BOUÇAS,Laila - No olho da rua: trabalho e vida na apropriação do espaço público em Salvador/BA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE ARQUITETURA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

ROSE LAILA DE JESUS BOUÇAS

NO OLHO DA RUA: trabalho e vida na apropriação do espaço público em Salvador / BA

Salvador 2015


ROSE LAILA DE JESUS BOUÇAS

NO OLHO DA RUA: trabalho e vida na apropriação do espaço público em Salvador / BA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia, como requisito para obtenção do grau de Mestre. Orientadora: Professora Dra. Ana Fernandes. Co-orientadora: Franco.

Salvador 2015

Professora

Dra.

Angela


B752 Bouças, Rose Laila de Jesus. No olho da rua: trabalho e vida na apropriação do espaço público em Salvador / Ba / Rose Laila de Jesus Bouças. 2015. 268 f. : il. Orientadora: Profa. Dra. Ana Maria Fernandes. Co-orientadora: Profa. Dra. Ângela Maria de Almeida Franco Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Arquitetura, Salvador, 2015. 1. Planejamento urbano. 2.Trabalho informal. 3. Economia. I Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Arquitetura. II. Fernandes, Ana Maria. III. Franco, Ângela Maria de Almeida. CDU: 711.4


ROSE LAILA DE JESUS BOUÇAS

NO OLHO DA RUA: trabalho e vida na apropriação do espaço público em Salvador / BA Dissertação aprovada para obtenção do grau de Mestre em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, pela seguinte banca examinadora:

________________________________________________ Profa. Dra. Ana Maria Fernandes (orientadora) Pós‐Doutorada pela École d'Architecture Paris ‐ Malaquais

________________________________________________ Profa. Dra. Ângela Maria de Almeida Franco (co-orientadora) Doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia

________________________________________________ Prof. Dr. Antônio Heliodório Lima Sampaio (membro interno) Doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo

________________________________________________ Profa. Dra. Urpi Montoya Uriarte (membro externo) Pós-Doutorada pela Universidade Federal de Pernambuco

________________________________________________ Prof. Msc. Gabriel Kraychette (membro externo) Mestre pela Universidade Federal da Bahia

Salvador, 18 de dezembro de 2015.


ร Maria da Penha e Osmรกrio, meus avรณs.


AGRADECIMENTOS

Gostaria de reconhecer aqui a importância de cada pessoa que faz parte da minha vida, assim como também àqueles que foram somados ao meu rol de amizade nos últimos dois anos e meio de mestrado. Sou muito grata por cada palavra, incentivo e colaboração de vocês. Agradeço à professora Ana Fernandes por ter me acolhido carinhosamente no Grupo de Pesquisa Lugar Comum. Sou verdadeiramente grata por sua orientação cuidadosa, pelos livros emprestados e por seu olhar atencioso e preciso, capaz de me fazer rever de forma única a concepção e estruturação desta pesquisa. À professora Ângela Franco pela generosidade em ceder seu tempo, sua casa, e seus livros. Considero um grande presente tê-la conhecido e poder ter contado com suas orientações, atenção e carinho durante esse tempo. Sinto-me com muita sorte por ter contado com o apoio de duas orientadoras tão incríveis. Ao professor Luiz Antônio por ter sido o primeiro a me incentivar e a acreditar na minha pesquisa. Ao curso de Urbanismo da UNEB por ter alimentado e contribuído com a minha sensibilidade. Aos professores e grandes mestres que tive a honra e o prazer de conhecer no decorrer das disciplinas do PPG-AU: Heliodório Sampaio, Angela Gordilho, Paola Berenstein, Fernando Ferraz, Washington Drummond, Pasqualino Magnavita, Xico Costa e Thais Portela. Aos membros da banca por terem aceitado o convite de avaliar meu trabalho. Aos meus pais que, apesar das inúmeras dificuldades que tiveram, sempre me incentivaram e fizeram o melhor por mim e pela minha educação. Aos meus avós maternos, a quem dedico esse trabalho, por serem os guardiões das minhas lembranças mais doces e ternas. Ao meu companheiro Caio Rubens pela paciência, incentivo e afeto em todos os momentos. Pela família que estamos solidificando com esse ser semente que trago agora no ventre. Aos amigos que fiz no PPG-AU, no Lugar Comum e, sobretudo, durante o período em que participei da elaboração do Plano de Bairro 2 de Julho. Aos professores, companheiros tirocinantes e estudantes que participaram do Ateliê V no semestre de 2014.1 da Faculdade de Arquitetura.


À Gabriela, Alice, Iago, Gabriel e Emyle, bolsistas do PIBIC Jr. e estudantes do Colégio Estadual Ypiranga, dos quais fui tutora durante pouco mais de um ano no âmbito do Plano de Bairro 2 de Julho e que me ensinaram bastante sobre a arte de partilhar conhecimentos com paciência. À Reinofy e Suzana da produtora Domínio Público pela amizade e apoio na impressão dos questionários aplicados na pesquisa de campo. À Bruna Tupiniquim pela colaboração cuidadosa na coleta de dados secundários, aplicação e sistematização dos 299 questionários da pesquisa. Aos trabalhadores de rua e lideranças que gentilmente cederam um pouco do seu tempo de trabalho para conversar conosco durante a aplicação dos questionários e nas entrevistas. Às queridíssimas do grupo “Belas e Criativas”, pela sororidade desse grupo feminino que é o mais amoroso que conheço. Aos amigos de todas as horas e tempos: Thallita, João, Larissa e Lais por seu carinho verdadeiro e por sempre vibrarem positivamente por mim, ainda que nem sempre possam estar fisicamente presentes. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, pela bolsa concedida durante os dois anos de mestrado. Muito obrigada!


O homem estรก na cidade como uma coisa estรก em outra e a cidade estรก no homem que estรก em outra cidade mas variados sรฃo os modos como uma coisa estรก em outra coisa: o homem, por exemplo, nรฃo estรก na cidade como uma รกrvore estรก em qualquer outra nem como uma รกrvore estรก em qualquer uma de suas folhas (mesmo rolando longe dela) O homem nรฃo estรก na cidade como uma รกrvore estรก num livro quando um vento ali a folheia a cidade estรก no homem mas nรฃo da mesma maneira que um pรกssaro estรก numa รกrvore nรฃo da mesma maneira que um pรกssaro (a imagem dele) estรก/va na รกgua e nem da mesma maneira que o susto do pรกssaro estรก no pรกssaro que eu escrevo a cidade estรก no homem quase como a รกrvore voa no pรกssaro que a deixa cada coisa estรก em outra de sua prรณpria maneira e de maneira distinta de como estรก em si mesma a cidade nรฃo estรก no homem do mesmo modo que em suas quitandas, praรงas e ruas Ferreira Gullar


RESUMO

O trabalho é, talvez, a dimensão da vida que tem mais importância em nossa estrutura social. Através dele obtemos recursos para nosso sustento e podemos nos sentir inseridos na sociedade. Contudo, o mercado de trabalho não absorve a todos. Desta forma, obter os meios de sobrevivência para boa parte da população é uma luta diária, que envolve grande criatividade e poder de adaptação. Nesta dissertação investigamos uma dessas muitas formas alternativas de sobrevivência. Buscamos compreender o desenrolar de uma atividade laboral que ocorre aos olhos de todos, no olho da rua, nas ruas do centro de Salvador. Nosso objetivo é, portanto, estudar de que maneira a atividade dos trabalhadores de rua está inserida e se relaciona com o espaço público, bem como a maneira como incidem as ações de planejamento e ordenamento elaboradas entre 1992 e 2014 sobre a mesma, numa área do centro antigo da cidade de Salvador, onde observamos uma grande incidência de trabalhadores de rua. Nesse sentido, para auxiliar nossa compreensão, a teoria dos circuitos da economia elaborada por Milton Santos é fundamental, pois nos ajuda a entender a maneira como as atividades se organizam no espaço, na medida em que fazem parte do circuito superior ou inferior da economia. O espaço com o qual estamos lidando, por sua vez, é o espaço público, comum a todos. A apropriação da rua pelo trabalho por si só já pressupõe a existência de tensões, conflitos e disputas por este lugar. Nos parece interessante observar ainda, que essa apropriação se converte em uso, na medida em que passa a ser regulada pelo poder público, que reconhece a problemática social e busca alternativas para compatibilizar os diversos interesses sobre o local. PALAVRAS-CHAVE: trabalhador de rua; economia; rua; apropriação; planejamento urbano.


ABSTRACT

Gainful employment is a large aspect of life that is important to our social structure. We rely on this for our livelihood and so we can become productive, contributing members of the community. However, the labor market does not account for the entire population. Thus obtaining the means of survival, for a majority of the population, is a daily struggle. In this master thesis we investigate one of those many alternative forms of survival. We seek to understand the gradual unfolding of an employment activity that occurs for us all to witness on the streets in Salvador downtown. Our goal is to study how the activity of street workers is related to public space, as well as how the planning actions of 1992 and 2014 affects this activity on the city's old downtown area where numerous street workers can be noticed. The theory of the economic circuits by Milton Santos is an important element to our comprehension because it helps us to understand the manner in which activities are organized on the space, as it involves the upper and lower aspects of economy. The space which we are dealing with is the public space, common to all. The appropriation of the street for the work itself takes on the existence of tensions, conflicts and disputes over this place. It’s also interesting to take note that this appropriation becomes a use as they happen to be regulated by the government, which recognizes the social problem and seeks solutions to reconcile the various interests on the site. KEYWORDS: street workers; economy; street; appropriation; urban planning.


LISTA DE FIGURAS Figura 1: Trecho da Avenida Sete de Setembro. ................................................................... 81 Figura 2: Trecho da Avenida Sete de Setembro. ................................................................... 81 Figura 3: Largo de São Bento ............................................................................................... 82 Figura 4: Largo do Mocambinho, vista da Rua Carlos Gomes. ............................................. 84 Figura 5: Avenida Sete de Setembro. Área 3 – perspectiva da área (Rua do Cabeça/Estacionamento São Raimundo). ............................................................................. 88 Figura 6: Projeto para o Largo do Rosário. ........................................................................... 92 Figura 7 Largo do Rosário reformado................................................................................... 92 Figura 8: Proposta de requalificação do mercado das flores (Largo 2 de Julho) / Praça General Inocêncio Galvão ................................................................................................................. 93 Figura 9: Rua do Cabeça e “Largo das Flores”, bairro Dois de Julho. ................................... 94 Figura 10: Reunião para discussão do Projeto de Requalificação do Mercado Dois de Julho. 94 Figura 11: Trecho da Avenida Sete com parklet. Fotografia retirada de slide apresentado durante reunião convocada pela SEMOP em 21-11-2014. .................................................... 96 Figura 12: Largo de São Bento em reforma. ......................................................................... 96 Figura 13: Largo de São Bento antes da reforma. ................................................................. 96 Figura 14: Praça Barão Rio Branco (Relógio de São Pedro) antes da reforma. ...................... 97 Figura 15: Vista de cima da Praça Barão Rio Branco (Relógio de São Pedro), em reforma. .. 97 Figura 16: Esquema de espaço demandado pela atividade do trabalhador de rua................... 99 Figura 17: Situação 1 - Demanda de espaço pela atividade, considerando mobiliário independente de outros. ...................................................................................................... 100 Figura 18: Situação 2 - Demanda de espaço pela atividade, considerando mobiliário de quina ou encostado com outros. ................................................................................................... 100 Figura 19: Situação 3 - Demanda de espaço pela atividade, considerando mobiliário encostado com outros ou com a parede. .............................................................................................. 101 Figura 20: Representação esquemática de uma rua. ............................................................ 102 Figura 21: Esquema densidade de ocupação – Ruas tipo “A”. ............................................ 102 Figura 22: Esquema densidade de ocupação – Ruas tipo “A”. ............................................ 103 Figura 23: Improvisos para proteger-se da chuva e do sol na Rua da Forca......................... 150 Figura 24: Improvisos para proteger-se da chuva e do sol na Rua Coqueiros da Piedade .... 150 Figura 25: Ação do rapa com presença policial em 24.09.2014........................................... 153 Figura 26: Ação do rapa com presença policial em 24.09.2014........................................... 154 Figura 27: Reforma da rua Portão da Piedade. .................................................................... 154 Figura 28: Reforma da Rua do Cabeça. .............................................................................. 154 Figura 29: Trabalhadores provisoriamente deslocados para a Praça da Piedade. ................. 155


Figura 30: Trabalhadores provisoriamente deslocados para Avenida Joana Angélica.......... 155 Figura 31: Trabalhadores provisoriamente deslocados para a lateral do Mosteiro de São Bento. .......................................................................................................................................... 155 Figura 32: Trabalhadores provisoriamente deslocados para canteiro central da Av. Joana Angélica ............................................................................................................................ 155 Figura 33: Trabalhadores que permanecem ao longo da Avenida Sete. ............................... 157 Figura 34: Trabalhadores que permanecem ao longo da Avenida Sete. ............................... 157 Figura 35: Comercialização de mercadorias realizada com o uso de automóveis. ............... 158 Figura 36: Comercialização de mercadorias realizada com o uso de automóveis. ............... 158 Figura 37: Comercialização de mercadorias realizada com o uso de automóveis. ............... 158 Figura 38: Comercialização de mercadorias realizada com o uso de automóveis. ............... 158 Figura 39: Carregador levando mercadoria para o ponto de um trabalhador. ....................... 163 Figura 40: Trabalhadora montando sua guia no início da jornada de trabalho. .................... 163 Figura 41: Carregadores levando mercadoria na Rua do Cabeça. ........................................ 163 Figura 42: Carregador na Rua Carlos Gomes...................................................................... 163

LISTA DE MAPAS Mapa 1: Av. Sete de Setembro – Extensão total, 2015. ......................................................... 68 Mapa 2: Bairros que margeiam a Avenida Sete de Setembro. ............................................... 71 Mapa 3: Ruas contempladas com o projeto de ordenamento. ................................................ 91 Mapa 4: Densidade de ocupação na área de estudo. ............................................................ 104 Mapa 5: Percurso de aplicação do questionário de aprofundamento. ................................... 114 Mapa 6: Localização dos trabalhadores de rua em Salvador/BA ......................................... 129


LISTA DE TABELAS Tabela 1: Estimativa do número de ocupados. ...................................................................... 37 Tabela 2: Distribuição da população em desemprego oculto pelo trabalho precário e experiência anterior de trabalho, segundo tempo de perda do emprego e duração do último trabalho Regiões Metropolitanas(*) e Distrito Federal – 1999, 2004 e 2009 (em %) ........................................ 40 Tabela 3: Síntese da análise do projeto “O Informal em Salvador: políticas e propostas”, 1992. ............................................................................................................................................ 83 Tabela 4: Comparativo entre as alternativas da Proposta I para relocação do comércio informal – Av. Sete de Setembro, 1997 .............................................................................................. 86 Tabela 5: Comparativo entre as alternativas da Proposta II para relocação do comércio informal – Av. Sete de Setembro, 1997 .............................................................................................. 86 Tabela 6: Síntese da análise do projeto “Comércio Informal: projeto de relocação dos ambulantes da Av. Sete de Setembro e Baixa dos Sapateiros”, 1997 .................................... 89 Tabela 7: Síntese da análise dos projetos “Plano de requalificação e reordenamento de ambulantes de Salvador”, “Requalificação do Mercado 2 de Julho” e “Programa Avenida Sete de Setembro – Território Empreendedor”, 2014. .................................................................. 97 Tabela 8: Caracterização da Atividade – Quais produtos comercializa? .............................. 144 Tabela 9: Caracterização da Atividade – Onde você compra os produtos que comercializa?145 Tabela 10: Caracterização da Atividade – Quanto você consegue tirar num dia bom / ruim? .......................................................................................................................................... 148 Tabela 11: Questionário de aprofundamento – Quais as três coisas que gosta no trabalho / quais as três dificuldades / quais os planos para o futuro.............................................................. 161 Tabela 12: Questionário de aprofundamento – Quais as três coisas que gosta no trabalho / quais as três dificuldades / quais os planos para o futuro.............................................................. 166


LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1: Evolução do PIB nacional, trimestral e das Populações Metropolitanas Economicamente Ativa e Ocupada -..................................................................................... 37 Gráfico 2: Taxas de desemprego, segundo tipo ..................................................................... 38 Gráfico 3: Caracterização geral – Pirâmide etária ............................................................... 126 Gráfico 4: Caracterização geral – Grau de escolaridade ...................................................... 127 Gráfico 5: Caracterização geral - Origem ........................................................................... 128 Gráfico 6: Caracterização da atividade – Como se desloca até o trabalho? .......................... 131 Gráfico 7: Caracterização Geral – Como você chama o trabalho que faz aqui neste lugar? . 132 Gráfico 8: Caracterização Geral – Se já trabalhou de carteira assinada, o que fazia? ........... 133 Gráfico 9: Caracterização Geral – Quando fica doente (ou quando tem algum acidente ou problema), o que acontece com o negócio? ........................................................................ 134 Gráfico 10: Caracterização da Atividade – Por que o seu ponto é nessa rua? ...................... 139 Gráfico 11: Caracterização da Atividade – Tempo em que exerce a atividade / tempo que trabalha na mesma rua........................................................................................................ 140 Gráfico 12: Caracterização da Mercadoria – Se paga aluguel no depósito, quanto custa? .... 142 Gráfico 13: Caracterização da Atividade – Com quem você compra os produtos que comercializa? ..................................................................................................................... 145 Gráfico 14: Caracterização da Atividade – Que tipo de investimento fez para começar no ramo? .......................................................................................................................................... 147 Gráfico 15: Caracterização da Mercadoria – Porque tem licença ........................................ 152 Gráfico 16: Caracterização da Mercadoria – Porque não tem licença .................................. 152 Gráfico 17: Caracterização da Mercadoria – De qual associação/sindicato faz parte? ......... 159 Gráfico 18: Caracterização da Atividade – Se não faz parte de nenhuma associação, qual o motivo? .............................................................................................................................. 160 Gráfico 19: Caracterização da Atividade – Como você bebe água e se alimenta?................ 164 Gráfico 20: Caracterização da Atividade – O que faz com o lixo produzido? ...................... 165


ABREVIATURAS E SIGLAS

ASFAERP - Associação dos Feirantes e Vendedores Ambulantes da Cidade de Salvador e Região Metropolitana ASSINDIVAN - Associação Integrada de Vendedores Ambulantes e Feirantes de Salvador ASSINFORMAL - Associação dos Trabalhadores Informais de Salvador BNDES - Banco Nacional do Desenvolvimento CAB - Centro Administrativo da Bahia CDL - Câmara de Dirigentes Lojistas de Salvador CIA - Centro Industrial de Aratu CLT - Consolidação das Leis Trabalhistas CMC - Centro Municipal do Camaragibe CMR - Centro Municipal Retiro-Acesso Norte CMT - Centro Municipal Tradicional DIEESE - Departamento Intersindical de Estatística e Estudo Socioeconômicos FMLF - Fundação Mário Leal Ferreira LOUOS - Lei do Ordenamento do Uso e da Ocupação do Solo de Salvador OIT - Organização Internacional do Trabalho PAC - Programa de Aceleração do Crescimento PDDU - Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Salvador PEA - População Economicamente Ativa SEBRAE - Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas SEDUR - Secretaria de Desenvolvimento Urbano SEMOP - Secretaria de Ordem Pública SESP - Secretaria Municipal de Serviços Públicos e Prevenção à Violência SINDIFEIRA - Sindicato dos Feirantes e Ambulantes da Cidade de Salvador SUCOM - Superintendência de Controle e Ordenamento do Uso do Solo do Município TRANSALVADOR - Superintendência de Trânsito de Salvador


SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 18 1 TRABALHO DE RUA: UMA RELAÇÃO ENTRE INFORMALIDADE E ESPAÇO PÚBLICO ........................................................................................................................... 28 1.1 NEM DICOTOMIA, NEM AMBIGUIDADE: DOIS CIRCUITOS DE UM MESMO SISTEMA............. 29 1.2 A ECONOMIA NO ESPAÇO, O TRABALHO NA RUA ............................................................ 47 2 O ESPAÇO PÚBLICO E O TRABALHO DE RUA EM SALVADOR: CARACTERIZAÇÃO, LEGISLAÇÃO E PLANEJAMENTO ....................................... 65 2.1 CARACTERIZAÇÃO DAS RUAS ONDE SE OBSERVA O TRABALHO DE RUA: AVENIDA SETE DE SETEMBRO, TRANSVERSAIS E LARGO DOIS DE JULHO ......................................................... 66 2.2 O ESPAÇO PÚBLICO EM SALVADOR E A LEGISLAÇÃO INCIDENTE ..................................... 72 2.3 PROJETOS DO PODER PÚBLICO INCIDENTES SOBRE A ATIVIDADE DO TRABALHADOR DE RUA ......................................................................................................................................... 76 2.3.1 Propostas em 1992 ............................................................................................... 77 2.3.2 Propostas em 1997 ............................................................................................... 84 2.3.3 Propostas em 2014 ............................................................................................... 90 2.4 A DENSIDADE DE OCUPAÇÃO ........................................................................................ 99 3 O TRABALHO DE RUA EM SALVADOR: OS PROTAGONISTAS, SUAS CARACTERÍSTICAS E FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE.............. 106 3.1 AS ASSOCIAÇÕES/SINDICATOS .................................................................................... 106 3.2 OS TRABALHADORES DE RUA ..................................................................................... 113 3.3 CONCEPÇÃO E FUNCIONAMENTO DOS CIRCUITOS DO TRABALHO DE RUA EM SALVADOR134 3.3.1 Se virar: entre a subordinação e a autonomia .................................................... 136 3.3.2 A correria e o rapa: conflitos e disputas ............................................................. 149 3.3.3 A pedra: circuitos de cooperação, pertencimento e solidariedade ...................... 162 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 170 REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 181 ANEXO A: PLANTAS DO PROJETO “O INFORMAL EM SALVADOR: POLÍTICA E PROPOSTAS, 1992” – TRECHO SÃO PEDRO, JOANA ANGÉLICA E SÃO BENTO ....................................................................ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. ANEXO B: PLANTAS DO PROJETO “COMÉRCIO INFORMAL: AV. SETE DE SETEMBRO; ÁREAS PROVISÓRIAS. SALVADOR: 1997” . ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.


ANEXO C: PLANTAS DO PROJETO “REQUALIFICAÇÃO DA AV. SETE DE SETEMBRO - ORDENAMENTO DO COMÉRCIO INFORMAL" ......................ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. APÊNDICE A: QUESTIONÁRIO BÁSICO APLICADO COM OS 289 TRABALHADORES DE RUA ...............................ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. APÊNDICE B: QUESTIONÁRIO DE APROFUNDAMENTO APLICADO COM OS 10 TRABALHADORES DE RUA SELECIONADOS ................... ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. APÊNDICE C: RESULTADO DA CONTAGEM DOS TRABALHADORES PARA DEFINIÇÃO DA AMOSTRA ................................ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. APÊNDICE D: ÁREAS PARA APLICAÇÃO DOS QUESTIONÁRIOS BÁSICOS .................................................................................ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. APÊNDICE E: ROTEIRO DE ENTREVISTA ASSOCIAÇÕES / SINDICATO ....ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. APENDICE F: DENSIDADE DE OCUPAÇÃO....ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. APÊNDICE G: SISTEMATIZAÇÃO DO QUESTIONÁRIO BÁSICO: TABELAS E GRÁFICOS .............................................................ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.


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INTRODUÇÃO

Nesta dissertação estudamos o trabalho e o trabalhador de rua na Avenida Sete de Setembro e seu entorno, no centro tradicional da cidade de Salvador, lugar onde a atividade acontece com grande intensidade, entre as maiores da cidade. A pesquisa surge e se justifica, portanto, com o objetivo de estudar de que maneira a atividade dos trabalhadores de rua está inserida e se relaciona com o espaço público, bem como a maneira como incidem as ações de planejamento e ordenamento sobre a mesma. Além disso, busca compreender o perfil do trabalhador que atua hoje nas ruas de Salvador e verificar, através da apropriação do espaço público pelo trabalhador de rua, quais são as tensões, interações, contradições, pertencimentos, conflitos, disputas e solidariedades que se evidenciam na dinâmica da realização da atividade aqui estudada. Esta pesquisa parte então do princípio de que, além de ser necessário compreender o contexto no qual a atividade dos trabalhadores de rua se torna mais expressivo na cidade, a ponto de o tema ser inserido nas políticas públicas do Estado sob a forma do planejamento, é preciso buscar entender também como os trabalhadores se relacionam entre si e com o cotidiano da cidade e qual a sua importância para ela. O trabalho, nesse contexto, é tratado como um aspecto intrínseco à vida, e se destaca ao analisarmos sua realização em um o espaço público, a rua aqui em questão. Talvez possamos arriscar dizer que o trabalho é a própria vida para essas pessoas, principalmente se considerarmos que, assim como em outras ocupações na estrutura social capitalista, o trabalho torna-se uma das feições mais importantes da vida, para a qual dedicamos a maior parte de nosso tempo. É também através do trabalho que o indivíduo é capaz de obter satisfação pessoal, de sentir-se útil para a sociedade e potente diante da vida, além de ser o meio pelo qual se pode garantir a sobrevivência. O trabalho que estamos estudando possui essa peculiaridade de ocorrer às vistas de todos, sobre o que podemos nos perguntar: o que leva as pessoas a utilizarem o espaço da rua para vender mercadorias? Esta pergunta parece um tanto óbvia, mas aqui nos cabe explicitá-la. As pessoas estão utilizando a rua para comercializar mercadorias, em sua maioria, como veremos no desenvolvimento desta dissertação, porque não encontraram outro emprego. Apesar de haver casos de pessoas que optaram por essa ocupação, a maioria dos trabalhadores pesquisados revelou ter entrado nesse mercado por não ter conseguido um emprego formal ou por terem sido demitidos, ou seja, porque ficaram no “olho da rua”, expressão que carrega em seu significado a ameaça ou a própria situação de desemprego. É justamente no olho da rua que


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verificamos o desenrolar do trabalho, enquanto aspecto fundamental da vida social moderna, expresso na apropriação do espaço público pelos trabalhadores de rua em Salvador. No olho das ruas do centro da cidade podemos verificar a presença de diversos trabalhadores que não foram absorvidos pelo mercado formal, revelando uma das faces das desigualdades de oportunidades a que está submetida grande parte da população urbana e, ao mesmo tempo, um de seus lugares de maior disputa. Para além das motivações que levaram essas pessoas a realizar suas atividades de trabalho expostas aos olhos de todos, é importante também entender quem são elas, suas histórias, suas atividades e estratégias de trabalho, questão que será abordada no Capítulo 3 da dissertação. Todavia precisamos desde já esclarecer porque estamos fazendo uso do termo “trabalhador de rua”. Cabe ressaltar que, embora seja necessário olhar um pouco para o passado para justificar tal denominação, o nosso objetivo não é fazer um histórico do trabalho de rua em Salvador, mas analisá-lo no período compreendido desde a redemocratização do país e promulgação de sua nova constituição até os dias atuais (1988-2014). Esse recorte temporal foi escolhido em função de sua correspondência com os projetos encontrados e que foram elaborados pelo poder público para o tratamento da questão, bem como com o seu tratamento enquanto política pública incorporada ao planejamento urbano. Dessa forma, podemos melhor aproximar o tema pesquisado da linha de pesquisa de Processos Urbanos Contemporâneos, do Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFBA. Por que não nos referimos a essas pessoas como “ambulantes” ou “camelôs”? O primeiro termo, “ambulante”, se refere àquele que se desloca para oferecer mercadorias ou fazer negócios. Dá ideia, portanto, de alguém que não cria pontos fixos de trabalho, uma vez que se está sempre em deslocamento e não foi o caso investigado nesta pesquisa. Já o termo “camelô” começou a ser tratado em 1869, conforme Mollier (2009), por Pierre Larrousse no Dictionnaire universel du XIXe siècle. Nele, o termo camelot aparece com o uso popular que recebia na época, referindo-se ao “vendedor ambulante que empurra uma carreta com os braços e encurvando as costas, o que faz lembrar um camelo” (MOLLIER, 2009, p.49). Já no segundo Supplément do Grand Dicitionnaire universel du XIXe siècle, em 1890 o termo era explicado pelos sucessores de Larousse como:

O termo camelô aplica-se a uma nova classe de negociantes essencialmente características das grandes cidades e em particular de Paris. Ativo, esperto, inteligente, o camelô geralmente tem verve e espírito suficientes para reunir a


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multidão em torno de seu modesto mostruário, que cabe inteiro em um pano estendido na calçada (MOLLIER, 2009, p.49).

O autor supramencionado destaca que, no intervalo de 20 anos entre as publicações destacadas, é possível notar que a noção sobre este trabalhador se aprimorou, o que se deve ao fato de, já naquela época, haver uma expansão da atividade. Vale ressaltar que em outra enciclopédia, La Grande Encyclopédie de Marcellin Berthelot, publicada entre 1885 e 1891, o termo se subdividia em duas categorias: o primeiro (gascão) corresponde genericamente ao mascate e o segundo (parisiense) se subdivide entre aqueles que lidam com papel (ex.: jornaleiro) e os que vendem mercadoria ordinária (ex.: passador de fitas, bengalas, guardachuvas etc.). Mollier (2009) dedica sua obra a este que seria um personagem familiar nas grandes cidades desde o século XIX, retratando o surgimento e papel dos camelôs, na França, que para ele é uma figura onipresente na metrópole. A rua, para este autor, preserva em si a função essencial de circulação de informações e mercadorias.

Expostos em um mostruário rudimentar, diretamente no chão ou em uma banca de madeira, mas na maioria das vezes apresentados suspensos em cordões improvisados e presos com pregadores de roupas, esses opúsculos expressam à sua maneira a capacidade de resistir ao tempo (MOLLIER, 2009, p.16).

Se no século XIX na França as atividades dos camelôs já se faziam importantes, no mesmo período no Brasil, sobretudo nas cidades de Salvador, Recife e Rio de Janeiro, se identificava atividades que se aproximam com a anteriormente descrita, com a peculiaridade de estarem inseridas num contexto de uma economia ainda baseada na escravidão. De acordo com Durães (2002) em seu trabalho onde estabelece um paralelo entre os trabalhadores de rua de Salvador do século XIX e os trabalhadores de rua de hoje, as atividades exercidas pelos primeiros, trabalhadores negros (escravos e libertos) e crioulos que trabalhavam nas ruas de Salvador, os identificava como “ganhadores”, “carregadores” ou ainda como “prestadores de “serviços”. Segundo o mesmo autor “dentre as atividades consideradas como informais, na época, registram-se a venda de comidas típicas (quitandeiras) e a atividade dos trabalhadores de “ganho” (carregadores), entre outras” (DURÃES, 2002, p.291).


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[...] se constituiu o trabalho de rua em Salvador no século XIX, altamente marcado pela estrutura social rígida, onde diferenças raciais e sociais eram nitidamente afirmadas. Nesse bojo, processou-se a atividade não regulamentada, marcada pela busca imediata da sobrevivência, que ainda não se caracterizava pela relação de assalariamento, ou seja, eram atividades tipicamente não capitalistas, muito precárias e, por vezes, discriminadas, marginalizadas e excluídas naquela sociedade (DURÃES, 2002, p.294).

Segundo o referido autor, parte do que os trabalhadores de ganho recebiam era repassado para seus donos e a outra parte era utilizada para garantir sua própria subsistência. Essas atividades se realizavam, sobretudo no espaço público da rua, considerada como “reduto dos mais vivos, hábeis e representava o espectro da liberdade para uns, dentre esses o escravo de ganho[...]” (DURÃES, 2002, p.291). Nesse contexto havia já naquela época uma concentração desses trabalhadores em “cantos” específicos da cidade. Nesses “cantos”, de acordo com Durães (2009) havia uma estrutura simbólica que possibilitava o seu uso, mas também uma dimensão legal/oficial de funcionamento já que normalmente se estabeleciam em alguma esquina das ruas mais movimentadas. Como mencionamos anteriormente, nesta dissertação não nos aprofundaremos neste aspecto particular do contexto histórico que traz à tona a questão do trabalho na rua desde o período do final da escravidão, pois o momento histórico que estará em foco é mais contemporâneo. Porém, consideramos importante evidenciá-lo como uma forma de ampliar nossa percepção sobre o trabalho realizado na rua, cuja apropriação pelo trabalho, como podemos notar, é histórica. A questão da apropriação, por sua vez, será mais bem explorada na segunda parte do primeiro capítulo desta dissertação. Por ora, é interessante observar que a atividade, desde o período comentado por Durães (2002), sofre regulações pelo poder público, que determina sua realização em cantos específicos da cidade. O fato de ela ter sido realizada majoritariamente por negros, escravos e libertos, portanto, pessoas em situação de maior vulnerabilidade, também nos dá indícios sobre a segregação que engendra nossa formação social, política, econômica e espacial. Para além das questões mencionadas e uma vez apresentados os termos mais comumente utilizados para se referir aos trabalhadores de rua, cabe ainda justificar o uso do termo nesta dissertação. A expressão “trabalhador de rua” é considerada como a forma mais simples de traduzir e remeter ao significado que se quer passar, de alguém que exerce uma atividade laboriosa nas ruas para dela tirar o seu sustento. Além disso, consideramos a expressão importante também por reforçar que se trata de um trabalhador, ainda que a atividade realizada por ele seja precarizada, desprovida de direitos trabalhistas e o deixe em uma condição de


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vulnerabilidade, uma vez que são grandes as incertezas no que se refere à obtenção de rendimentos reais no final do mês. O termo nos parece também mais abrangente, pois pode ser utilizado tanto para aqueles que possuem pontos transitórios, quanto para aqueles que possuem pontos fixos de trabalho. É importante salientar também que há uma grande diversidade nas formas de se referir a esse trabalho, cujo entendimento não é uniforme entre os próprios trabalhadores de rua, como veremos no terceiro capítulo desta dissertação. Ao nos aproximarmos de como se estrutura a presente dissertação nos parece importante esclarecer a metodologia aqui empregada, pela qual foi necessário percorrer um caminho que buscou alinhavar a compreensão teórica e conceitual com as análises empíricas. O levantamento teórico-conceitual contou com a revisão da bibliografia sobre o assunto e a pesquisa empírica contou com o levantamento de informações em fontes primárias e secundárias, o que foi realizado principalmente porque as informações obtidas com o levantamento teórico-conceitual não foram suficientes para compreendermos efetivamente o funcionamento da atividade e quem são os agentes que a tornam possível. Mesmo nos projetos encontrados, incluindo-se aí os recentemente elaborados, não há um levantamento preciso do quantitativo de trabalhadores atuando na área estudada, por exemplo, tampouco constam informações sobre o perfil dessa população. Por este motivo, se fez necessário realizarmos um levantamento empírico que contou com a observação participante, aplicação de questionários estruturados, entrevistas, registros fotográficos e elaboração de diário de campo. No que se refere ao caminho teórico proposto, buscamos principalmente compreender o que se entende como os dois eixos que alicerçam a nossa abordagem: a informalidade e o espaço público. O resultado dos estudos sobre esses dois eixos e a relação estabelecida entre ambos aparece no primeiro capítulo desta dissertação. Em seguida, no segundo capítulo, veremos como as ações do planejamento municipal vêm incidindo sobre a área estudada, ao analisarmos os projetos propostos no período enfocado. No que se refere a tais projetos, a análise deteve-se nas seguintes categorias: existência de um diagnóstico sobre a situação; conforto ambiental; infraestrutura de suporte para a atividade; relação entre a proposta e o entorno; e densidade de ocupação. A partir da análise realizada através dessas categorias, acredita-se ser possível avaliar os projetos de forma mais consistente e crítica. Por fim, no terceiro capítulo, os dados empíricos nos ajudam a ter uma leitura sobre o panorama geral do que é o trabalho de rua desenvolvido no centro tradicional de Salvador, suas características, quem são as pessoas que o realizam e como ele se organiza.


