As cronicas vampirescas iv a historia do ladrao de corpos anne rice

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Alguma coisa se partiu dentro de mim e olhei para ela, para o rostinho delicado emoldurado pelo cabelo fino. Eu a ergui do meu colo, a levei para a cadeira na frente da minha e fiquei de joelhos na sua frente. — Claudia, escute. Eu não comecei isso. Eu não criei o mundo. Esse mal sempre existiu. Estava nas sombras, e me apanhou e me fez parte dele e eu fiz o que senti que devia fazer. Não ria de mim, por favor, não vire o rosto. Eu não criei o mal! Eu não criei a mim mesmo! Como ficou perplexa, olhando para mim, me vigiando, e então a boquinha macia se abriu num belo sorriso. — Não foi só angústia — eu disse, apertando os ombros frágeis. — Não foi o inferno. Diga que não foi. Diga-me que havia felicidade. Os demônios podem ser felizes? Meu Deus, eu não compreendo. — Você não compreende, mas sempre faz alguma coisa, não faz? — Sim, e não me arrependo. Não estou arrependido. Posso gritar isso do alto dos telhados para o céu. Claudia, eu faria tudo outra vez! — Suspirei profundamente. Repeti as palavras, com a voz num crescendo. — Eu faria tudo outra vez! — Eu estava tremendo. Quietude no quarto. Sua calma inabalável. Estaria furiosa? Surpresa? Impossível saber olhando para aqueles olhos inexpressivos. — Oh, você é o mal, meu pai — disse ela com voz suave. — Como pode agüentar isso? David deixou a janela e ficou de pé atrás dela, olhando para mim que continuava ajoelhado. — Sou o ideal da minha espécie — eu disse. — Sou o vampiro perfeito. Está olhando para o Vampiro Lestat quando olha para mim. Ninguém pode ser melhor do que esta figura que está na sua frente — ninguém! — Levantei vagarosamente. — Não sou um brinquedo do tempo, nem um deus empedernido pelos milênios, não sou o bufão com o gorro negro, nem o nômade contrito. Eu tenho consciência. Sei distinguir o certo do errado. Sei o que faço e, sim, sou o vampiro Lestat. Aí está a sua resposta. Faça o que quiser com ela. Madrugada. Descolorida e brilhante sobre a neve. Gretchen dormia abraçada a mim. Não acordou quando sentei na cama e apanhei o copo com água. Sem gosto, mas fria. Então ela abriu os olhos e sentou de um salto, com o cabelo louro-escuro caindo dos dois lados do rosto, seco e limpo e cheio de luz. Beijei o rosto quente e senti os dedos dela no meu pescoço, e depois na minha testa. — Você conseguiu me salvar da morte — eu disse, com voz trêmula e rouca. Depois deitei, senti outra vez as lágrimas no meu rosto e fechando os olhos, murmurei, “adeus, Claudia”, esperando que Gretchen não tivesse ouvido. Quando abri os olhos novamente, ela me deu um prato de sopa quente, que tomei, achando quase bom. Vi maçãs e laranjas cortadas num prato. Comi avidamente, encantado com a textura firme das maçãs e a fibrosidade das laranjas. Então ela me deu uma mistura de bebida forte, mel e limão, e eu gostei tanto que Gretchen apressou-se a fazer mais. Pensei outra vez no quanto ela parecia as mulheres gregas de Picasso, grande e bela. As sobrancelhas eram de um castanho-escuro, os olhos claros — quase verdes — o que fazia parecer muito séria e inocente. Ela não era jovem, aquela mulher, o que, para mim, valorizava sua beleza. Havia nela algo de desprendido e distante, como quando respondeu minha pergunta com uma leve inclinação da cabeça, dizendo que sim, eu estava melhor. Parecia sempre absorta em pensamentos. Olhou demoradamente para mim, como quem procura resolver um mistério, depois inclinou-se, num gesto lento, e pousou os lábios nos meus. Uma vibração excitante percorreu meu corpo. Dormi outra vez. Sem sonhos. Era como se eu sempre tivesse sido humano, sempre naquele corpo, e oh, extremamente agradecido por aquela cama macia e limpa. Tarde. Remendos de azul entre as árvores. Como num transe eu a vi acender a lareira. Observei o reflexo das chamas nos seus pés descalços. O pêlo cinzento de Mojo estava coberto de neve em pó, e ele comia, segurando o prato entre as patas dianteiras, uma vez ou outra olhando para mim.


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