenas desenhar outros aspectos da história.

Seus colegas, passaram então a denunciar e questionar a sua atitude, o que fez com que ela fosse me solicitar a não realização da atividade. De imediato indaguei-a sobre os motivos para tal, ela apenas limitou-se a dizer que não queria fazer. Sugeri a ela que desenhasse o que quisesse desde que fosse relacionado à história, mas a mesma já não demonstrava interesse nenhum pela atividade, ficando assim sem realizar.


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O comportamento da referida garota em relação aos personagens das histórias se repetia sucessivamente, a mesma não demonstrava grande empatia, como os outros educandos, pelos personagens, embora apreciasse o momento da contação dessas histórias. A repulsa pelas características físicas dos personagens, quando eram enaltecidas, nas narrativas ou nos comentários de alguns educandos, era evidente por parte da mesma; que sempre discordava das idéias de beleza direcionadas aos personagens. Essa educanda é filha de uma das funcionárias do Lar, a única que na autoclassificação, trazida no quadro que mostra o perfil das mulheres do Lar Joana Angélica, adjetivou-se enquanto morena e/ou parda. Segundo a mesma, isso se deve ao fato de ser descrita na sua certidão de nascimento como parda.

O ato lúdico de contar histórias atraia a educanda, mas por outro lado, não havia uma identificação com as personagens, pelo contrário, a mesma repudiava toda e qualquer possibilidade de similaridade. A imagem do negro para aquela menina provavelmente foi construído como algo negativo; a negação de um pertencimento ao grupo étnico negro é bem provável na realidade da mesma, configurado aqui pela afirmativa da mãe de ser parda.

O meu breve contato com os educandos do Lar Joana Angélica me fez perceber que a literatura infanto-juvenil tem pouco espaço na prática em sala de aula. Os espaços físicos destinados à mesma são ínfimos. O acervo literário também se mostrou bastante precário, embora já exista um projeto que vise ampliar este acervo. A instituição aqui pesquisada se mostra extremamente aberta e mais que isso, preocupada e interessada em promover mudanças, tendo nos estudos literários uns dos seus maiores parceiros, mas não só neles.

Nas conversas com a coordenadora Jussara Rocha, a mesma reconheceu que embora não seja pedagoga percebe as dificuldades enfrentadas hoje pela educação, o caráter discriminatório das práticas educativas e compreende a necessidade de avanços na seleção das literaturas apresentadas aos educandos, mas acredita que isso apenas não é suficiente. É necessário um olhar mais crítico também sobre outras questões como meio ambiente, e de novas políticas de ensino e aprendizagem.


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Essa preocupação com os estudos literários fica evidente com o Projeto Corações Africanos em Verde e Amarelo, ainda não realizado, mas que já está se encaminhando para tal, que pretende colocar a África e o Brasil em destaque no cotidiano da escola. A secretária administrativa Ione considera este projeto uma idéia maravilhosa, pois levar para a sala de aula histórias e contos de origem Africana e Brasileira, poderá transformar a vida daquelas crianças e marcá-las por toda a vida. Sobre o projeto a coordenadora explica um pouco mais, segundo ela:

A idéia de projeto é a contação de histórias para as crianças da educação infantil. Claro que essas história são de África e Brasil, lendas e mitos africanos e indígenas. Histórias de crianças negras. O nome do projeto se dá por entender que nossos corações estão em África, idéias, pensamentos, leitura de vida e do mundo...[sic] apesar nos nossos pés estarem no Brasil. Por isso as atividades realizadas no projeto serão sempre no chão.(Jussara ROCHA)

É muito importante que as crianças negras tenham contato com histórias, que evidenciem a questão da negritude para a construção de uma identidade étnico-racial mais saudável. O que se configura há bastante tempo, são crianças negras rejeitando a sua imagem e as referências simbólicas do seu grupo étnico, determinado assim a existência de uma identidade conflituosa, onde o aspecto do fenótipo idealizado pela criança negra, não compreende a sua realidade, seja ela estética ou por outras representações. A imagem que é refletida no espelho, não é a mesma internalizada pelo desejo da criança. A importância da construção de um ideal identitário saudável, culmina em uma cidadania plena, construída a partir de valores de matriz étnico-racial africano e afrobrasileiro.

Moraes e Ataíde (2003) em estudos sobre identidade ética afro-descendente, nos traz uma reflexão acerca da multiplicidade de identidades negras. Segundo os autores, a identidade negra não é algo único e sim uma composição multifacetada. Há espaços que privilegiam a construção livre quase que integral dessas identidades, como por exemplo os espaços políticos do movimento negro e os religiosos de matriz africana. O Lar Joana Angélica tenta através das suas práticas se configurar como um desse espaços, e tem na literatura um grande parceiro na concretização deste ideal, onde a criança negra não tenha que sofrer degradações constantes da sua imagem, e possam a partir das relações interpessaoais e literárias, construir uma identidade saudável.