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O primeiro capítulo é iniciado contextualizando a informalidade, sob a ótica das linhas teóricas que tratam do assunto, o que nos permitirá analisar o comportamento da economia e do mundo do trabalho do final da década de 1980 até os dias atuais. Além disso, dados estatísticos sobre a situação do emprego e da informalidade serão apresentados, relacionados ao contexto histórico do período estudado, ou seja, considerando o processo de reestruturação produtiva e da globalização com viés neoliberal, que contribuíram para a flexibilização e diversas formas de precarização do trabalho. Nesta noção sobre a economia, a formalidade e a informalidade são interpretadas como duas faces de uma mesma moeda, partes de um mesmo sistema. Dizer isso significa tratar os dois temas compreendendo que sua distinção se origina do processo tardio de industrialização do Brasil, que arruinou as ocupações tradicionais sem ser capaz de absorver uma grande massa de pessoas pouco qualificadas, desempregadas com a modernização dos processos produtivos, seja na indústria, seja na agriculta. Trata-se, portanto, de um traço estrutural de nossa economia e que pode ser melhor compreendido se tivermos em conta a leitura sobre os circuitos superior e inferior da economia desenvolvidos por Milton Santos, onde a noção do espaço é inserida, ampliando nosso entendimento sobre a problemática. Sobre esse aspecto, vale mencionar ainda que a teoria dos circuitos da economia se constituirá como fundamento teórico estruturante da dissertação. O espaço, por sua vez, é uma dimensão bastante importante para nós e será brevemente delineado teoricamente, sendo compreendido enquanto um produto social em permanente transformação. A questão do espaço será levantada, sobretudo, para que possamos evidenciar a relação imbricada que existe entre espaço e economia, que pode ser expressa de diferentes formas, como é o caso dos trabalhadores de rua aqui estudados. Ademais, o local específico no espaço em que se expressa a atividade dos trabalhadores de rua, por sua vez, é o espaço da rua, espaço público, portanto, que também merece ser melhor compreendido. Assim, a importância das ruas enquanto lugar do diferente, da socialização e da democracia será destacada, buscando direcionar o olhar para as diferentes formas de apropriação que incidem sobre este espaço, que não ocorrem sem problemas ou contradições. A apropriação por parte dos trabalhadores de rua, como veremos, é convertida em direito na medida em que a atividade é absorvida pelas políticas públicas do Estado, que a incorporam no planejamento, não sem restringi-las ou regulá-las. Uma vez discutidos os aspectos dos eixos informalidade e espaço público, no segundo capítulo nos deteremos às propostas de intervenção elaboradas pelo Poder Público em momentos distintos entre os anos de 1988 e 2014. Para isso, realizamos pesquisa de dados junto


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à Fundação Mário Leal Ferreira (FMLF), ente responsável pela concepção e execução dos projetos urbanísticos desenvolvimentos para o planejamento urbano do município de Salvador, onde foi possível colher informações sobre os projetos elaborados durante o período estudado. Além disso, foi realizada entrevista com um representante da Secretaria de Ordem Pública (SEMOP), órgão responsável atualmente pelo licenciamento e fiscalização do trabalho informal na cidade. Ainda no Capítulo 2, a Avenida Sete de Setembro e as ruas de suas imediações, onde se incluem as ruas do bairro Dois de Julho, serão apresentadas como uma forma de aproximar o leitor do lugar estudado. Além disso, as propostas de intervenção são apreciadas tendo em vista o contexto do planejamento urbano no Brasil no qual estão inseridas, e os contextos políticos na cidade de Salvador, com a finalidade de evidenciar as semelhanças, diferenças e críticas das propostas apresentadas. Pensamos que assim será possível tensionar a ação do Poder Público na regulação da atividade, no que se faz importante ainda realizar um estudo sobre a legislação incidente sobre o assunto. No terceiro e último capítulo nos debruçaremos sobre quem são os trabalhadores de rua que atuam hoje na área estudada, em Salvador, o modo como operam sua atividade e qual a importância que esses enxergam seu trabalho para a cidade. Nessa parte da dissertação contamos com uma metodologia bastante comprometida com a consistência das informações coletadas em campo, que contou com a realização de entrevistas e aplicação de questionários com um universo considerável de pessoas. Cabe mencionar ainda que o método utilizado foi de realizar um estudo de caso com inspiração etnográfica e antropológica. A referência à inspiração etnográfica surge primeiro pelo interesse em evidenciarmos os protagonistas da história, os trabalhadores de rua. Em seguida, pela natureza da pesquisa ser qualitativa, principal característica da pesquisa antropológica, ainda que não esteja sendo realizada com a perícia, habilidade e temporalidade do trabalho de uma antropóloga. Aqui interessa-nos também, portanto, as histórias de vida e os dados advindos da observação do cotidiano. De acordo com Santos (2005) conseguir os dados desejados, em grande parte dos casos, está relacionado ao fato de o pesquisador “estar lá”, envolvido com sua pesquisa, realizando a etnografia. O método etnográfico, de acordo com Uriarte (2012:173), “consiste num mergulho profundo e prolongado na vida cotidiana desses Outros que queremos apreender e compreender”. Este mergulho possui uma primeira fase de aprofundamento na teoria, em que se realiza um amplo levantamento de informações e interpretações sobre a população que


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queremos pesquisar; uma segunda fase de convívio intenso com as pessoas dessa população; e uma fase de escrita quando o pesquisador retorna para casa e registra suas impressões. 1 O “mergulho” em nosso caso, foi dado muito mais como processo que possibilita a observação do que da participação propriamente dita, excetuando-se aí os casos em que foi possível estabelecer uma relação de convívio e confiança com alguns trabalhadores. As impressões levantadas neste percurso resultaram na elaboração de um diário de campo, realizado principalmente para que as percepções do campo não escapassem da memória. Nesse sentido há também a realização de registros fotográficos em diferentes momentos da pesquisa. Diante disso, fica evidente se tratar de uma inspiração no método e não na sua aplicação propriamente dita. Contudo, acreditamos que ainda que não se constitua essencialmente como método etnográfico com toda a profundidade de envolvimento que esta forma de estudo implica, a inspiração nele foi capaz de enriquecer bastante esta pesquisa, sobretudo pela dimensão mais cotidiana dos sujeitos que se tornou possível aproximar. O levantamento de informações também foi realizado através da aplicação de questionários com uma amostra calculada dos trabalhadores de rua, de modo a auxiliar no entendimento de como se caracteriza a apropriação do espaço utilizado para o trabalho e como se organizam suas redes de funcionamento. Em nosso caso, como trata-se apenas de uma inspiração no método etnográfico e por termos o intuito de levantar informações mais acuradas e atualizadas sobre o perfil dos trabalhadores de rua, que não estão disponibilizadas pelos órgãos municipais competentes, optamos pela aplicação de questionários estruturados. Para esta aplicação foi definida uma área de estudo, considerando os locais onde há incidência de trabalhadores de rua na Avenida Sete e suas imediações. Os questionários aplicados foram divididos em dois momentos de aplicação: 

Um momento de aplicação do questionário básico (Apêndice A), com questões majoritariamente fechadas e quantitativas, aplicado com um universo mais amplo de trabalhadores;

Um momento de aplicação do questionário de aprofundamento (Apêndice B), com questões totalmente abertas e, portanto, qualitativas, realizadas com o intuito de captar um pouco mais a própria visão dessas pessoas com relação ao trabalho que desempenham e a importância deste para a cidade.

1

A inspiração nessa metodologia levou a pesquisadora a se dedicar nos últimos quatro anos aos estudos e trabalhos desenvolvidos sobre a temática, além de, nos últimos dois anos tê-la levado a residir no bairro Dois de Julho, uma das áreas pesquisadas, de modo que assim foi possível experenciar mais de perto os aspectos do cotidiano que são mobilizados em função da atividade dos trabalhadores de rua.


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Para iniciar o trabalho empírico, buscou-se levantar o número de trabalhadores em publicações como jornais e diário oficial, porém, devido à diversidade dos quantitativos encontrados, fez-se necessário realizar uma contagem in loco. Como metodologia para a contagem, foi decidido realiza-la em dois dias diferentes e posteriormente tirar uma média dos quantitativos encontrados, para, a partir dessa média, definir o tamanho da amostra necessária. Para facilitar a orientação e análise de campo, foi criado um mapa distinguindo as 04 áreas de aplicação dos questionários (Apêndice D). Neste mapa estão identificadas as áreas e os trechos da Av. Sete de Setembro e Av. Joana Angélica que precisaram ser subdivididos durante a contagem. Os resultados da contagem por trecho, por sua vez, estão listados no Apêndice C. Por ora, cabe aqui comentarmos que a amostra resultante desse processo foi de 287 trabalhadores de rua, nos quais foram adicionados mais 2 questionários em campo por engano, resultando em uma amostra de 289 trabalhadores, os quais nos permitiram analisar os dados do perfil e da dinâmica da atividade. Os resultados da aplicação do questionário básico, bem como os significados dessas respostas estarão distribuídos ao longo do terceiro capítulo, em diálogo tanto com a teoria apresentada nos capítulos anteriores, quanto com entrevistas realizadas com os outros agentes que interagem com a atividade do trabalhador de rua. As entrevistas, portanto, se constituem como um terceiro elemento da metodologia de realização do trabalho empírico e foram realizadas também em dois momentos: um com os representantes das três associações e de um sindicato dos trabalhadores de rua; e com um representante do órgão municipal responsável pelo controle e ordenamento da atividade. Soma-se ainda à metodologia de trabalho desenvolvida em campo, a elaboração e apresentação de um relato construído com o intuito de aproximar-se ao máximo de uma narrativa2, que surge como um produto do levantamento de dados e que é incorporada ao terceiro capítulo do trabalho. Tal relato constitui-se, talvez, como o lugar onde mais genuinamente se evidenciam as relações do trabalhador de rua com o espaço do qual se utiliza e com os agentes que nele interferem, fazendo emergir um pouco da relação dessas pessoas com a cidade. A inserção da narrativa no texto se justifica principalmente por considerarmos que o ponto de vista dessas pessoas sobre o seu trabalho é tão ou mais importante do que aquilo que se diz sobre elas. Como nos diz Uriarte (2012:175) sobre o método etnográfico “a essas Uriarte (2013) esclarece sobre a distinção entre descrever e narrar o campo. Segundo a autora, descrever é: “um ato sem prévia reflexão, que conta acontecimentos, fatos, impressões sem tentar encontrar ainda ordem ou lógica entre eles”. Já narrar é entendido como “um trabalho conscientemente inventivo, que se vale de outras linguagens que não apenas a oralidade”, ou seja, é uma forma de contar fatos selecionados (determinadas passagens, momentos, personagens, etc.), montados em uma certa ordem ou sequência, como uma composição. 2


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pessoas damos voz não por caridade, mas por convicção de que têm coisas a dizer”. Contudo, cabe dizer ainda que tal narrativa, apesar de apresentar brevemente a história de vida de dez “personagens” da Avenida Sete de Setembro, em sua condição de trabalhadores de rua, não poderá ser demasiadamente prolongada, o que deixa tanto a pesquisadora com mais vontade de escrever sobre elas, quanto pode deixar o leitor com mais curiosidade por conhecê-las. Uma vez esclarecida a metodologia realizada para o levantamento de dados empíricos, cabe-nos apresentar os resultados encontrados como uma forma de dar visibilidade à dinâmica do trabalho realizado nas ruas da cidade de Salvador. Para isso, no terceiro capítulo, o perfil do trabalhador de rua é apresentado através dos gráficos e tabelas resultantes da sistematização do trabalho de campo. Em seguida tentamos sistematizar a análise da atividade segundo três aspectos que se destacam no seu funcionamento, identificados como: “se virar”, referente ao próprio exercício do trabalho, onde destacamos a relação entre a subordinação e a autonomia no trabalho desenvolvido; “a correria e o rapa”, onde se tratará sobre os tensionamentos existentes no desenrolar da atividade; e “a pedra”, que aborda a relação do trabalhador com o lugar, seus pertencimentos e relações de solidariedade. Acreditamos que a apresentação dos dados dessa forma nos ajuda a ter uma leitura mais completa do desenvolvimento do trabalho de rua em Salvador e suas características, além de ampliar nossa visão sobre quem o torna possível. Por fim, serão apresentadas as conclusões da pesquisa, onde serão evidenciadas as reflexões sobre as questões mais relevantes discorridas ao longo da dissertação. Elas serão problematizadas principalmente para colocar em questão as interações, contradições, conflitos e disputas originadas da apropriação do espaço público pelos trabalhadores.


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1 TRABALHO DE RUA: UMA RELAÇÃO ENTRE INFORMALIDADE E ESPAÇO PÚBLICO Neste capítulo será possível tratar sobre os aspectos do contexto e os conceitos que formam o lastro teórico para o processo aqui observado. As mudanças políticas, econômicas, sociais e seu rebatimento no urbano serão apresentadas de modo que o desenrolar da atividade do trabalhador de rua pode ser compreendido como parte de um traço estrutural de nossa economia. Tais informações, embora nos permitam entender o contexto no qual a cidade de Salvador esteve e está inserida, só se completa se também estivermos atentos a dois eixos estruturantes e articuladores de como entendemos o trabalho de rua nesta dissertação. Trata-se do entendimento do que a relação entre as noções de informalidade e do espaço público nos dizem a respeito do trabalho realizado na rua. No primeiro eixo, informalidade, será colocada em evidência a discussão sobre os setores formal e informal da economia. Perpassar pela evolução da distinção dualista que inicialmente faz parte do entendimento teórico sobre os dois setores, auxilia também no entendimento da expressão que a chamada informalidade ganhou na sociedade, sobretudo no que se refere ao seu papel para a circulação das mercadorias. A dimensão da informalidade será apresentada então, à luz do processo de reestruturação produtiva e da globalização, que contribuíram amplamente para flexibilização e precarização do trabalho. Tais análises, entretanto, não se darão apenas contrapondo os aspectos duais dessa discussão e sua evolução. Agrega-se a leitura do professor Milton Santos sobre esse processo, onde a informalidade aparece como parte componente de um sistema, compreendido pelos circuitos superior e inferior da economia. As características desses dois circuitos serão apresentadas com ênfase no que se refere ao circuito inferior, onde está inserida a atividade estudada. O entendimento da informalidade, a evolução da discussão a seu respeito e sua compreensão a partir dos circuitos da economia não podem ser completos se não levarmos em conta a noção do espaço, segundo eixo estruturante para a compreensão da atividade estudada nesta dissertação. O trabalhador de rua ocupa um lugar no espaço que não é escolhido aleatoriamente. Ele possui características funcionais para o desenvolvimento da atividade que perpassam por sua localização na cidade e que tem a ver com a dimensão pública da vida. A concepção do espaço é, portanto, elucidada a partir de categorias de análise propostas pelo professor Milton Santos (forma, função, estrutura e processo), e serão explicitadas para auxiliar no entendimento do espaço propriamente dito, compreendido enquanto produto social em


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permanente transformação. A economia e o espaço aparecem assim intrinsecamente ligados, onde a economia se expressa no espaço sob as diferentes formas em que este é apropriado, o que pode ser observado, sobretudo, quando é o espaço público que está em questão. A discussão sobre o espaço público, compreendido tendo em vista às dimensões pública e privada da vida, será evidenciada a fim de chamar a atenção para a importância das ruas enquanto lugar de socialização e do encontro com as diferenças. Considera-se que a articulação entre os dois eixos apresentados nos instigam a olhar para o cotidiano de maneira especial, enxergando para além do que normalmente o senso comum nos permite ver.

1.1 Nem dicotomia, nem ambiguidade: dois circuitos de um mesmo sistema Que significado para a cidade tem o trabalho da pessoa que usa o espaço da rua para comercialização de mercadorias? A que categoria da economia este trabalho pertence? Para o desenvolvimento desta pesquisa, considerou-se importante inicialmente compreender quem são os trabalhadores de rua na cidade de Salvador e isso implica saber em que categoria eles estão enquadrados, como esse trabalho funciona, como ele está inserido no modo de produção capitalista e, consequentemente, quais são os desdobramentos da atividade no espaço. Para aproximar-nos um pouco mais das respostas a essas questões é preciso entender o que é a informalidade e como ela se apresenta no Brasil. Para tanto, algumas contribuições serão explicitadas a seguir. Esta seção tem o objetivo principal de buscar conhecer as principais características, abordagens e mudanças que o entendimento sobre a informalidade sofreu nas últimas décadas, e a partir daí explorar também as mudanças ocorridas no mundo do trabalho no mesmo período. Para Costa (2010) a informalidade surge da noção de subdesenvolvimento, de modo a explicar a não-inserção dos menos favorecidos no processo produtivo, em contextos nos quais o assalariamento é pouco generalizado. Para a autora, tal debate se divide em duas correntes: estruturalista e de extração marxista. A corrente estruturalista seria orientada pela “Teoria da Modernização”, que concebia o subdesenvolvimento como decorrência de uma desvantagem no valor relativo das trocas econômicas entre o centro e a periferia. Está marcada pela presença de um setor de subsistência ou informal, caracterizado pela baixa densidade de capital, pelo precário nível técnico de produção e pela baixa produtividade, convivendo com um setor moderno, de avançado padrão tecnológico, economicamente mais capitalizado e dinâmico.


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Já a corrente de extração marxista pensava o problema da não integração na perspectiva das contradições do próprio modelo de acumulação capitalista consolidado sob a égide da industrialização. Essas ideias eram construídas em torno da “Teoria da Dependência”, onde o subdesenvolvimento não era entendido como um estágio anterior ao desenvolvimento, mas como produto de uma inserção subordinada e dependente dos países da região no sistema capitalista mundial. Destaca-se ainda uma importante crítica dessa corrente:

A crítica basilar dessa corrente às teses da modernização como marginalidade, e que vai buscar seu fundamento na lei geral da acumulação capitalista em Marx, sustenta que o problema da marginalidade e da informalidade, decorre não de uma condição de inadequação de parte do sistema (o arcaico) a seu padrão normal de funcionamento (o moderno); ao contrário, é resultado do modo de produção capitalista, estruturado sob uma lógica de dominação das relações de produção, portanto, de classe, que gera seu próprio excedente de trabalho: um exército industrial de reserva que vai buscar seu meio de sobrevivência fora do domínio das relações capitalistas modernas e que é, sim, funcional e rentável àquele padrão de acumulação, posto que é fator de barateamento e disciplinamento da força de trabalho (COSTA, 2010:174).

A crítica põe em evidência a funcionalidade da informalidade dentro do sistema capitalista, pois além de baratear a força de trabalho, ela favorece também à circulação das mercadorias em diversos níveis, o que será mais bem explorado posteriormente neste trabalho. Podemos acrescentar nesse debate ainda a ponderação de Oliveira (2003) em sua crítica à razão dualista, que justamente propõe uma superação ao dualismo no debate entre o formal e o informal, pois o autor compreende que ambos os setores compõem partes de um mesmo sistema na economia. Se por formal pode-se entender que há todo um respaldo no que refere ao campo dos direitos do trabalhador, no informal esses direitos são total ou parcialmente negados, o que não necessariamente indica uma falta de modernidade ou de importância do setor. “Formal” e “informal” são, portanto, dois lados de uma mesma lógica e assim, para o referido autor, a utilização destes termos por si só não possuem mais força explicativa. Destaca-se neste sentido um trabalho desenvolvido para Organização Internacional do Trabalho (OIT), onde se caracteriza a mudança do conceito de setor informal para economia informal. Entre algumas das contribuições apresentadas por Krein e Proni (2010), no que se refere ao setor informal, este aparece como sendo “funcional” ao conjunto de empresas formais para rebaixar o custo de reprodução da força de trabalho, além de servir como porta de entrada ao mercado de trabalho e como manifestação do excedente estrutural e de mão-de-obra. Por


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conta da diversidade de interpretações sobre o setor informal, a discussão sobre a informalidade se tornou tema de algumas conferências da OIT. Para a OIT, em 1991, o dilema enfrentado pelos países cuja predominância é o trabalho informal se refere à necessidade de se optar pela eliminação do conjunto heterogêneo das atividades de que faz parte a informalidade, para propor estratégias que aproveitem o potencial de geração de ocupação e renda para parte da população menos favorecida. Em 1993 foram adotados os critérios estabelecidos na conferência de 1991, que definia que as unidades econômicas informais poderiam ser de duas maneiras: empreendimentos unipessoais ou familiares; e microempresas com trabalho assalariado. Para Krein e Proni (2010) as várias expressões da informalidade continuaram a se expandir, aumentando a sua heterogeneidade, o que significava que o setor informal desempenhava um papel importante na geração de renda para parcela significativa da população. Em 2002, em mais uma conferência sobre o trabalho, a OIT passou a utilizar o termo economia informal. O motivo da mudança era o de poder abarcar no conceito a diversidade e dinamismo presentes nesse conjunto complexo e heterogêneo de atividades. O conceito passou então a abranger:

a) trabalhadores independentes típicos (microempresa familiar, trabalhador em cooperativa, trabalhador autônomo em domicílio); b) “falsos” autônomos (trabalhador terceirizado subcontratado, trabalho em domicílio, trabalhador em falsa cooperativa, falsos voluntários do terceiro setor); c) trabalhadores dependentes “flexíveis” e/ou “atípicos” (assalariados de microempresas, trabalhador em tempo parcial, emprego temporário ou por tempo determinado, trabalhador doméstico, “teletrabalhadores”); d) microempregadores; e) produtores para o autoconsumo; e f) trabalhadores voluntários do “terceiro setor” e da economia solidária (KREIN E PRONI, 2010:12).

Apesar do termo “economia informal” ser uma referência formulada pela OIT, de acordo com Krein e Proni (2010), o mesmo não teve muita difusão no Brasil. O termo informalidade continuaria para os autores, portanto, sendo o mais utilizado no debate nacional. Nesse sentido, uma das conclusões a que chegam é de que a principal característica da informalidade é a inserção precária no mercado de trabalho, o que se dá, sobretudo, pela ausência ou precariedade de leis trabalhistas e sociais. Mas de que maneira chegamos a esse cenário? É preciso compreender o processo que levou a questão informalidade a ganhar tal


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expressão. Para isso, será necessário olhar um pouco mais no passado, mais precisamente para algumas reflexões da década de 1960 para cá. Contudo, esse olhar não será demasiadamente aprofundado, pois o que se pretende como foco neste trabalho é analisar os rebatimentos desse processo nos dias de hoje, sobretudo no que se refere à atividade dos trabalhadores de rua. De acordo com Costa (2000:175), “o trabalho informal pode ser conceituado como aquele não regulamentado pelo ordenamento legal do trabalho no país, sobre o qual, inclusive, a sociedade construiu sua política de seguridade social”. Nesse sentido, as políticas de seguridade desenvolvidas pelo Estado dirigiam-se apenas para os trabalhadores formalmente reconhecidos, o que significa para a autora uma “cidadania regulada”, ou seja, aquela adquirida unicamente pelos indivíduos enquadrados na estrutura ocupacional definida e reconhecida pelo Ministério do Trabalho. Sobre este aspecto é importante retomarmos a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), promulgada em 1943 na era Vargas, cujo objetivo era o de assegurar os direitos dos trabalhadores no campo individual, com a definição do limite à jornada de trabalho de 8 horas, salário mínimo, férias, 13º salário, entre outros benefícios, e que também assegura a representação coletiva, ou seja, a negociação dos termos de trabalho entre patrões e trabalhadores, através dos sindicatos. Entretanto, esses direitos se dirigem apenas aos trabalhadores formais. A divisão da economia em formal e informal para Filgueiras et al. (2004), além de ser muito simplista, também associa o setor informal aos segmentos mais pobres da população, sem considerar as formas de inserção do trabalhador na produção. Os autores destacam a possibilidade de se distinguir o espaço econômico-social através de dois critérios distintos, que originam três conceitos de informalidade diferentes. O primeiro critério distingue formal e informal por suas lógicas de funcionamento e o segundo delimita a diferença entre ambos a partir da legalidade e ilegalidade das atividades. O primeiro conceito abordado pelos autores se refere aos estudos da OIT já mencionados, para o qual o setor informal seria uma consequência do excedente de mão de obra. De acordo com Filgueiras et al. (2004) a partir da década de 1970 o termo informalidade passou a ser abordado partindo das relações do trabalhador com os meios de produção, cuja definição engloba o conjunto de atividades não tipicamente capitalistas, onde a busca do lucro não é o objetivo central e não há uma separação nítida entre capital e trabalho. Sob este enfoque, a informalidade estaria relacionada às atividades autônomas. O segundo conceito foi formulado a partir da realidade dos países capitalistas centrais, onde a crise do Fordismo, do Estado de Bem Estar Social, e os programas de


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liberalização econômica tiveram como consequência o surgimento de atividades não regulamentadas pela legislação vigente nestes países. O termo informal, nesse contexto, passou a ser utilizado para exprimir o conjunto de atividades ilegais e/ou ilícitas. A informalidade passa nessa segunda definição a se referir tanto as atividades e formas de produção quanto às relações de trabalho consideradas ilegais, identificando-se com o que se chama de economia subterrânea ou submersa. O terceiro e último conceito ao qual Filgueiras et al (2004) fazem referência é o da informalidade tomada a partir da junção dos critérios de ilegalidade e das formas de produção não tipicamente capitalistas, ou seja, a informalidade estaria relacionada com todas as formas e relações de trabalho não-fordistas e/ou precárias. Isso quer dizer que os trabalhadores informais teriam uma inserção precária no mercado de trabalho, ou seja, não estariam sob a proteção de leis sociais e trabalhistas. Vale ressaltar que é em sentido semelhante que a informalidade é entendida nesse trabalho, ou seja, como toda forma de inserção precária no mercado de trabalho, onde não se tem respaldo quanto aos direitos trabalhistas. Filgueiras et al. (2004) chamam atenção para o fato de, no Brasil, a informalidade ter sido intensa desde o período que sucede a IIª Guerra Mundial, momento que coincide com o período de aceleração da industrialização brasileira. De acordo com Costa (2010) a rápida urbanização dos anos 1960 e 1970 não foi capaz de absorver os indivíduos que migraram para as cidades. A atividade capitalista se expandiu, tomando espaço das atividades tradicionais, porém não foi capaz de gerar os empregos na mesma proporção dos que destruiu ou dos que a sociedade necessitava. Desse processo decorreu a criação de novas modalidades de trabalho informal e o próprio desemprego. Segundo Filgueiras et al (2004) no início dos anos 1980, momento de crise no padrão de desenvolvimento criado desde o pós-guerra e de crise no fordismo, houve um intenso processo de desestruturação do mercado de trabalho, onde já se prenunciava a precarização do emprego. Para Costa (2010) foi a partir da referida década que as mudanças na análise do problema da informalidade passaram a se dar em torno de duas situações principais: em torno da perda da centralidade e do dinamismo do setor secundário (que não gerava mais tantos empregos); e em torno da crescente força do setor de serviços na absorção da força de trabalho. A informalidade se generalizou nesse período, em que se disseminou o discurso de que o caminho para a modernidade passava por reformas no âmbito das privatizações e da desregulamentação dos mercados e do trabalho.


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Ainda segundo Costa (2010) na década de 1990 há uma acentuação no retraimento da economia organizada e do trabalho formal. Com o advento da terceirização, empregos regulares que contavam com certo acúmulo de conquistas sociais foram substituídos por empregos precários, temporários e/ou não regulamentados. De acordo com Borges (2007) as transformações dos anos 1990 impactaram a vida dos brasileiros mudando o padrão de desenvolvimento, as formas e mecanismos de inserção e de permanência no mercado de trabalho, e os projetos para o futuro de diversos trabalhadores. Passou-se de uma economia fechada para uma economia aberta, desregulamentada, voltada a atender os interesses neoliberais de agentes externos, que ganharam maior influência, sobretudo, através das privatizações de setores estratégicos da economia nacional.

Finalmente, nesse período, passou-se de uma economia com elevado dinamismo no seu mercado de trabalho, com geração contínua de postos de trabalho (bons e ruins), para uma economia que destrói os melhores empregos e gera, quase que exclusivamente, postos de trabalho mal remunerados, desprotegidos e em número insuficiente. Com isto, o mercado de trabalho brasileiro, estruturalmente marcado pela presença expressiva da informalidade e do subemprego, aprofunda esses traços e a eles agrega elevadíssimas taxas de desemprego aberto e oculto (BORGES, 2007:82).

Nesse sentido, para Filgueiras et al (2004) a globalização e a reestruturação produtiva da década de 1990 possuem um papel de destaque, pois resultaram em altas taxas de desemprego, acentuação da precarização do trabalho e do emprego, e crescimento das atividades não regulamentadas. A globalização, por sua vez, favoreceu que as empresas buscassem se fixar onde havia mais recursos para seus negócios (por exemplo: isenção de impostos e mão de obra barata). Nos anos 1990, no Brasil, foram registradas as maiores taxas de desemprego da história, bem como uma expansão bastante expressiva do setor de serviços, que mesmo assim não foi capaz de absorver o contingente de trabalhadores existente. Ainda de acordo com os autores supramencionados, a ampliação da informalidade com a transferência dos trabalhadores que outrora realizavam atividades formais para as atividades informais, deu origem a chamada nova informalidade. Esta, por sua vez, de acordo com Costa (2010) tem como características: precariedade das condições de trabalho e vida, negação dos princípios mais elementares de cidadania, além de perpetuar a reprodução da pobreza e das desigualdades sociais. Grande parte dessa nova informalidade é formada por trabalhadores advindos de grupos sociais pauperizados, que se inserem em condições de trabalho bastante precárias. Não se pode, porém, generalizar o papel destes na economia informal, conforme nos diz Costa:


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[...] a economia informal não pode ser considerada um eufemismo para a pobreza, devido à sua elevada heterogeneidade: há muito dinamismo na economia informal e ela é geradora de elevado nível de renda para muitos empreendedores informais. Todavia, a noção de pobreza não pode ser entendida apenas pelo critério de renda (ou insuficiência de renda), pois ela também está relacionada ao consumo ou ao acesso a serviços, como qualidade da moradia, acesso à educação, políticas de saúde coletiva, enfim, à noção de direitos e de cidadania. Esses aspectos remetem às escolhas políticas de uma sociedade e aos mecanismos que ela socialmente engendra para distribuir sua riqueza. E esse é essencialmente o campo do conflito político de classe (COSTA, 2010:182).

No âmbito da economia informal nem sempre se poderá fazer uma relação direta com a pobreza, cuja noção está relacionada à negação de uma série de direitos, nos quais se incluem o direito ao trabalho. Considera-se, portanto, que o baixo ingresso ao trabalho formal (aquele em que os direitos são assegurados) indica uma situação de maior vulnerabilidade para todos os que estão submetidos a ele, uma vez que a possibilidade de acesso a recursos adequados às necessidades cotidianas dos indivíduos fica limitada pela insegurança ou falta de renda. Nas palavras de Kraychete e Borges (2007:233), “[...] a reprodução contínua da pobreza está diretamente associada à sub-remuneração do trabalho”. Com relação aos riscos provenientes da renda, aos quais estão submetidos esses trabalhadores, é preciso ter em vista também o que nos chama atenção Filgueiras et. al. (2004), quando mencionam os novos modos de exploração capitalista, sustentados numa forte individualização e que têm no binômio empregabilidade/empreendedorismo a construção de sua ideologia. Segundo Borges (2007) estes novos modos de exploração reforçam a ideia de que, por exemplo, o empreendedorismo e o trabalho autônomo por serem flexíveis, oferecem mais vantagens aos trabalhadores, pois lhes permitiriam ter mais autonomia e liberdade. Porém essa ideia de liberdade é muito mais ideológica do que realmente concreta, pois a flexibilização do trabalho implica em uma maior taxa de exploração, já que nesse regime não é coberta uma série de direitos como a fixação de limite de horas e dias de trabalho, por exemplo, além de favorecer o aumento da velocidade e ritmo do trabalho. Aproximando-nos do momento histórico atual, temos que a situação do trabalho e do emprego sofreu algumas alterações importantes nos anos 2000. De acordo com Alves (2011), esse período da história da economia do Brasil pode ser denominado de “neodesenvolvimentismo”, cujo termo é utilizado em contraposição ao período neoliberal vigente nos governos dos presidentes Collor de Melo e Fernando Henrique Cardoso. O “neodesenvolvimentismo” abrange, portanto, o período dos dois governos de Luis Inácio Lula


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da Silva, entre 2003 e 2010, e se caracteriza por duas vertentes principais: “Estado financiador” e “Estado investidor”. O “Estado financiador” se caracteriza pela utilização de recursos, principalmente oriundos do Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES), para induzir o crescimento econômico, contribuindo principalmente para o fortalecimento de grupos privados estratégicos. Já o “Estado investidor”, se caracteriza pelo investimento em mega-obras de infraestrutura, realizadas através do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Uma terceira vertente que há ainda de se considerar como característica do momento vivido pelo país nos anos 2000 é o “Estado Social”, onde temos o Estado reassumindo o papel de provedor de políticas sociais e de mitigação da pobreza. De acordo com Boschi e Gaitán (2013) o neodesenvolvimentismo é um conceito utilizado atualmente para referir-se aos estudos sobre desenvolvimento elaborados posteriormente à hegemonia neoliberal. Sua discussão é considerada ainda como resultado do fracasso das políticas neoliberais que proclamaram o Estado mínimo e poder auto regulador do mercado. É discutido por dois grupos principais: o primeiro, sob a liderança de Bresser Pereira, apresenta a proposta como mais do que uma simples teoria econômica, mas como uma estratégia nacional de desenvolvimento, onde a base está na industrialização aberta à competição com os mercados externos. O segundo grupo, se estabelece no Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Associação Keynesiana Brasileira. As ideias desse segundo grupo aproximam-se das análises do primeiro, mas buscam ir além da questão macroeconômica ao incluir, por exemplo, a questão da relação entre público e privado e as relações da economia com a sociedade. Para eles, o novo desenvolvimentismo demanda um mercado e um Estado forte. Resumidamente, de acordo com Boschi e Gaitán (2013:327328), o neodesenvolvimentismo pode ser definido como "formulação de um projeto nacional que postula a formação de um espaço de coordenação entre as esferas pública e privada, com o intuito de aumentar a renda nacional e os parâmetros de bem-estar social." É considerado ainda um processo econômico, político e social ligado à tensões derivadas das políticas implementadas no país. Segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE, 2011), a partir de 2004 verificou-se um aumento no nível do emprego no Brasil. O período entre 2004 e 2008 foi considerado o mais próspero da década, com melhoria nos indicadores sociais e na redução do desemprego, onde a ocupação cresceu em ritmo superior ao crescimento da População Economicamente Ativa (PEA) (Gráfico 1).


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Gráfico 1: Evolução do PIB nacional, trimestral e das Populações Metropolitanas Economicamente Ativa e Ocupada Brasil e Regiões Metropolitanas(*) - 1998 a 2009 (Base 100 = média de 1998)

Fonte: Ipeadata e Convênio DIEESE/SEADE/MTE-FAT e convênios regionais. Pesquisa de Emprego e Desemprego - PED Nota: (*) Estão incluídas as Regiões Metropolitanas de Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador, São Paulo e Distrito Federal.

O DIEESE (2011) aponta que os fatores que tornaram essa realidade possível foram a confluência de resultados positivos da gestão interna e do ambiente internacional favorável. A partir de 2004 a nova dinâmica do mercado de trabalho brasileiro centrou-se no comportamento do Produto Interno Bruto (PIB) e na expansão dos investimentos. Na Tabela 1 divulgada pelo referido Departamento, podemos verificar que o número de ocupados cresceu em todas as regiões metropolitanas do Brasil.

Tabela 1: Estimativa do número de ocupados. Regiões Metropolitanas(*) e Distrito Federal – 1999, 2003, 2004, 2008 e 2009

Fonte: Convênio DIEESE/SEADE/ MTE - FAT e convênios regionais. Pesquisa de Emprego e Desemprego - PED Elaboração: DIEESE Nota: (*) Estão incluídas as Regiões Metropolitanas de Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo


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Através da leitura da Tabela 1 podemos notar ainda que entre 1999 e 2003 a média do crescimento anual foi de 2,2%. No período de 2004 a 2008 o mesmo indicador atingiu 3,4% e no período de 2004 a 2009, correspondeu a 3,1%, redução que se deu pela crise financeira internacional, que ameaçou a prosperidade que vinha sendo observada no período. Contudo, o destaque para o crescimento ocupacional nesse momento foi para o setor da construção civil que continuou contratando em 2009 e 2010 devido ao aumento do crédito no segmento imobiliário e ao Programa Minha Casa Minha Vida, que surgiu com o objetivo tanto de superar o déficit habitacional no país, quanto de ampliar as ofertas de emprego no setor da construção civil. De maneira geral, o DIEESE (2011) aponta que nos anos 2000 verifica-se um aumento importante no trabalho assalariado, enquanto os trabalhos domésticos e autônomos apresentaram queda. É importante mencionar que no período mencionado houve ainda uma forte geração de postos de trabalho com vínculo formal, além de incentivos fiscais como a implantação do Simples Nacional, que estimulou as micro e pequenas empresas a saírem da informalidade e a formalizarem o vínculo de trabalho junto aos seus funcionários. Consideramos válido mencionar ainda que, no período de 1999 a 2009 segundo análise do DIEESE (2011), a redução do desemprego foi generalizada. A taxa de desemprego médio anual caiu de 20,3% da PEA para 14,2%, como poderemos observar no Gráfico 2.

Gráfico 2: Taxas de desemprego, segundo tipo Regiões Metropolitanas(*) e Distrito Federal – 1999 e 2009 (em %)

Fonte: Convênio DIEESE/SEADE/ MTE - FAT e convênios regionais. Pesquisa de Emprego e Desemprego - PED Elaboração: DIEESE Nota: (*) Estão incluídas as Regiões Metropolitanas de Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo.


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Dentre os tipos de desemprego apresentados no Gráfico 2, podemos observar que a redução mais expressiva foi na taxa do desemprego aberto3 (2,6%). Com relação ao desemprego aberto, é preciso estar atento ao fato dele estar relacionado com a procura pelo posto de trabalho, que exige custos por parte do postulante à vaga que vão desde a distribuição dos currículos e inscrição em agências de intermediação de mão-de-obra, até as providências para a boa apresentação nas entrevistas e processos seletivos, sem contar com a manutenção de sua própria sobrevivência nesse período. Assim, os trabalhadores que perderam ou deixaram um emprego anterior há pouco tempo e que possuem recursos rescisórios conseguem se organizar de forma melhor na busca por um novo posto de trabalho. Para o DIEESE (2011) os provedores de família tendem, portanto, a aceitar as primeiras ofertas de trabalho que surgem, pois dificilmente conseguem conciliar longos períodos de procura por trabalho com o sustento da família. Se, por um lado temos que o desemprego aberto é menor entre os chefes de família nos domicílios, por outro, entre os filhos desses chefes de família concentra-se a maior proporção de desemprego aberto, ou seja, entre os mais jovens. Uma categoria que merece ser evidenciada, por estar relacionada com o objeto de estudo desta dissertação, é a do “desemprego oculto pelo trabalho precário”. Neste tipo de desemprego, o DIEESE (2011) informa que encontram-se os trabalhadores com experiência profissional anterior, porém essa experiência acumulada reflete mais uma trajetória de dificuldades do que os requisitos exigidos pela matriz produtiva de um país em expansão. Isto porque, mesmo tratando-se de um contingente em processo de redução, estes desempregados foram demitidos e/ou perderam seus postos de trabalho há muito tempo. Para essas pessoas, o desenvolvimento trouxe a rotatividade. Ainda de acordo com informações do DIEESE, em 10 anos houve, de maneira simultânea, a redução do número de trabalhadores que associam a procura de trabalho com o exercício de bicos, e o crescimento para 35,6% da proporção daqueles que declararam ter perdido ou deixado o último emprego nos últimos 4 meses. Cabe destacar ainda que, como pode ser observado na Tabela 2, 40,7% dos desempregados em 2009 permaneceram por até 6 meses no último posto de trabalho, ou seja, um tempo bastante curto.

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Segundo o DIEESE (2011), o desemprego aberto é composto pelas pessoas que procuraram trabalho de maneira efetiva nos 30 dias anteriores ao da entrevista e não exerceram nenhum trabalho nos sete últimos dias; o desemprego oculto pelo trabalho precário é composto pelas pessoas que realizam trabalhos precários – algum trabalho remunerado ocasional de auto-ocupação – ou pessoas que realizam trabalho não-remunerado em ajuda a negócios de parentes e que procuraram mudar de trabalho nos 30 dias anteriores ao da entrevista ou que, não tendo procurado neste período, o fizeram sem êxito até 12 meses atrás; e o desemprego oculto pelo desalento é composto pelas pessoas que não possuem trabalho e nem procuraram nos últimos 30 dias anteriores ao da entrevista, por desestímulos do mercado de trabalho ou por circunstâncias fortuitas, mas apresentaram procura efetiva de trabalho nos últimos 12 meses.


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Tabela 2: Distribuição da população em desemprego oculto pelo trabalho precário e experiência anterior de trabalho, segundo tempo de perda do emprego e duração do último trabalho Regiões Metropolitanas(*) e Distrito Federal – 1999, 2004 e 2009 (em %)

Fonte: Convênio DIEESE/SEADE/ MTE - FAT e convênios regionais. Pesquisa de Emprego e Desemprego - PED Elaboração: DIEESE Nota: (*) Estão incluídas as Regiões Metropolitanas de Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo.

