As cronicas vampirescas iv a historia do ladrao de corpos anne rice

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ele andava lenta e cuidadosamente, quase como se sentisse dor a cada passo, virando a cabeça de um lado para o outro, examinando o ambiente. Então, sempre com gestos cautelosos, que na verdade indicavam fraqueza e não força, empurrou a porta de vidro que dava para o convés e saiu para a noite. Eu tinha de segui-lo! Sabendo que não devia, levantei-me quase sem pensar, com a mente velada pela nuvem da falsa identidade, dei alguns passos e parei do lado de dentro da porta. Ele estava na outra extremidade do convés, com os braços apoiados na amurada, o vento açoitando os fartos cabelos louros. Olhava para o céu e mais uma vez parecia repleto de orgulho e contentamento, amando o vento e a escuridão, talvez, oscilando de leve o corpo, como um músico cego, saboreando cada segundo de existência naquele corpo, simplesmente nadando em felicidade. Mais uma vez veio-me à mente a interrogação dolorosa. Será que eu também parecia tão idiota e predador para os que me conheciam e me condenavam? Oh, pobre, pobre criatura, escolher para sua vida sobrenatural um lugar como aquele, artificial, com os passageiros velhos e tristes, entre o luxo vulgar daqueles salões, isolado do verdadeiro esplendor do universo. Só depois de um longo tempo ele inclinou um pouco a cabeça para a frente e passou a mão direita na lapela do smoking, com a indulgência de um gato lambendo o próprio pêlo. Com quanto amor ele acariciava o insignificante pedaço de pano! Entre tudo que ele havia feito até então, aquele gesto era a mais eloqüente descrição da sua tragédia. Então olhou para um lado e depois para o outro e vendo que havia somente dois passageiros, à sua direita, olhando para outro lado, ele subiu rapidamente e desapareceu! É claro que nada disso tinha acontecido. James simplesmente alçou vôo. E eu fiquei parado atrás da porta, com o suor brotando profusamente no rosto e nas costas, olhando para o espaço vazio lá fora. Ouvi a voz de David junto ao meu ouvido. — Venha, meu velho, vamos jantar. Voltei-me e vi a expressão forçada de David. Sim, James podia ainda ouvir o que dizíamos! Podia ouvir qualquer coisa dita normalmente, sem precisar se esforçar. — Sim, vamos — respondi, tentando não pensar conscientemente que Jake havia dito que o sr. Hamilton não aparecera nem uma vez para jantar naquele restaurante. — Na verdade, não estou com fome, mas é muito aborrecido ficar por aqui sem fazer nada, não acha? David tremia também. Ao mesmo tempo estava excitado com a aventura. — Ah, sim, preciso dizer uma coisa — continuou ele no mesmo tom, enquanto atravessávamos o bar na direção da escada. — Estão todos vestidos a rigor, mas não podem deixar de nos servir, porque acabamos de embarcar. — Não me importa que estejam todos nus. De qualquer modo vai ser um inferno. A famosa sala de jantar da primeira classe era um pouco mais discreta e mais civilizada do que as outras pelas quais passamos, com estofados brancos e laqueados negros. Era quase agradável com a iluminação generosa e quente. A decoração era um tanto frágil e fria, como tudo no interior do navio. Mas não era feia, e a comida cuidadosamente preparada, muito boa. Vinte minutos mais ou menos depois do vôo do pássaro negro, arrisquei algumas observações rápidas. — Ele não consegue usar nem um décimo da força que possui. Morre de medo dela. — Sim, concordo. Está tão apavorado que se move como um bêbado. — Exatamente! Então você percebeu. Ele estava a menos de seis metros de mim, David, e não tinha a menor idéia da minha presença. — Eu sei, Lestat, acredite, eu sei. Meu Deus, tanta coisa que deixei de ensinar a você. Fiquei ali observando, apavorado, com medo de que ele tentasse algum truque telecinético, lembrando que não o ensinei a se defender disso. — David, se ele usar realmente seu poder, nada poderá detê-lo. E se por acaso tentasse, eu teria reagido instintivamente, por causa de tudo que me ensinou. — Sim, é verdade. Afinal são os mesmos truques que você conhecia e compreendia quando estava no seu corpo. À noite passada tive a impressão de que você conquistou a vitória mais importante quando esqueceu que era mortal e começou a agir como sempre agiu.


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