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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho me proporcionou a ampliação do meu olhar acerca das relações étnico-raciais e do papel que a literatura infanto-juvenil exerce neste processo. Percebi ao longo desta pesquisa que o objeto literário pode servir como instrumento de educação do individuo quanto de agressão.

Para a criança negra especificamente, a literatura infanto-juvenil é um instrumento cruel, as representações que o mesmo reproduze agridem sensivelmente esses indivíduos ainda em processo de formação. Mas foi possível também perceber, neste percurso de pesquisa, que a possibilidade de mudanças sensíveis hoje é uma realidade. Talvez com a mudança dessas representações negativas, possibilite no âmbito escolar, uma mudança também nas relações de poder, visto que tanto a criança negra, quanto a não negra passarão a perceber a si e o outro de forma bem diferente.

Embora o contingente ainda seja inexpressivo , podemos notar uma maior quantidade de obras que tratam das relações raciais de forma saudável. As editoras parecem que vêm hoje nesse filão, uma possibilidade de conquistar novos consumidores. Esse talvez não seja o melhor caminho, visto que, esse comportamento abri uma maior possibilidade de surgirem obras, com um único intuito: o financeiro, deixando de lado as questões relacionadas aos conteúdos trazidos nessas obras.

Mas ainda que essas obras sejam publicadas, do que adianta tanto esforço as mesmas não chegam às escolas. É nas instituições escolares, que há a possibilidade de um maior contingente de educandos negros ter contato com essas obras, visto que, a grande maioria das famílias não possui capital financeiro para investir nessas obras, e também a cultura do livro e da leitura dessas obras não é um hábito das famílias brasileiras de um modo geral.


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Fica ao encargo da escola então, promover esse dialogo, mas ao que pude perceber ao longo da minha trajetória enquanto estudante de Pedagogia é que a escola não dá muita importância a literatura, muito as relações raciais.

A educação é hoje um dos principais mecanismos de mobilização social. E a mesma enquanto órgão institucionalizado, responsável por dar conta desses processos deve assumir e perceber o seu papel diante desta sociedade tão plural e que durante séculos vem construindo relações de conflito racial acirrado, conflitos esses minimizados ou até tidos como irreais, ilegítimos pela sociedade brasileira, conhecida mundialmente, até a pouco tempo, como uma sociedade onde os conflitos raciais são inexistentes.

A situação dos brasileiros de origem africana em especial é extremamente complicada. A maneira como foi construída a imagem desses povos, é constituída basicamente de elementos depreciativos, que em nada corresponde à riqueza, beleza das suas manifestações culturais originarias e as contribuições desses povos em diversas áreas do conhecimento.

A escola diante de todos esses fatos sempre se manteve calada, fingiu que nada acontecia, esquecendo e/ou tentando fechar os olhos para a sua responsabilidade, visto que, foi e ainda é infelizmente a escola uma das principais responsáveis pela disseminação desses estereotipo na sociedade brasileira. Mas há algum tempo a sociedade civil organizada juntamente com o Movimento Negro, vem exigindo da escola uma postura diferente.

Sobre ela vem caindo a responsabilidade de construir, em paralelo com outras instituições legais um novo cenário este sim legítimo onde se dá a César o que é de César, ou seja, cabe a ela agora ajudar a (re)construir a nação Brasileira, onde o diferente continuará sendo percebido, mas não mais transformado em desigual. Localizando essa história no tempo/espaço Salvador nos tempos modernos, essa influencia salta aos olhos. O legado africano no dia-a-dia desta cidade, se faz muito presente, não se pode analisar Salvador dissociado dos costumes africanos, muitas vezes isso está tão arraigado


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a vida dessas pessoas que nem elas percebem essa influência, mas não percebem também porque não foram ensinadas o significado dessas manifestações.

Pelo contrário a escola juntamente com os outros espaços da vida social, ensinou a essas crianças, que tudo que é originário do grupo étnico negro, é inferior ao branco, tornando assim a identificação da criança negra com segmento negro um eterno conflito. E não permitindo que as mesmas construíssem relações identitárias saudáveis.