Nesse contexto consideramos relevante o que nos diz Alves (2011) sobre esse período contemporâneo de expansão capitalista do Brasil, em que se retoma, em termos relativos, o crescimento da economia por um lado, e consolida-se um novo e precário mundo do trabalho por outro, marcado por uma nova condição salarial flexível, caracterizada pela intermitência laboral. Se na década de 1990 o mundo do trabalho no Brasil se caracterizava pelo desemprego aberto e pela informalização das relações de emprego, na década de 2000 é a natureza flexível do emprego e da organização do trabalho que predominam. O autor supramencionado afirma que a expansão capitalista do Brasil “decorre não de aspectos conjunturais da dinâmica capitalista, mas sim, de um processo estrutural de precarização do trabalho que emerge com o novo regime de acumulação” (ALVES, 2011, p.157). Embora possamos ter claro que a situação do trabalho e do emprego no país, de maneira geral, tenha melhorado nos anos 2000, essa tendência ao crescimento da economia e da geração de postos de trabalho cresceu juntamente com os fenômenos da precarização e da flexibilização. Esse novo trabalho perde qualidade, portanto, no sentido de ser pouco capaz de assegurar a prosperidade e qualidade de vida das pessoas que se ocupam sob tais termos, já que carrega em suas entrelinhas a instabilidade e a insegurança no futuro. Nesse sentido, a discussão sobre a formalidade e informalidade das relações de trabalho persiste, no que se torna


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importante agregar a leitura sobre a teoria dos circuitos da economia propostos pelo professor Milton Santos, considerada de fundamental importância para esta pesquisa. Santos (2008a) parte da noção de subdesenvolvimento, assim como, por exemplo, Chico de Oliveira anteriormente mencionado, para elaborar sua teoria dos circuitos da economia, à qual é agregada a noção de espaço, aspecto bastante importante para nós. Para ele, o espaço dos países subdesenvolvidos é descontínuo e instável, pois é mais fortemente tensionado por múltiplas influências e polarizações oriundas dos diferentes níveis globais de decisão. Ele está marcado pela grande desigualdade de renda, expressa tanto em níveis regionais, onde é possível perceber uma tendência à hierarquização de atividades, quanto na escala do lugar, onde é possível observar a coexistência de atividades de naturezas similares, mas de níveis distintos. Nos países desenvolvidos, as disparidades de renda aparecem com menos importância e têm pouca influência na aquisição de bens e serviços. Isto é o contrário do que acontece nos países subdesenvolvidos, onde a capacidade de consumo dos indivíduos possui uma variação maior. Assim, o nível de renda é colocado pelo autor como um nível que também influencia na localização do indivíduo, pois aqueles que possuem melhores rendimentos tendem a ocupar os locais onde há mais infraestrutura e aqueles que não dispõem dos mesmos recursos, tendem a ocupar os lugares menos favorecidos. Esse nível de renda quando associado a outros fatores, por sua vez, pode determinar a situação dos indivíduos enquanto produtores e consumidores. A seletividade do espaço é a chave para concepção de uma teoria espacial, que pode exprimir coisas diferentes caso se considere a produção ou o consumo. A produção tende a se concentrar com mais força em pontos onde as atividades são mais modernas e o consumo responde às forças de dispersão. Este consumo, por sua vez, se apresenta de formas distintas, já que a seletividade social age como um freio, que limita a capacidade de igualar o consumo dos indivíduos qualitativa e quantitativamente. É neste contexto que o autor observa a constituição de dois circuitos responsáveis pelo processo econômico e também pelo processo de organização do espaço. Ele afirma que:

A existência de uma massa de pessoas com salários muito baixos ou vivendo de atividades ocasionais, ao lado de uma minoria com rendas muito elevadas, cria na sociedade urbana uma divisão entre aqueles que podem ter acesso de maneira permanente aos bens e serviços oferecidos e aqueles que, tendo as mesmas necessidades, não têm condições de satisfazê-las. Isso cria ao mesmo tempo diferenças quantitativas e qualitativas no consumo. Essas diferenças são a causa e o efeito da existência, ou seja, da criação ou da manutenção,


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nessas cidades, de dois circuitos de produção, distribuição e consumo dos bens e serviços (SANTOS, 2008a:37).

Para Santos (2008a), os circuitos superior e inferior são resultado da modernização tecnológica, onde o superior usufrui diretamente dessa modernização, enquanto que no inferior os indivíduos se beneficiam parcialmente ou não se beneficiam do processo. O circuito superior é definido pela forma como se organiza e se comporta a sociedade urbana. Já o circuito inferior é um produto da modernização em processo de transformação e adaptação permanente, sendo, a maioria das vezes, subordinado ao circuito superior. A diferença entre os dois está fundamentalmente baseada nas diferenças de tecnologia e organização. No circuito superior é utilizada uma tecnologia de alto nível, ou seja, o capital é intensivo. Já no circuito inferior a tecnologia é justamente o trabalho intensivo e as atividades se baseiam no crédito e no dinheiro líquido. Além disso, os empregos raramente são permanentes e a remuneração, de maneira geral, situa-se abaixo do mínimo que uma pessoa precisa para ter uma vida digna, ou seja, para ter acesso à educação, saúde, moradia, alimentação, lazer etc. Cada circuito se define pelo conjunto de atividades realizadas em um determinado contexto e se ligam pela atividade do consumo. É importante ressaltar que todas as camadas da população podem consumir dentro ou fora do circuito ao qual pertencem, sendo este, um consumo parcial ou ocasional de cada categoria. No circuito superior, os preços são geralmente fixos e a sua manipulação supõe uma margem de lucro considerável a longos prazos, visando sempre à acumulação. O circuito inferior é o maior gerador de ocupações para a população pobre da cidade e nele pechinchar é uma regra. A preocupação com o lucro ou acumulação de capital não possui tanta relevância quando o que está em jogo é uma questão de sobrevivência. No circuito superior o lucro elevado corresponde ao volume da produção, o lucro por unidade é reduzido e há grandes investimentos em publicidade, utilizada para criar e modificar os gostos da demanda. No circuito inferior o resultado total de lucro é pequeno, porém o lucro por unidade é elevado, porém repartido, o que se deve ao grande número de intermediários envolvidos no processo até que o produto chegue ao consumidor final. Para Santos (2008a) a publicidade não é necessária no circuito inferior, pois o contato direto da clientela com os produtos garante a efetiva comercialização. Porém, podemos considerar que a disseminação de produtos específicos em determinados períodos, podem ter a ver tanto com as variações climáticas, quanto com a moda da época, propagada pelas telenovelas, por exemplo.


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Dessa maneira, ainda que as atividades inseridas no circuito inferior não produzam sua própria publicidade, utilizam-se daquela desenvolvida para as mercadorias produzidas no circuito superior para potencializar a venda de seus artigos, frequentemente cópias produzidas com menor qualidade. No circuito superior há uma valorização da capacitação investida para qualificar o seu quadro de trabalhadores. Com essa especialização há uma divisão maior do trabalho e a remuneração é equivalente a tal especialização. Quando não encontra mão-de-obra especializada no país busca a estrangeira. No circuito inferior existe um baixo nível de especialização proveniente de uma base educacional precária, que leva para o setor produtivo uma densidade de trabalhadores mal preparada, saturando o mercado e gerando um aglomerado “exército de reserva”. A massa ociosa configura o quadro de desempregados da economia. Todavia a outra parcela adicionada ao mercado de trabalho frequentemente é mal remunerada, o que pode significar um menor poder aquisitivo. Para Santos (2008a) então, os circuitos da economia podem ser identificados através das diferenças de tecnologia e organização, onde podemos perceber a existência de uma bipolarização e não de um dualismo, pois não há nem circuito intermediário, nem continuum entre eles. Os dois circuitos, embora distintos, complementam-se, e um aspecto que lhes é bastante importante é o da dependência do circuito inferior com relação ao superior. Ambos têm, portanto, a mesma origem, conjunto de causas e estão interligados. Ainda para o autor, insistir em sobrepor a posição hegemônica do circuito superior sem considerar o subemprego como conseqüência das formas monopolísticas de suas atividades, pode nos levar a interpretações superficiais da realidade. Por este motivo e porque o circuito inferior compõe o ciclo de realização das mercadorias produzidas no circuito superior, uma vez que contribui para distribuição de sua produção, será preciso analisar um pouco mais detalhadamente as características e dinâmica do circuito inferior da economia. Como já mencionado anteriormente, o circuito inferior é uma consequência das desigualdades oriundas do modelo de crescimento econômico vigente, baseado, sobretudo, em uma distribuição de renda desigual. A modernização da economia e a composição orgânica do capital oriunda desse processo impõe uma rigidez à expansão do mercado de trabalho, uma vez que são requeridas cada vez mais especializações, e grande parte da população fica excluída por não ter acesso a, no mínimo, uma educação básica que lhes permitiria galgar melhores postos de trabalho.


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Para Santos (2008a), os pobres arcam com o peso maior da nova divisão do trabalho, pois eles são aqueles que estão bem abaixo das escalas de salário e que mais comumente estão desempregados. O processo de urbanização contribui para agravar as desigualdades e, nesse sentido, o aumento das favelas está diretamente relacionado com a pobreza urbana e o modelo de consumo vigente, onde as pessoas dão preferência ao dinheiro líquido que é utilizado na compra de produtos não duráveis, relacionados com a própria subsistência do indivíduo. O trabalho no circuito inferior é de difícil compreensão, pois ele é tanto o mal remunerado quanto o temporário ou o instável. Para ingressar nesse circuito é necessário muito mais trabalho do que capital. Santos (2008a) indica ser possível distinguir três categorias de atividades4: 

as que não exigem nem capital nem qualificação (ex.: trabalho doméstico);

as que exigem exclusivamente capital; (ex.: comércio)

as que exigem qualificação e capital. (ex.: artesanato)

Como algumas características dessas atividades destacam-se a importância do crédito para iniciar e/ou manter um negócio, a grande densidade dos comércios (de pequenas dimensões com estoques reduzidos), que ocupam pouco espaço, além da existência da possibilidade da realização da atividade comercial em casa, de maneira a fugir total ou parcialmente do recolhimento de impostos. O circuito inferior da economia, do qual fazem parte os trabalhadores de rua, também está relacionado ao que Kraychete e Santana (2012) entendem por economia dos setores populares. Para eles, as atividades que compõem esse setor da economia seriam aquelas: “[...] que possuem uma racionalidade econômica ancorada na geração de recursos humanos próprios, agregando, portanto, unidades de trabalho e não de inversão de capital. Essa economia abrange tanto as atividades realizadas de forma individual ou familiar como as diferentes modalidades de trabalho associativo, formalizadas ou não” (KRAYCHETE E SANTANA, 2012:1).

Além disso, a racionalidade dessas atividades estaria relacionada às necessidades de reprodução da vida, ou seja, da busca pela satisfação das necessidades básicas para a 4

É importante frisar que, Santos escreveu seu livro no final da década de 1970. Hoje, a distinção das categorias propostas por ele poderia ser atualizada, uma vez que dificilmente é possível trabalhar ou montar um negócio sem ter capital e qualificação. É o caso das empregadas domésticas trazido por ele, por exemplo, que hoje precisam ter minimamente ter boas referências, experiência e qualificação para se inserirem no mercado de trabalho.


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sobrevivência da unidade familiar. O termo economia dos setores populares, entretanto, difere conceitualmente daquilo que identificamos com o termo setor informal. De acordo com o conceito apresentado no trabalho dos autores, o setor informal frequentemente está relacionado com a produção em unidades produtivas micro ou pequenas, nas quais as relações capitaltrabalho não se encontram bem estabelecidas. Podem se situar ainda sob tal designação processos como a sonegação fiscal e a contratação ilegal de trabalhadores. A economia dos setores populares, por sua vez, pressupõe uma forma de desenvolvimento que alia o desenvolvimento da economia com a promoção de outros direitos fundamentais. Com relação aos trabalhadores de rua, Santos (2008a) entende que os mesmos compõem o nível inferior da pulverização do comércio, configurando-se como o “último elo da cadeia de intermediários entre importadores, industriais, atacadistas e o consumidor” (SANTOS, 2008a:218). Esta categoria destaca-se por ter menor dependência com relação à sua clientela, uma vez que desloca-se à procura da mesma.

[...] os pequenos vendedores ambulantes não são independentes, mas verdadeiros empregados de patrões invisíveis que comandam microcadeias de comercialização, cujos agentes frequentemente são doentes, crianças e mesmo adultos (SANTOS, 2008a:219).

Para o autor, há ainda uma distinção com relação a estes trabalhadores de rua em duas categorias: aqueles que tem local fixo na calçada com suas mercadorias expostas nas ruas do centro ou aqueles que vão a procura da freguesia nos bairros. Cabe destacar, ainda, os três elementos essenciais ao funcionamento desse circuito: 

o crédito – indispensável para agentes e consumidores sendo o método de ingressar na atividade para os primeiros e configurando-se com a possibilidade de consumo dos últimos;

os intermediários – responsáveis por fornecer crédito aos artesãos ou comerciantes, cujo pagamento inicial é feito muitas vezes sob a forma de mercadorias;

o dinheiro líquido – representa o pagamento dos numerários e é indispensável para o funcionamento deste circuito.

O consumo na modernidade aumenta a necessidade do dinheiro líquido e acelera a rapidez da sua circulação. O dinheiro líquido é utilizado tanto no pagamento de dívidas quanto


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para obtenção de novos créditos. De acordo com Geertz apud Santos (2008a, p. 233) ele age como “lubrificante” nas engrenagens do circuito inferior. A questão que se coloca é que uma vez que o capital circula rapidamente há uma consequente baixa acumulação e, dessa maneira, se mantém as condições de pobreza. O crédito bancário não é facilmente acessado pelo circuito inferior, tendo em vista a instabilidade de garantias de pagamento que o segmento pode oferecer. Nesse cenário os atacadistas assumem grande relevância, já que oferecem maior flexibilidade aos que buscam tomar empréstimo. Quanto mais se desce na escada dos intermediários, mais diminuem o tamanho das operações e os prazos, e mais aumentam os riscos e as taxas de juros. Assim, o medo permanente dos atacadistas e semi-atacadistas de não serem reembolsados restringe os fornecimentos em valor e os limita a uma clientela conhecida (SANTOS, 2008a: 239). Esse tipo de crédito pode ser na forma do adiantamento de mercadorias e os prazos geralmente são curtos. O endividamento ocorre, na maioria das vezes, justamente pelo desejo de poder consumir. De acordo com Santos (2008a) os pobres tendem a endividar-se para despesas correntes (pagamento do cartão de crédito) enquanto que os ricos se endividam para as chamadas despesas ocasionais (despesas com viagens). O pequeno comerciante, no entanto, possui margens de lucro mais elevadas e alertase para o fato de que os trabalhadores de rua podem ainda possuir mais lucros que estes. Isto acontece porque o vendedor de rua, nos termos utilizados por Milton Santos, pode escolher os produtos que irá comercializar de acordo com seu interesse, enquanto os pequenos comerciantes precisam de uma maior variedade para expor. Entretanto, o vendedor de rua conta com maior instabilidade, já que pode passar dias sem vender nada. A margem de lucro por unidade pode ser elevada, mas o lucro final pode ser nulo. Nesse sentido, Matta (1997) ao tratar das diferenciações do comportamento do indivíduo na casa ou na rua, aborda a situação do comércio, onde existe o comportamento de tentar obter vantagem quando efetuado com um estranho na rua, o que não ocorreria caso houvesse uma proximidade de parentesco ou amizade entre as partes (em casa). A relação com o tempo é algo que também precisa ser destacado nos dois circuitos. Estocar produtos pode representar um grande prejuízo para os pequenos trabalhadores de rua. Um fenômeno comum é a possibilidade de o consumidor adquirir a mercadoria muito abaixo de seu valor no final do dia, quando a falta do lucro é recompensada pela obtenção do dinheiro líquido. É nesse sentido que ressalta-se a importância da pechincha enquanto mecanismo de negociação entre vendedor e comprador.


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Se retomarmos o pensamento marxista, temos que a mercadoria é a forma elementar da riqueza, objeto que satisfaz necessidades humana e que rege o capitalismo. Toda mercadoria é considerada no aspecto da qualidade e da quantidade. Para Santos (2008a), a importância de uma mercadoria varia ainda de acordo com a característica do produto: se ele é perecível ou sazonal, indispensável, necessário ou útil. Este aspecto é fundamental se observarmos as mercadorias comercializadas pelos trabalhadores de rua, que variam tanto sazonalmente quanto na medida em que necessidades de consumo são criadas. Santos (2008a) considera que a importância do circuito inferior se dá de maneira proporcional à massa de população que dele faz parte. As atividades dependem totalmente do mercado local enquanto que no circuito superior a preocupação é controlar o mercado de maneira ampla. Há grande fluidez no emprego no circuito inferior e a velocidade com a qual o dinheiro circula pode indicar uma baixa acumulação e, consequentemente, uma perpetuação da situação de pobreza entre os indivíduos que nele se inserem. A complementaridade entre os dois circuitos não exclui a concorrência entre ambos, pois os mesmos estão em um equilíbrio instável que os conduz a uma relação dialética. A observação do circuito inferior feita aqui, através da atividade do trabalhador de rua possui estreita vinculação com o espaço, pois implica a apropriação da rua por estes trabalhadores. A singularidade deste lugar estará expressa nos significados que esta apropriação pode ter. Este é um aspecto bastante importante e que será destacado, sobretudo porque esta pesquisa busca demonstrar a relação da economia com o espaço, através da apropriação do espaço público pelo trabalhador de rua. Neste sentido, o presente capítulo seguirá com a abordagem sobre o espaço público, de modo a construirmos os alicerces que proporcionarão tais relações, além de servir de subsídio para entendermos o caso específico dos trabalhadores de rua na cidade de Salvador.

1.2 A economia no espaço, o trabalho na rua

A atividade que se constitui como objeto de pesquisa desta dissertação não é observada em qualquer lugar. Há particularidades onde ela ocorre que perpassam pela noção do espaço propriamente dito. O que é o espaço? Explorar esta questão é um exercício que, sozinho, daria uma dissertação. Portanto, o que se pretende nessa seção é discutir algumas concepções teóricas que consideramos chave para compreensão do fenômeno estudado. Assim,


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trabalharemos a noção do espaço de maneira introdutória considerando, sobretudo, o que nos diz Milton Santos e Henri Lefebvre. Posteriormente, avançaremos na discussão sobre o espaço público, local onde se expressa a atividade do trabalhador de rua. De acordo com Santos (1985), o espaço pode ser compreendido como uma instância da sociedade, um fator da evolução social que contém e é contido pelas demais instâncias. A essência do espaço é, portanto, social, onde ele constitui-se não somente pela paisagem (configuração geográfica), mas pela interação da mesma com a sociedade. As formas geográficas contêm frações do social e adquirem conteúdo, conformando-se no que o autor nomeia de formas-conteúdo. Dessa maneira, são permanentemente modificadas na medida em que ganham novos conteúdos, o que nos permite fazer a leitura de que o espaço pode ser compreendido então como uma interação de forma e conteúdo. Cada localização é resultado da apreensão de um momento do movimento do mundo em um ponto, um lugar, e este muda sua significação conforme o movimento social se desenvolve. Cada lugar tem seu papel no processo produtivo e quanto mais diminuirmos a escala de análise com relação a um lugar, mais níveis de forças poderão ser observados atuando sobre ele. Esse papel, no entanto, dá-se mais no nível das trocas do que da produção propriamente dita. Santos (1985) nos alerta para a necessidade de entendermos os efeitos dos processos (tempo e mudança), especificando as noções de forma, função e estrutura, enquanto elementos fundamentais para compreensão da organização espacial. Sucintamente, podemos dizer que a forma é o que vemos, o aspecto visível de uma coisa. A função está relacionada à atividade que espera-se ser realizada pela forma, com maior ou menor vinculação a ela. A estrutura é o modo de organização vigente e, por fim, o processo é uma determinada ação no tempo. O conjunto dessas categorias compõe o que podemos compreender como sendo o espaço. O espaço, por sua vez, enquanto produto social está sob permanente processo de transformação e é o resultado do que a sociedade produz.

[...] o tempo (processo) é uma propriedade fundamental na relação entre forma, função e estrutura, pois é ele que indica o movimento do passado ao presente [...] O tempo vai passando, mas a forma continua a existir. Consequentemente, o passado técnico da forma é uma realidade a ser levada em consideração quando se tenta analisar o espaço. As mudanças estruturais não podem recriar as formas, e assim somos obrigados a usar as formas do passado (SANTOS, 1985:54).


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As formas podem ser entendidas ainda como uma cristalização do tempo. Santos (1985) afirma que elas permanecem no aguardo do próximo movimento dinâmico da sociedade para assumir uma nova função, de modo que dificilmente são destruídas ao longo do processo histórico, tornando-se o que ele chama de rugosidade, cujo valor muda na proporção em que muda a estrutura. As diferentes maneiras como este espaço é apropriado, por sua vez, são resultado da maneira como a sociedade se organiza, o que perpassa pela distribuição de renda entre os indivíduos e por suas necessidades de produção e consumo. Para Lefebvre (2000) o espaço não é um lugar passivo, pois nele são contrapostas as forças das relações sociais, onde a hegemonia de uma classe se superpõe sobre a sociedade como um todo. Para este autor, o espaço é antes de tudo um produto social, com características próprias de cada sociedade. Ele contém lugares apropriados pelas relações sociais de reprodução social e pelas relações de produção que lhes engendram, organizadas de acordo com a divisão do trabalho. As situações de produção e reprodução não podem se separar, pois a divisão de trabalho repercute na família, na sociedade e, de forma inversa, a organização da sociedade interfere na divisão do trabalho. No espaço estão contidas representações de interferência entre relações sociais (produção e reprodução), que o complexificam. O processo de produção do espaço, fundamentando-se nas relações de trabalho entre homem e natureza, coloca-se como uma relação que deve ser mais amplamente entendida. Neste sentido, Lustoza (2012) nos auxilia no entendimento do conceito de reprodução social e relações de produção. A autora menciona que, na medida em que a sociedade produz o espaço, passa a ter dele uma determinada consciência. Para ela, os homens ao produzirem seus bens materiais e reproduzindo-se enquanto espécie, produzem o espaço geográfico, meio e condição para reprodução das relações sociais. Este espaço, por sua vez, se diferencia conforme cada momento histórico, e de acordo com o estágio de desenvolvimento das forças produtivas. Contudo, a produção da vida não envolve apenas a produção de bens para satisfação material, ela significa a produção da própria humanidade do homem. O plano da produção assim, articula a produção em termos de desenvolvimento das relações de produção de mercadorias e de produção da própria vida. O espaço, para Lefebvre (2000), pode ser compreendido de duas maneiras. A primeira delas é identificada por ele como sendo o espaço abstrato. Este é o espaço do capitalismo, que contém o mundo da mercadoria, cuja lógica põe sua potência em termos de dinheiro e de Estado político. O Estado, por sua vez, se sustenta na autoridade que exerce sobre o espaço e o espaço, abstrato, apóia-se nas redes bancárias, nos centros de negócio e unidades


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de produção. Ele funciona como um conjunto de coisas e signos, com relações próprias e formais, que pode reduzir o significado do vivido, já que tende a homogeneização das relações. Na medida em que o espaço abstrato reduz as diferenças e particularidades por tender a homogeneidade, um novo espaço, diferencial, pode nascer justamente da acentuação das diferenças que o abstrato produz. De acordo com Lefebvre (2000:64; tradução nossa) é o espaço diferencial que “reúne aquilo que o espaço abstrato separa: as funções, os elementos e momentos da prática social”. Esse espaço novo, portanto, discernirá o que o espaço abstrato confunde, pois nele as diferenças não irão se basear em particularidades, mas irão emergir da luta política cotidiana e vivida. Assim, para o autor, a luta de classes pode ser lida claramente no espaço. E é ela, a luta de classes, que impede que o espaço abstrato se estenda ao planeta inteiro apagando as diferenças, pois ele mesmo as produz internamente ao crescimento econômico. Diante disso, compreendemos que é através da construção do espaço diferencial que se poderá afirmar o valor de uso do espaço, em contraponto a tendência do espaço abstrato de transformá-lo apenas em valor de troca. Dando continuidade à discussão do espaço em Lefebvre, temos que as representações das relações de produção, que são também relações de poder, podem ser percebidas no espaço, sob diversas formas, sejam elas materializadas sob a forma de edifícios, monumentos, praças ou até mesmo obras de arte. Lefebvre (2000) estabelece uma triplicidade de características sobre o espaço que são: a prática social, as representações do espaço e os espaços de representação, também identificadas enquanto espaço “percebido”, “concebido” e “vivido”, brevemente apresentadas a seguir. Segundo Lefebvre (2000), a prática social abarca a produção e a reprodução, em que espaços específicos e os conjuntos sociais próprios de cada formação social concebem à relação de cada membro da sociedade ao seu espaço. Pode-se descobrir a prática social de uma sociedade se decifra-se o seu espaço. E a prática social no neocapitalismo associa, no espaço “percebido”, a realidade cotidiana (tempo) e urbana (trajetos que ligam os locais de trabalho, da vida privada e do lazer), criando uma separação surpreendente entre os lugares que liga, o que só pode ser examinado empiricamente. As representações do espaço têm a ver com a ordem que as relações de produção impõem a este espaço, ou seja, são conformadas enquanto espaço “concebido” (aquele do


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domínio dos planejadores, urbanistas e técnicos). As representações do espaço são, para o autor, dominantes na sociedade, cuja influência é bastante específica sobre sua produção. Os espaços de representação, por sua vez, podem ser entendidos como o espaço do “vivido”, onde estão inseridos os simbolismos ligados ao lado clandestino da vida social. É o espaço do habitante, dos usuários, portanto, dominado, que a imaginação tenta modificar e apropriar. É o espaço que tem um centro afetivo, contendo os lugares das situações vividas, constituindo-se como obras simbólicas para os indivíduos. Essa triplicidade de características do espaço trazidas por Lefebvre é capaz de nos levar a leituras fundamentais, sobretudo quando forem relacionadas com aquilo que estudaremos nos próximos capítulos, onde focaremos principalmente na relação entre o espaço concebido e vivido. Assim, avançando na teoria para o ponto que desejamos chegar, podemos prosseguir com o que nos diz Santos (1985). Para ele, cada lugar adquire uma significação decorrente do movimento social em determinado período histórico (tempo) e possui um papel próprio no processo produtivo que é formado pela produção propriamente dita, circulação, distribuição e consumo. A maneira como os circuitos produtivos ocorrem, ajudam a compreender a própria organização do espaço, pois “o espaço está na economia, assim como a economia está no espaço” (Santos, 1985:1). Neste sentido, será preciso também abordar duas importantes características deste lugar para ampliar nossa compreensão sobre a dinâmica existente no espaço apropriado pelo trabalhador de rua: a primeira se refere à localização da atividade estudada na cidade e a segunda se refere à particularidade do espaço onde ela ocorre. A atividade dos trabalhadores de rua está fortemente presente no Centro Antigo da cidade de Salvador5, de modo que é preciso compreender o significado que este lugar possui em termos de polarização de atividades, usos e consumo. A produção de bens visando o consumo do excedente e, consequentemente, a obtenção do lucro tem sua origem com o modo de produção capitalista. A divisão social do trabalho distinguiu os ofícios da agricultura e os ofícios que se instalaram na cidade. Ferrari (1977) questiona se foi o comércio que originou a cidade ou o contrário que aconteceu. De acordo ainda com autor supracitado o desenvolvimento dos transportes urbanos permitiu a concentração do comércio a varejo, o que deu origem às zonas comerciais geralmente situadas no centro das cidades. Os centros urbanos coincidem, portanto, muitas vezes com o

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A localização da atividade em Salvador será apresentada no próximo capítulo desta dissertação.


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núcleo inicial das cidades e possuem a histórica e marcante característica de ser o lugar de organização do comércio local, favorecendo a circulação da mercadoria 6. Para Santos (2008b:198) “o ‘centro’ da cidade se caracteriza por uma paisagem arquitetural e humana muito mais completa”, constituindo-se como o nódulo principal da cidade com forte concentração de serviços e comércios nos países subdesenvolvidos, que tende a monopolizar todas as funções mais importantes da cidade. Muitos autores consideram que os centros antigos ou tradicionais (aqueles que se formam praticamente junto com a cidade) sofrem um esvaziamento ou perda de importância na medida em que a evolução urbana acontece e novas centralidades se formam ou são criadas. Aqui especificamente não se pretende tratar de um “esvaziamento” do centro de Salvador, mas sim numa mudança no perfil da população que utiliza o centro, pois tomando como exemplo a localidade analisada, observa-se que na realidade houve uma modificação no status social da população que usufrui deste espaço. Se antes era uma população abastada que se beneficiava do Centro, atualmente observa-se que são as classes de rendas médias e baixas que o fazem. Como afirma Lefebvre (2001), esses centros tradicionais podem se transformar, mas continuam sendo centros de intensa vida urbana, onde a função econômica é a função essencial.

[...] O núcleo urbano torna-se, assim, produto de consumo de uma alta qualidade para estrangeiros, turistas, pessoas oriundas das periferias, suburbanos. Sobrevive graças a este duplo papel: lugar de consumo e consumo do lugar. Assim, os antigos centros entram de modo mais completo na troca e no valor da troca, não sem continuar a ser valor de uso em razão dos espaços oferecidos para atividades especificas. Tornam-se centros de consumo. O ressurgimento arquitetônico e urbanístico do centro comercial dá apenas uma versão apagada e mutilada daquilo que foi o núcleo da antiga cidade, ao mesmo tempo comercial, religioso, intelectual, político, econômico (produtivo). A noção e a imagem do centro comercial datam de fato da idade média. Corresponde à pequena e média cidade medieval. Mas hoje o valor de troca prevalece a tal ponto sobre o uso e o valor de uso que quase sempre suprime este último. (LEFEBVRE, 2001: 20)

É possível fazer uma analogia ainda com relação a teoria dos espaços opacos e luminosos. Para Santos e Silveira (2003), os espaços luminosos são aqueles que acumulam densidades técnicas e informacionais, estando aptos a atrair maior conteúdo em capital, tecnologia, informação e atividades que fazem parte do universo formal. São as características 6

Existem abordagens clássicas que tocam a noção da centralidade, como são, por exemplo, as desenvolvidas na Escola de Chicago por Park e Burgess (1925) ou por Christaller (1933), que avançaram na teoria, mas não serão aprofundadas neste trabalho, pois não consistem em seu foco teórico. No entanto é importante destacar que essas discussões sobre a estrutura urbana propõem modelos espaciais e tratam do centro da cidade como um importante centro de negócios.


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assumidas pelas novas centralidades. No caso dos espaços opacos, as atividades presentes no espaço luminoso estão teoricamente ausentes e existe, por analogia, uma maior presença de atividades informais que é o que pode ser observado nos antigos centros, como é o caso de Salvador. A concentração de diversos usos e serviços no centro o torna um lugar bastante atrativo e acessível, capaz de despertar o sentimento de pertencimento nas pessoas que o frequentam cotidianamente. Costuma ser, portanto, o local da cidade mais propício para realização de trocas, sejam elas econômicas, sociais e afetivas, por exemplo. As relações que se expressam no centro são influenciadas e influenciam mutuamente na forma como o espaço é percebido e vivido por todos aqueles que o frequentam. Ter em vista a importância da dinâmica que este lugar cria é bastante importante para compreendermos a sua apropriação pelos trabalhadores de rua. Contudo, não poderemos nos furtar a uma particularidade do espaço do qual estamos tratando, ou seja, da rua, do espaço público. Para compreender o que é o espaço público e o que a apropriação desse espaço pode significar, precisamos também nos aproximar minimamente do que significa a distinção entre as esferas pública e privada da vida. Para isso recorreremos principalmente a contribuição de Richard Sennett, sem desprezar o que também nos diz Hannah Arendt. Sennett (2014) acredita que a história destas duas palavras é fundamental para entender as transformações ocorridas nos últimos séculos no domínio público. Segundo ele, as primeiras ocorrências da palavra “público” o revelam como algo comum na sociedade. Posteriormente, em Roma, “público” era aquilo que estava exposto à observação geral. Retomando o pensamento grego, Arendt (2007) explica que com a cidade-estado o homem recebe além da sua vida privada (família e casa), uma segunda vida (bios politikos) e que a partir de então, o homem pertence a essas duas ordens de existência, onde diferencia-se “aquilo que lhe é próprio (idion) e o que é comum (koinon)” (ARENDT, 2007:33). Essa distinção entre as esferas pública e privada da vida por sua vez significam uma separação entre a família e a política.

O que impediu que a polis violasse as vidas privadas dos seus cidadãos e a fez ver como sagrados os limites que cercavam cada propriedade não foi o respeito pela propriedade privada tal como a concebemos, mas o fato de que, sem ser dono de sua casa, o homem não podia participar dos negócios do mundo porque não tinha nele lugar algum que lhe pertencesse. (ARENDT, 2007:39)


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Sennett (2014), ainda sobre a historicidade dos significados de “público” e “privado”, prossegue nos contando que no século XVI o termo “privado” foi usado com o sentido de distinguir os privilegiados. Por volta do século XVII “público” e “privado” já se opunham de maneira semelhante ao que ocorre na atualidade. “Público” significava que algo estava disponível para observação de todos, enquanto que “privado” se referia a uma região protegida da vida, referente à família e aos amigos. Já no século XVIII a palavra “público” adquire o sentido moderno, onde significa não somente uma parte da vida separada do domínio da família e dos amigos, mas também passa a significar um domínio público mais amplo incluindo uma diversidade grande de pessoas estranhas. O “público” passa então a significar uma vida para além da família e dos amigos íntimos, aproximando-se da região da vida pública onde grupos semelhantes e diferentes podem ter contato. Para Arendt (2007) a esfera pública significa comum, onde o “público” em primeira instância pode ser visto e ouvido em todo lugar e em segundo é aquilo que é comum a todos, o próprio mundo e o lugar de cada um dentro dele. Este mundo comum reúne os indivíduos e ao mesmo tempo evita que ocorra um choque entre eles.

Só a existência de uma esfera pública e a subsequente transformação do mundo em uma comunidade de coisas que reúne os homens e estabelece uma relação entre eles depende inteiramente da permanência. Se o mundo deve conter um espaço público, não pode ser construído apenas para uma geração e planejado somente para os que estão vivos: ele deve transcender a duração da vida de homens mortais (ARENDT, 2007:64).

Já o sentido moderno de “privado” aparece sob o formato de um círculo de intimidade. Esta esfera privada se relaciona com a propriedade, onde o termo “privado” é considerado na acepção de “privação”, que reside na ausência dos outros e induz à solidão. A vida pública, ainda para Arendt (2007), só se tornaria possível na medida em que as necessidades urgentes da própria existência (por meio da riqueza privada) fossem atendidas e o meio para atingi-las se dá, portanto, através do trabalho. Para Sennett (2014:36): “Juntos, o público e o privado criavam aquilo que hoje chamaríamos de um “universo” de relações sociais”, onde os indivíduos mantêm certo equilíbrio entre as “exigências da civilidade” (comportamento público) e as “exigências da natureza” (família). Isto implica uma forma de relação diferenciada entre os estranhos, porém


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fazendo parte desse conjunto de estranhos (vida pública), adversa ao tipo de relação estabelecida em família (vida privada). Arendt e Sennett contrapõem o espaço público, lugar de ação política, ao lugar da família e das questões relativas à privacidade do indivíduo. Os pontos de interseção dos pensamentos dos autores anteriormente citados levam-nos a entender o espaço público, portanto, como o palco onde se estabelecem uma diversidade de relações sociais ou ainda como sendo locus da comunicação, encontros ocasionais e democracia. Essa importante pontuação conceitual entre as esferas pública e privada nos conduz com mais consistência à problematização acerca da tensão e dialética que está contida na apropriação do espaço público, mas no que, em essência, ele consiste? Borja (2003) relaciona a noção do espaço público com a cidade e com a noção de cidadania, entendida como um conceito do direito público. Ele trata da dialética existente entre os conceitos de cidade, cidadania e espaço público e afirma que quanto mais uma cidade possua espaços públicos, mais ela terá mais cidadania e também mais conflitos haverá sobre o uso deste espaço. A cidade então, pensada enquanto cenário, constitui-se enquanto um verdadeiro espaço público que quanto mais aberto a todos, mais expressará a democratização política e social. Isto porque, para o autor, o espaço público é o local em que a expressão e a representação da sociedade, considerando tanto dominados quanto dominantes, se tornam visíveis. É um lugar de relação e de identificação entre as pessoas, de contato, de animação urbana e até mesmo de expressão comunitária. O espaço público é um conceito intrínseco ao urbanismo, e conforme Borja (2003), costuma ser erroneamente confundido com espaços verdes, equipamentos ou com o próprio sistema viário, o que se deve ao funcionalismo em que se baseia o urbanismo moderno, que desqualificou o espaço público na medida em que lhe designou usos específicos. O espaço público moderno resulta de uma separação entre a propriedade privada e o domínio público. A dinâmica das cidades e os comportamentos das pessoas que nela habitam, podem criar espaços públicos que a princípio não seriam pensados como tal pelo planejamento. Isto pode ser observado em espaços intersticiais entre edifícios, no entorno de equipamentos públicos, ou em locais abandonados, por exemplo. O que define o espaço público, portanto, é seu uso e não seu status jurídico.


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El espacio público supone pues dominio público, uso social e colectivo y multifuncionalidad. Se caracteriza físicamente por su accesibilidad, lo que lo convierte en un factor de centralidad. La calidad del espacio público se podrá evaluar sobre todo por la intensidad y la calidad de las relaciones sociales que facilita, por su capacidad para generar mixturas de grupos y comportamientos, por su cualidad de estimular la identificación simbólica, la expresión y la integración cultural. Por ello, es necesario que el espacio público se piense como obra de cualificación del entorno y de calidad intrínseca, como son la continuidad en el espacio urbano y su facultad ordenadora, la generosidad de sus formas, de su diseño y de sus materiales y la adaptabilidad a usos diversos a través del tiempo (BORJA, 2003:124).

Entendemos que o fator de centralidade mencionado pelo autor está numa ordem de proximidade com o habitante, tanto se pensarmos em espaços públicos de maior atração, como grandes praças e parques com capacidade de atrair habitantes de diferentes partes da cidade, quanto se pensarmos na escala de um bairro, por exemplo, onde determinadas localizações se convertem enquanto espaços públicos atraindo seus moradores. Neste caso, podemos observar situações em que espaços planejados para serem destinados a função do lazer, não são assim usados pelos moradores por diversos motivos, no que pode-se incluir desde o fato de estarem localizados em locais com grande fluxo de automóveis ou não oferecerem segurança, por exemplo. Em seu lugar, ruas por onde não transitam carros podem se converter em verdadeiros espaços públicos, onde crianças brincam, amigos se reúnem em diferentes momentos do dia, vizinhos se encontram, e diversos tipos de trocas sociais se realizam. Para Borja e Muxí (2000) o espaço público não pode ser considerado como um espaço residual, pois é o local que permite o passeio e o encontro, além de ordenar cada zona da cidade, dando-lhes sentido. É um lugar ao mesmo tempo físico, simbólico e político. Para estes autores, a história de uma cidade se confunde com a história do seu espaço público, pois é nele que se materializam as relações entre os habitantes e o poder público. Deve, portanto, garantir a apropriação por parte de diferentes coletivos sociais e culturais, de idade e de gênero, em termos de igualdade. Os espaços públicos têm seu significado e utilização modificados, sobretudo pelas alterações nas formas como são utilizados ao longo do tempo. Para Lefebvre (2001), a cidade é uma “obra” e esta contrasta com a orientação que há na direção da acumulação, do comércio, das trocas e dos produtos, pois a obra se constitui em valor de uso, enquanto que o produto é o valor de troca.


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A cidade e a realidade urbana dependem do valor de uso. O valor de troca e a generalização da mercadoria pela industrialização tendem a destruir, ao subordiná-las a si, a cidade e a realidade urbana, refúgios do valor de uso, embriões de uma virtual predominância de uma revalorização do uso (LEFEBVRE, 2001:14).

O espaço público para Lefebvre é, portanto, em essência social, onde estão contidas as representações das relações de classes estabelecidas pelo modo de produção vigente. Em sentido semelhante, para Serpa (2007), ao analisarmos o espaço público é preciso ter em vista que forma e conteúdo são indissociáveis e que sua compreensão perpassa os aspectos da “concretude” da esfera pública urbana. O autor supramencionado, fundamentando-se em Henri Lefebvre, acredita que ocorre uma homogeneização dos espaços urbanos, onde reina a repetição, o que ocasiona a baixa diversidade na morfologia urbana, e o repetitivo substitui as características particulares dos lugares. Esse espaço homogêneo (abstrato) se contrapõe ao espaço do vivido, onde ocorrem as atividades cotidianas. É como se num mesmo lugar estivessem contidos um ideal (planejado) e uma realidade (espontânea), onde o “ideal” é produzido de maneira a, muitas vezes, repelir o uso, como é o caso observado na concepção das reformas ocorridas em Paris com o “urbanismo” haussmaniano, comentadas por Lefebvre (2001). Já a “realidade” é aquilo que acontece espontaneamente, independente da vontade do planejador, ou seja, a forma como o espaço é apropriado pelos indivíduos. Sennett (2014) afirma que, ao organizar o espaço urbano, o aspecto do domínio público é muitas pensado como se fosse desprovido de sentido pelo planejamento. Nesse contexto, as áreas a céu aberto são tratadas como espaços vazios, lugares de passagem e não de uso ou permanência. O referido autor chega a transcrever as palavras de um dos encarregados do planejamento do centro da Défense, maior centro financeiro de Paris, para o qual o solo é definido como “nexo de apoio ao fluxo de tráfego para o conjunto vertical” (SENNETT, 2014:30). Sennett (2014) conclui sobre esta afirmação que o espaço público se tornou na maioria dos casos, uma derivação do movimento. Nesse sentido, para Sennett (2014), o automóvel é colocado como um fator de grande influência, pois foi por intermédio dele que se deu uma facilidade de movimentação desconhecida até o momento de sua massiva utilização. O fato de poder utilizar o carro para os deslocamentos diários, associado às atribuições da vida moderna, provoca um grande impacto no uso dos espaços públicos, sobretudo da rua que se torna um espaço sem sentido, pois esta


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forma de movimentação substitui o estar na rua e vivenciar este lugar. As cidades, através do massivo uso do automóvel e ao privilégio dado a esse meio de transporte em detrimento das demais formas de deslocamento, passam então a ser pensadas muito mais para uso individual do que para dar suporte à vida coletiva. Para Sennett, o isolamento proporcionado pelo automóvel particular na medida em que o mesmo produz no inconsciente a ideia de que se isolando em seu interior para se deslocar com liberdade (todo o ambiente circundante perde o seu significado) contribui para o que chama de morte do espaço público, pois agrava a tendência à diminuição da sociabilidade. Além do automóvel, outros fatores como a insegurança, se somam para corroborar essa tal morte do espaço público e são teorizados por diversos autores. Contudo, esta visão de morte do espaço público, embora mencionada aqui, não será aprofundada por nós, pois o que observamos é justamente o oposto: um espaço público vivo, pulsante, repleto de usuários e contradições. As diferentes formas de organização do espaço público, por sua vez, revelam as contradições das transformações sociais. Cabe-nos aqui, portanto, caracterizar o local que mais do que um lugar de passagem, é também lugar de uso, permanência (ainda que transitória) e onde ocorrem intensas trocas comercias e sociais, aquele que é o primeiro lugar no qual nos encontramos assim que deixamos o ambiente privado de nossas casas e nos encontramos em meio aos outros diferentes de nós: a rua. Segundo Santos (1985) entre os pólos do “público” e do “privado” se estabelecem relações de apropriação diferenciadas. Para ele, as atividades que se opõem às ideias de intimidade e privacidade, tais como festas, encontros e jogos, encontram na rua o lugar ideal para seu acontecimento. De acordo com Santos & Vogel (1985:24) “a palavra rua vem do latim ruga. Primitivamente o vocábulo significava o sulco situado entre dois renques de casas ou muros em um povoado qualquer”. Para Lamas (1993), a rua é um lugar de circulação, ela é estruturadora do traçado urbano e se constitui em um dos elementos mais fáceis de serem identificados numa cidade, estando contidas no próprio gesto de projetar. Sobre a importância da rua, Carlos Nelson esclarece:

[...] As ruas são importantíssimas. Não se pode conceber uma cidade sem elas. Servem para ligar os diversos pontos de interesse particular ou semipúblico, conformando uma rede de canais livres e de propriedade coletiva. Se não existissem, não haveria troca de espécie alguma, pois servem de suporte ao


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deslocamento de pessoas, veículos, mercadorias, informações. Mas não é só isso: territórios de ninguém e de todo mundo, são palco de onde se desenvolvem dramas e representações da sociedade (SANTOS, 1988:91).

A rua pode ser compreendida como o lugar da novidade, do inesperado para os autores Santos & Vogel (1985). Isso se deve porque ela é o lugar do outro, que pode ser tanto o estranho como também aquele com quem se mantém algum tipo de relação social. Na rua o social pode se apresentar como espetáculo e daí gerar um fascínio, pois este lugar permite que personalidades sejam assumidas e que diferentes papéis sejam desempenhados. A rua para esses autores é “palco por excelência” (SANTOS & VOGEL, 1985:83). Para Schvarsberg (2011) a confluência dos diversos desejos dos homens revela que a rua está sujeita à própria dinâmica do sistema capitalista. O autor faz em sua dissertação de mestrado a apresentação de quatro modelos de rua, de modo a retratar a maneira como uso deste espaço foi se transformando ao longo do tempo. A caracterização desses modelos será apenas brevemente apresentada, no entanto consideramos que vale a pena demonstrá-los, pois a historicidade das transformações nas formas de seu uso e de sua apropriação são importantes para nós. Os quatro momentos da rua abordados pelo autor são: 

Boulevard: este modelo de rua surge no século XIX e se caracteriza por ruas longas e avenidas que estruturam a circulação. Ele separa as calçadas, que continham arborização, iluminação pública, sistema de drenagem, esgotamento sanitário e abastecimento de água, do lugar destinado à passagem das carroças.

Autopista: surge já no século XX sob a perspectiva do trânsito mais intenso e da popularização do automóvel. Defendido por Le Corbusier e presente na Carta de Atenas, este modelo propunha um conjunto hierárquico de vias de maneira a organizar e deixar fluir o tráfego de veículos, além de ligar de modo eficiente os pontos que abrigavam diferentes funções urbanas. Ao longo dos trajetos criados avolumavam-se ilhas de comércio e serviços, com bolsões de estacionamentos, formando um contexto onde surgem e se popularizam, posteriormente, os shoppings centers.

Rua de bairro: é característica do período a partir da década de 1950. Sua concepção faz parte do Movimento Moderno que teve como alvo o urbanismo funcionalista da Carta de Atenas. Este tipo de via se caracteriza pela valorização da simplicidade da rua comum, reforçando as relações de vizinhança e o comércio popular. Neste modelo, se indicava que as calçadas fossem suficientemente largas para abrigar diversos tipos de apropriação, como, por exemplo, o das crianças. Quadras curtas, lotes menores e possibilidades de se


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combinar diferentes tipologias seriam responsáveis por aumentar o contato com o público, além de criar uma rede de respeito e confiança. 

Rua de pedestres: este modelo está associado ao modelo da autopista. Surgiu na década de 1960 devido às preocupações com os centros urbanos, uma vez que a mobilidade pelo automóvel criava uma série de problemas para estes locais, como, por exemplo, os congestionamentos. A importância das ruas de pedestres se dá, portanto, porque dentro de uma ótica capitalista em que as cidades passam a ser consumidas, sobretudo nos seus centros históricos, é preciso criar condições para que as pessoas possam circular. As ruas de pedestre são difundidas em todo mundo, sobretudo pelo uso intensivo

do automóvel na sociedade moderna. É neste espaço e nas ruas de bairro que os habitantes de uma cidade podem encontrar toda uma diversidade de situações e possibilidades de encontro com o diferente e o novo. Porém, para que essa dinâmica da vida possa se expressar é fundamental que o ambiente circundante não seja monótono. Nesse sentido, podemos considerar que além do uso intensivo do automóvel, capaz de isolar o indivíduo do meio externo, os grandes edifícios conhecidos popularmente como espigões influenciam diretamente nas relações de vizinhança, pois diminuem as possibilidades de sociabilidade, já que isolam os edifícios da rua e frequentemente criam uma série de atrativos em seu interior no sentido de evitar que seus moradores precisem sair, sob a alegação de que entre seus muros há maior segurança. Jacobs (2011) ao escrever sobre a cidade a partir de suas observações do cotidiano e vivência como moradora do Greenwich Village em Nova York, afirma que, para que uma rua tenha segurança como trunfo à presença de desconhecidos, sua infraestrutura precisa conter três características principais: 1) ter nítida a separação entre o espaço público e o privado; 2) existir olhos para a rua, ou seja, as janelas dos edifícios devem estar voltados para a rua; e 3) a calçada deve ter sempre usuários transitando por elas. As ruas das cidades devem lidar com os desconhecidos, resguardando não apenas aqueles estranhos que depredam, mas também protegendo os desconhecidos pacíficos e bem intencionados que por elas transitam, pois todos precisam usar as ruas. Essa situação desenhada por Jacobs (2011) coloca uma questão importante no que se refere à vigilância, e consequente uso das ruas. Como ela mesma diz: não se pode forçar as pessoas a vigiar ruas que elas não estejam interessadas em vigiar. O requisito básico da vigilância proposto por ela então, é de que haja um número considerável de estabelecimentos e de locais públicos dispostos ao longo das calçadas, que possam ser utilizados também durante


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a noite. Esses estabelecimentos, por sua vez, contribuem para dar às pessoas que habitam o lugar motivos concretos para utilizar e aumentar, conseqüentemente, a segurança das calçadas, pois “a presença de pessoas atrai outras pessoas” (JACOBS, 2011:38).

A vida na rua, tanto quanto eu possa perceber, não nasce de um dom ou de um talento desconhecido deste ou daquele tipo de população. Só surge quando existem as oportunidades concretas, tangíveis, de que se necessita. Coincidentemente, são as mesmas oportunidades, com a mesma abundância e constância, necessárias para cultivar a segurança nas calçadas. Se elas não existirem, os contatos públicos nas ruas também não existirão. (JACOBS, 2011:75)

Jacobs (2011) observa também que para que uma rua se mantenha viva, é preciso que ela gere diversidade, ou seja, a monotonia residencial deve ser quebrada pela presença de opções de comércio variadas e de atrativos culturais. Teoricamente isso torna-se mais fácil de ser alcançado pelas cidades grandes, naturalmente geradoras de diversidade e incubadoras de novos empreendimentos e ideias. Contudo, só se verifica na prática se houverem diversas e eficientes combinações de usos econômicos na cidade. As situações capazes de gerar tal diversidade dependem, para a autora, basicamente de quatro condições essenciais: 1) atender a mais de duas funções principais (lazer, moradia e trabalho, por exemplo), o que garante que haja pessoas saindo em diferentes horários e otimiza o uso da infraestrutura disponível; 2) as quadras devem ser curtas, o que possibilita aos usuários a oportunidade de virar esquinas, ou seja, diminui-se a possibilidade de existirem ruas isoladas, separadas e desassistidas pela população; 3) uma combinação de edifícios de idades e estados de conservação diversos, o que pode gerar rendimento econômico variado, pois prédios antigos podem ser alugados por comércios ou serviços que não tem recursos para investir em novos edifícios; 4) densidade alta de pessoas, sobretudo incluindo pessoas com o propósito de morar no lugar. Este último aspecto é importante por favorecer a concentração de pessoas no bairro, que habitualmente são as que mais consomem dos pequenos comércios, o que amplia mais a diversidade de usos. Tais condições problematizadas por Jacobs (2011), mais do que garantir o uso das ruas, implicam também em sua apropriação pelos mais diversos tipos de usuários. Na rua, a apropriação de suas formas, por sua vez, pode ocorrer de diversas maneiras. Para Santos & Vogel (1985) apropriar-se de um ponto, por exemplo, em um determinado local através de uma atividade, implica particularizá-lo, ou seja, privatizá-lo, não apenas pela especialização dada por seu uso, mas também pelo tipo de vinculação ao grupo de pessoas que passa a se utilizar


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desse lugar. O que define o “ponto” é o exercício regular de uma determinada atividade. Para os autores, essa atividade pertenceria ao domínio público, pois sem ele não seria possível à criação do mesmo. Entretanto, esse ponto pode ser ou não reconhecido. No caso de não ser é a própria atividade que confere a sua significação, tornando-o passível de ser identificado. Os conceitos de apropriação, particularização e privatização quando trabalhados por Santos & Vogel (1985), contudo, talvez não tivessem a mesma distinção conceitual atual. Hoje, por exemplo, a apropriação pode não implicar necessariamente numa privatização 7. É importante ressaltar que nesta dissertação não chegaremos a discutir se a apropriação implica numa privatização do espaço público. O que nos parece importante sobre o que os autores trazem, no entanto, é justamente a definição do ponto através de uma atividade regular, que se relaciona com aquilo que observamos no caso dos trabalhadores de rua. É importante ressaltar que a apropriação aqui é entendida como o ato de tomar posse de algo que, a princípio, não lhe pertenceria ou como é o caso do espaço público, do lugar que pertence a todos. Nesse sentido, consideramos significativo mencionar a definição de Roger Chartier sobre o conceito de apropriação, que embora relacionado às suas pesquisas no âmbito da História Cultural, nos parece bem interessante por atribuir ao conceito um uso inventivo e criador. Ele nos diz:

Existe a apropriação no sentido da hermenêutica, que consiste no que os indivíduos fazem com o que recebem, e que é uma forma de invenção, de criação e de produção desde o momento em que se apoderam dos textos ou dos objetos recebidos. Desta maneira, o conceito de apropriação pode misturar o controle e a invenção, pode articular a imposição de um sentido e a produção de novos sentidos (CHARTIER, 2001:67).

Para Chartier (2001), no âmbito da cultura, há sempre uma vontade de controle sobre a apropriação, sendo esta o resultado de uma tensão entre o desejo de controle e monopólio (do compositor de uma música ou autor de um livro, por exemplo) e a vontade de conquista (de quem escuta a música ou lê o livro). Isto se dá porque, do lado de quem cria, há a tentativa de fixar um sentido único para a obra, e a apropriação, que é a forma como as pessoas tomam para si o sentido da obra, e que dificilmente pode ser controlada. Para Chartier, portanto, a apropriação se dá nesse conflito.

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Privatizar tem o sentido de tornar particular, não público. Já apropriar tem o sentido de tornar algo próprio, apoderar-se de algo.


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No nosso caso estamos falando do espaço público, e nele verificamos o conflito latente entre o concebido pelo planejamento urbano e as formas como esse mesmo espaço é vivido e apropriado pelas pessoas. Dessa ambiguidade podem resultar tanto praças abandonadas quanto estacionamentos apropriados por crianças para brincadeiras, por exemplo. Assim, da mesma forma que é possível usar uma caixa de fósforos para fazer música, os indivíduos são capazes de tomar para si, de apropriar-se de espaços, para desenvolver outros usos que não os inicialmente propostos pelo planejador. Vimos na seção anterior que a industrialização tardia nos países em desenvolvimento destruiu as atividades tradicionais, mas não foi capaz de absorver a força de trabalho de toda a população que migrou para as cidades, sendo a favela como símbolo principal desse processo. Já nos países desenvolvidos, segundo Lefebvre (2001), foi a proliferação de subúrbios que se constituíram como um grande problema para a vida urbana, pois se constituíram enquanto áreas homogêneas e segregadas. Nesse sentido, para o referido autor, o problema da moradia sobressaiu e ocultou os reais problemas da cidade, aprofundados quanto mais ela é tratada em termos de setores e funções subordinados aos centros de decisão. Na medida em que a cidade se alinha pela lógica industrial, torna-se “dispositivo material próprio para se organizar a produção, para controlar a vida cotidiana dos produtores e o consumo dos produtos” (LEFEBVRE, 2001, p.82). Isso significa dizer, em nosso entendimento, que a homogeneidade do concebido pode recobrir a diversidade, uma vez que tenta lhe podar as possibilidades de apropriação. Assim temos que a forma criativa como os indivíduos podem se apropriar daquilo que lhes é oferecido pela cidade, ou pelo que é concebido para ela, pode resgatar o valor de uso nas cidades. O sentido da apropriação tratada por Lefebvre também pode ser complementado quando tomamos este conceito em outra obra sua, onde ele define que um grupo social se apropria de um espaço natural quando o modifica para servir as suas necessidades e possibilidades. Isto significa que o sentido da apropriação está relacionado às práticas que modificam um espaço natural, podendo dar origem a um outro espaço produzido pelos interesses do grupo em um determinado momento. “Nem sempre: um lugar, uma praça, uma rua podem se dizer “apropriados”. Tais espaços abundam, ainda que nem sempre seja fácil dizer em que e como, por quem e para quem eles foram apropriados” (LEFEBVRE, 2000:192). O espaço público, portanto, não pode ser entendido como um lugar estático, mas sim como um lugar praticado, cujas ruas e praças, por exemplo, podem ser transformadas pelo uso que lhes é dado, pela forma como são apropriados.


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Na medida em que a apropriação do espaço público aqui analisada se dá por meio do trabalho que é exercido na rua, cabe destacar que este é convertido por essa prática em um novo espaço de consumo e a junção de atividades formais e informais, por sua vez, contribui para a convergência de fluxos que reafirmam a centralidade no lugar onde observamos sua ocorrência. De acordo com Montessoro (2006), o comércio nas ruas existe e continuará se expandindo, sobretudo nas áreas centrais, pois o fluxo que incide neste local permite uma circulação mais acirrada. A apropriação por parte dos trabalhadores de rua, para esta autora, tem uma relação de causa e efeito que está associada ao desemprego. Ainda para a autora citada, a relação de troca com enfoque nos trabalhadores de rua modifica os usos do espaço numa relação entre indivíduos e uma sociedade que se baseia no consumo. Mesmo que a relação de troca esteja como pano de fundo, é possível estabelecer contatos com as pessoas e com o lugar apropriado (ponto), de maneira que quando se avista alguém adquirindo produtos com os trabalhadores de rua, pode-se pressupor que o contato de compra e venda cria uma imagem da pessoa com o lugar, sendo este um espaço público apropriado pelo vendedor. Diversos tipos de apropriação do espaço público são possíveis, porém nos chama atenção o fato de que no caso dos trabalhadores de rua, esta apropriação passe a ser reconhecida pelo Poder Público e passe a incorporar o quadro de políticas públicas desenvolvidas pelo Estado. Em outras palavras, isto significa que a apropriação é incorporada pelo planejamento na medida em que ela passa a ser entendida como um direito. Veremos no Capítulo 3, por exemplo, que mesmo nos locais onde o poder público permite a atividade do trabalhador de rua, outras formas de apropriação são possíveis para além da atividade do trabalho. É o caso das crianças levadas por suas mães e parentes, que além de aprenderem sobre o ofício, passam também a utilizar esse espaço para brincar. Assim também é o caso das rodas de jogos de dama criadas por trabalhadores nos momentos em que o movimento está fraco. Apesar desses exemplos não podemos deixar de considerar a permanente tensão entre a apropriação pelo trabalho em locais que a atividade dos trabalhadores não é permitida. Todavia, por ora, nos deteremos a eles e seguiremos nos próximos capítulos tratando sobre a relação entre o concebido e o vivido, ou seja, entre as ações do planejamento apresentadas criticamente no Capítulo 2 e a atividade dos trabalhadores de rua, que será apresentada tal como se configura na contemporaneidade, com base em dados empíricos que revelam sua caracterização e funcionamento no Capítulo 3.


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2 O ESPAÇO PÚBLICO E O TRABALHO DE RUA EM SALVADOR: CARACTERIZAÇÃO, LEGISLAÇÃO E PLANEJAMENTO No Capítulo 1 tentamos evidenciar a relação existente entre a informalidade e o espaço público numa perspectiva predominantemente teórica, onde foi possível observar que a apropriação se dá, sobretudo, pelo exercício de um uso novo e distinto do que aquele que teria sido concebido para um determinado lugar. Neste capítulo agora, buscamos esmiuçar a forma como essa apropriação se dá, mantendo a atenção nos dois eixos articuladores desta dissertação (espaço e economia). Neste capítulo, inicialmente, apresentaremos a área de estudo, onde se insere a principal via aqui estudada, a Avenida Sete de Setembro e os bairros que a ela estão adjacentes, nos quais se inclui o bairro Dois de Julho, aqui também tratado por concentrar historicamente trabalhadores de rua. Posteriormente, apresentaremos a legislação que incide sobre o espaço público e, seguiremos com a leitura crítica das propostas de intervenção elaboradas pela municipalidade em momentos distintos, selecionados no

período que sucede a

redemocratização do país. Trataremos neste capítulo, não do histórico da relação entre o trabalhador de rua e o espaço público, mas de como o espaço é concebido, ou seja, aquele espaço sobre o qual incide o planejamento, sob os interesses de seu agente promotor, o Estado, conforme enunciado por Lefebvre. Para nos aprofundarmos sobre a forma como este espaço é concebido, apresentaremos a caracterização das ruas que aqui são estudadas, onde se observa a apropriação pelo trabalhador de rua e que, por sua vez, integram o campo do vivido. Este, por sua vez, será tratado mais adiante, no Capítulo 3, quando lançaremos nosso olhar sobre a organização e funcionamento do trabalho de rua, que não se observa em quaisquer ruas. As ruas escolhidas pelos trabalhadores são determinadas devido a um conjunto de fatores que envolvem desde o grande fluxo de transeuntes que se deslocam em busca de empregos, serviços, comércio e diversas outras atividades do cotidiano, até o próprio interesse do poder público em permitir a comercialização de mercadorias em locais específicos e de obter com a atividade uma forma de arrecadação. Por fim, antes de avançarmos sobre o desenvolvimento desta parte do trabalho, é importante destacar que a leitura das propostas elaboradas pelo poder público será feita com base em cinco categorias de análise distintas: existência de um diagnóstico sobre a situação; conforto ambiental; infraestrutura de suporte para a atividade; relação entre a proposta e o


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entorno; e densidade de ocupação. Sobre esta última, densidade de ocupação, informarmos que nos deteremos a ela mais particularmente, por ter sido uma categoria pouco ou não mencionada nos projetos estudados e que consideramos de fundamental importância para compreensão da dinâmica da atividade no espaço.

2.1 Caracterização das ruas onde se observa o trabalho de rua: Avenida Sete de Setembro, transversais e Largo Dois de Julho

A Avenida Sete de Setembro é uma das principais vias urbanas do município de Salvador. Além de ter sido palco de diversos acontecimentos históricos, ao longo da Avenida Sete estão diversos marcos arquitetônicos importantes como o Mosteiro de São Bento e o Convento das Mercês, por exemplo. Ao analisarmos também a localização da referida Avenida, podemos observar que ela corta alguns bairros do centro antigo de Salvador, os quais não serão detalhadamente apresentados aqui, com exceção ao bairro Dois de Julho, onde também é fortemente notada a presença de trabalhadores de rua. Em Salvador, as primeiras décadas do século XX podem ter sido marcadas pela estagnação econômica, mas não pela letargia urbana. De acordo com Flexor (2011) os problemas da cidade foram enfrentados sob a luz dos ideais higienistas, bem como foram feitas tentativas de criar condições para modernização da cidade. Dentre as intervenções do período, destaca-se o alargamento da Avenida Sete de Setembro entre os anos de 1912-1916, principal obra do governo de J.J. Seabra, realizada seguindo os moldes do “urbanismo demolidor” parisiense, que fora protagonizado pelo barão de Haussmann. As obras desse período visavam romper com o traçado colonial, de modo a ordenar e higienizar a cidade que se expandia em direção ao sul. O plano de J.J. Seabra contava com financiamento internacional, que teve seu andamento prejudicado com o acontecimento da Primeira Guerra Mundial. Graças a este fato, diversos prédios históricos deixaram de ser demolidos ao longo do trajeto da avenida, pois os recursos destinados à obra foram reduzidos, o que forçou algumas mudanças na execução do que foi planejado. Ainda assim, conforme Pinheiro (2011) cabe destacar que alguns prédios históricos não escaparam e foram demolidos em prol do alargamento da Avenida Sete, como é o caso da Igreja de São Pedro Velho.


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Ainda de acordo com Pinheiro (2011) o objetivo da reforma da Avenida Sete era desafogar o Distrito da Sé8. O traçado da via projetada tem 4,6km de extensão, 21m de largura e 3m de calçada. Uma parte da avenida está situada no Distrito de São Pedro, área que compreende 1,5km do total da via e que outrora fora ocupada pela elite econômica e intelectual de Salvador, porém que passou por um processo de empobrecimento, em que muitas edificações foram convertidas em cortiços. A atividade dos trabalhadores de rua é justamente observada no trecho que corresponde ao Distrito de São Pedro, que vai do Mosteiro de São Bento ao Forte de São Pedro. A partir do Campo Grande a Avenida Sete de Setembro faz parte do Distrito da Vitória, uma das áreas mais enobrecidas da cidade, onde partes de seu trajeto são popularmente denominados de Corredor da Vitória e Ladeira da Barra. De lá seu traçado segue até a Barra (Mapa 01). O Centro Antigo e o Centro Histórico de Salvador9 aos poucos perderam parte de seu prestígio. Na Rua Chile, por exemplo, que tinha grande importância para o comércio e serviços da cidade, as principais lojas e estabelecimentos de luxo foram deslocados para outras regiões. Segundo Gomes & Fernandes (1995), já nos anos 1950 o varejo fino da cidade, que antes se concentrava na rua supracitada, começava a se direcionar para a Avenida Sete de Setembro. É de se considerar também o impacto que a ampliação do sistema viário com a abertura das Avenidas de Vale proporcionou à cidade, que pode se desenvolver em novas direções, o que, conseqüentemente, impactou diretamente no fluxo de pessoas que redirecionaram seus deslocamentos para novas centralidades.

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Reconhecemos que a delimitação por distrito, a princípio, pareça defasada. Porém, optamos por utilizá-la tanto para compatibilizar aquilo que falamos hoje com as informações mais antigas sobre a área, quanto por Salvador ainda não ter uma delimitação oficial para os bairros, conforme será comentado adiante. 9 O Escritório de Referência do Centro Antigo da Cidade de Salvador em convênio com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) apresenta uma delimitação onde são considerados o Centro Histórico e o Cento Antigo da cidade. Nesta delimitação o Centro Histórico compreende a área que vai da Rua Chile ao Santo Antônio. Já o Centro Antigo abrange o Centro Histórico, Campo Grande, Politeama, Centro, Barris, Tororó, Jardim Baiano, Nazaré, Barbalho, Lapinha, Comércio, Água de Meninos, Sieiro, Queimadinho, Liberdade e Calçada.


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Mapa 1: Av. Sete de Setembro – Extensão total, 2015. Fonte: Elaboração da autora.

Na década de 60, segundo Margarete Oliveira (2003), a criação do Centro Industrial de Aratu (CIA), dentre outros fatores, contribuiu para que o crescimento físico da cidade fosse direcionado para o vetor norte. Nessa região, além do favorecimento da malha viária, a construção do Shopping Iguatemi Salvador, a implantação da Estação Rodoviária e o Centro Administrativo da Bahia (CAB) na Avenida Paralela foram empreendimentos que redirecionaram e redimensionaram os fluxos da cidade. Esse conjunto de acontecimentos contribuiu para que o centro antigo e sua principal avenida vissem a sofisticação e o luxo outrora existentes serem substituídos por um varejo mais popular. Contudo, o fluxo de pessoas que se deslocam diariamente para a área não se tornou menos importante. Nesse contexto, assume grande destaque um equipamento erguido nas proximidades da Avenida Sete: a Estação da Lapa, inaugurada na década de 1980. Para o


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terminal de transporte da Estação da Lapa se dirigem, segundo a Transalvador (2010), 92 linhas de transporte, num contingente de cerca de 278 ônibus/hora ou cerca de 260.000 passageiros/dia. Ressalta-se ainda que, no ano de 2014, houve a inauguração da Linha 1 do metrô, que atualmente vai da Estação da Lapa até o Acesso Norte, e que transportou no mês de abril de 2015 uma média de 31 mil usuários por dia, segundo informações contidas no site da Secretaria de Desenvolvimento Urbano (Sedur). Cabe ainda destacar que na região há também duas grandes superfícies comerciais: os shoppings centers Lapa e Piedade, que atraem um número significativo de viagens, o que pode ser constatado pelos números apresentados por suas administrações, que informam em seus sites que por ali circulam cerca de 70 e 100 mil pessoas/dia, respectivamente. Essas estimativas sobre o número de pessoas que circulam na área indicam não somente o volume de transeuntes, mas também o grande número de empregos que a região concentra, sejam eles formais ou informais.

O rumo seguido pela urbanização em Salvador durante a década de 1980 deslocou o centro do processo de capitalização – que se tornou centro histórico – criando novas zonas de concentração de capital, porém deixando no centro grande parte de suas funções tradicionais. Enquanto a formação de capital expandiu-se nas áreas de Pituba-Itaigara-Iguatemi, o centro continuou com a concentração dos sistemas de transporte, preservou sua função residencial – ainda que atualmente esteja destinado a outras classes sociais, mantendo sua dinâmica com um notável aumento da circulação de pedestres (SALVADOR, 1992a:18).

A Avenida Sete de Setembro então, mantém sua grande importância para a cidade, pois corta uma área onde há grande concentração de atividades comerciais e de serviços, além de instituições como igrejas e escolas. Ainda é palco dos principais eventos cívicos e de protesto que acontecem na cidade e, por contar com um grande número de transeuntes que se deslocam diariamente pelo local, seja para trabalhar, estudar ou consumir mercadorias e/ou serviços, tende a ser bastante procurada por trabalhadores de rua para desenvolver suas atividades laborais. Por este motivo, diversas intervenções foram e são planejadas pelo poder público. Intervenções e propostas que datam desde o século XIX, no período próximo à abolição da escravatura, quando escravos de ganho e quitandeiras podiam comercializar produtos apenas em cantos específicos da cidade. Não será possível, entretanto, aprofundarmo-nos nessas questões históricas, pois o recorte aqui proposto é contemporâneo. Contudo, não poderíamos deixar de pontuar que este é também um traço histórico, que demonstra como o ato de utilizar o espaço da rua para vender mercadorias faz parte da nossa herança cultural.


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A Avenida Sete, como dito anteriormente, corta três distritos da cidade de Salvador. Considerando sua parte pertencente ao distrito de São Pedro, ela pode ser entendida ao mesmo tempo como um eixo de ligação e de fronteira entre alguns bairros centrais. Isto porque, se de dia os moradores destes bairros podem transitar entre os mesmos e se utilizar dos serviços e das mercadorias comercializadas na Avenida, durante a noite, finais de semana e feriados (quando o comércio está fechado) este uso fica limitado, pois esta é uma região considerada insegura por muitos daqueles que habitam no seu entorno. Isto se deve ao fato de, ao longo da avenida o uso ser predominantemente destinado ao comércio e aos serviços, restando poucas moradias. Lembrando do que nos disse Jacobs (2011) no capítulo anterior, quando a autora comentava sobre suas observações das ruas em um contexto de bairro, o uso misto das formas é tratado como uma das maneiras capazes de garantir que uma diversidade de interesses conflua e se expresse no uso do espaço público e na sua consequente segurança. É uma situação um pouco diferente do nosso caso, em que se trata, ainda hoje, de uma área predominamente comercial, porém cercada de bairros residenciais. Estes são nutridos pela dinâmica do entorno e também contribuem para nutrir a dinâmica das relações estabelecidas nas ruas do centro da cidade. Durante o dia estas ruas, sobretudo a Avenida Sete de Setembro, apresenta grande fluxo de transeuntes, tanto daqueles que se deslocam de diversas partes da cidade para este local, quanto daqueles que habitam em suas proximidades. Isto se deve aos diversos tipos de estabelecimentos que concentra e dos serviços que ali são ofertados. Além dos estabelecimentos fixos, há neste espaço ainda grande número de trabalhadores de rua, comercializando todo tipo de mercadorias em suas bancas, telas e esteiras postas sobre o chão das calçadas. A existência de olhos voltados para as ruas, aspecto mencionado pela autora como uma das maneiras de torná-las seguras, praticamente inexiste neste lugar no período da noite, favorecendo a existência de atividades consideradas marginais. Ao percorrermos a extensão que aqui é estudada temos os seguintes bairros nas margens da Avenida Sete: Dois de Julho, Aflitos, Barris e Politeama.10 Destes, nos deteremos apenas ao Dois de Julho, por também concentrar tradicionalmente trabalhadores de rua. Destacamos ainda os bairros que fazem parte do Centro Histórico, Mouraria e Nazaré, que apesar de não estarem imediatamente nas margens da Avenida Sete, também se relacionam com este espaço (Mapa 02). 10

Embora aqui esteja-se usando a denominação bairro, a mesma não é reconhecida oficialmente pela municipalidade. Salvador, ainda no ano de 2015 ainda não possui uma delimitação oficializada pelo poder público. O estudo de maior referência até o momento é o trabalho intitulado “O caminho das águas” publicado no ano de 2010, porém ainda não foi oficializado. Mesmo neste estudo de referência, os bairros aqui mencionados não aparecem delimitados. A maioria deles compõe um “bairro” denominado Centro, que engloba as localidades mencionadas.


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Mapa 2: Bairros que margeiam a Avenida Sete de Setembro. Fonte: Elaboração da autora, 2015.

A formação do bairro Dois de Julho coincide com as primeiras expansões extramuros da Salvador colonial, quando caminhos e ladeiras foram abertos para vencer a distância entre o porto, localizado na cidade baixa, e a cidade alta. Dentre tais caminhos destacase a Ladeira da Preguiça e Rua do Sodré (Schefler et al.). A aglomeração de moradias nessa região que fazia parte da antiga Freguesia de São Pedro, deu origem ao que conhecemos como bairro Dois de Julho. Ainda naquele período há indícios de que nessa freguesia funcionava um mercado de abastecimento que, dentre outas características, marcou a formação do bairro (Nascimento, 1986). Com o alargamento da Avenida Sete de Setembro no início do século XX, há uma substituição das residências existentes por hotéis, pensões e alojamentos, sobretudo no Largo Dois de Julho, o que favoreceu a desvalorização da área, uma vez que a população de elite tendia a afastar-se das zonas comerciais (Araújo, 2006). Como pudemos notar, o Dois de Julho faz parte e é afetado diretamente pela dinâmica do centro antigo, absorvendo os impactos das mudanças nele ocorridas ao longo do tempo. Apesar de ainda hoje ser um bairro com uso


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residencial forte, possui também um número considerável de estabelecimentos comerciais e de serviços, sobretudo nas proximidades do largo e das praças existentes. Dentre suas características marcantes, está a presença de um grande número de pessoas circulando e vendendo mercadorias nas ruas, motivo pelo qual o poder público também se interessou por intervir neste espaço, sobretudo no intuito de ordenar as atividades do comércio informal que aí ocorrem. Nesse sentido, seguiremos apresentando a legislação que incide sobre a atividade do trabalhador de rua no espaço público em Salvador.

2.2 O espaço público em Salvador e a legislação incidente

A Lei nº 3.377/84 que dispõe sobre o Ordenamento do Uso e da Ocupação do Solo de Salvador (LOUOS/84) traz em um de seus anexos conceitos sobre o que a prefeitura entende por diversos termos. Os espaços públicos são entendidos como “espaços livres de uso público” e são definidos como “todas as áreas de domínio público cujo acesso esteja franqueado a qualquer cidadão.” (SALVADOR, 1984, s.p.). O espaço público da rua em Salvador também pode ser traduzido pelo termo “logradouro público”. Este é definido pela LOUOS/84 como “espaço livre, reconhecido pela municipalidade, destinado ao trânsito, tráfego, comunicação ou lazer públicos” (SALVADOR, 1984, s.p.). No Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Salvador de 2008 (PDDU/2008) os logradouros públicos são considerados como “ambientes de convívio e socialização, meios de inserção social, de fortalecimento da identidade coletiva e de desenvolvimento econômico” (SALVADOR, 2008, s.p.). A sua recuperação e complementação urbanística, com a finalidade de melhorar a paisagem dos espaços está prevista como um dos objetivos da política urbana do município. Esta definição nos remete à questão da própria apropriação dos espaços públicos quando a lei cita o “fortalecimento da identidade coletiva” que se relaciona com a ideia de pertencimento dos indivíduos ao lugar e, além disso, insere a ideia do desenvolvimento econômico, que não aparecia nos conceitos anteriormente citados e que indica uma nova funcionalidade. O PDDU/2008 ainda considera, dentre as diretrizes para o Centro Municipal Tradicional11, o ordenamento e controle do comércio exercido pelos trabalhadores de rua nos

11

A lei nº 7.400/2008 que dispõe sobre o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU/2008) define zonas para onde convergem e por onde se articulam os principais fluxos estruturadores do município (corredores viários) pela convergência que há em relação a comércio, serviços e mobilidade. Três Centros Municipais são por ele definidos: Centro Municipal Tradicional (CMT), Centro Municipal do Camaragibe (CMC) e Centro Municipal Retiro-Acesso Norte (CMR). No CMT está incluído o centro histórico e a região compreendida como centro antigo.