A literatura é neste cenário um instrumento poderoso, para o bem e para o mau. Se bem aproveitada e selecionada pela escola pode servir como instrumento na construção de uma cidadania plena. É nessa perspectiva de compreender a literatura como instrumento essencial de mudanças dentro e fora do ambiente escolar, que se encaixa a visão de escola do Lar Joana Angélica. Aquela instituição se mostrou politicamente comprometida com mudanças reais na vida dos seus educandos. A mesma evidenciou, principalmente nas falas dos que ali trabalham, que compreendem a relação estabelecida entre a literatura, a criança negra e a construção da identidade negra, é um dos compromissos daquela instituição.

A literatura se mostrou nessa pesquisa, como algo fundamental interação da criança negra, com o mundo que a cerca, e instrumento essencial na desconstrução da imagem negativa que o negro possui hoje na sociedade e principalmente no imaginário do segmento negro. Para a partir daí se construir uma identidade étnico-racial saudável e legitima, contemplando os reais valores do povo negro.


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VIEIRA, Hamilton. Tranças: a nova estética negra. In: LUZ, Marco Aurélio (org.). Identidade negra e educação.Salvador: Ianamá, 1989.


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ANEXOS


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ANEXO A

Editora Atual Nó na garganta - Ed. Atual África horizontes e desafios no século XXI - Ed. Atual Os primeiros habitantes do Brasil - Ed. Atual A cor do azul - Ed. Atual Editora FTD A cor da Ternura - Ed. FTD Luana capoeira e liberdade - Ed. FTD Os africanos e seus descendentes no Brasil - Ed. FTD Editora Ática Maré de desejos - Ed. Ática Bahia 1798 - Ed. Ática Fazenda de Café - Ed. Ática Lampião e Maria Bonita - Ed. Ática Um menino chamado Moisés - Ed. Ática Crianças como você - Ed. Ática Editora Mazza Histórias do Tio Jimbó - Ed. Mazza Almanaque Pedagógico Afrobrasileiro - Ed. Mazza Alfabeto Negro - Ed. Mazza Contando a história do samba - Ed. Mazza Coleção Olerê o Congado para crianças - Ed. Mazza Orixás nas vidas dos que neles acredita - Ed. Mazza N´ASSYSIM A Íris dos olhos da alma africana Saberes Africanos no Brasil - Ed. Mazza Bonecas negras cadê - Ed. Mazza Meninos de Rua - Ed. Mazza Folclore poético (em pompeu) - Ed. Mazza A cor ausente - Ed. Mazza Mulher negra que vi de perto - Ed. Mazza Dança negro, ginga e história - Ed. Mazza Negro, qual é o seu nome? - Ed. Mazza Zumbi dos Palmares - Ed. Mazza Professor@s negr@s trajetórias e travessias - Ed. Mazza Agô Agô Lonan - Ed. Mazza Ardis da imagem - Ed. Mazza A ginga da rainha - Ed. Mazza Contos de Mirábile - Ed. Mazza Os comedores de palavras - Ed. Mazza


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A princesa e o vento - Ed. Mazza Coleção griot mirim - Ed. Mazza Editora Saraiva Da Costa do Ouro - Ed. Saraiva Editora Escala Educacional Bahia - Ed. Escala Educacional Editora DCL Os filhos do vento - Ed. DCL Os gêmeos do tambor - Ed. DCL Ana e Ana - Ed. DCL Editora Cortez Salvador a primeira capital do Brasil - Ed. Cortez Na minha escola todo mundo é igual - Ed. Cortez Editora Callis Zumbi o último herói - Ed. Callis Editora SM Chamado de Sosu - Ed. SM ABC do Continente Africano - Ed. SM Yemanjá - Ed. SM O príncipe curioso - Ed. SM O que tem na panela, janela? - Ed. SM Editora Moderna Tião Sabará - Ed. Moderna Bia na África - Ed. Moderna A felicidade não tem cor - Ed. Moderna Editora Formato Ilê Aiê um diário imaginário - Ed. Formato Editora Global Gosto de África - Ed. Global Editora Salamandra A semente que veio da África - Ed. Salamandra Editora Pallas Uma idéia luminosa - Ed. Pallas A lenda do Timbó - Ed. Pallas Editora Cia das Letras Histórias da Preta - Ed. Cia das Letras Ifá o adivinho - Ed. Cia das Letras Oxumarê - Ed. Cia das Letras


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Editora Brinque Book Que mundo maravilhoso - Ed. Brinque Book Chuva de manga - Ed. Brinque Book Editora Cantos do Mundo As panquecas da Mama Panya - Ed. Cantos do mundo Editora Quilomboje Orukomi - Ed. Quilomboje Editora Melhoramentos Os bichos da Ă frica - Ed. Melhoramentos


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