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logradouros públicos. Ressalta-se que o PDDU sobre o qual estamos nos referindo está em processo de revisão. As atividades públicas ou privadas que configuram uso do solo na cidade são reguladas, fiscalizadas e punidas administrativamente, quando é o caso, pela polícia administrativa do município, que é responsável ainda por disciplinar o exercício dos direitos individuais sob os interesses públicos e pode ser representada por órgãos como a Superintendência de Controle e Ordenamento do Uso do Solo do Município (SUCOM) e a exSecretaria Municipal de Serviços Públicos e Prevenção à Violência (SESP), cujas funções foram absorvidas pela Secretaria de Ordem Pública (SEMOP), criada na gestão da prefeitura do ano de 2013. No que se refere às atividades comerciais, compete ao poder de polícia administrava disciplinar a exposição de mercadorias e impedir sua exposição em áreas externas além do que estiver autorizado por ela, que deve ainda exercer o controle do uso do solo. O Código de Polícia Administrativa, instituído pela Lei nº 5.503/99, regula as atividades dos trabalhadores de rua, em que a exploração da atividade depende de um alvará de licença ou autorização. Este só é emitido se estiver em conformidade com aspectos de higiene, estética, limpeza pública e/ou segurança, trânsito e impacto ambiental, bem como com o estabelecido pela LOUOS/84, no que se refere a sua localização e/ou equipamento utilizado na atividade. O alvará expedido para atividade em logradouro público depende da autorização da Prefeitura e sempre é emitido em caráter individual (pessoa física), precário e intransferível, ou seja, precisa-se de autorização para vender. Por título precário entende-se o modo de conceder, usar ou gozar alguma coisa, sem que isso se constitua como um direito. 12 A caracterização do que se constitui efetivamente enquanto trabalho de rua pela municipalidade foi buscada também através da realização de entrevista com agente do poder público13. Para a Coordenação de Fiscalização e Licenciamento da SEMOP, é entendido como ambulante toda atividade que é exercida na via pública. Os flanelinhas, por exemplo, são compreendidos em outra categoria, estando enquadrados como prestadores de serviço. Já a baiana de acarajé faz parte de outro segmento, que é o segmento de alimentos. O vendedor de pipoca também faz parte do segmento de alimentos, porém é cadastrado como comércio

12

Há ainda o Decreto nº 12.016/98 que é anterior ao referido código e o complementa no que se refere à localização e funcionamento da atividade desenvolvida pelos trabalhadores de rua nos logradouros públicos da cidade. Para obter a autorização deve-se preencher um requerimento junto à SEMOP, através da Coordenadoria de Licenciamento e Fiscalização, ente ao qual pertence competência pelo ordenamento, licenciamento e fiscalização da atividade desenvolvida pelos trabalhadores de rua. 13 Em 29/09/2014 foi realizada entrevista com o atual coordenador de licenciamento e fiscalização da Secretaria de Ordem Pública, Braz Augusto Pires, que trabalha na prefeitura há 18 anos e atua na fiscalização e ordenamento há 2 anos.


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informal. Contudo, o coordenador entrevistado chama atenção para o fato das denominações “ambulante” e “comércio informal” quererem dizer a mesma coisa, referindo-se aquele que comercializa na rua, porém a diferenciação é feita pela prefeitura apenas por uma questão de diversificação do tipo de produto comercializado.14 A atividade comercial desenvolvida pelos trabalhadores de rua é entendida no Código de Polícia Administrativa do Município como comércio informal. Com relação às atividades em logradouros públicos, o exercício por parte desses trabalhadores se divide entre aqueles que trabalham com equipamento removível daqueles que trabalham com equipamento fixo. Os que trabalham com equipamento removível deverão seguir o padrão definido pela prefeitura, em que o seu funcionamento também é regulamentado. 15 As atividades desenvolvidas com equipamento fixo dependem de cadastramento e expedição de alvará de funcionamento. A prefeitura, para emitir o alvará de funcionamento e a permissão da atividade, verifica a conveniência de localização bem como as implicações relativas à mesma no que se refere ao trânsito, estética, saúde pública e preservação do meio ambiente. O padrão do equipamento fixo também é definido pela municipalidade, o que, de acordo com a lei, deverá ser feito ouvindo em tempo as entidades representativas para o estabelecimento das normas do decreto. Os 12 modelos padronizados pela SESP, hoje SEMOP, contidos no Decreto 12.016/98 incluem:

14

banca desmontável com dimensões de até 1.05mX0.80;

tabuleiro com até 1.20mX0.60;

equipamento móvel sobre rodas com até 0.95mX1.35m;

recipiente tipo mala com tampa com até 0.80mX0.50m;

isopor com capacidade para 50 litros;

mostruário com dimensões de até 0.80X1.20m;

cantimplora;

cestos de vime ou garrafas térmicas;

recipientes com capacidade de até 30 litros;

cadeira de engraxate;

As informações obtidas são confusas, mas relatam o que foi comunicado na entrevista mencionada. Isto revela uma fragilidade conceitual no entendimento do poder público com relação a atividade. Ressaltamos que este entendimento é confuso também para os trabalhadores como veremos adiante, que apresentam dificuldade para especificar a que categoria de trabalhadores pertencem. 15 Aqueles que possuírem a autorização para o exercício da atividade deverão sempre ter consigo o alvará de funcionamento, documento de identificação e carteira de saúde.


75

máquina fotográfica tipo lambe-lambe;

máquina com esmeril tipo amolador

Tais modelos foram citados aqui com a finalidade de que se tenha uma ideia geral do que é normatizado e encontrado nas ruas de Salvador, bem como as dimensões que os equipamentos podem ocupar no espaço. Cabe ressaltar que outros modelos podem ser encontrados, porém os mesmos dependem também de autorização específica por parte da SEMOP. As taxas cobradas pelo equipamento para o exercício da atividade podem variar de R$6,35 (ex.: equipamento usado por engraxate) a R$33,37 (ex.: equipamento tipo banca desmontável) por mês, de acordo com o Código Tributário e de Rendas do Município (Salvador, 2006). O processo de licenciamento e fiscalização, de acordo com a coordenação do setor na SEMOP, é feito quando o trabalhador dirige-se ao setor de protocolo da secretaria e dá entrada com a documentação exigida pelo órgão, onde informa o local onde ele quer atuar. A Secretaria, por sua vez, envia a fiscalização no lugar a fim de avaliar se há vaga. Após o parecer do fiscal, o trabalhador é chamado para ser informado sobre o deferimento ou indeferimento de sua solicitação. Ainda de acordo com o disposto no Decreto 12.016/98, para utilização de logradouros públicos onde a atividade pode ser desenvolvida são considerados aspectos como fluxo de pessoas que favoreça o exercício da atividade, espaço disponível para instalação do equipamento e disposição da mercadoria, além de preservação do espaço livre ao pedestre e ao trânsito de veículos, quando for o caso. A atividade poderá ocorrer ainda, todos os dias da semana nos locais e dentro do horário especificado no alvará de autorização recebido. Cabe salientar que a localização pode ser alterada a qualquer momento caso seja entendido que a mesma está sendo prejudicial à circulação de pedestres ou a outros motivos de interesse público devidamente fundamentados. O trabalhador não poderá ainda alterar a localização do equipamento sem ser autorizado. As restrições quanto à atividade se referem a alguns locais como, por exemplo, a menos de 10m de semáforos, portões de acesso a estabelecimentos de ensino, bancário ou repartições públicas, além de prédios residenciais. Não devem ocorrer ainda próximo a locais em que haja a entrada e saída de veículos, pontos de ônibus, rampas de acesso, descidas de passarelas e a menos de 20m de estabelecimentos que desenvolvam o mesmo tipo de atividade só que no campo formal. Com relação às mercadorias, não é permitida a venda de bebidas


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alcoólicas, armas que sejam consideradas perigosas como facas ou armas de fogo, inflamáveis, corrosivos, explosivos, animais, alimento (exceto pipoca, cachorro quente, algodão doce, amendoim e milho), ou qualquer outro produto que já não tenha sido especificado na autorização concedida. No caso do não cumprimento dos dispositivos contidos no Decreto nº 12.016/98, os trabalhadores de rua podem ser punidos desde advertências por escrito até cassação da autorização ou apreensão do bem e da mercadoria, caso seja constatado o caráter ilícito do comércio, a transgressão às normas do referido Código ou quando se tratar de bens irregulares localizados nos logradouros públicos. A normatização para a atividade estabelecida por meio da legislação vigente cria restrições e permissões à atividade, de modo que podemos perceber que o poder público define através do seu poder disciplinador os locais e os formatos em que a atividade lhe interessa. Assim, seguiremos apresentando os projetos elaborados pelo poder público no recorte temporal que corresponde ao período posterior a redemocratização do país, cujo marco é a promulgação da Constituição Federal de 1988, e vai até o ano de 2014. Este recorte foi escolhido por corresponder ao período em que foram encontrados projetos propostos pelo poder público para as áreas da Avenida Sete de Setembro e bairro Dois de Julho, e nos auxiliarão no entendimento tanto da importância que a atividade adquire na cidade, quanto a forma como a mesma tem sido regulada pela municipalidade ao longo das últimas décadas.

2.3 Projetos do poder público incidentes sobre a atividade do trabalhador de rua

O exercício da atividade comercial em via pública costuma ser alvo de intervenções do poder público, que tem suas ações tanto no sentido de coibir quanto de regular a atividade. No recorte de tempo aqui proposto, entre 1988 e 2014, na cidade de Salvador, foram elaboradas algumas propostas por distintas gestões municipais no sentido de organizar a atividade do trabalhador de rua na região da Avenida Sete e do bairro Dois de Julho, mais precisamente nos anos de 1992, 1997 e 2014. Cada um dos projetos será brevemente apresentado, focando principalmente nas principais características de cada um dos tipos de intervenção. Daremos mais atenção, no entanto, aos projetos elaborados no ano de 2014, por coincidir com o período em que também foram coletadas as nossas informações de campo. Porém, nosso olhar agora será voltado principalmente para as características técnicas dos mesmos. Voltaremos a tratar


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dos demais aspectos posteriormente, quando pudermos relacioná-los àquilo que foi obtido com a aplicação dos questionários e entrevistas.

2.3.1 Propostas em 1992 

Projeto “O informal em Salvador – Políticas e Propostas”, 1992

Este projeto foi proposto no ano de 1992, na gestão do prefeito Fernando José Guimarães Rocha e contou com consultoria de dois economistas de referência: João Carlos Araújo e Fernando Pedrão. No relatório do projeto, há uma importante contextualização e diagnóstico da informalidade à época, destacada como um dos mais relevantes problemas da cidade. A referida proposta tinha a pretensão de “implementar uma solução urbanística que integre os trabalhadores atualmente localizados em um dos mais importantes e tradicionais espaços da cidade” (SALVADOR, 1992a:4). Este espaço é sinalizado como o circuito compreendido entre a Praça da Sé e o Campo Grande. Para aquela gestão da prefeitura, a utilização do espaço público implicava em custos e as atividades localizadas nos logradouros públicos deveriam, portanto, dentro de suas possibilidades, contribuir com a manutenção desses locais. Além das propostas de intervenção urbanística que visavam tanto organizar a atividade no local, quanto redistribui-la na cidade, havia também diretrizes no âmbito social no sentido de incentivar a promoção de programas para orientação e qualificação do trabalhador de rua. Fica evidenciado, através do relatório, que a intenção da prefeitura naquele período era de implementar uma política voltada para as atividades informais, nas quais estavam incluídas a atividade do trabalhador de rua (ambulantes), das barracas de praia, bancas de chapa e feirantes. Nota-se ainda uma preocupação de incorporar a problemática da informalidade ao planejamento urbano da cidade, pois a proposta conta com o estabelecimento de diretrizes para a questão e não somente com uma orientação para intervenções pontuais. Antes de partirmos para a apresentação das diretrizes propriamente ditas, é interessante notar como a questão da informalidade é posta pelo projeto de 1992. O relatório nos traz um pouco da evolução pela qual o conceito da informalidade passou desde a década de 1970, destacando a imprecisão conceitual utilizada e a pluralidade de formas de trabalho nas quais se inclui o uso do termo. Contudo, considera-se que tais conceitos têm pouco a oferecer se não forem postos em contato com a realidade do cotidiano urbano. Neste sentido, a


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informalidade é compreendida no âmbito do projeto como um produto da urbanização, fruto da atividade urbana contínua, onde cada tipo de cidade possui um quadro de informalidade correspondente, cuja composição muda ao longo do tempo, o que reflete as mudanças demográficas e econômicas pelas quais a cidade passa. Reconhece-se então que a informalidade transcende a questão da marginalidade e reflete estratégias de sobrevivência de trabalhadores excluídos do mercado formal, de maneira que não parece muito interessante a proposição de políticas que ignorem a questão ou visem extingui-la. Assim como mencionamos no capítulo 2 desta dissertação, o texto do referido projeto reconhece a informalidade como um traço estrutural de nossa economia, resultado de um desenvolvimento econômico tardio e do descompasso existente entre as ofertas de trabalho e a mão de obra disponível nos centros urbanos. A informalidade então é entendida por este projeto como:

[...] um conjunto de relações sociais que não estabelece vínculos tipicamente capitalistas entre capital e trabalho, pelas quais a sociedade não se responsabiliza, ou seja, a reprodução do trabalho fica a cargo exclusivamente do próprio trabalhador. São os trabalhadores autônomos, assalariados sem carteira assinada e patrões, geralmente situados na faixa de renda de até 5 salários mínimos (SALVADOR, 1992a:9).

Tendo em vista esta concepção da informalidade pelo poder público à época, o objeto das intervenções se concentraram em dois eixos: o primeiro, no que se refere às atividades informais exercidas em logradouro público e o segundo, na implementação de uma política social voltada para redefinir o quadro de pobreza urbana verificado na cidade. A metodologia para o desenvolvimento deste trabalho recorreu tanto às pesquisas oficiais desenvolvidas por institutos como o IBGE, quanto aos estudos de caracterização física e socioeconômica das categorias, com vistas a compreender e qualificar melhor o universo pesquisado. Foram selecionadas 16 grandes áreas de concentração de atividade do setor informal, em que foram aplicados 3 questionários distintos, de modo a contemplar ambulantes e barracas de praia, bancas de chapa e transeuntes. Para orientar os estudos e proposições foram também pensados alguns possíveis cenários futuros no que se refere ao desempenho da economia baiana, onde se revelou como mais provável o cenário que previa uma estagnação generalizada da economia, com a continuidade de uma política recessiva do governo federal, ausência de investimentos e aumento do subemprego e emprego. Tal perspectiva apontava para a necessidade de que o município de Salvador viesse a assumir iniciativas voltadas para sustentar o nível de ocupação


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e renda de sua população, atuando não apenas de forma ordenadora. Apesar desta reflexão, coloca-se que a postura da municipalidade não deve ser passiva com a informalidade, pois:

[...] não é possível assistir de formar impassível os espaços públicos serem invadidos pelo comercio de mercadoria ou pela prestação de serviços como também não se constitui em solução a adoção de medidas repressivas que só agudizam um problema de cunho eminentemente social e que, ao que tudo indica, tende a agravar-se (SALVADOR, 1992a:16).

Os resultados das pesquisas realizadas indicaram, dentre outros fatores, que havia uma expressiva demanda de consumo que só podia ser atendida por este tipo de comércio, que ofertava mercadorias a preços menores. Além disso, o mercado informal se apresentava também como alternativa de sobrevivência de parcela importante da população. Estes fatores são apontados pelo referido estudo como motivação para adoção de uma postura proativa da prefeitura com relação a atividade, a quem caberia a criação de condições favoráveis para que essas pessoas pudessem garantir o seu sustento. Neste sentido, há uma importante indicação no que diz respeito a integração da questão da informalidade ao planejamento urbano da cidade, de modo a trata-la não apenas como uma problemática isolada ou setorial. Esta ação pressuporia medidas preventivas e educativas em pontos identificados como críticos, bem como a implementação de ações nos bairros de origem dos trabalhadores informais, de modo a criar opções de trabalho ou de viabilização da sobrevivência dessas pessoas nas proximidades do local de suas residências. Assim se estaria evitando a pressão exercida nas zonas de maior tensão para onde essas pessoas costumam confluir, as quais correspondem às áreas centrais da cidade. A diretriz geral para a política da prefeitura com relação ao comércio informal estabeleceu a indicação de que cabe ao poder público gerir os conflitos entre o exercício da atividade informal nos logradouros públicos e os interesses globais da população, compatibilizando-os. De maneira especifica, estabelece diretrizes nos seguintes eixos destacados a seguir. Físico/urbanístico: este eixo propunha a integração das ações voltadas para a informalidade com o planejamento urbano, através da indicação de áreas para desenvolvimento da atividade informal, de modo a ordená-la para liberação dos espaços públicos para o cidadão. Dessa maneira, a proposta executada pela prefeitura deveria compatibilizar a atividade do comércio informal com a circulação de pedestres e tráfego de veículos. A municipalidade deveria ainda: definir uma escala de prioridade entre as 16 áreas identificadas; identificar áreas de baixa renda para o desenvolvimento do comércio informal; evitar o exercício das atividades


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informais quando esta comprometer a paisagem e o patrimônio histórico; padronizar os equipamentos utilizados, que deveriam apresentar características como adaptação à comercialização de diversos tipos de mercadorias, ser removível e ter espaço para guarda de material; definir a densidade e o zoneamento no sentido de disciplinar as atividades e facilitar a fiscalização; e orientar a política de transporte coletivo a favorecer a circulação entre os bairros populares para estimular o deslocamento dos trabalhadores em outros centros. Social: as ações desse eixo se dariam no sentido de: definir programas de assistência social que possibilitasse o pleno acesso a dignas condições de saúde, educação e moradia; implementar estratégias com diferentes grupos de trabalhadores informais através de suas representações de classe com o intuito de qualificar este trabalho e melhorar as condições do serviço prestado; e definir programas educativos e assistenciais para população de baixa renda, identificada como origem do comércio informal, através de dois programas: o primeiro de educação básica voltada para cidadania e trabalho, e o segundo de orientação e intermediação com realização de cursos sobre noções básicas de higiene, voltados sobretudo para aqueles que trabalham com o segmento de alimentos. Fiscal: indicava a necessidade de se instituir um sistema tributário que considere a diversidade interna do setor quanto aos níveis de rendimento proporcionado, a fim de cobrar taxas justas para os diferentes segmentos. Jurídico Institucional: visava atualizar e instituir normas para a regulamentação do exercício das atividades informais, voltadas para consolidar os objetivos do poder público através da elaboração de uma legislação única voltada para a questão. Administrativo: as ações desse eixo estariam voltadas para aperfeiçoamento do sistema de fiscalização; modernização dos mecanismos de acompanhamento e fiscalização, a ser realizada através da mútua colaboração entre os órgãos da prefeitura envolvidos; e cadastramento e licenciamento de todos aqueles que trabalham no mercado informal. Nessa conjuntura foi elaborada uma proposta piloto (Figuras 1 a 3), cuja implementação serviria de exemplo para as demais áreas identificadas. Trata-se do circuito entre o Campo Grande e a Praça da Sé, escolhido em função de determinações técnicas, administrativas e políticas. Esta proposta implicaria em uma intervenção física ao longo da Av. Sete de Setembro, suas transversais e ligações com a Av. Joana Angélica, incluindo as praças existentes no percurso.


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Figura 1: Trecho da Avenida Sete de Setembro. Fonte: SALVADOR, 1992a.

Figura 2: Trecho da Avenida Sete de Setembro. Fonte: SALVADOR, 1992a.


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Figura 3: Largo de São Bento Fonte: SALVADOR, 1992a.

Através da análise dos croquis e das plantas16 do projeto apresentados anteriormente podemos notar que a atividade do comércio informal permanece integrada ao logradouro público, separada da calçada e da faixa de rolamento utilizada pelos automóveis através do uso de recuo e barreiras físicas. No caso do Mosteiro de São Bento, há também a disposição de pontos de trabalho na praça existente na frente da igreja, porém em local que não interfere na entrada e saída de pessoas que se dirigem aos cultos. No caso da Avenida Sete, notamos que o mobiliário utilizado pelos trabalhadores fica disposto de modo que a mercadoria fica voltada para a calçada ao longo da via e o espaço para arborização e demais mobiliários urbanos aparecem preservados. Na Tabela 3 apresentamos a análise do projeto apresentado, de acordo com as categorias que consideramos importantes para sua avaliação.

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Não foi possível apresentar todas as plantas do projeto, pois além de numerosas, elas foram desenhadas à mão em papel manteiga em formato com mais de 1m. Optamos, portanto, por fotografar as plantas por partes, já que não foi possível fotografálas em sua totalidade. Este método tornou os arquivos ainda mais numerosos, levando-nos a selecionar apenas alguns trechos para apresentar no Anexo A.


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Tabela 3: Síntese da análise do projeto “O Informal em Salvador: políticas e propostas”, 1992. CATEGORIAS DE ANÁLISE Diagnóstico da situação Conforto ambiental

Infraestrutura de suporte

Densidade de ocupação Relação proposta e o entorno

PROPOSTAS APRESENTADAS PELO PROJETO Diagnóstico bastante completo, contando inclusive com importantes consultorias em sua elaboração. O projeto não apresenta proposta no sentido de abrigar os trabalhadores do sol ou da chuva, deixando-os expostos às intempéries. Em todos os pontos do projeto há disposição de lixeiras públicas. Quanto aos sanitários, verificamos apenas 02 equipamentos localizados na Praça de São Pedro. Com relação ao armazenamento das mercadorias, o relatório do projeto informa que as mesmas serão guardadas na parte inferior das bancas dos trabalhadores, o que não oferece segurança para os mesmos. Não constam informações sobre iluminação pública nos locais da intervenção. O projeto não apresenta parâmetros ou cálculos para densidade de ocupação na área de intervenção. A proposta visual visa uma integração da atividade com os demais usos da rua, mantendo-a na via principal, segregada por baias. Podemos notar ainda que há disposição de grande número de bancos em todo o perímetro de intervenção, o que significa uma alternativa importante para que os transeuntes possam ter pontos de apoio e descanso enquanto fazem compras ou passeiam.

Fonte: Elaboração da autora com base na análise do projeto, 2015.

O projeto apresentado é de grande riqueza e profundidade, entretanto não foram encontradas indicações sobre a implementação do mesmo pela prefeitura na gestão em que foi elaborado. Apesar disso, os estudos realizados serviram de referência para elaboração de projetos em outras gestões nos anos de 1994, no que se refere ao ordenamento do Relógio de São Pedro e Joana Angélica, constantes no “Caderno de projetos” da gestão da prefeita Lídice da Matta, eleita entre os anos de 1993 e 1996; e em 1997, no projeto de relocação dos ambulantes realizada na gestão do prefeito Antônio Imbassahy, eleito duas vezes entre os anos de 1997 e 2004. 

Proposta de ordenamento do comércio informal: Largo 2 de Julho, Largo do Mocambinho e Praça Cairú, 1992. Destacamos ainda que no ano de 1992 há também a “Proposta de ordenamento do

comércio informal: Largo 2 de Julho, Largo do Mocambinho e Praça Cairú” (Figura 4), onde a Praça Cairú localiza-se fora do recorte estudado.


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Figura 4: Largo do Mocambinho, vista da Rua Carlos Gomes. Fonte: SALVADOR, 1992b.

Esta proposta visava ordenar o comércio informal nas áreas da Praça do Mocambinho, Rua do Cabeça e Largo Dois de Julho, através da implantação de três módulos comerciais construídos para absorver os comerciantes de flores do Largo Dois de Julho e Rua do Cabeça. Estes módulos seriam implantados no Largo do Mocambinho, possuem forma octagonal e espaço para quatro unidades comerciais, com ponto de água, pia, bancada interna, prateleira externa para exposição de mercadoria e balcão de atendimento. Ao nos dirigirmos hoje ao Largo do Mocambinho podemos verificar que o projeto foi implantado, porém passará por novas alterações no ano de 2015, resultantes do projeto elaborado para requalificação do mercado do Dois de Julho, que será comentado adiante.

2.3.2 Propostas em 1997 

Comércio Informal: projeto de relocação dos ambulantes da Av. Sete de Setembro e Baixa dos Sapateiros, 1997

Na gestão do prefeito Antônio Imbassahy foi elaborado um novo projeto com vistas ao ordenamento do comércio informal na cidade de Salvador, publicado no ano de 1997. O projeto faz referência aos estudos realizados em 1992, reconhecendo o cenário de agravamento da crise na economia nos anos 1990 apontado por aquele estudo, que colaborou efetivamente com a crise no emprego e levou muitos trabalhadores a recorrerem ao mercado informal como uma alternativa de sobrevivência. De acordo com as análises realizadas em 1997, a dinâmica do centro antigo foi


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mantida e tensionada principalmente em razão do movimento de passageiros da Estação da Lapa e da presença dos diversos serviços disponíveis neste lugar, o que o constituiu como a maior concentração de trabalhadores de rua da cidade. Considerando que o projeto proposto em 1992 não foi efetuado, o projeto de 1997 toma os objetivos do trabalho anteriormente citado como referência, porém com a pretensão de efetuar uma intervenção de caráter emergencial. Acreditamos que tal caráter emergencial, embora não esteja explicitado nos relatórios encontrados, se relaciona com a crise do emprego dos anos 1990 que influenciou diretamente no aumento da informalidade. Entre os objetivos desta gestão estão: gerir os conflitos existentes entre a atividade do comércio informal e os interesses globais da população; assegurar o uso coletivo dos espaços públicos; compatibilizar a atividade com o sistema de circulação de pedestres; evitar o comprometimento da paisagem e do patrimônio em decorrência da atividade do comércio informal; e padronizar os equipamentos utilizados pelos trabalhadores. O estudo verificou a existência de 1.620 pontos de comercialização existentes na Av. Joana Angélica e Av. Sete de Setembro. De acordo com as informações contidas no relatório, houve um crescimento de 64,47% da atividade nesta área desde 1992, onde se destaca a comercialização de aparelhos eletro-eletrônicos. A comercialização de tais artigos importados, por sua vez, é considerada como incompatível com as características do centro antigo, e contribuiriam para descaracterizar o desenho desta região da cidade, pois demandariam uma ampliação dos passeios em função do espaço para exposição que demandam, o que, consequentemente, viria a prejudicar o desempenho e a fluidez do trânsito. Tais motivos justificavam o remanejamento da atividade para outros locais. A proposta da gestão do prefeito Imbassahy era de ordenar a atividade confinandoa em trechos específicos e transversais existentes do lado esquerdo da Avenida Sete de Setembro, no sentido de quem está na Praça Castro Alves e vai para o Campo Grande, com exceção ao trecho correspondente à Ladeira de São Bento, onde se permitiria a ocupação em ambos os lados. Nestes trechos haveria a instalação de baias e corrimãos de proteção. Para a execução da proposta, previa-se a transferência dos trabalhadores da Praça da Piedade e Praça Rio Branco (Relógio de São Pedro) para as transversais. Do Largo de São Bento deveriam ser retirados todos os trabalhadores do comércio informal, restando apenas um ponto para comercialização de acarajé. Enquanto os estudos de 1992 reconheciam que os produtos comercializados na região eram em sua maioria de gêneros alimentícios e que isso demandaria uma ação de orientação do poder público no que se refere à higiene, o estudo de 1997 informa não ter realizado um zoneamento por tipo de mercadoria, mas que “as precárias condições de higiene


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na comercialização de frutas e verduras, determinaram a sua exclusão das atividades permitidas” (SALVADOR, 1997a:9). Duas propostas foram criadas, sendo a primeira com duas alternativas sintetizadas a seguir, na Tabela 4 e a segunda também com duas alternativas sintetizadas na Tabela 5. As plantas do projeto que foram disponibilizadas indicam a disposição dos trabalhadores de rua nas áreas propostas, conforme pode ser observado no Anexo B. Tabela 4: Comparativo entre as alternativas da Proposta I para relocação do comércio informal – Av. Sete de Setembro, 1997 Trecho Alternativa I Alternativa II Rosário/Politeama 113 pontos 113 pontos Paraíso/Rosário 271 pontos 271 pontos Relógio de São Pedro 222 pontos 222 pontos São Bento 105 pontos 105 pontos Estacionamento São Raimundo 452 pontos 916 pontos TOTAL 1.163 pontos 1.627 pontos Fonte: SALVADOR, 1997c:9.

Tabela 5: Comparativo entre as alternativas da Proposta II para relocação do comércio informal – Av. Sete de Setembro, 1997 Trecho Alternativa I Alternativa II Largo da Igreja do Rosário 77 77 Praça Carneiro Ribeiro 213 213 Rua do Cabeça 70 70 Estacionamento São Raimundo 452 916 TOTAL 812 1.276 Fonte: SALVADOR, 1997c:11.

Podemos observar, através dos dados apresentados, que a única diferença entre as alternativas da primeira proposta é com relação a uma maior ou menor ocupação do terreno do Estacionamento São Raimundo, localizado nas proximidades do Shopping Orixás Center. Contudo, a utilização dessa área não se constituía como prioritária, pois ela é considerada como muito valorizada por suas características locacionais e topográficas. Caso a hipótese de utilização do estacionamento fosse descartada, restariam 711 pontos de comercialização, potencial que, de acordo com o relatório, poderia ser dobrado se em vez do uso diário pelos trabalhadores em cada ponto houvesse utilização em dias alternados, o que resultaria numa ocupação de 1.422 trabalhadores. Como foram cadastrados 1.620 trabalhadores em 1997, considerando a hipótese de alternar os dias de utilização dos pontos entre os mesmos, haveria ainda um déficit de 198 pontos de trabalho. Estes números, entretanto, não chegam a considerar


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a exclusão dos que comercializam frutas e verduras, mercadorias tornadas proibidas nesta área. A segunda proposta elaborada por essa gestão consistia na retirada por completo do comércio informal das avenidas e imediações, relocando os trabalhadores para as seguintes áreas: a) Estacionamento São Raimundo, com capacidade para 916 pontos, onde o comércio seria destinado aos importados; b) Largo da Igreja do Rosário, com capacidade para 77 pontos, onde o comércio seria destinado a comercialização de produtos artesanais; c) Praça Carneiro Ribeiro, com capacidade para 213 pontos, com indicação para comercialização de produtos de utilidade doméstica; e d) Rua do Cabeça, com capacidade para 70 pontos, onde a comercialização de palhas e vimes seria mantida. Esta proposta totaliza 1.276 pontos de trabalho. Comparando as propostas, temos que a alternativa 2 da primeira proposta é a que mais disponibiliza pontos de trabalho, considerando a utilização do Estacionamento São Raimundo. Essa proposta, seria melhor do ponto de vista do trabalhador de rua, pois poderia contemplar um maior número deles, contudo não significa ainda que seja a melhor alternativa para a cidade, visto que as opções planejadas por essa gestão foram bastante limitadas, reduzindo-se a apenas 4 ou 5 trechos. Vimos, por exemplo, que a proposta anterior elaborada em 1992 contemplava uma área de ocupação bem mais expressiva. Na Figura 5 apresentamos a perspectiva do projeto para o trecho da Rua do Cabeça, porém informamos que tivemos dificuldade em relacionar a imagem ao local indicado no desenho. Acreditamos que talvez a perspectiva se refira à área do Estacionamento São Raimundo e não à Rua do Cabeça conforme é informado no projeto.


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Figura 5: Avenida Sete de Setembro. Área 3 – perspectiva da área (Rua do Cabeça/Estacionamento São Raimundo). Fonte: Salvador, 1997b.

Podemos notar que, apesar de ser inspirado na proposta elaborada em 1992, o projeto de 1997, segrega a atividade do comércio informal, pois prevê a sua retirada quase completa da Avenida Sete e da Avenida Joana Angélica. Por tratar-se de uma medida de caráter emergencial, a atualização da pesquisa feita pela proposta da gestão anterior também não é totalmente realizada, limitando-se apenas à elaboração de um novo quantitativo por área e das estimativas de crescimento ou decréscimo da atividade entre os períodos analisados. Além disso, fica evidente o caráter repressivo da medida, uma vez que não são propostas soluções para casos como o da comercialização de frutas e verduras, por exemplo, colocando a atuação da prefeitura no sentido da proibição da venda desses produtos. De forma semelhante ao que fizemos com o projeto de 1992, aqui também sistematizamos a análise das propostas apresentadas pelo projeto de acordo com as categorias selecionadas para sua avaliação. Na Tabela 6 estão relacionadas essas análises para cada uma das categorias escolhidas.


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Tabela 6: Síntese da análise do projeto “Comércio Informal: projeto de relocação dos ambulantes da Av. Sete de Setembro e Baixa dos Sapateiros”, 1997 PROPOSTAS APRESENTADAS PELO PROJETO CATEGORIAS DE ANÁLISE Diagnóstico da situação

A proposta apresenta um diagnóstico breve sobre a situação do trabalhador de rua, no que faz referência aos estudos anteriormente elaborados em 1992. Atualiza algumas informações sobre o aumento da informalidade entre 1992 e 1997, porém não levanta informações com a mesma minucia do projeto anterior. A proposta apresenta um tipo de cobertura capaz de dar algum Conforto ambiental nível de proteção aos trabalhadores no que se refere às intempéries do dia. Entretanto, essa cobertura parece ser confeccionada em lona colorida, não havendo estrutura para captação e drenagem da água da chuva, por exemplo. Como não temos informações sobre realmente qual é o tipo de material utilizado, não podemos avaliar o quanto ele é capaz de proteger do sol sem gerar um desconforto térmico. Infraestrutura de suporte Nada é apresentado no projeto no que se refere às estruturas de suporte à atividade. Não há informações sobre o armazenamento das mercadorias, estrutura de sanitários públicos ou destinados aos trabalhadores de rua, tampouco informações sobre a coleta de lixo nos pontos de trabalho. Não foram encontradas informações sobre o tipo de pavimentação a ser utilizado ou as obras que seriam realizadas para implantação dos novos locais de trabalho, nem informações sobre a iluminação pública. O projeto não apresenta parâmetros ou cálculos para densidade Densidade de ocupação de ocupação na área de intervenção. Relação proposta e o Podemos observar pelo exposto no projeto que os locais propostos segregam a atividade do trabalhador de rua das áreas entorno mais movimentadas e criam uma estética que pouco tem a ver com o lugar. Fonte: Elaboração da autora com base na análise do projeto, 2015.

Podemos observar como um todo, que o projeto elaborado em 1997 é menos sensível a questão do trabalhador de rua. No entanto, os impactos das medidas, bem como a opinião daqueles que vivenciaram esse processo serão abordados no Capítulo 3, quando estivermos tratando dos conflitos e tensões que permeiam a atividade do trabalhador de rua. Por ora, seguiremos aqui com a análise dos projetos elaborados em 2014.


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2.3.3 Propostas em 2014 

Plano de requalificação e reordenamento de ambulantes de Salvador, 2014

Somente em 2014 a questão do trabalhador de rua voltou a ser tratada no âmbito do planejamento urbano da cidade de Salvador, após um hiato de 10 anos sem que nenhuma proposta fosse apresentada pelo poder público, período que corresponde à gestão do prefeito João Henrique Carneiro, eleito duas vezes entre os anos de 2005 à 2012. Esta lacuna no tratamento da questão justificou uma ação, também realizada em caráter emergencial, pela gestão do prefeito Antônio Carlos Magalhães Neto, iniciada no ano de 2013, poucos meses após sua posse. Ressaltamos que o caráter emergencial desta vez não se relaciona com uma crise no emprego, já que no referido período houve decrescimento da taxa de desemprego no país. A emergência parece estar relacionada então, com a ausência da questão nas políticas públicas propostas e realizadas pelo poder público na gestão anterior. Cabe destacar também que a nova gestão da prefeitura tem tido ações que privilegiam os interesses corporativos e gentrificadores na região do centro antigo da cidade, sobre os quais não poderemos nos aprofundar no momento.17 A ação proposta no âmbito da gestão 2013-2016 vem sendo executada através da Secretaria de Ordem Pública (SEMOP), que carrega em si a missão disciplinadora do espaço público. Sua intervenção aparece no âmbito do plano de requalificação e reordenamento de ambulantes de Salvador, que se desdobra em três projetos principais: Requalificação da Av. Sete de Setembro – ordenamento do comércio informal; Requalificação do Mercado 2 de Julho; e Projeto Avenida Sete – território empreendedor. Não foi possível ter acesso ao plano de maneira integral, pois o mesmo não foi publicado, nem tampouco disponibilizado pela atual gestão. Contudo, teve-se acesso aos documentos das ações mencionadas anteriormente, onde constam basicamente pranchas de plantas baixas e vistas do projeto executado.18 Diferentemente do que se relata sobre o projeto elaborado em 1997 na gestão de Imbassahy, o processo de ordenamento de 2013-2015 contou com a realização de reuniões entre as associações e sindicatos de trabalhadores do comércio

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Cabe mencionar uma declaração proferida pela secretaria de Ordem Pública, que põe em evidencia uma tentativa de uniformização do espaço apoiada no discurso da necessidade de ordenamento do centro da cidade. Ela declarou de forma polêmica no início da nova gestão que “enfrentamos dificuldades na estética da cidade. Precisamos realizar um trabalho de maquiagem para receber [os visitantes]... Mas não só para isso, mas também tornar a cidade boa para quem mora aqui. Esse que é o objetivo principal” (Mendes, 2012). 18 Para auxiliar no entendimento do processo e na ausência de documentos oficiais fornecidos pela prefeitura, foram utilizadas também informações contidas nas publicações do Diário Oficial do Município e em jornais de grande circulação no município.


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informal e o poder público, com parceria do SEBRAE. Após a realização dessas reuniões com as lideranças, a nova secretaria chega a um projeto que prevê a transferência de todos os trabalhadores da Avenida Sete de Setembro para as transversais constantes no Mapa 03, contemplando apenas aqueles que possuem licença.

Mapa 3: Ruas contempladas com o projeto de ordenamento. Fonte: Elaboração da autora, 2015.

Iniciado no mês de junho do ano de 2013, no final do ano de 2014 a obra já contava com a reforma estrutural de praticamente todas as transversais da Avenida Sete de Setembro, restando apenas para conclusão a reforma da Praça do Relógio de São Pedro, Rua Onze de Junho, Rua Vinte e Um de Abril e Rua Nova de São Bento. Na Figura 6 pode-se observar o que fora divulgado por meio de jornais de circulação local a respeito do projeto de requalificação.


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Trata-se de perspectivas da nova estrutura de trabalho e mobiliário proposto. A Figura 7 traz o registro de uma das ruas que já passaram pela reforma.

Figura 6: Projeto para o Largo do Rosário. Fonte: Correio da Bahia, 2013.

Figura 7 Largo do Rosário reformado. Fonte: Foto da autora, 2014.

Nas 13 áreas o projeto executado conta com obras de saneamento, iluminação e pavimentação, onde a pedra portuguesa foi substituída por piso intertravado e se inseriu rota acessível para o uso de pessoa com deficiência visual. Houve também a implantação de cobertura em policarbonato sobre estrutura metálica (SALVADOR, 2014). Alguns aspectos relativos à implantação do projeto, entretanto, são questionáveis. É o caso, por exemplo, da não existência de calhas para captar e canalizar a água da chuva e do conforto térmico. Contudo, por se tratar do projeto executado no período em que os estudos empíricos desta dissertação também se realizavam, tais observações não podem ser conclusivas. No ano de 2014 há ainda o projeto para requalificação do Mercado 2 de Julho, sintetizado na Figura 8, que prevê a transferência dos trabalhadores de rua que atuam na Rua do Cabeça para um mercado que será implantado na Praça General Inocêncio Galvão.


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Figura 8: Proposta de requalificação do mercado das flores (Largo 2 de Julho) / Praça General Inocêncio Galvão Fonte: Machado, 2014. (Jornal A Tarde)


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Em janeiro de 2014 foi realizada uma ação que retirou deliberadamente todos os trabalhadores da Rua do Cabeça, não considerando aqueles que possuíam licença. Após esta ação, associações que representam os interesses dos trabalhadores de rua e associações do bairro Dois de Julho requisitaram que o projeto fosse apresentado e discutido, o que foi atendido pela prefeitura. Foram realizadas reuniões para apresentação do projeto, onde se negociou a substituição dos quatro boxes para dez, adequados para os peixeiros, com sanitários, pontos de água e pontos destinados a coleta de lixo. Além da área construída com alvenaria, há também uma área destinada para 44 trabalhadores, que são aqueles que hoje estão na Rua do Cabeça e Largo das Flores e, após a reforma, comercializarão em mobiliário removível, fornecido pela prefeitura.19 Na Figura 9 podemos ver parte do Largo das Flores com a presença de feirantes em fotografia tirada no ano de 2012 e na Figura 10 temos o registro de uma das reuniões realizada entre moradores, trabalhadores e a prefeitura de Salvador para discussão do projeto para requalificação do mercado do Dois de Julho, realizada na sede da SEMOP. De acordo com informações divulgadas no Jornal A Tarde, a obra está orçada em R$2,6 milhões e levará 8 meses para ficar pronta (MACHADO, 2014).

Figura 9: Rua do Cabeça e “Largo das Flores”, bairro Dois de Julho. Fonte: Foto da autora, 2012.

19

Figura 10: Reunião para discussão do Projeto de Requalificação do Mercado Dois de Julho. Fonte: Foto da autora, 2012.

Atualmente os trabalhadores guardam as mercadorias ou por conta própria, em depósitos existentes no próprio bairro, ou as deixam no próprio ponto, cobertas por lona e cordões bem amarrados. Após a reforma, por se tratar de mobiliário removível, será necessário que todos guardem suas mercadorias em depósitos, o que poderá implicar em maiores despesas para boa parte dos trabalhadores dessa área.


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Programa Avenida Sete de Setembro – Território Empreendedor, 2014

Por fim, no âmbito das ações voltadas para a atividade do trabalhador de rua criadas na gestão de 2013-2016, há ainda o Programa Avenida Sete de Setembro – Território Empreendedor, que consiste numa proposta de articulação entre os agentes econômicos, políticos e sociais, localizados na Avenida Sete. Este programa, iniciado no ano de 2014, se constitui como elemento de estruturação e ajuste das atividades econômicas, voltado para ampliação das possibilidades de inserção e geração de emprego e renda na Avenida Sete, concebida enquanto um território particular da cidade. Para sua execução estão sendo realizadas reuniões com ambulantes, comerciantes, técnicos da prefeitura, acadêmicos e profissionais do Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE) e da Câmara de Dirigentes Lojistas de Salvador (CDL). O plano de ação do Programa Avenida Sete de Setembro – Território Empreendedor possui seus eixos de atuação nas seguintes áreas: empreendedorismo, empreendedorismo social e acesso a crédito; desenvolvimento urbano; economia criativa, cultura e turismo; comunicação e marketing; e prevenção à violência e assistência social (SALVADOR, 2014). Como o projeto ainda está em processo de concepção, não será possível realizar análise crítica sobre ele, porém considera-se importante destacá-lo por conta das transformações que pretende no espaço. Em reunião realizada em um auditório da CDL, no dia 21.11.2014 para apresentação do projeto de requalificação urbana Av. Sete e Rua Chile, que fazem parte do programa acima mencionado, foi levantado que um dos maiores problemas da região é de cunho urbanístico, resultante do conflito existente entre o pedestre, o veículo e o comércio informal. De acordo com as informações apresentadas pela prefeitura, este é um conflito que não atrai moradores de outras áreas da cidade para a localidade. Sendo assim foi proposto o alargamento do passeio do lado esquerdo da avenida, no sentido do Campo Grande à Praça da Sé, que poderá ser efetuado com a redução de uma das faixas de rolamento da via. Esta medida deixa espaço apenas para uma faixa de estacionamento, ao invés de duas em cada lado da via como existe hoje. A Figura 11 traz um exemplo de uma das áreas do projeto.


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Figura 11: Trecho da Avenida Sete com parklet. Fotografia retirada de slide apresentado durante reunião convocada pela SEMOP em 21-11-2014. Fonte: Foto da autora, 2014.

Além das proposições mencionadas acima, está ainda previsto o enterramento dos cabos de energia dos postes e implantação de parklets em alguns trechos da via, com bancos para descanso dos pedestres. As medidas apresentadas, entretanto, não propõem soluções para melhoria da coleta de lixo ao longo da via, considerado um dos grandes problemas da área, embora preveja um aumento na implantação das lixeiras públicas ao longo do trajeto. Cabe ressaltar que as praças existentes ao longo do referido trecho da Avenida Sete também passarão por obras de requalificação, porém os projetos foram apenas apresentados em vídeos. As praças às quais nos referimos são o Largo de São Bento e Praça Barão Rio Branco (Relógio de São Pedro), que se encontram em reforma, conforme podemos notar nas Figuras 12 a 15.

Figura 12: Largo de São Bento em reforma. Fonte: Fotos da autora, 2012.

Figura 13: Largo de São Bento antes da reforma. Fonte: Fotos da autora, 2014.


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Figura 14: Praça Barão Rio Branco (Relógio de São Pedro) antes da reforma. Fonte: Fotos da autora, 2012 Figura 15: Vista de cima da Praça Barão Rio Branco (Relógio de São Pedro), em reforma. Fonte: Fotos da autora, 2014.

Semelhante ao que foi realizado para os projetos anteriormente apresentados, assim também realizamos uma análise dos projetos elaborados em 2014 com base nas nossas categorias de análise, conforme consta na Tabela 7. Tabela 7: Síntese da análise dos projetos “Plano de requalificação e reordenamento de ambulantes de Salvador”, “Requalificação do Mercado 2 de Julho” e “Programa Avenida Sete de Setembro – Território Empreendedor”, 2014. CATEGORIAS PROPOSTAS APRESENTADAS PELO PROJETO DE ANÁLISE Diagnóstico da Não foram encontradas informações sobre o diagnóstico elaborado pelo poder público em 2014, no sentido de atualizar e informar sobre a situação problemática do trabalhador de rua para os projetos estudados, inclusive no sentido de justificar as ações propostas. As informações que conseguimos coletar foram dispersas, disponibilizadas sobretudo através de notícias de jornal e do Diário Oficial do Município. Com relação à proposta elaborada no âmbito do “Plano de requalificação Conforto e reordenamento de ambulantes de Salvador”, podemos notar que apesar ambiental da existência da cobertura, a mesma não foi confeccionada com material adequado, o que causa grande desconforto térmico para os trabalhadores, que sofrem bastante com o calor sob a estrutura. Ainda sobre a cobertura implantada, verificamos que proteção com relação a chuva deixa a desejar, já que podemos notar em diversos pontos a existência de improvisos com lona para evitar que a água da chuva molhe tanto os trabalhadores, quanto sua mercadoria. Além disso, não foram implantadas calhas.


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Infraestrutura de suporte

Densidade ocupação Relação proposta entorno

e

A pavimentação de todas as ruas que estão passando pela intervenção foi substituída por piso intertravado. A prefeitura informa ainda que realizou obras de drenagem nas localidades. Com relação à disposição do lixo, além das lixeiras públicas que foram distribuídas nas ruas de intervenção, apenas no bairro 2 de Julho será implantado, segundo o projeto, contêineres para armazenamento dos resíduos. Também com relação aos sanitários, apenas no bairro 2 de Julho há proposta de implantação desse equipamento. Nos demais pontos da Avenida Sete, nada aparece nas plantas disponibilizada. Houve informações obtidas através de entrevistas com as lideranças dos trabalhadores de rua (que serão melhor apresentadas no próximo capítulo), de que a implantação dos sanitários está em discussão com a prefeitura. Sobre o armazenamento de mercadorias, nada aparece nos projetos. Fomos informados também através de entrevista com o responsável pelo setor de Licenciamento e Fiscalização da SEMOP, cuja entrevista também será apresentada no próximo capítulo, que a prefeitura não pode bancar com essa estrutura, pois ela demanda também um custo com a segurança do local e do material. O projeto “Avenida Sete de Setembro – Território Empreendedor” não pode ser avaliado, pois não conseguimos dispor de informações mais precisas sobre o mesmo. de Os projetos não apresentam parâmetros ou cálculos para densidade de ocupação na área de intervenção. Com relação às propostas apresentadas podemos notar, de maneira geral, o uma desarticulação entre a cobertura proposta e a morfologia urbana do entorno. Este aspecto fica mais evidente principalmente nas ruas da Avenida Sete. No caso do 2 de Julho, a relação entre a proposta visual e o entorno também nos parecem em desarmonia e deslocam o vendedores de frutas para uma área relativamente distante dos locais onde há mais gente circulando, o que pode vir a prejudicá-los em suas vendas e fazêlos retornar para o local de origem.

Fonte: Elaboração da autora com base na análise do projeto, 2015.

A ausência de informações sobre a densidade de ocupação em todos os projetos estudados revela um nível de inconsistência no conhecimento do poder público com relação a real demanda por espaço que a atividade do trabalhador de rua implica. Consideramos que este é um importante dado, capaz de subsidiar um planejamento mais eficaz, pois através do conhecimento sobre a densidade de ocupação é possível saber realmente em quais áreas a atividade influencia no direito de ir vir dos transeuntes e em quais áreas ela não é tão relevante. Por este motivo, sentimos a necessidade de avaliar como a situação se encontra hoje na Avenida Sete, ruas de seu entorno e bairro Dois de Julho, que trataremos a seguir.


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2.4 A densidade de ocupação

O espaço demandado pelo trabalhador de rua não é apenas aquele ocupado materialmente pela estrutura física do seu mobiliário. Além do espaço ocupado pelo mobiliário, que por vezes extrapola os limites pré-estabelecidos pela municipalidade, ocupa-se também um espaço para o desenvolvimento funcional da atividade. A Figura 16 ilustra esquematicamente como se dá a demanda da atividade pelo espaço, e através dela podemos identificar a área ocupada pelo mobiliário e o dimensionamento da faixa utilizada pelos compradores das mercadorias, aqui denominada de “faixa de utilização”. Para a definição do dimensionamento dessa faixa, se levou em consideração a dimensão referencial para deslocamento de pessoas em pé da NBR 9050/2004, que é de 0,60m para pessoas sem órteses. Se considerarmos que a rua esquematizada possui as dimensões de 8X5m e área de 40m², a área demandada pela atividade corresponderia a cerca de 30m² ou 70% do total da rua. Esta informação é importante, pois ilustra o que pode ocorrer na maioria dos casos nas ruas estudadas, em que o espaço físico requerido pela atividade dos trabalhadores de rua é maior do que as dimensões do mobiliário fixo podem indicar, restando no final para o transeunte muito pouco do total que deveria estar disponível para sua circulação.

Figura 16: Esquema de espaço demandado pela atividade do trabalhador de rua. Fonte: Bouças, 2012.


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Compreender essa questão é fundamental tanto para que possamos dar conta da interpretação sobre a densidade de ocupação da atividade do trabalhador de rua nas localidades que estudamos nesta dissertação, quanto para que possamos analisar o tratamento dessa questão nos projetos encontrados. A densidade de ocupação que buscamos avaliar aqui difere da comumente estudada pelo planejamento urbano, que se dá mais na escala da unidade de vizinhança, do bairro ou da cidade. Para esses casos, a densidade costuma ser calculada através da relação entre a população e a área ocupada, geralmente dada em km² ou hectares. Em nosso caso, buscamos a densidade de ocupação das ruas, que está em uma escala maior e para qual não encontramos parâmetros na literatura pesquisada. Por este motivo, fizemos um esforço para tentar compreender a relação proporcional entre a área ocupada pela atividade e a área destinada aos pedestres nas ruas e para tal, além de precisarmos ter em mente o que o esquema anteriormente apresentado na Figura 16 indica, é preciso estarmos atentos também ao fato de que diferentes arranjos entre o mobiliário e a faixa de utilização são possíveis. As Figuras 17, 18 e 19 indicam essas possibilidades e as respectivas áreas encontradas para cada caso.

Figura 17: Situação 1 - Demanda de espaço pela atividade, considerando mobiliário independente de outros. Fonte: Elaboração da autora, 2015.

Figura 18: Situação 2 - Demanda de espaço pela atividade, considerando mobiliário de quina ou encostado com outros. Fonte: Elaboração da autora, 2015.


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Figura 19: Situação 3 - Demanda de espaço pela atividade, considerando mobiliário encostado com outros ou com a parede. Fonte: Elaboração da autora, 2015.

As áreas encontradas para cada uma das situações hipotéticas apresentadas, nos ajudará a calcular a área demandada pela atividade do trabalhador de rua. Para isso, multiplicamos a média dos valores das situações hipotéticas (2,68m²) pelo valor encontrado para a média de trabalhadores contados na área de estudo (conforme consta na contagem do Apêndice C). Salientamos, porém, que em nossa área de estudo temos dois tipos de situação: A) ruas completamente pedestrianizadas20, ou seja, por onde não transitam carros; e B) ruas que dividem o espaço entre pedestres e veículos. No caso “A”, as ruas estudadas podem ser mais densamente ocupadas pelo trabalhador de rua, pois há mais espaço disponível para ser compartilhado com o pedestre. No caso “B”, o espaço disponível é apenas o espaço da calçada e a atividade do trabalhador de rua compete muitas vezes com os demais usos da rua. No croqui esquemático apresentado na Figura 20, representado utilizando as normas para o dimensionamento de calçadas estabelecido pela NBR9050/2004, temos que numa rua com duas faixas de rolamento a área destinada para o trânsito de veículos corresponde à aproximadamente 73% da via. Já a parte da calçada corresponde aos outros 27%, e destes, 13% corresponde ao passeio.

20

De acordo com Cruz (2006), a pedestrianização compreende a exclusão do automóvel pela implementação de calçadas em toda a largura do logradouro. O objetivo nesses casos é reduzir o trânsito nos centros históricos ou em áreas de comércio varejista intenso, de modo a tornar o ambiente mais agradável para o pedestre.


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Figura 20: Representação esquemática de uma rua. Fonte: Elaboração da autora, 2015.

Entender a distribuição de proporções entre os usuários desse espaço foi importante para que pudéssemos estabelecer os parâmetros para as densidades de ocupação das ruas estudadas. O esquema abaixo (Figura 21) sintetiza os parâmetros estabelecidos para os casos de rua tipo “A”, pedestrianizadas. Nesse caso, o que define a densidade de ocupação da rua é a relação entre a área ocupada pelo trabalhador de rua e o quanto ela ocupa da área total da rua onde ele se encontra. Assim temos que, quando:

Figura 21: Esquema densidade de ocupação – Ruas tipo “A”. Fonte: Elaboração da autora, 2015.

Para os casos das ruas tipo “B”, ou seja, daquelas ruas onde o espaço divide-se entre a área destinada aos veículos e a área destinada aos pedestres, o que define a densidade de ocupação da rua é a relação entre a área ocupada pelo trabalhador de rua e o quanto ela ocupa da área total do passeio (Figura 22). Assim temos que, quando:


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Figura 22: Esquema densidade de ocupação – Ruas tipo “A”. Fonte: Elaboração da autora, 2015.

Assim, utilizando os dados colhidos com a contagem dos trabalhadores por rua, e as áreas contabilizadas para cada uma dessas ruas, conseguimos definir a densidade de ocupação verificada quando foi realizado o trabalho de campo desta dissertação. Os cálculos realizados bem como os resultados encontram-se no Apêndice F. Com base nos resultados obtidos foi possível fazer uma espacialização das densidades de ocupação observadas quando da realização do levantamento de campo. Através do Mapa 04 podemos observar que a área mais densamente ocupada pelos trabalhadores de rua está num raio de 170,5m e abrange a localidade acessada diretamente pela Estação da Lapa, onde estão os dois shoppings centers da região, duas importantes praças (Piedade e Barão do Rio Branco – Relógio de São Pedro), e no acesso ao bairro Dois de Julho pelas ruas do Cabeça e da Forca. A concentração dos trabalhadores de rua nessas imediações específicas, portanto, se justificam pelos atratores presentes na localidade e indicam que essa pode ser a área por onde mais circulam transeuntes na região, já que essa é uma condição importante para escolha da localização dos trabalhadores, quando eles têm essa opção. Uma leitura sobre essa observação pode ser mais completa ainda se lembrarmos do que nos disse Jane Jacobs (2011) sobre as condições para a diversidade urbana. Esta região mais densa liga um dos bairros residenciais mais dinâmicos do centro com a Avenida Sete de Setembro. Aí temos circulando tanto os residentes do bairro, quanto os trabalhadores e comerciantes que se encontram na região. Percebemos, portanto, o papel da combinação dos usos do lazer, trabalho e moradia, conectados por um importante articulador que é a Estação da Lapa.


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Mapa 4: Densidade de ocupação na área de estudo. Fonte: Elaboração da autora, 2015.

Conseguir visualizar onde a atividade se concentra no espaço em nossa área de estudo é um passo importante para ampliar nossa percepção sobre ela, para além da análise da legislação e dos projetos que estudamos. Porém, para avançarmos mais, é preciso também compreender quem são aqueles responsáveis pela execução da atividade. As ações do poder público podem ser concebidas, com o intuito de organizar, ordenar ou coibir os usos que não considera compatíveis com os interesses que se tem sobre o espaço público. Ainda que as permissões para que os trabalhadores possam explorar o logradouro público sejam precárias, ou seja, possam ser retiradas no momento em que este seja o interesse da prefeitura, isto não significa necessariamente que a atividade possa ser totalmente eliminada ou controlada. Assim,


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podemos nos questionar até que ponto é possível que tais representações do espaço, utilizando aqui os termos de Lefebvre, são capazes de, de fato, exercer controle sobre os processos efetivos de apropriação criativa dos espaços. Desta forma, nos deteremos a seguir às práticas cotidianas presentes nos espaços de representação, ou seja, aquelas que ocorrem no âmbito do vivido, naquilo que se refere ao trabalho exercido nas ruas de Salvador.


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3 O TRABALHO DE RUA EM SALVADOR: OS PROTAGONISTAS, SUAS CARACTERÍSTICAS E FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE

A atividade dos trabalhadores de rua está marcadamente presente no cotidiano da sociedade soteropolitana e interfere diretamente na dinâmica da cidade, sobretudo do centro antigo aqui em questão. No entanto, ela não se refere apenas ao espaço e as intervenções nele incidentes ou apenas aos trabalhadores em si. Além de ser necessário compreender quem eles são, é preciso buscar entender também o seu papel e o das associações e o sindicato, enquanto entes representativos dos interesses dos trabalhadores. Nesse sentido, buscamos ainda nos aproximar da visão atual da prefeitura sobre a atividade, através de uma entrevista realizada com representantes do setor responsável pela fiscalização e licenciamento. Destacamos ainda que reconhecemos a relação dos transeuntes e lojistas com a atividade, porém eles não serão abordados em nossa pesquisa. O presente capítulo é iniciado com a apresentação dos protagonistas da atividade aqui estudada, começando pelas associações que representam os interesses dos trabalhadores de rua e posteriormente por eles próprios, sujeitos que a tornam possível. Em seguida, essas pessoas são apresentadas através de uma narrativa contendo as informações e impressões do campo. Por fim, com a finalidade de possibilitar uma percepção ampliada da atividade do trabalhador de rua em Salvador, serão apresentadas três propostas de entendimento sobre o funcionamento da atividade, que são distintos, porém intrinsecamente ligados: a subordinação, os conflitos, e o pertencimento e solidariedade.

3.1 As associações/sindicatos Iniciamos este capítulo buscando entender o papel na atividade são as entidades que representam os interesses dos trabalhadores de rua, ou seja, o sindicato e as três associações existentes. Para tal, foram entrevistadas as quatro lideranças dessas entidades utilizando o roteiro disponível no Apêndice E. É importante salientar que o quadro dessas lideranças é composto por quatro homens casados, com idades entre 48 e 54 anos, e escolaridades entre o ensino fundamental incompleto e ensino médio completo. Três deles são naturais de outras cidades do interior da Bahia e apenas um nasceu em Salvador. Buscamos levantar a forma como eles denominam o trabalho que realizam e verificamos que não há um consenso no que se refere à nomenclatura, ainda que a descrição do


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conceito por eles elaborado muito se aproxime. Dois deles identificam a atividade como ambulante, um como trabalhador informal e outro como comerciante. Ao somarmos suas respostas, podemos chegar à descrição da atividade exercida como: “meio de sobrevivência da pessoa que não tem emprego fixo, que vende todo tipo de mercadoria que se possa vender em local aberto e conectado com a cidade, com o intuito de obter lucro”. Neste momento, será apresentada cada uma das associações e o sindicato, destacando o tempo em que cada liderança se envolve com sua respectiva entidade, quem pode se associar, quais os critérios, quantos são os associados e quais os principais desafios e conquistas enfrentados por eles durante o seu tempo de atuação. Ressalta-se ainda que consideramos que o olhar para as questões da entidade perpassa pela pessoa que a representa, seu perfil e histórico de atuação, motivo pelo qual faremos uma breve apresentação dessas pessoas. Começaremos a apresentar as entidades por aquela que é a mais antiga: o Sindicato dos Feirantes e Ambulantes da Cidade de Salvador (Sindifeira)21, fundado em 1966 e que conta com 16 membros na atual chapa, os quais assumiram seus cargos após a última eleição, realizada em dezembro de 2013. As eleições para o sindicato ocorrem de 4 em 4 anos e o representante com quem conversamos é o atual presidente da entidade, Marcílio Costa Santos, que está no seu segundo mandato e autorizou o uso de sua entrevista22. Ele conta que começou a ser feirante quando ainda morava em Valença, seguindo o exemplo do pai. Para fazer parte do Sindifeira é preciso ser feirante ou ambulante, ter os documentos básicos exigidos (CPF, RG, duas fotos 3X4 e comprovante de residência) e pagar uma taxa mensal de R$15,00. Quem não é licenciado pela prefeitura também pode fazer parte do sindicato. Para isso basta que o trabalhador prove que realiza a atividade através de fotos e testemunhas. O sindicato faz uma averiguação no local, antes de confirmar a adesão do novo membro. Marcílio estima que hoje existam mais de 26.000 associados ao Sindifeira, onde cerca de 1.200 destes são ambulantes da Avenida Sete, conforme censo realizado pela entidade entre os anos de 2012 e 2013. Nesta ocasião foi levantado também a área em que o trabalhador atua, o produto que vende e sua situação com o órgão competente, informações que ainda não se encontram sistematizadas. Apesar do grande número de associados, Marcílio conta que a inadimplência é bastante expressiva. Ele acredita que isso se deve ao grande número de 21

Como podemos notar no próprio nome do sindicato em questão, sua atuação é tanto com os ambulantes, trabalhadores de rua, quanto com os feirantes. 22 A entrevista com o presidente do Sindifeira foi realizada no dia 22 de janeiro de 2015, na Feira de São Joaquim, onde Marcílio tem seu ponto.


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trabalhadores aposentados atuando na área, aos quais fica garantido pelo estatuto o direito à isenção da taxa. Além de representar os interesses coletivos do segmento, o Sindifeira oferece também orientação jurídica aos seus associados por meio de um advogado e atendimentos médicos nas áreas de clínico geral, cardiologista, dentista e ginecologista. Esses profissionais são pessoas pagas pelo sindicato e oferecem uma cota mensal de atendimento aos trabalhadores. Assim como o sindicato, que possui maior legimitidade jurídica para negociar em prol da categoria, há também outras três associações que trabalham pelo segmento. A primeira entidade delas é a Associação Integrada de Vendedores Ambulantes e Feirantes de Salvador (Assindivan), cujo presidente é Valmir Sales Fonseca que está no ramo há 40 anos e começou a trabalhar com a família quando ainda era bem jovem23. Ele conta que, todos os dias ao sair da escola, levava almoço para os tios e primos que trabalhavam na Baixa dos Sapateiros. Lá passava a tarde e ganhava alguns trocados no final do dia, o que o levou a pegar gosto pelo trabalho. O presidente da Assindivan se envolve com as questões políticas de sua classe desde 1994, quando era membro de um sindicato extinto, posteriormente transformado em uma associação também extinta. Essa associação também foi desmembrada e deu origem a Assindivan no ano de 2013, com uma gestão compartilhada entre os seus dirigentes. Valmir conta que a associação nasceu com o intuito de tomar a frente da arrumação da Avenida Sete no âmbito do projeto de ordenamento da nova gestão municipal. Porém, em seu novo formato, ainda não há nenhum associado pagante. A Assindivan está funcionando com base no trabalho voluntário de seus dirigentes e só haverá inscrição de associados quando a situação das vendas para o trabalhador de rua melhorar, o que se espera que aconteça após a conclusão das obras do projeto. Valmir conta que, para se inscrever na entidade será necessário estar devidamente regularizado junto ao poder público, ou seja, estar licenciado. A Assindivan pretende ter entre seus membros, portanto, todos trabalhadores licenciados na região da Avenida Sete que voluntariamente queiram se associar. Para Valmir o trabalho da Assindivan possui três pilares: o cidadão de Salvador, o trabalhador de rua e o poder público. Para ele o cidadão deve estar em primeiro lugar, pois reconhece que quando ele sai para qualquer outro lugar ele precisa da calçada para se deslocar. E para que o espaço da calçada seja preservado ao cidadão é preciso que haja um bom diálogo

23

A entrevista com o presidente da Assindivan foi realizada no dia 17 de novembro de 2014, no Largo do Rosário, onde Valmir tem seu ponto.


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entre a prefeitura, responsável por ordenar o espaço público, e o trabalhador de rua, “que precisa ganhar o pão de cada dia”, segundo suas próprias palavras. O momento mais dramático que Valmir já vivenciou em sua experiência de liderança foi nos anos 1992 e 1997. Naquela época foi feito um cadastro de trabalhadores existentes entre o Campo Grande a Praça Castro Alves, resultando num quantitativo de 3.300 ambulantes. Ele conta que a gestão da prefeitura daquele período foi associando essas pessoas ao mesmo tempo em que faziam o cadastro, dando-lhes a esperança de que todos teriam onde trabalhar. Porém, o projeto elaborado contemplava apenas 453 pessoas, que teriam que trabalhar em uma nova área nas proximidades da Ladeira da Montanha. Para garantir que a proposta fosse cumprida, a municipalidade proibiu que qualquer ambulante colocasse seu mobiliário na Avenida Sete utilizando a presença policial para coibir os trabalhadores que tentassem infringir a determinação no trecho em questão. Valmir relata que ao contrário do que aconteceu no passado, quando as decisões eram tomadas de cima para baixo, agora é possível que as entidades representantes do segmento consigam negociar diretamente com a prefeitura. Porém, apesar disso, já aconteceram algumas ações consideradas como desastradas pelo presidente da Assindivan, como foi o caso da retirada aleatória de todos os trabalhadores, sem tampouco considerar os que possuíam licença, da Rua do Cabeça, no Dois de Julho, ocorrida em janeiro de 2014. A Assidinvan foi uma das associações procuradas após a ação e junto com outros movimentos conseguiu articular reuniões com o poder público que reverteram a situação e contribuíram para participação do segmento na elaboração do projeto de requalificação do bairro Dois de Julho, onde foram negociados os locais destinados e as condições para a atividade do trabalhador de rua no bairro. Para Valmir, algumas das principais conquistas do segmento em Salvador atualmente, além das 13 áreas indicadas pela prefeitura para a realização atividade, foram a pedestrianização da Rua da Forca, que antes funcionava como retorno para os automóveis e o reconhecimento da lateral da Caixa Econômica, na Rua Clóvis Spínola, como uma área também destinada para a atividade. Ele conta que no início da atual gestão a proposta era de se criar um camelódromo atrás da Secretaria de Segurança Pública, na Piedade. Porém tal proposta, apesar de contar com um projeto para cerca de 1.200 trabalhadores, foi rechaçada pela categoria, pois não atendia às necessidades deles, já que sua implantação implicaria em uma segregação do trabalhador com a rua, distanciando-os conseqüentemente do seu público. Para ele, a prefeitura gastaria dinheiro investindo em um projeto que não daria em nada, pois, quando as vendas caíssem, as pessoas retornariam para seus locais de origem. Assim, após reuniões entre o poder


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público e a categoria, chegou-se à proposta que está em execução, onde ocorre a adequação das transversais da Avenida Sete. A terceira entidade de que falaremos é Associação dos Trabalhadores Informais de Salvador (Assinformal), uma associação um pouco mais antiga do que a Assindivan, com quatro anos de funcionamento, mas que atualmente está sendo modificada com a revisão do seu estatuto. O interlocutor com quem conversamos é o presidente da entidade, Arismário Nunes Barreto, mais conhecido como Alemão 24. Ele nasceu na cidade de Santa Luz, mora em Salvador há 30 anos e há 20 anos trabalha nesta área. Apesar do pouco tempo de existência da Assinformal (14 anos), Arismário se envolve com as questões de sua classe desde 1999. Além de ser presidente da Assinformal, ele também é membro da diretoria do Sindicato de Ambulantes e Feirantes da Cidade de Salvador (Sindifeira). Para fazer parte da Assinformal, Arismário esclarece que basta ser ambulante, ser trabalhador informal, e por enquanto também não está sendo cobrada taxa de adesão para os associados. Por ser uma entidade relativamente nova e que está passando por ajustes, não há informações sistematizadas sobre o número de membros que a compõem. Arismário coloca que a pior fase do relacionamento entre o trabalhador de rua e o poder público foi nos anos de 1997 a 2004. Ele relata que naquela gestão houve muitos casos de violência contra os trabalhadores. Entre as propostas daquela gestão, havia a de criar um camelódromo no estacionamento São Raimundo (próximo ao Shopping Orixás Center) e na Ladeira da Montanha, conforme também relatado por Valmir da Assindivan. O presidente da Assinformal relata que a proposta de camelódromo não foi adiante e que na Ladeira da Montanha, após poucos meses, só restaram cerca de nove trabalhadores. Foi realizado então um deslocamento dos ambulantes para as transversais (becos), porém sem nenhuma estrutura e sem muita discussão. Em contraponto à fase anteriormente citada, Arismário relata que o atual momento é o melhor na relação entre os trabalhadores de rua e a municipalidade, pois agora há diálogo com o poder público, através da Secretaria de Ordem Pública. Contudo, a permanência de pessoas trabalhando na Av. Sete foi inegociável no processo de elaboração do novo projeto de ordenamento, ainda que a associação tenha indicado a permanência de trabalhadores em alguns muros cegos de colégios e igrejas e colunas de lojas ao longo da avenida. Os trabalhadores aceitaram se deslocar para os becos, mas segundo Arismário, enfrentam grandes dificuldades 24

A entrevista com o presidente da Assinformal foi realizada no dia 29 de setembro de 2014, no Beco Maria Paz, onde Arismário tem seu ponto.


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para vender nesses locais, sobretudo porque os clandestinos (pessoas sem licença) continuam vendendo ao longo da Avenida Sete, que para ele não tem sido devidamente fiscalizada. O presidente da Assinformal diz que a entidade está aguardando a conclusão das obras, a fim de verificar se o poder público vai cumprir com o que foi prometido aos trabalhadores e, enquanto isso não acontece, segue no acompanhamento das obras. Para o entrevistado, o melhor dessa nova gestão é justamente o processo de negociação mais aberto. Além disso, ele pontua também a cobertura implantada nos becos e a pedestrianização da Rua da Forca, também mencionada pelo presidente da Assindivan. Por fim, temos ainda a Associação dos Feirantes e Vendedores Ambulantes da Cidade de Salvador e Região Metropolitana (Asfaerp), presidida por Marcos Luiz Neves de Almeida, ou Marcos Cazuza25. Ele conta que a crise do emprego entre as décadas de 1980 e 1990 o atingiu fortemente, sobretudo por ter pouco estudo, o que o levou a buscar seu sustento como trabalhador de rua. Marcos Cazuza se envolveu politicamente com as questões de sua classe praticamente desde que começou a trabalhar na categoria e é um dos fundadores da Asfaerp. Sua motivação veio da desmobilização que observou no segmento e da vontade de se organizar para ter uma vida melhor, com mais dignidade. Para fazer parte da Asfaerp, assim como da Assindivan e da Assinformal, não é preciso pagar nenhuma taxa: basta ser trabalhador de rua. A entidade, assim com as demais, vive através dos recursos dos próprios diretores e das contribuições voluntárias dos membros que desejem contribuir. O que garante a participação do membro na associação é a vida efetiva dos companheiros no seu local de trabalho, ou “na pedra”, como eles se referem. Marcos Cazuza conta que há 2.886 trabalhadores associados à Asfaerp, número que não considera apenas os trabalhadores da Avenida Sete e a que se chegou através de um cadastro realizado pela própria associação. A Asfaerp conta também com algumas informações sobre a categoria, levantadas em um censo realizado em 2001, onde se verificou, por exemplo, o nível de escolaridade, o tempo de trabalho “na pedra” (no mesmo local) e a cidade de origem. Não foi possível, no entanto, ter acesso às informações desta pesquisa, pois elas não se encontram na posse da associação e o presidente da associação não soube nos informar onde poderíamos encontrá-la. Para o presidente da Asfaerp o principal problema para a categoria sempre foi o confronto com o rapa26, o que foi acentuado no período de 1997 a 2004, conforme já apontando 25

A entrevista com o presidente da Asfaerp foi realizada no dia 28 de janeiro de 2015, na Estação da Lapa, próximo de onde Marcos tem seu ponto. 26 De acordo com o disposto no dicionário Michaelis (2008) o termo “rapa” refere-se ao “carro que conduz fiscais da Prefeitura e força policial para apreender, na via pública, mercadorias que estejam sendo vendidas por pessoas não licenciadas e pequenos


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pelas lideranças das outras entidades aqui apresentadas. O atual momento é visto por ele também como um momento de diálogo mais aberto e humano. Ele acredita que a organização é um ponto favorável para realização da atividade, que passa a ser vista de outra forma pelo cliente. Sobre esse aspecto, pensa ser fundamental a realização dos cursos que o SEBRAE ofereceu de forma complementar à ação da atual gestão da prefeitura. Os cursos ocorreram de forma gratuita e capacitaram os trabalhadores nas áreas de, por exemplo, empreendedorismo, vitrinismo e idiomas. Marcos Cazuza considera que a principal conquista do trabalhador de rua hoje é a de poder trabalhar adequadamente, garantindo o sustento da família e uma melhor educação para os filhos. No âmbito do novo ordenamento executado pela atual gestão municipal e em decorrência das reuniões com as lideranças até então ocorridas, criou-se também um novo agente: os líderes de rua. Essa liderança surge porque, segundo o presidente da Asfaerp, há uma sobrecarga das associações, que não tem diretores suficientes para cobrir cada área da Avenida Sete. Os líderes de rua agem então como interlocutores entre as associações e os ambulantes em cada rua ordenada e entre as associações e o poder público. Foram escolhidos de acordo com o destaque e envolvimento que assumiram durante o atual processo de negociação com a prefeitura e se constituem como um primeiro agente a tentar resolver um problema estrutural nos becos quando este surge, como, por exemplo, a queima de uma lâmpada ou um furo na cobertura, levando o problema para o conhecimento da prefeitura É importante pontuar que, como podemos notar, as transversais da Avenida Sete que hoje passam por adequações para comportar os trabalhadores de rua, já contavam com pessoas cadastradas para elas desde a gestão da prefeitura de 1997. Por esse motivo, fica claro que não foi possível criar efetivamente muitos novos pontos de trabalho. Nesse sentido, a negociação com as associações e sindicato se deu de forma a contemplar os trabalhadores licenciados na Avenida Sete, de acordo com os seguintes critérios: idade, idade no local de trabalho, deficiência e proximidade de seus antigos pontos com relação às transversais autorizadas. Segundo informações das entidades aqui entrevistadas, o número de trabalhadores licenciados e que poderão permanecer nas transversais da Avenida Sete é de 950 pessoas. A existência dessas quatro entidades com atuação sobre o segmento pode induzir ao pensamento de que talvez ocorra uma sobreposição de interesses e de capacidade de atuação. Sobre isso, os representantes das entidades aqui mencionadas dizem haver uma ajuda mútua

veículos não matriculados.


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entre eles nos processos de negociação, onde são defendidos os interesses coletivos do segmento. Podemos notar ainda que há muitas convergências naquilo que observam sobre a atividade, mas de forma semelhante, há também as divergências. Estas, contudo, serão abordadas posteriormente, quando tratarmos dos circuitos de realização da atividade. Resta-nos então, por ora, aproximarmos nosso olhar daqueles que são os agentes que dão corpo à atividade, que a fazem existir: os trabalhadores de rua.

3.2 Os trabalhadores de rua

Para nos aproximarmos sobre quem são as pessoas que tornam esta dissertação possível, optamos por trazer as histórias de 10 trabalhadores com os quais conversamos durante a realização das entrevistas do questionário de aprofundamento em forma de narrativa, cujo percurso consta no Mapa 05, principalmente porque o conteúdo dessas histórias fornece elementos importantes para o entendimento do trabalho realizado por eles na rua. Esta narrativa, entretanto, não deve ser entendida como uma forma de romantizar a atividade exercida nas ruas da cidade, mas sim como uma tentativa de tornar visíveis aspectos do cotidiano que geralmente não se expõem aos nossos olhos, além de conferir sensibilidade à discussão, o que pode contribuir para ampliar nossa percepção sobre a realidade. Para trazer esta questão à superfície, foram escolhidas as entrevistas dos trabalhadores com quem mais se teve contato durante a pesquisa, ou seja, aqueles com os quais foram realizadas a aplicação dos questionários básicos e de aprofundamento. Aqui não se terá foco apenas nas respostas objetivas dadas aos questionamentos feitos, mas entrará em destaque também um pouco da ambiência e das conversas espontaneamente ocorridas, que serão descritas com inspiração etnográfica. Considera-se que este conteúdo é de extrema relevância e que irá auxiliar bastante na contextualização dos dados que serão apresentados posteriormente, pois faz emergir o entendimento dessas pessoas sobre sua relação com o espaço público e com o centro da cidade no âmbito do trabalho que realizam.


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Mapa 5: Percurso de aplicação do questionário de aprofundamento. Fonte: Elaboração da autora, 2015.

Antes de iniciarmos a história e apresentarmos seus “personagens”, é preciso situar o contexto no qual ela se desdobra. Vimos no capítulo anterior que nos últimos 23 anos a atividade dos trabalhadores de rua sofreu diversas tentativas de regulação pelo poder público, que passa a reconhecer e incorporar a atividade em suas políticas públicas regulando-a e controlando-a. No momento atual, as intervenções propostas pela municipalidade não vem ocorrendo sem conflitos, pois a intenção do novo ordenamento é retirar todos os trabalhadores de rua da Avenida Sete de Setembro, restringindo sua atividade a ruas e transversais específicas. As mudanças ocorridas com a reforma trouxeram diferentes níveis de problemas, tanto para os trabalhadores que atuavam nessas transversais, quanto para os da Avenida Sete. Os trabalhadores das transversais foram deslocados para locais provisórios durante a reforma da rua em que trabalhavam. Segundo muitos relatos, isso aconteceu sem aviso prévio, ou seja, não foi possível avisar aos clientes com antecedência onde estariam durante o período da reforma, o que trouxe diversos tipos de prejuízos para os trabalhadores, desde os emocionais até os financeiros. Para os que trabalhavam na Avenida Sete, a situação foi ainda mais grave,


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pois mesmo com a determinação de não poder mais trabalhar no local, muitos retornam mesmo com o risco de perder sua mercadoria para o rapa. No início da ação da prefeitura era possível sentir um forte clima de tensão ao transitar pela Avenida Sete, com trabalhadores apreensivos e sempre muito atentos a todos os movimentos do entorno. Esse sentimento de insegurança com relação ao trabalho, ou seja, ao sustento cotidiano, infelizmente não foi uma situação pontual para muitos trabalhadores. Nos relatos que leremos a seguir, veremos que situações semelhantes ou piores já ocorreram em outros momentos, onde o jogo entre a norma e a irreverência, a obediência e a resistência se fez presente em suas vidas. Temos então, a ação principal de regular a atividade desencadeando o conflito pela sua permanência. Entendendo, portanto, o conflito principal que se dá na disputa pelo lugar, podemos seguir apresentando o lugar e as pessoas de quem nos aproximamos, suas histórias de vida e sua relação com o trabalho que desenvolvem.

***

Ao percorremos a Avenida Sete com um olhar minimamente atento nos deparamos com uma grande diversidade de situações e acontecimentos, edificações, usos e apropriações. É difícil passar desapercebido(a) pelas diferentes arquiteturas que a margeiam e que pertencem a distintos períodos históricos, onde podemos encontrar, por exemplo, edifícios-galeria, lojas, escolas, bancos, igrejas, mosteiros e praças. Para além desse aspecto, não podemos deixar de mencionar também como característica marcante da Avenida Sete, a diversidade de mercadorias e de gente que por ela circula. Gente que disputa espaço, que caminha com pressa, que caminha lentamente, que desvia dos carros, que tropeça nos buracos da calçada de pedra portuguesa, que se orienta através de uma bengala, que usa cadeira de rodas, que procura o caminho com mais sombra, que compra, que vende, que “mora na rua”, que mora nos prédios ou que apenas passeia e vive o momento no lugar. Temos aí, portanto, um lugar onde a vida pulsa intensamente, seja pelo desenrolar do próprio cotidiano, seja pelo trabalho presente em quase todos os seus cantos. Há ao longo da Avenida Sete um importante número de estabelecimentos comerciais e de serviços, que por sua vez, concentram um grande número de empregos. Juntamente com a abertura das lojas, escolas e clínicas há também a chegada de trabalhadores que possuem empregos formais e informais. Aqueles que possuem empregos formais dirigem-


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se para seus locais de trabalho e lá, teoricamente, encontram a estrutura que precisam para realizar suas atividades. Já os que trabalham no setor informal, sobretudo aqueles que utilizam o espaço da rua, precisam montar e desmontar toda sua estrutura de trabalho diariamente. Assim, se chegarmos entre às 7h e 9h da manhã na Avenida Sete de Setembro, vemos o início da dilatação do dia, onde além de lojas se abrindo, podemos ver também carrinhos deslizando por toda parte sendo empurrados por carregadores. Nesses carrinhos, é transportada toda uma diversidade de mercadorias, armazenadas em grandes caixas de madeira, que pertencem aos trabalhadores de rua que atuam na referida avenida, nas ruas de seu entorno e no bairro Dois de Julho. Aos poucos escutamos aumentar o volume do tilintar das estruturas de metal das barracas sendo montadas e o burburinho de vozes começando a se confundir. No meio do dia, frequentemente com o sol a pino, a agitação do dia se expande. O andar das pessoas é apressado. A disputa por quem grita mais alto para atrair o cliente se intensifica. No caminho alguém oferece “ÁGUA MINERAL GE-LA-DI-NHA!!! OLHA A ÁÁÁÁGUA!”. Em outro ponto pergunta-se: “É EXAMES E CONSULTAS?” e outra pessoa oferece um “CHIP DA TIM”. A calçada torna-se um lugar de disputa e de trânsito intenso. É possível verificar um transbordamento de pessoas para a faixa de rolamento em alguns pontos, onde se disputa o espaço com o automóvel. É neste momento que temos o ápice do movimento da vida nas ruas do centro da cidade. Com o anoitecer, vem a retração da dilação do dia. Parte dos trabalhadores dirigese para os pontos de ônibus de volta para casa. Outra parte desloca-se a pé mesmo, pois mora nas proximidades do centro. Os trabalhadores de rua começam a desmontar suas barracas e armazenar as mercadorias para que os carregadores possam levá-las e guardá-las até o dia seguinte nos depósitos, localizados geralmente ali bem perto de onde trabalham. É também na noite que se verifica um novo movimento nesse lugar, que cede lugar para a prostituição, usuários de droga e transito das pessoas em situação de rua, que buscam locais para se abrigar e passar a noite.


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Mosaico de imagens. Fonte: Fotos da autora, 2012-2014.


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Diversos conflitos podem ser percebidos nesse lugar e ocorrem, dentre outros motivos, devido a mistura de usos e apropriações que se expressam nesse espaço. A atividade do trabalhador de rua é uma delas e sua permanência não se dá sem resistência e luta. Luta de pessoas que não conseguem se empregar no mercado formal e que precisam, como todos, sobreviver com o mínimo de dignidade. A forma de obter essa dignidade em nosso mundo capitalista se dá, sobretudo, por meio do trabalho e essas pessoas não se negam a trabalhar. Para o poder público não é mais possível lidar com essa situação sem reconhece-la, ou seja, sem reconhecer sua própria ineficiência e incapacidade em gerar oportunidades de trabalho para todos. É preciso então incorporá-la, aceitar que essa é uma das formas pelas quais seus habitantes conseguem se manter, produzir e consumir. Contudo, esse mesmo poder público que reconhece e incorpora a questão em suas políticas públicas, precisa também determinar como ela deve acontecer, de modo a compatibilizar essa atividade com as demais da cidade. Porém, muitas vezes o faz atropeladamente, na urgência das necessidades de um planejamento urbano feito para resultados imediatos. Entre os acertos e desacertos do poder público ficam as pessoas e suas necessidades cotidianas. Pessoas com histórias de vida e de luta, com conquistas, desejos e sonhos. Esse é o caso de seu Raimundo, um homem alto, de 55 anos idade, que “caiu” na juventude (foi preso) e não conseguiu mais outro emprego. Seu Raimundo aprendeu sua profissão atual no Liceu de Artes e Ofícios, que ficava na Praça da Sé, mas antes disso chegou a trabalhar com carteira assinada na antiga Telebahia. Hoje trabalha como sapateiro no bairro Dois de Julho, entre bancas de frutas, verduras, farinhas de beiju, ovos, queijos e ervas medicinais. O local onde ele trabalha vai passar por uma reforma, mas ele disse que mesmo quando tudo estiver pronto vai continuar nesse lugar e daqui não se mudaria, pois é onde está sua clientela. Seu Raimundo é artesão e por ser artesão disse nunca ter conseguido licença da prefeitura. Ele opta por trabalhar na rua principalmente porque em ambiente fechado fica-se muito exposto ao cheiro da cola de sapateiro, então trabalhar na rua é uma questão de saúde segundo sua opinião. Contou que suas coisas já foram jogadas fora e sua guia quebrada em momentos de tensão entre ambulantes e o poder público, que existiram em gestões anteriores. Segundo conta, só conseguiu permanecer por ajuda de uma cliente que foi professora de um antigo prefeito e intercedeu por ele. Ele não tem nenhum controle contábil de seu negócio, o que sabe é que consegue pagar suas contas em dias. Com o trabalho conseguiu conquistar a casa própria e o estudo particular dos filhos. Entre seus planos para o futuro está o desejo de ver os filhos formados, mas não pensa em ter um trabalho formal para si. Quer poder continuar sendo sapateiro e pontua que tem dificuldades


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por não ter uma boa máquina de costura, que ele não pode comprar com os rendimentos que tem, que muitas vezes são incertos. Entretanto, diz ser muito contente pelos amigos e clientes que tem no lugar onde trabalha. Para ele a melhor coisa no seu trabalho é ter a confiança das pessoas. Como ele mesmo diz: “Chega uma pessoa e deixa aqui um sapato desses, não leva nenhum papel porque eu não tenho recibo. Deixa o sapato só na palavra, então essa é a coisa mais importante”. Próximo ao ponto de seu Raimundo, mais adiante e também no Dois de Julho, conhecemos dona Valdenice, de 58 anos, que chama atenção por estar praticamente sempre catando feijão verde, mercadoria com que trabalha desde quando era criança e morava na roça. A história que a levou a fixar ponto no Dois de Julho é, no mínimo, curiosa. Ela conta que começou a vender numa feira que existia perto do Orixás Center. Lá era só dia de sábado, o movimento era fraco e tinha muita gente vendendo a mesma coisa. Falaram pra ela ir pra feira de São Joaquim, mas ela não tinha barraca e não conseguiu se estabelecer no local. Tentou então vender seu feijão numa feira na Barra, mas só conseguiu vender 1L, pois a clientela dali era fiel aos feirantes antigos. Com o pouco dinheiro que ganhou, decidiu pegar o primeiro ônibus que passou, um Praça da Sé. No caminho pensou que estava fazendo bobagem, pois o que iria vender na Praça da Sé? Porém ao passar pelo Relógio de São Pedro olhou pro outro lado e viu gente na rua. Resolveu descer e foi até o Dois de Julho. Assim que botou a guia na rua veio logo uma cliente. Conta que em meia hora vendeu todo o feijão que tinha levado: era dinheiro pra ir embora, para comer e pra garantir a comida da filha recém nascida. Depois desse dia nunca mais saiu do bairro e nele trabalha já há 30 anos. Dona Valdenice conta que com seu trabalho conquistou a casa própria e nela tem tudo que precisa. Criou seus dois filhos e hoje é empresária, só vai trabalhar duas vezes na semana (quinta e sexta). Além do feijão verde, vende também mangalô, andu e pimenta, mercadorias que só ela oferta no bairro. Apesar de gostar muito do trabalho que realiza, dona Valdenice, que já foi prestadora de serviço para uma empresa com a carteira assinada, conta que gostaria de ter novamente um emprego formal, mas sabe que não conseguirá mais por conta da idade e da pouca escolaridade. Se considera uma boa comerciante e acha que seu trabalho é um lazer, pois nele pode conversar com todo mundo, além de se divertir. Saindo do Dois de Julho e caminhando para o início da Avenida Sete, próximo ao Mosteiro de São Bento encontramos Adriana, que relatou ter começado a trabalhar costurando em casa com a mãe. Mulher de 39 anos, concluiu o ensino médio e quer voltar a estudar. Disse ter optado pelo trabalho na rua porque nele consegue ter liberdade para cuidar do filho pequeno,


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que estuda no centro. De início não quis falar muito conosco, mas depois de um tempo de conversa e com um sorriso largo no rosto contou que a grande vantagem de trabalhar assim é que aqui consegue fazer o próprio horário, o que é bastante importante também se considerarmos que ela mora a 24km do centro, no bairro de Itapuã. Como não ficar aliviada com a possibilidade de sair mais cedo do trabalho e assim evitar pegar um engarrafamento que cruza quase toda a cidade no horário de pico? Para Adriana “vender na rua é ter dinheiro à vista”, e diz que se pudesse mudaria para um lugar onde tivesse mais movimento, pois a rua onde está agora é muito fraca. Antes de vir pro beco estava trabalhando na Avenida Sete e conta que alguns clientes já a encontraram, mas outros ainda não sabem para onde ela foi depois que precisou se mudar devido à política de ordenamento implementada pela nova gestão da prefeitura. Sua mercadoria é diferenciada, trata-se de confecções de moda praia produzidas por suas próprias e habilidosas mãos, cujo controle de compras e vendas é feito num caderninho onde ela anota tudo, separando o dinheiro daquilo que compra para manter o negócio, daquilo que é de seu uso. Ela pontua que as principais conquistas de seu trabalho são de ter conseguido arrumar a casa e de poder viver dignamente. Sua relação com as demais mulheres da rua também é de chamar a atenção. Elas tomam conta das bancas umas das outras e reúnem-se em conversas enquanto o movimento está fraco. Esta rua onde trabalham, Beco Maria Paz, é uma das que mais se ouve reclamações por parte dos trabalhadores, pois o movimento de pessoas transitando por ela é pequeno se comparada com as demais. Contudo, Adriana chama atenção para algo que considera bom de estar nela, que é o fato de o lugar agora ser coberto, o que lhe possibilita vender mesmo em dias de chuva, além de ser um lugar para onde ela pode levar seu filho, que brinca com as outras crianças também filhos(as), netos(as) e sobrinhos(as) de outros trabalhadores do local. Adriana revelou ainda que se as vendas continuarem fracas depois do carnaval, desistirá do ponto e procurará um emprego formal próximo de onde mora, pois pretende também mudar a escola do filho. Ao contrário de Adriana, que já foi transferida da Av. Sete de Setembro para um dos becos, entrevistamos também Diana, que ainda está na Avenida aguardando as obras do local para onde será transferida serem concluídas. Diana tem 45 anos e fala muito de sua filha pequena. Na primeira vez que nos encontramos, ela foi indicada por outros trabalhadores depois de uma sequência grande de recusas para responder o questionário básico. Disseram para procurá-la porque ela gostava muito de falar. Ela está neste ponto há dois anos e disse ter entrado no ramo por falta de opção, depois de ter sido demitida do antigo emprego, onde atuava na linha de produção, embalando roupas. Apesar de ter amizade com alguns lojistas próximos


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de seu ponto, ela contou que não vai mais no banheiro enquanto está trabalhando, deixa pra ir só quando chega em casa. Segundo ela o motivo para isso é a intensa fiscalização que está havendo e as ações do rapa. Ela trabalha na rua e expõe suas mercadorias em tela, o que facilita o seu deslocamento. Na segunda vez em que conversamos o sol estava muito forte e ela estava trabalhando de sombrinha. Às vezes mostrava dificuldades para segurar a sombrinha ao mesmo tempo em que atendia, recebia o pagamento e dava a mercadoria para o cliente. Contou que preferia trabalhar num lugar coberto, onde tivesse um banheiro e disse que às vezes chega a almoçar em pé. Sobre seu controle contábil, ela tenta anotar tudo que compra e o que vende, sobretudo porque se não fizer isso sai gastando tudo que ganha no mercado e não pode deixar a guia vazia. Quanto a seus planos para o futuro, deseja continuar trabalhando por conta própria, mas quer “ter uma lojinha em um lugar mais aconchegante”. Considera que o bom de trabalhar na rua é principalmente que tem sempre dinheiro na mão e faz amizades. Uma história bastante marcante que conhecemos um pouco mais adiante na Avenida Sete é a de seu Antônio, um homem de 61 anos, que disse nunca ter frequentado a escola. Desde a primeira vez que conversamos, sua história despertou muita curiosidade, principalmente porque foi difícil falar com ele, já que a todo momento chegava alguém para ele atender. Além disso, houve uma cliente que se interessou tanto pela pesquisa, que quase queria responder o questionário por ele. Nesse primeiro momento a mercadoria com que trabalhava eram colares, anéis e brincos de aço inox e uma das poucas coisas que ele conseguiu contar foi que não sabia onde nasceu porque fugiu de casa muito novo. Em nosso segundo encontro ele vendia adereços para o carnaval: delicadas tiaras de flores confeccionadas por ele mesmo. Nesse dia o movimento estava mais tranquilo e ele contou com mais calma sua história. Disse ter fugido no fundo de um caminhão com 10 anos de idade porque era obrigado a trabalhar na roça desde os 5 anos e apanhava do padrasto. Por isso ficou muito tempo sem documentos, não lembra o ano certo em que nasceu, nem sua data de aniversário, tampouco de que cidade era. Começou vendendo bala na rua e foi baleiro até os 20 anos de idade. Seu Antônio prefere continuar vendendo na Avenida Sete sem ponto fixo, mesmo se tiver que correr do rapa, pois ele não tem licença e acha que no beco não se vende nada. Segundo ele “cliente nenhum procura camelô para comprar nada; ele compra quando vê a mercadoria”. Além disso, diz não ter mais idade e condição de montar e desmontar a barraca todos os dias. Atualmente ele guarda sua mercadoria numa das lojas da Avenida, pois tem amizade com o dono. Ele não faz controle contábil de seu negócio e diz só saber o que deve no cartão de crédito. Destaca que sua principal conquista com esse trabalho foi ter uma casa e ter criado os filhos, inclusive, contou com


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orgulho que uma de suas filhas hoje está formada e é administradora. Seu Antônio não pensa em ter um emprego formal, tampouco em sua aposentadoria. Ele não paga INSS e diz não saber se vai conseguir sair da rua quando tiver que se aposentar, pois para ele “coisa boa é estar aqui na rua, dá pra conhecer todo mundo, ter amizade”. De dificuldade no trabalho, para ele, só mesmo o rapa. Assim como seu Antônio, há outros trabalhadores que não se vêem em outra atividade na vida. Esse é o caso de Fábio, homem de 36 anos, pai de 3 filhos, que pediu para sair da empresa onde trabalhava com carteira assinada, abrindo mão de seus direitos trabalhistas. Desde nosso primeiro contato ele se mostrou bastante receptivo e simpático. Sua banca, que abriu com o investimento de R$250,00, fica na Praça do Relógio de São Pedro e é na verdade constituída por um balcão pequeno e uma tela que fica encostada na parede cega de uma loja (onde ele também guarda gratuitamente a mercadoria no final do dia). É neste lugar onde pendem brincos, pulseiras e colares de bijuterias e folheados, num ponto muito movimentado, sempre cercado por mulheres. A sua mercadoria, como ele chama, é “mercadoria de vaidade”, escolhida pessoalmente por ele junto aos fornecedores. Ele anota tudo que vende no cartão e na “mão”, tem segurança sobre quanto movimenta por dia. Nas conversas que tivemos, ele contou que também já foi empresário e deseja voltar a ser, pois está cansado de se sentir perseguido. Contudo diz que não vai deixar de ter o seu ponto na rua porque é nela onde está a sua clientela. Fábio pegou gosto pelo trabalho de comerciante desde criança ajudando seus pais a chamar clientes quando eles trabalhavam em lojas da Barroquinha. Para ele “é o camelô quem movimenta a rua”, mas vê sua classe muito desunida, o que identifica como sendo ponto negativo no trabalho que realiza. Acha que sua mercadoria é desvalorizada só porque não está dentro de uma loja, mesmo que às vezes seja igual ao que é vendido muito mais caro nos shoppings. Se diz apaixonado pelo que faz e que o comércio já nasceu consigo. Ao final do nosso último contato fez questão de presentear com pares de brincos. Também na Praça do Relógio de São Pedro conhecemos seu Francisco, de 56 anos, que teve uma pequena indústria têxtil na época do governo FHC. Segundo conta, começou a trabalhar nas ruas depois que a rede de lojas para a qual fornecia matéria prima quebrou e, conseqüentemente, levou-o a falir. Além disso, ele também foi funcionário de outra empresa por 11 anos. Conta que começou o atual negócio com apenas R$300 e que utiliza hoje a experiência que adquiriu quando era empresário. Seu Francisco não parou de atender gente enquanto conversávamos e para alguns ele até nem deu muito de sua atenção. Veio de Alagoas e disse não gostar do trabalho como ambulante, nem do ponto. Quer ter seu próprio negócio.


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“Gosto é de vender”, ele diz. Para ele, sua maior conquista foi a de ter conseguido, com o trabalho de ambulante, pagar as dívidas adquiridas com a falência de sua pequena indústria. Ele é também um homem muito organizado, contrata uma contadora para organizar suas finanças, trabalha com cartões de crédito e está entrando no Simples 27. Sabe de cor a porcentagem dos impostos que paga para a prefeitura, para o Estado e para a União. Além disso, tem controle de estoque, de tudo que compra e do que vende e quer estabelecer uma loja entre 1 ou 2 anos. Diz que o trabalho na rua é só pela necessidade, mas não é bom, pois é um trabalho que exige muito do indivíduo. Segundo ele, tem que acordar cedo, trabalhar de sol a sol, enfrentar intempéries, desrespeito, opressão, e ainda por cima não é valorizado. Essas são algumas das piores coisas que destaca no seu trabalho. As melhores coisas são os clientes que faz e a possibilidade de honrar seus compromissos através do trabalho que realiza. Próximo de onde trabalham Fábio e Francisco está dona Maria, na rua Portão da Piedade. Uma senhora forte, de 58 anos que nos recebeu ambas as vezes arrumando os chapéus, boinas e bonés de sua guia, o que fazia aparentemente sem muita pressa. Seu olhar desconfiado se desfez quando descobriu que já tínhamos nos visto porque moramos no mesmo bairro. Ela, que já trabalhou de carteira assinada como ascensorista, tem sua guia nesta mesma rua há 19 anos, “herdada” de uma amiga que não quis o ponto. Com isso pôde realizar o sonho que sempre teve de trabalhar para si mesma, alimentado desde quando fazia crochê para complementar a renda da família. Dona Maria contou que quando começou a vender na rua tinha vergonha de levar marmita e se alimentar na rua, sempre dava um jeito de se esconder. Como o tempo fez amizades e a vergonha foi passando. Comentou ainda sobre as intrigas que de vez em quando acontecem entre seus colegas, mas que não afetam o desenvolvimento do trabalho, pois eles “são como uma família”. Sua principal conquista com este trabalho foi ter formado os filhos e “ter um cantinho”. Ao ser perguntada sobre seus planos para o futuro e se teria desejo de ter um emprego formal, dona Maria ameaçou jogar um lenço e disse: “ai de vocês que me chamem de camelô. Eu sou empresária!”. Para ela esse é o seu trabalho formal e apesar de estar com problemas de saúde e precisar se afastar da atividade para se cuidar, não sabe se vai conseguir, pois gosta de passar o dia no lugar onde trabalha. “A gente mora mais aqui do que em casa”, ela diz. Seguindo a rua Portão da Piedade encontramos dona Lindinalva, que trabalha na rua Coqueiros da Piedade. Dona Lindinalva tem 54 anos, 2 filhos, 6 netos e 1 bisneto. Numa

De acordo com informações no site do SEBRAE, o Simples Nacional é “um regime de opção facultativa compartilhado de arrecadação, cobrança e fiscalização de tributos, aplicável às microempresas e empresas de pequeno porte.” (SEBRAE, 2015). 27


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primeira impressão parece ser uma senhora bastante mal humorada, o que talvez tenha se devido ao fato de a termos abordado no momento em que ela tentava tirar um cochilo entre as folhas de suas ervas medicinais. Bastante desconfiada, perguntou várias vezes sobre o que se tratava e depois, na medida em que as perguntas eram feitas, foi ficando mais tranquila para nos responder. Ela está nessa atividade há 48 anos e contou que começou aos 6 anos de idade, sozinha indo pra feira, pois sua mãe estava cega e debilitada em uma cama, com seus 8 filhos pra criar e que precisavam se virar. Dona Lindinalva, que não freqüentou a escola e contou nunca ter ficado doente na vida, chegou na rua Coqueiros da Piedade antes dos shoppings, seus atuais vizinhos, abrirem as portas. Conta que suas principais conquistas são sua casa e a “comida que defende todos os dias”. Na idade em que está diz que não conseguirá outro emprego e tampouco pensa em se aposentar. Vai continuar vendendo na rua enquanto der. Para ela o melhor do seu trabalho é a hora em que pode ir pra casa descansar, mas gosta de ver as pessoas passando enquanto lá está. Perto de onde dona Lindinalva trabalha, um pouco mais acima, está Jeferson, um jovem de 23 anos que já concluiu o ensino médio e que começou a trabalhar na área desde os 10 anos de idade, com sua mãe. Ele foi desconfiado e respondeu às questões com bastante objetividade. A mercadoria com que trabalha é do ramo dos eletrônicos, celulares e acessórios, que ele adquire aqui mesmo em Salvador. Hoje o ponto da família fica sob sua responsabilidade. Jeferson conta que suas principais conquistas são materiais como carro, motocicleta e casa, mas também as amizades que fez no ponto. Para ele essa rua é a melhor para se trabalhar, pois é muito movimentada. Apesar de considerar o trabalho como bom, quer sair da área, mas não pensa em ter um trabalho formal. Em sua opinião, a principal dificuldade enfrentada por quem trabalha nessa área é o rapa. Em outro ponto da Avenida Sete, Dona Marinalva, uma mulher que aparentava seus 50 anos de idade e que usava uma boina colorida, aceitou conversar conosco em uma oportunidade, mas bem rapidamente. Dentre os poucos comentários que fez nos contou sobre um esquema de agiotagem e revelou que não pretende mais voltar a trabalhar em casa de família, mas que está sendo difícil continuar vendendo no beco. Depois disso foi difícil encontra-la novamente. Seu ponto estava sempre vazio e as colegas diziam que ela estava “por aí”. Um dia, por acaso, lá estava D. Marinalva com sua boina colorida correndo com várias capas de almofada nas mãos, de um ponto da Avenida Sete para a transversal onde era seu ponto licenciado, lugar onde nos encontramos a primeira vez. Foi visível em seus olhos o desespero para não perder a mercadoria, bem como a solidariedade dos colegas que a ajudavam a carregar


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suas coisas. Volta e meia é possível avistá-la em diferentes pontos da Avenida Sete de Setembro, sempre com o olhar muito atento e poucas mercadorias nas mãos. Não conseguimos mais conversar. De forma semelhante não conseguimos mais conversar com Joana, uma moça jovem que trabalhava na Praça Carneiro Ribeiro e estava muito animada com a nova perspectiva de trabalho, cheia de quitutes preparados por ela para ofertar ao público. Joana acreditava que agora conseguiria ser empresária, dona do próprio nariz. Talvez ela tenha encontrado outra oportunidade de trabalho, ou desistiu porque o local onde estava trabalhando é considerado uma das áreas com o movimento mais fraco. Os conflitos que presenciamos no desenrolar da atividade agora não são exclusivos desse tempo. Tem suas raízes na histórica falta de oportunidades de trabalho que engendram nossa formação econômica. Tem seus momentos de maior calmaria e também de agitação. Evidenciam a luta permanente pela sobrevivência. Um dia os trabalhadores podem ser retirados, mas por quanto tempo? Seu Raimundo, D. Valdenice, Adriana, Diana, S. Antônio, Fábio, Francisco, Maria, D. Lindinalva, Jeferson, D. Marinalva, Joana e outros tantos trabalhadores da Avenida Sete de Setembro, transversais e bairro Dois de Julho estão unidos não só pelo trabalho que realizam, mas também pelo curioso afeto pelo seu trabalho apesar das dificuldades enfrentadas, sobretudo com a possibilidade de perder o ponto ou a mercadoria em decorrência do novo ordenamento. Curioso para nós, que a princípio não conseguimos imaginar que exista alguma felicidade em um trabalho tão duro e precarizado, mas completamente possível para eles, que provavelmente são muito gratos por levar o pão para casa todos os dias através da realização desse trabalho.

***

As pequenas amostras das histórias dessas pessoas nos colocam diante de uma diversidade enorme de realidades e situações de informalidade. Permite-nos entrar um pouco no cotidiano do seu trabalho e perceber suas dificuldades e realizações. Considera-se que essa narrativa é de grande importância na costura entre a informalidade e o espaço público, sobretudo quando a ela é agregado o embasamento dos dados estatísticos levantados. As histórias se constituem como subsídio de realidade, portanto, substância essencial à nossa leitura e interpretação da dinâmica, realizada através de três propostas de entendimento da


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atividade do trabalhador de rua, e que serão tratadas mais adiante. Por ora, nos ocuparemos em relacionar esses relatos aos dados coletados em campo. É importante ressaltar, no entanto, que as informações serão apresentadas, mas não necessariamente todos os gráficos. Os dados completos estarão disponíveis para consulta no Apêndice G. Ainda antes de partirmos para a apresentação da leitura dos dados estatísticos produzidos em campo consideramos importante reforçar que os mesmos não terão seu sentido completo se não forem associados às narrativas, pois quando tabulados e transformados em gráficos tendem a homogeneizar a realidade. Estas informações, portanto, quando associadas ao desenrolar da vida cotidiana (e laboral) podem nos levar a outro patamar de compreensão da realidade estudada em sua relação com o espaço. Dedicou-se o primeiro bloco de perguntas realizadas no questionário básico para captar um pouco melhor quem são efetivamente os trabalhadores de rua na cidade de Salvador, no que foi chamado de caracterização geral. Do resultado destas perguntas, uma das primeiras observações que podem ser feitas é de que nossa amostra foi bastante equilibrada em termos de gênero, contudo há mais homens (53,3%) do que mulheres (46,7%). No Gráfico 3 podemos verificar que a faixa etária dos pesquisados demonstra que trata-se de uma população predominantemente adulta, entre os 31 e 50 anos (54,7%) e a proporção entre as idades do restante dos entrevistados se equilibra bastante entre aqueles com idade até os 30 anos (23,1%) e aqueles com idade acima de 51 anos (21,4%).

Pesquisa sobre trabalhadores de rua em Salvador Gráfico 3: Caracterização geral – Pirâmide etária

Fonte: Pesquisa de campo da autora, realizada entre os meses de setembro e outubro de 2014.


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Ao analisar os dados quanto ao grau de escolaridade dos trabalhadores, temos que os casos de seu Antonio e dona Lindinalva que nunca tiveram a oportunidade de estudar, não se constituem como maioria de nossa amostra. Contudo o grau de escolaridade (Gráfico 4) dos entrevistados não é muito alto. Boa parte deles, 47,1%, possui até o ensino fundamental completo e 48,4% freqüentou o ensino médio, ainda que não o tenha concluído.

Pesquisa sobre trabalhadores de rua em Salvador Gráfico 4: Caracterização geral – Grau de escolaridade 32,9%

35,0%

31,1%

30,0% 25,0% 17,3%

20,0%

12,5%

15,0% 10,0% 5,0%

1,7%

0,7% 0,7%

0,0%

3,1%

Sem escolaridade Ensino fundamental incompleto Ensino fundamental completo Ensino medio incompleto Ensino medio completo Graduaçao incompleto Graduaçao completo Está estudando no momento

Fonte: Pesquisa de campo da autora, realizada entre os meses de setembro e outubro de 2014.

As pessoas pesquisadas em sua maioria possuem um companheiro (51,6%) e têm filhos (78,2%). São majoritariamente oriundos de Salvador e região metropolitana (51,6%) e para tentar facilitar a visualização da origem desses trabalhadores, optou-se por relacionar os municípios apontados com seus respectivos territórios de identidade, apresentados no Gráfico 5 a seguir. Apesar de os entrevistados nascidos da região metropolitana estarem em número mais expressivo, temos também que 9,7% deles vem de outros estados, onde aparecem de forma mais representativa os estados da região Nordeste, com destaque para Sergipe. Além disso, temos também que 34,7% dos trabalhadores vieram do interior da Bahia, mais representativamente do território de identidade do Portal do Sertão (9,7%), com destaque para o município de Feira de Santana e do território de identidade do Recôncavo (5,9%), com destaque para o município de São Felipe.


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Pesquisa sobre trabalhadores de rua em Salvador Gráfico 5: Caracterização geral - Origem 60,0%

52,2%

50,0% 40,0% 30,0% 20,0% 3,8% 10,0% 1,0% 2,1% 1,7% 0,3% 0,3% 0,3% 0,0%

9,7% 9,7% 4,2% 5,9% 3,1% 1,0% 0,7% 0,3%0,3% 0,3%2,8%

Fonte: Pesquisa de campo da autora, realizada entre os meses de setembro e outubro de 2014.

Ainda na dimensão territorial, foi perguntado aos trabalhadores sobre o bairro no qual residem na cidade de Salvador. As respostas a essa pergunta auxiliam-nos a entender a articulação da atividade, realizada no centro da cidade, com os demais bairros de onde vem os trabalhadores e, a partir disso, os fluxos que são gerados. Devido à grande diversidade de bairros apontados pelos entrevistados e pela delimitação não oficial que dispomos28, optou-se por realizar esta leitura através de um mapa elaborado especificamente para este fim (Mapa 06). A indicação dos bairros de origem dos trabalhadores de rua foi elaborada utilizando 13 zonas, pensadas como uma subdivisão das macrorregiões Orla, Miolo, Centro e Subúrbio 29. Estas zonas são propostas como uma tentativa de organizar nossa leitura, levando em consideração a existência de uma certa similaridade nas condições urbanas e sociais de cada uma dessas áreas, porém não desconhecemos suas diferenciações internas.

28

Embora a cidade de Salvador possua um estudo de delimitação de bairros, o mesmo ainda não foi institucionalizado o que dificulta a definição da localização precisa da área estudada. 29 A proposta da divisão em 13 zonas é uma elaboração de Ângela Franco e Jacopo Spigaroli (FRANCO et al 2012).


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Mapa 6: Localização dos trabalhadores de rua em Salvador/BA Fonte: Elaboração da autora, 2015.


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Podemos identificar que, em linhas gerais, o Centro e Itapagipe correspondem a uma região com forte característica histórica e que hoje concentram estratos populacionais de rendas média e baixas. O Miolo juntamente com Pirajá/Valéria, concentra populações muito frequentemente de estratos populacionais mais empobrecidos, redirecionadas para essas localidades sobretudo por indução das políticas habitacionais datadas da década de 1980. A Orla corresponde ao local onde há concentração de uma população com maiores rendas. Por fim, temos o Subúrbio Ferroviário que corresponde a área mais empobrecida e carente de infraestrutura urbana na cidade. Uma vez que temos conhecimento das informações anteriormente mencionadas, podemos identificar que a maioria dos trabalhadores de nossa amostra concentra-se na região do Centro, sobretudo do Centro I, composto basicamente pelo Centro Histórico e Antigo de Salvador30 e onde moram cerca de 26% dos entrevistados. Vale ressaltar que a Avenida Sete de Setembro está inserida justamente no Centro I, o que significa que parte considerável das pessoas que trabalham nesta rua, habitam em sua proximidade. O local de moradia do restante dos entrevistados distribui-se na região do Subúrbio e Miolo, com destaque para o Miolo I ((Pernambués/Cabula/Tancredo Neves) e Miolo II (Fazenda Grande/Pau da Lima/Cajazeiras). Chamamos atenção ainda para o fato de alguns dos trabalhadores residirem em cidades da Região Metropolitana de Salvador, deslocando-se diariamente para o centro antigo da cidade de Salvador. O bairro de origem dos entrevistados também pode ser relacionado com a forma como eles se deslocam até o local de trabalho. Através dos dados coletados, podemos notar que a grande maioria desses deslocamentos se dá por meios de transporte motorizados, com destaque para o transporte coletivo realizado por ônibus, utilizado por 59,3% dos trabalhadores, como é o caso de Adriana, moradora de Itapuã cuja história foi apresentada na narrativa apresentada anteriormente. É possível também evidenciar o número de deslocamentos realizados a pé (23%), praticado principalmente por pessoas que moram no e nas proximidades do centro (Gráfico 6).

30

O Escritório de Referência do Centro Antigo da Cidade de Salvador em convênio com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO)30 apresenta uma delimitação onde são considerados o Centro Histórico e o Cento Antigo da cidade. O Centro Histórico compreende a área que vai da Rua Chile ao Santo Antônio. Já o Centro Antigo abrange o Centro Histórico, Campo Grande, Politeama, Centro, 2 de Julho, Barris, Tororó, Jardim Baiano, Nazaré, Barbalho, Lapinha, Comércio, Água de Meninos, Sieiro, Queimadinho, Liberdade e Calçada.


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Pesquisa sobre trabalhadores de rua em Salvador Gráfico 6: Caracterização da atividade – Como se desloca até o trabalho? 70,0% 60,0%

59,3%

50,0% 40,0% 30,0% 20,0% 10,0%

23,0% 8,2%

4,4%

1,3% 1,3% 0,6% 0,6% 0,6% 0,6%

0,0%

Ônibus A pé Automóvel próprio Motocicleta Bicicleta Carreto Ferry boat Metrô Mototaxi ou van Taxi

Fonte: Pesquisa de campo da autora, realizada entre os meses de setembro e outubro de 2014.

Ao perguntarmos se os trabalhadores estão realizando a atividade por conta própria, 91,7% respondeu que sim e 8,3% disse que não, ou seja, é contratado por alguém. Consideramos importante também levantar a forma como eles identificam o seu próprio trabalho e qual o termo que é mais difundido entre eles para essa identificação. Para isso utilizou-se a pergunta: “como você chama o trabalho que você faz aqui neste lugar?”. Em alguns momentos esta questão não foi muito bem compreendida, levando-nos a complementá-la realizando questões do tipo: “quando te perguntam o que você faz ou qual o trabalho que você realiza, o que você responde?” As respostas a essas questões muitas vezes foram dadas com hesitação e dúvida, buscando uma confirmação nossa sobre aquilo que era respondido, o que pode ser devido a discriminação com relação ao trabalho que realizam, a fraca coesão no seu entendimento enquanto classe, ou a ambas. Analisando o Gráfico 7, constatamos que maioria das pessoas, 34,5%, se disseram ambulantes e 20,9% se disseram autônomos. Curiosamente apenas 15,7% se vêem como camelô, embora alguns dos que tenham dado essa resposta tenham justificado não ser ambulantes por possuírem ponto fixo. É importante ressaltar ainda, que esta questão foi aberta e que as pessoas puderam dar mais de uma resposta para ela.


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Pesquisa sobre trabalhadores de rua em Salvador Gráfico 7: Caracterização Geral – Como você chama o trabalho que faz aqui neste lugar? 40,0% 35,0%

Ambulante 34,5%

Autonomo(a)

30,0% 25,0%

Camelô Vendedor / Comerciante 20,9%

Comércio informal

20,0% 15,7%

Micro empreendedor / Empeendedor individual Outros

15,0% 10,0%

7,4% 7,4%

5,0%

5,5% 5,5% 0,9%

0,0%

2,2%

Não respondeu Artesão

Fonte: Pesquisa de campo da autora, realizada entre os meses de setembro e outubro de 2014.

Vimos nas histórias relatadas no início dessa sessão alguns exemplos de motivos pelos quais as pessoas começam a realizar a atividade trabalhando nas ruas. Para esta pergunta também foi possível dar mais de uma resposta. 43,3% das pessoas informaram que não conseguiram encontrar outro emprego, devido a diversos motivos tais como idade, escolaridade, etc. 21,2% delas declararam também que estão nesse trabalho porque não querem ter patrão, apontando a flexibilidade que conseguem ter para resolver outras questões da vida como se ausentar do trabalho algumas horas para pagar contas, chegar um pouco mais tarde porque precisou deixar o filho na escola, etc. Há ainda os casos de tradição familiar, 11,3%, onde os trabalhadores que estão na atividade hoje aprenderam com os pais sobre esse oficio, por acompanhá-los desde a infância e/ou por receber incentivo deles para entrar no ramo. É importante notar também que 59,5% dos trabalhadores entrevistados já tiveram um trabalho formal com carteira assinada e os outros 40,5% sempre estiveram na informalidade. No Gráfico 8 verifica-se que daqueles que já tiveram um trabalho com carteira assinada, 57,6% atuou na prestação de serviços com cargos em, por exemplo, serviços gerais, serviço doméstico, vigilante, balconista, atendente e motoboy; 11,6% já trabalhou no ramo do comércio e serviços e 9,3% na construção civil.


133

Pesquisa sobre trabalhadores de rua em Salvador Gráfico 8: Caracterização Geral – Se já trabalhou de carteira assinada, o que fazia? 70,0% 60,0%

57,6%

50,0% 40,0% 30,0%

20,0% 11,6%

10,0%

9,3% 4,7%

3,5%

2,9%

2,9%

2,9%

1,7%

1,7%

0,6%

0,6%

0,0%

Prestação de serviços

Vendedor / comerciante

Construção civil

Profissional do setor industrial

Não respondeu

Profissional do setor de transportes

Profissional com cargo de gerência / bancário

Outros

Profissional do setor de saúde

Profissional do setor de educação

Profissional do setor agrícola

Artesão

Fonte: Pesquisa de campo da autora, realizada entre os meses de setembro e outubro de 2014.

Encerrando o último bloco de questões da caracterização geral, mas não do questionário básico, foi perguntado aos trabalhadores de rua sobre o que acontece com o seu negócio no caso de haver impedimentos relativos à sua saúde. A maioria deles, 59,9% diz que caso sofra um acidente ou fique doente, o seu negócio fica fechado até se recuperar, o que pode implicar em um grande prejuízo no final do mês (Gráfico 9). Essa questão evidencia, portanto, uma grande fragilidade no que se refere a sua capacidade de se manter a partir desse trabalho, pois uma vez que a guia fique fechada, não há vendas e, conseqüentemente, não há lucro.


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Pesquisa sobre trabalhadores de rua em Salvador Gráfico 9: Caracterização Geral – Quando fica doente (ou quando tem algum acidente ou problema), o que acontece com o negócio? 70,0% 60,0%

O negócio fica fechado até se recuperar Um membro da família ou conhecido se encarrega do negócio Um outro trabalhador de rua cuida da atividade Não fica / nunca ficou doente

59,9%

50,0% 40,0% 30,0%

25,5%

O dono toma conta do ponto

20,0% 10,0% 0,0%

7,6%

Outro 4,8%

1,0% 0,6% 0,6%

Contrata outra pessoa para trabalhar

Fonte: Pesquisa de campo da autora, realizada entre os meses de setembro e outubro de 2014.

As informações apresentadas ajudam-nos a entender um pouco mais sobre o perfil dos trabalhadores de que estamos tratando. Podemos relacionar tanto as histórias apresentadas na narrativa, quanto os dados obtidos com a aplicação do questionário básico. Contudo, para aprofundarmos nossa leitura sobre as informações levantadas no campo propomos sua problematização no âmbito de três aspectos estruturantes, postos num formato que acreditamos ser mais eficaz para identificar e reconhecer as diferentes perspectivas do trabalho de rua.

3.3 Concepção e funcionamento dos circuitos do trabalho de rua em Salvador

O trabalho de rua possui singularidades que perpassam desde a motivação dos indivíduos que o buscam até as formas como este trabalho é realizado. Através das histórias que apresentamos na seção anterior, pudemos ver diversos aspectos dessas singularidades, representados numa pequena amostra de situações que se repetem e que se somam a outras diversas. A motivação que leva essas pessoas a recorrerem a esta forma de sobrevivência pode basear-se numa escolha pessoal, mas também ser fruto de poucas oportunidades em outras áreas, decorrentes de baixa escolaridade, da idade, da busca por uma maior flexibilidade para cuidar dos filhos, por exemplo. Os trabalhadores buscam seu lugar no espaço através da comercialização de mercadorias e encontram meios de se estabelecer nos locais que lhes parecem mais interessantes, onde seu produto é mais visto e cobiçado. Estabelecer-se em determinados locais, por sua vez, cria nestes pontos tensões que reverberam em outras


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instâncias da cidade, pois além de movimentar dinheiro, movimentam-se também interesses pessoais e coletivos e as relações que se estabelecem entre os indivíduos, a sociedade e o espaço. Como dar conta dos diversos desdobramentos que decorrem desta atividade? Podemos direcionar o nosso olhar para a atividade do trabalhador de rua de diversas maneiras e assim realçar determinados aspectos em detrimento de outros, dependendo do enfoque escolhido. Nosso intuito aqui é explorar ao máximo a relação que este tipo de trabalho tem com o espaço, abordando o seu lugar na economia, os tensionamentos, conflitos, disputas e redes de solidariedade que se formam no cotidiano. Para tanto, metodologicamente optou-se por situar a atividade no âmbito de três propostas de entendimento, concebidas para analisar a atividade de forma particularizada, mas sem encerrará-las em si próprios, pois consideramos que as mesmos constituem partes de uma rede ampla de relações interdependentes. Além disso, vimos também que o lugar onde a atividade se realiza é de interesse do poder público, sobre o qual incide a competência do planejamento. As ações do planejamento urbano em Salvador nos períodos analisados podem ser comparadas em parte com o que foi proposto nesse mesmo sentido no Rio de Janeiro, sobre o que Ribeiro (1986:3) comenta serem soluções que “expressam a tentativa de subordinar o excepcional às medidas rotineiras de governo da cidade”. Podemos pressupor que essa sujeição tanto ao capital quanto às imposições do poder público não se dá de forma pacífica e sem resistências. Para Hardt e Negri (2005) os pobres estão incluídos na produção social e é preciso reconhece-los não apenas como vítimas, mas como agentes poderosos na medida em que estão excluídos apenas em parte do processo, o que se deve principalmente à sua criatividade. Para os autores há uma “massa cinzenta” por onde os trabalhadores oscilam de maneira precária entre o emprego e o desemprego. Além disso, nenhuma força de trabalho está fora dos processos de produção social. As estratégias de sobrevivência dos pobres, como é o caso dos trabalhadores de rua, revelam uma enorme criatividade e habilidade de sobrevivência, que merecem, portanto, ser estudadas com a devida profundidade e detalhamento. Dentre os aspectos apresentados podemos elencar três elementos chave: a subordinação, os conflitos e as redes de solidariedade estabelecidas entre os trabalhadores. Estes aspectos, portanto, foram aqueles escolhidos para que possamos olhar a atividade do trabalhador de rua sob diferentes perspectivas, analisando as relações estabelecidas por cada um dos circuitos que são criados por cada um dos aspectos citados. Serão traduzidos por palavras do cotidiano dos trabalhadores aqui incorporadas.


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3.3.1 Se virar: entre a subordinação e a autonomia

A nossa primeira proposta de entendimento tenta dar conta do “se virar”, que está relacionado ao próprio exercício do trabalho realizado no cotidiano, onde destacaremos a relação dialética que se estabelece entre a subordinação e a autonomia do trabalhador. De acordo com Martinez (2010) a subordinação é inerente à relação de emprego típica e decorre de um modelo de organização que posicionou o trabalhador como parte da engrenagem do sistema produtivo. O trabalho é um gênero que contém o emprego, onde o emprego será sempre uma forma de trabalho, mas o trabalho nem sempre implicará no emprego. Nesse sentido, Gomes e Gottschalk (2008) colocam que o termo empregado deve ser utilizado para quem trabalha em virtude de um contrato de trabalho. Para Bulgueroni (2011) o trabalho representa toda a atividade desempenhada por um indivíduo com vistas a sua promoção financeira e social. Através do trabalho, é possível sentir-se inserido em uma classe simplesmente por conta do exercício da atividade e não necessariamente porque se é tutelado pelo direito do trabalho. Porém, para aplicação do direito do trabalho é fundamental que exista a subordinação. No dicionário Michaelis (2008), temos que subordinação é “o ato ou efeito de subordinar ou subordinar-se”, “ordem estabelecida entre pessoas dependentes entre si, tendo umas o direito de mandar, e as outras a obrigação de obedecer, mas dentro da lei e da moral”. É também a “dependência acompanhada do reconhecimento da superioridade de uns em relação aos outros”, “obediência à lei, aos superiores, à disciplina, à ordem pública” e, por fim, “dependência ou conexão direta das coisas entre si”. Segundo Martinez (2010), no trabalho, a subordinação se evidencia quando o tomador de serviço define o tempo e o modo de execução do que foi contratado. Isso significa que o tomador de serviço pode determinar tanto o horário de início, de fim e de intervalo da atividade, quanto a maneira como ela será operacionalizada. Na subordinação, o tomador de serviços assume a condição de pós pagador, que primeiro recebe o serviço e depois paga por ele. Tais fatores evidenciam que a subordinação é contrária à autonomia a qual, por sua vez, indica uma situação na qual o próprio trabalhador estabelece as regras para oferecer o seu serviço. Podemos compreender então que a subordinação limita à autonomia do prestador do serviço.


137

A autonomia é uma característica do trabalho por conta própria e sobre o trabalhador autônomo não incidem proteções e direitos trabalhistas, como é o caso do trabalhador de rua, cuja atividade não possui proteção jurídica no âmbito do direito do trabalho. Entretanto, a sua autonomia pode ser questionada, pois ele realiza seu trabalho não necessariamente de forma independente, uma vez que se submete a diversos tipos de subordinação. Relembrando-nos do que dissera Milton Santos sobre o circuito inferior da economia, o trabalho realizado na rua não pode ser considerado como independente, pois ele compõe as microcadeias de comercialização que permitem à circulação de mercadorias para o capital. Durães (2013), de forma semelhante, comenta também sobre o que considera como sendo o “trabalhador gratuito”, que é aquele que promove a realização final da mercadoria da compra à venda, arcando com os custos de distribuição, armazenamento, troca e consumo. Essas etapas que são bancadas pelo trabalhador de rua são, portanto, gratuitas para o grande capital industrial, para quem a atividade é importante por manter o fluxo de escoamento das mercadorias produzidas pelo seu sistema também no circuito inferior. Como vimos anteriormente, sobre o lugar no qual a atividade do trabalhador de rua é observada incidem ações de planejamento do poder público, onde os diversos projetos que estudamos tentam dar conta justamente da organização da atividade no espaço ocupado por esses trabalhadores. Estas ações não se limitam apenas ao planejamento urbano, mas à regulação da atividade de acordo com aquilo que também é interessante para o município. Se por um lado é socialmente inviável a proibição ou exclusão total da atividade nas ruas, por outro numa cidade com vocação voltada para os serviços é importante também não limitar as possibilidades de circulação de mercadorias. Nesse sentido, podemos analisar o caso da intervenção mais recentemente ocorrida na cidade, onde, além do ordenamento proposto pelos projetos e da adequação urbanística concebida, há também outras determinações que subordinam a realização da atividade do trabalhador de rua ao poder público. Vimos também que os projetos conforme têm sido concebidos e aplicados nem sempre conseguem dar conta de todas as dimensões para as quais o vivido se expande, sobretudo quando não levam em consideração alguns aspectos como os presentes nas categorias de análise que elegemos neste trabalho. É importante ressaltar que essas categorias não são engessadas, nem necessariamente se constituem como a melhor opção de análise, pois outras formas de estudo também são possíveis. O método que encontramos é apenas uma forma de leitura dentre tantas outras possíveis. No âmbito do projeto atual, por exemplo, as determinações que se dão, além do lugar, também ocorrem na definição dos horários e nas


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características do espaço onde a atividade pode ser desenvolvida. Podemos notar, portanto, que a relação estabelecida se dá mais no nível da subordinação da atividade a determinações préestabelecidas pelo planejamento, mas que não conseguem conter situações de autonomia. Este e demais aspectos que caracterizam a subordinação da atividade é o que propõe-se tratar daqui em diante, tendo como pressuposto os dados coletados em campo com a aplicação dos questionários e realização das entrevistas. Antes de começarmos a apresentar os dados, no entanto, é preciso ter em vista que diversos níveis de subordinação e autonomia podem ser observados, tanto na relação do que a prefeitura determina sobre a atividade, quanto, por exemplo, na obtenção de recursos para iniciar ou mantê-la. Para organizar melhor nossa leitura sobre as informações, propomos agrupá-las nos seguintes níveis de subordinação e autonomia: a) com relação ao que determina o planejamento urbano; b) com relação à posição na ocupação (acordos, contratações e subcontratações); c) com relação ao acesso às mercadorias; e d) com relação à obtenção de recursos para iniciar ou manter a atividade;

a) Com relação ao que determina o planejamento urbano

Nas narrativas mencionadas anteriormente, nas quais contamos um pouco das histórias de alguns trabalhadores de rua, podemos identificar alguns elementos de subordinação quando os trabalhadores, por exemplo, submetem-se a mudanças de ponto, independentemente de sua vontade e mesmo para locais onde as vendas são fracas, para não terem a mercadoria apreendida pelo rapa. Em contraponto, verificamos também alguns casos de autonomia como o de dona Valdenice, que vale-se do produto diferenciado que apenas ela comercializa para estabelecer os dias e horários em que trabalha. A respeito do novo ordenamento, grande parte dos dez trabalhadores que foram entrevistados com o questionário de aprofundamento, disseram não ter tido tempo de avisar aos clientes sobre a mudança de ponto, onde agora vendem muito menos. Consideram de maneira geral o ordenamento positivo porque lhes parece necessário liberar a calçada para o pedestre, porém, ressentem-se da queda nas vendas, sobre o que pondera seu Antônio: “cliente não vai atrás de camelô. Só compra quando passa e vê algo. Você quer comprar um coador, você esquece que precisa. Mas quando passa e vê, você compra”. Porém, além de ser necessário ocupar os locais determinados pela prefeitura, os trabalhadores informaram que pagam também uma taxa para obter a licença e explorar o


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logradouro público. 73% dos entrevistados possuem licença e aproximadamente 25% não a possuem. Os outros 2% dos entrevistados não quiseram responder a essa questão. Perguntamos ainda o motivo pelo qual o ponto é na rua onde eles estão e 43% deles respondeu que estão nos locais onde trabalham atualmente porque houve uma determinação da prefeitura, ou seja, não estão nos locais em que optariam por estar. Temos aqui uma aparente contradição, pois anteriormente havíamos mencionado que 73% dos trabalhadores de rua disseram possuir licença da prefeitura. Porém, é preciso ter em vista que parte dos trabalhadores entrevistados já tinha seu ponto nas transversais agora adensadas pela prefeitura e outros, como os que atuavam na Avenida Sete de Setembro, precisaram ser realocados. Com isso, deixamos claro que embora 73% dos trabalhadores tenha informado que é licenciado, não necessariamente responderam estar no local em que estão porque foi determinado pela prefeitura, pois em momentos anteriores a esse ordenamento teria sido possível escolher entre os locais disponíveis. Prosseguindo com a leitura dos dados no que se refere à relação com o que determina o poder público, temos que aproximadamente 31% dos trabalhadores disseram ter escolhido o lugar por causa do movimento, localização, por escolha própria por considerar o lugar como bom e por tradição familiar. Essa possibilidade provavelmente se deu pelo fato de terem se instalado nos pontos há mais tempo ou pelos lugares escolhidos não serem muito concorridos (Gráfico 10). Cabe ressaltar que nesta questão foi dada a possibilidade aos trabalhadores de indicar mais de uma resposta. Pesquisa sobre trabalhadores de rua em Salvador Gráfico 10: Caracterização da Atividade – Por que o seu ponto é nessa rua? 60,0%

43,3% 40,0% 20,0%

14,9%

9,7%

9,0%

7,3%

4,2%

3,1%

2,8%

2,4%

1,7%

1,4%

0,0% Determinado pela prefeitura / foi transferido / onde trabalhava está em reforma Por causa do movimento / localização Foi o único local disponível Tradição familiar Escolha propria / acha o local bom / pediu para ser transferido para cá Porque tem amigos no local NS Outro Recebeu o ponto de outra pessoa Tem proteção contra sol e chuva / faz menos calor Acha que o lugar é mais tranquilo / tem menos concorrencia / os outros locais estavam cheios Foi autorizado pelo dono do estabelecimento

Fonte: Pesquisa de campo da autora, realizada entre os meses de setembro e outubro de 2014.

0,3%


140

A seguir, no Gráfico 11, podemos notar que aproximadamente 35% das pessoas entrevistadas trabalham neste ramo entre 5 e 15 anos, o que corresponde exatamente ao mesmo número de pessoas que disse trabalhar entre 5 e 15 anos na mesma rua. É possível verificar também que 27% dos trabalhadores com quem conversamos mudou seu ponto para uma rua nova no período de até 1 ano, o que corresponde ao momento em que a ação do novo ordenamento ocorreu, e isto indica que o tempo de exercício no lugar, embora crie uma relação de pertencimento, não significa necessariamente uma estabilidade na localização. Por isso acreditamos que percentual encontrado provavelmente aumentará se realizarmos a mesma pesquisa no final das obras da prefeitura, quando outros trabalhadores terão sido deslocados para os novos pontos. Cabe ainda comentar que 80,8% das pessoas entrevistadas trabalham de segunda à sábado, 60,5% chega para trabalhar entre 8h e 10h da manhã e 65,8% encerram a jornada diária entre 17h e 19h. Aproximadamente 11% dos trabalhadores informaram começar sua jornada antes das 7h da manhã e 7% a encerra após às 20h. Muitos trabalhadores informaram durante as entrevistas que há uma recomendação da prefeitura para encerrar as atividades entre 19h e 20h, no máximo.

Pesquisa sobre trabalhadores de rua em Salvador Gráfico 11: Caracterização da Atividade – Tempo em que exerce a atividade / tempo que trabalha na mesma rua 30% 27% 22,5% 22,1%

25%

20% 17% 14,5%

15% 10%

14,2% 12,8%12,5%

9,7%

10%

9% 6,9%

5%

6,9%

4,5% 4,5% 2,1%

1,4% 1% 0,7% 0,3% 0,3% 0%

0% até 1 ano entre 1 e entre 2 e entre 5 e entre 1 0 entre 15 entre 20 entre 30 entre 40 mais de 2 anos 5 anos 10 anos e 15 anos e 20 anos e 30 anos e 40 anos e 50 anos 50 anos

Tempo que exerce a atividade

Tempo que trabalha na mesma rua

Fonte: Pesquisa de campo da autora, realizada entre os meses de setembro e outubro de 2014.

NR


141

Os dados apresentados nos revelam que as determinações do poder público tensionam a relação entre a autonomia e a subordinação principalmente no que se refere a localização dos pontos de trabalho, porém essa conexão também se estabelece em outros níveis. Seguiremos então analisando como se dá essa relação no que se refere à posição dos trabalhadores em sua ocupação, ou seja, buscando entender se eles são realmente donos de seu próprio negócio, quais os tipos de acordos, contratações e subcontratações que são mais frequentes entre eles.

b) Com relação à posição na ocupação (acordos, contratações e subcontratações)

No trabalho de rua há a criação de arranjos e mecanismos de organização próprios. Forma-se uma cadeia em que a informalidade se reproduz dentro informalidade, ainda que inspirada nas relações formais, dando espaço para o surgimento de acordos informais de subordinação. Assim, pode-se verificar que nem todos os pontos de trabalho pertencem aos trabalhadores entrevistados, pois 53 deles (18,3%) trabalham para outras pessoas. Quando questionados sobre a relação que têm com este outro indivíduo, 56% desses 53 trabalhadores respondeu que o patrão é algum familiar ou amigo e 34% são contratados por alguém com quem não possuem vínculos de amizade ou parentesco. É importante salientar que, embora algumas pessoas tenham respondido que trabalham para alguém da família, isto não necessariamente significa que são empregados, com obrigações de pagar aluguel pelo ponto, por exemplo. Em muitos desses casos, os parentes ou amigos cedem o ponto para que outro trabalhador possa ocupá-lo por um determinado tempo, sem que isso gere um custo ou uma relação “trabalhista” entre as partes. Destacamos ainda os casos em que um mesmo trabalhador entrevistado possui mais de um ponto, o que correspondeu a aproximadamente 5% da nossa amostra. Com relação aos diferentes arranjos possíveis na realização da atividade do trabalhador de rua, é preciso considerar ainda as relações que estabelecem para o armazenamento das mercadorias. Os depósitos são uma estrutura bancada pelo próprio trabalhador para armazenar sua mercadoria no final do dia. Verificamos durante a aplicação dos questionários que há praticamente um ou dois depósitos na proximidade de cada uma das transversais ordenadas recentemente pela prefeitura, ao longo da Avenida Sete e do bairro Dois de Julho, e que 85,5% dos trabalhadores entrevistados guardam sua mercadoria nesses locais. Optamos por não mostrar exatamente onde eles se localizam em respeito aos trabalhadores que


142

responderam os questionários com receio de revelar esses lugares. É importante notar, contudo, que os depósitos são geralmente antigas casas utilizadas inteira ou parcialmente para este fim. Conforme Bouças (2012) este fato revela novas funções sendo assumidas pelas antigas formas do Centro, resultantes de uma demanda que confere um novo uso a imóveis aparentemente abandonados, e que possivelmente tem implicações sobre o valor dos seus aluguéis. É possível supor que os donos desses antigos imóveis preferem alugá-los como depósitos ao invés de para moradia, pois existe aí um mercado que gera um rendimento considerável. 59,9% dos trabalhadores entrevistados realiza apenas duas viagens para o depósito durante o dia, uma para retirar sua mercadoria e outra para guardá-la. Entretanto, nem sempre é o próprio trabalhador quem realiza essas viagens. Existem carregadores contratados pelos donos dos depósitos que colocam e retiram as grandes caixas onde a mercadoria é armazenada dos pontos de trabalho. 80% destes depósitos são coletivos, ou seja, armazenam juntas as mercadorias de diversos trabalhadores, e apenas 12,8% deles é de uso individual. Há ainda trabalhadores que alugam quartinhos no centro para ter, além de um depósito privativo, um local de apoio e descanso, onde é possível alimentar-se e ir ao banheiro, por exemplo. Destaca-se, por fim, conforme nota-se no Gráfico 12, que 50% dos entrevistados paga entre R$20 e R$60 aos depósitos por semana. Se hipoteticamente considerarmos que 10 trabalhadores utilizam um mesmo depósito para guardar suas mercadorias e pagam R$40 por semana, o dono do depósito recebe por mês R$1.600,00 com este tipo de aluguel. Pontuamos ainda que os 3% dos entrevistados que disseram não saber quanto custa o aluguel do depósito, são pessoas contratadas e que provavelmente não tem muita relação com o dono do ponto.

Pesquisa sobre trabalhadores de rua em Salvador Gráfico 12: Caracterização da Mercadoria – Se paga aluguel no depósito, quanto custa? 35%

Guarda de graça

32%

Guarda em casa

30%

até R$20 por semana 25%

entre R$20 e R$40 por semana

20%

17%

18%

entre R$40 e R$60 por semana entre R$60 e R$80 por semana

15%

10% 5% 0%

entre R$80 e R$100 por semana

9%

7% 3%

2%

3%

5%

mais de R$120 por semana 3%

Não respondeu Não sabe

Fonte: Pesquisa de campo da autora, realizada entre os meses de setembro e outubro de 2014.


143

Podemos constatar através dos dados apresentados que, no que se refere às mercadorias, existe um nível de subordinação na relação dos trabalhadores com relação à uma estrutura de suporte essencial para a atividade, que são os depósitos. A carência desse equipamento favorece a criação de arranjos informais que surgem para suprir essa que é uma necessidade básica para o funcionamento da atividade. A saída para aqueles trabalhadores que tentam ter mais autonomia sobre seu trabalho acontece quando eles conseguem, por exemplo, guardar sua mercadoria com amigos, parentes ou mesmo com lojistas. Porém, a relação dialética entre a subordinação e a autonomia não se limita a questão do armazenamento, ela está também presente na forma como as mesmas são adquiridas pelos trabalhadores.

c) Com relação ao acesso às mercadorias

Antes de avançarmos sobre a questão da subordinação e autonomia com relação à acesso às mercadorias, consideramos importante informar aqui quais os tipos de mercadoria mais frequentemente encontradas na nossa área de estudo. Na Tabela 8 podemos verificar que os produtos mais frequentemente comercializados, considerando nossa amostra, são as confecções e os adereços que somam 27,5% das mercadorias encontradas durante a aplicação dos questionários. Cabe ressaltar que existe uma grande variação no tipo de mercadoria comercializada, que corresponde à demanda de cada época do ano. Assim é possível encontrar adereços de carnaval no período próximo a essa festa, cadernos escolares em período de retorno às aulas, brinquedos quando se aproxima o dia das crianças, e assim por diante. Embora esta questão em princípio não indique uma subordinação em si, consideramos que este é o local mais adequado para sua exibição. Além disso, ela serve como subsídio para compreendermos a relação de subordinação existente na aquisição, armazenamento e distribuição das mercadorias. Chamamos atenção para o fato de, nesta questão, o número total de respostas ter excedido o número de questionários aplicados, pois há trabalhadores que comercializam mais de um tipo de mercadoria.


144

Pesquisa sobre trabalhadores de rua em Salvador Tabela 8: Caracterização da Atividade – Quais produtos comercializa? Quais produtos comercializa? Nº de respostas Confecções 45 Adereços (cintos; meias; toucas; chapéus; óculos e bijuteria) 44 Frutas; verduras; temperos 25 Eletrônicos (celular; antenas; cabos; etc.) 25 Bolsas; carteiras; sacolas; mochilas 24 Alimentos preparados (acarajé; sanduíches; pipoca;etc.) 22 Relógios 19 Acessórios e serviços para celular 16 Variedades (adesivos; fotos; pega-rato; etc.) 12 Água de coco; água; refrigerante 12 Sandálias 11 Brinquedos 11 CD/DVD 10 Produtos p/ o lar (peças e fogão; liquidificador; cantoneiras de 9 vidro; tolhas de mesa; almofada etc.) Bomboniere; cigarros 7 Cosméticos; cabelo; maquiagem; perfumes 6 Outros 5 Importados 5 Artesanato 5 Plantas medicinais 4 Serviços de afiações; engraxante 3 Material de escritório; escolar 3 TOTAL 323

% 13,9% 13,6% 7,7% 7,7% 7,4% 6,8% 5,9% 5,0% 3,7% 3,7% 3,4% 3,4% 3,1% 2,8% 2,2% 1,9% 1,5% 1,5% 1,5% 1,2% 0,9% 0,9% 100%

Fonte: Pesquisa de campo da autora, realizada entre os meses de setembro e outubro de 2014.

Relacionado ainda ao circuito de subordinação está a forma como essas mercadorias chegam até os trabalhadores de rua. As mercadorias são mais frequentemente adquiridas com distribuidores no atacado, em aproximadamente 44% dos casos. Como pode-se ler no Gráfico 13, 24% dos entrevistados adquirem sua mercadoria no varejo, em muitos casos no próprio centro da cidade nas lojas dos chineses e coreanos. Há ainda 18% dos trabalhadores que informaram realizar viagens para adquirir as mercadorias em outros municípios dentro e fora do estado e 3,7% que fabrica a própria mercadoria. Cabe destacar que existe um tipo de fornecedor chamado de “atravessador” de mercadorias, que compõe a cadeia de intermediários entre a produção e distribuição dos produtos. O atravessador é responsável por 8,1% do fornecimento de mercadorias no centro da cidade e leva os produtos diretamente para a rua onde o trabalhador está.


145

Pesquisa sobre trabalhadores de rua em Salvador Gráfico 13: Caracterização da Atividade – Com quem você compra os produtos que comercializa? 60,0%

43,8% 40,0% 24,4% 20,0%

18,0% 8,1%

3,7% 1,7% 0,3%

0,0%

Com distribuidor (atacado) Varejo Faz viagens Alguém leva no local (atravessador) Fabricação própria Não sabe Não respondeu

Fonte: Pesquisa de campo da autora, realizada entre os meses de setembro e outubro de 2014.

Em seguida, na Tabela 9, verifica-se que 64,2% das mercadorias adquiridas tanto com atravessador, no atacado ou no varejo, é distribuída para os trabalhadores de rua na própria cidade de Salvador, onde 15,8% destas pode ser comprada no próprio centro da cidade. Se somarmos esses percentuais ao daquele correspondente as mercadorias que procedem do interior do estado, temos que 80% das mercadorias que circulam nas ruas da Avenida Sete de Setembro e bairro Dois de Julho são aquelas que chegam e são distribuídas no próprio estado da Bahia. Ressalta-se ainda, no que se refere às mercadorias, que 32,6% dos trabalhadores renova seu estoque diariamente e 37,5% o faz semanalmente ou quinzenalmente. Isto demonstra como para esse comerciante é difícil fazer estoques, pois trabalha-se no circuito inferior com a necessidade do dinheiro líquido, utilizando os termos do professor Milton Santos. É preciso então vender na medida que há procura, e assim reduzir os riscos de prejuízos no final do dia, o que significa um grau bastante importante de subordinação. Nesta questão também foi possível que o trabalhador desse mais de uma resposta.

Pesquisa sobre trabalhadores de rua em Salvador Tabela 9: Caracterização da Atividade – Onde você compra os produtos que comercializa? Onde você compra os produtos que comercializa? Salvador (BA) No próprio centro de Salvador (BA) Interior da Bahia (BA) São Paulo (SP) Ceará (CE) Sergipe (SE) Pernambuco (PE) Não Sabe Paraguai

Nº de respostas 169 55 55 35 9 9 4 4 3

% 48,4% 15,8% 15,8% 10,0% 2,6% 2,6% 1,1% 1,1% 0,9%


146

Não respondeu Paraíba (PB) Santa Catarina (SC) Internet TOTAL

3 1 1 1 349

0,9% 0,3% 0,3% 0,3% 100%

Fonte: Pesquisa de campo da autora, realizada entre os meses de setembro e outubro de 2014.

Pelo exposto podemos notar que a aquisição de mercadorias movimenta outros níveis na relação entre a subordinação e a autonomia dos trabalhadores. A subordinação, por exemplo, se evidencia na aquisição de mercadorias com os atravessadores, que levam produtos pré-determinados ou com a promessa de que serão mais facilmente vendidos para mostrar aos trabalhadores, reduzindo suas possibilidades de escolha num mercado mais amplo. Já a autonomia é verificada quando os próprios trabalhadores realizam viagens e escolhem os produtos que irão comercializar pessoalmente ou quando eles mesmos os fabricam artesanalmente. Além disso, essa relação entre autonomia e subordinação se evidencia na forma como eles obtém o recurso inicial para adquirir tais produtos, sobre o que nos debruçaremos a seguir.

d) Com relação à obtenção de recursos para iniciar ou manter a atividade

A relação entre a subordinação e a autonomia pode ser verificada também através do tipo de investimento que foi necessário fazer para começar o negócio. No Gráfico 14 verificamos que 57% das pessoas entrevistadas informaram que utilizaram recursos de sua própria poupança ou não precisaram de recursos para iniciar a atividade como trabalhador de rua. Não ter precisado de recurso significa que o trabalhador começou vendendo alguma mercadoria produzida por ele mesmo ou que foi comprada com baixo investimento e, a partir dela, foi possível juntar dinheiro para aumentar o negócio. Destaca-se ainda que 12% dos entrevistados adquiriu empréstimo com algum familiar e que outros 12% obtiveram recursos através de empréstimo bancário ou do microcrédito produtivo. Dentre os 11% que responderam ter utilizado outros recursos para começar o negócio destaca-se o fato de terem mencionado recorrer à agiotagem para abrir sua guia. Durante a aplicação dos questionários, por exemplo, Marinalva, que não conseguimos mais encontrar para conversar com mais profundidade após uma primeira conversa, informou ter pego um empréstimo de R$400 para abrir sua guia,


147

pagando 24 parcelas de R$20 por dia, o que resultará no final do pagamento em R$80 de lucro para o agiota.

Pesquisa sobre trabalhadores de rua em Salvador Gráfico 14: Caracterização da Atividade – Que tipo de investimento fez para começar no ramo? 40%

Poupança própria

36%

Não precisou de recursos 30%

Empréstimo com familiar 21%

Outro

20%

12% 10%

0%

11%

Empréstimo bancário

10% 6%

Não sabe 3%

2%

Indenização Microcrédito produtivo

Fonte: Pesquisa de campo da autora, realizada entre os meses de setembro e outubro de 2014.

Ainda relacionado ao dinheiro líquido, tentamos nos aproximar do conhecimento sobre os rendimentos dos trabalhadores com quem conversamos. Houve uma dificuldade grande para obter informações sobre esses valores, o que supreendentemente não parece ter sido causado particularmente pela desconfiança com relação a esta questão, mas de realmente essas pessoas não terem dimensões exatas do quanto lucram por dia. Nos relatos contidos na narrativa, podemos perceber que poucos trabalhadores têm um controle mais formal sobre seus rendimentos. Apenas um deles, por exemplo, mencionou contar com serviço de contador. Os demais ou anotam essas informações em cadernos ou não fazem nenhum tipo de controle contábil. Assim, perguntamos no questionário básico quanto esses trabalhadores conseguem obter em termos de vendagem, considerando a diferença entre os valores de um dia bom e um dia ruim. Podemos observar na Tabela 10, através dos dados obtidos que, no dia bom, 28,7% dos trabalhadores consegue tirar entre R$51,00 e R$100,00 de vendagem. Os que conseguem vender mais de R$300 num dia bom somam 16,3% dos entrevistados. Já com relação ao dia ruim, temos o dado de que 43,6% dos trabalhadores conseguem obter até R$30,00 de vendagem. A hora de trabalho atual custa R$26,26, considerando o salário mínimo de R$ 788,00 e uma jornada de 8h de trabalho diárias. Inicialmente podemos pensar que até mesmo os valores obtidos no dia ruim estão dentro do ganho de um trabalhador formal que recebe um salário mínimo, porém é preciso considerar que o valor mencionado não é líquido, ou seja, não é lucro livre para o trabalhador, pois aí não estão embutido os custos da produção, nem os custos fixos com a reposição da mercadoria, aluguel de depósito, o pagamento ao carregador que transporta


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a mercadoria, a taxa para a prefeitura e até mesmo seu deslocamento até o local de trabalho. Além disso, quando dizemos até R$30,00, significa que há pessoas que não vendem nada nos dias ruins. É preciso descontar da média entre o dia bom e o ruim tudo aquilo que é necessário para subsistência do trabalhador e de seu negócio, ou seja, aquilo que ele gasta para se deslocar ida e volta até e do local de trabalho; o que ele gasta para alimentar-se e beber água; o que gasta para adquirir os produtos a vender e a estrutura de suporte; e o que gasta para guardar a mercadoria.

Pesquisa sobre trabalhadores de rua em Salvador Tabela 10: Caracterização da Atividade – Quanto você consegue tirar num dia bom / ruim? Quanto consegue vender num dia bom? Quanto consegue vender num dia ruim? Nº de respostas Não respondeu

31

% 10,7% Não respondeu

Nº de % respostas 31

10,7%

3,1% até R$10

80

27,7%

entre R$10 e R$30

9

entre R$31 e R$50

19

6,6% entre R$11 e R$30

46

15,9%

entre R$51 e R$100

83

28,7% entre R$31 e R$50

41

14,2%

entre R$101 e R$150

23

8,0% entre R$51 e R$100

50

17,3%

entre R$151 e R$200

46

15,9% entre R$101 e R$150

15

5,2%

entre R$201 e R$300

31

10,7% entre R$151 e R$200

10

3,5%

entre R$301 e R$500

21

7,3% entre R$201 e R$300

11

3,8%

entre R$500 e R$1.000

21

7,3% entre R$301 e R$500

5

1,7%

1,7% -

-

-

mais de R$1.000 TOTAL

5

289 100,0% TOTAL

289

100,0%

Fonte: Pesquisa de campo da autora, realizada entre os meses de setembro e outubro de 2014.

Nas situações apresentadas vemos mais uma vez a relação dialética entre a subordinação e a autonomia no trabalho de rua. O fato de iniciar a atividade através de seus próprios recursos ou poupança própria revela um grau de autonomia com relação ao seu trabalho, enquanto a necessidade de obter empréstimos com agências bancárias ou agiotas revelam sua subordinação. Nesse sentido, é importante chamarmos atenção para o papel do SEBRAE na disseminação de informações para a obtenção de crédito facilitado, sobretudo a partir de 2009 com a criação do Microempreendedor Individual (MEI), que são aqueles empreendedores que trabalham por conta própria, sem ter participação em outra empresa,


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empregando apenas uma pessoa e recebendo um salário mínimo ou o piso de uma categoria. Os trabalhadores que se tornam microempreendedores individuais são considerados formalizados e podem se inscrever no INSS pagando taxas mais baixas que as vigentes, e dessa forma, passam a acessar aos benefícios da Previdência. Contudo, a forma como os trabalhadores realizam o controle contábil de suas mercadorias revela que poucos conseguem organizar suas finanças, o que fragiliza a possibilidade do seu negócio crescer e prosperar. De maneira geral, podemos considerar que os dados apresentados nesta proposta de entendimento do “se virar” revelam o conjunto de redes e articulações que são movimentadas no centro da cidade a partir da atividade do trabalho de rua, isto quando nos detemos apenas aos aspectos relacionados à sua subordinação e autonomia, seja ao grande capital industrial, seja às determinações do poder público. Continuando nosso objetivo de desvendar a relação desta atividade com o espaço, seguiremos agora direcionando o nosso olhar para os conflitos que se dão na relação entre os próprios trabalhadores de rua, entre eles e os lojistas, os transeuntes, o poder público e suas entidades de representação. Nos deteremos então a essas questões na apresentação do próximo eixo de análise da atividade.

3.3.2 A correria e o rapa: conflitos e disputas

A relação entre o trabalho de rua e o espaço público gera tensionamentos entre interesses contraditórios se pensarmos apenas no antagonismo existente entre o ato de liberar os passeios para os pedestres e o de permitir a livre comercialização de mercadorias neste mesmo lugar. Vemos, de um lado, um ente que possui o poder de decisão e determinação sobre a atividade, e de outro, aqueles que se submetem às determinações daqueles, numa relação predominantemente em que uns mandam e aos outros cabe obedecer, sendo observados poucos casos onde são tentados acordos comuns entre as partes, se tivermos como referência as intervenções propostas para a atividade apresentadas no capítulo anterior, por exemplo. Essa subordinação de uns com relação aos outros, como podemos supor, nem sempre se dá de forma pacífica. Frequentemente podemos associar os conflitos e disputas que aí emergem ao rapa, termo usado pelos trabalhadores para se referir aos fiscais da prefeitura que podem apreender suas mercadorias, sobretudo daqueles que não são licenciados. Contudo, as situações evidenciadas neste eixo não serão referentes apenas às ações do poder público, mas as relações de embate e tensionamento que se revelam também em outas situações exploradas a seguir.


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Olhando um pouco mais para o passado, sobretudo com a apresentação do papel das entidades de representação dos interesses dos trabalhadores de rua que tivemos, foi possível verificar que houve um momento crítico no período de 1997 à 2004, onde parecem ter ocorrido casos de violência contra o segmento. As propostas de intervenção daquela época parecem não ter sido bem aceitas nem pelas entidades, nem pelos próprios trabalhadores, porém foram impostas sem muito diálogo. Segundo os relatos que obtivemos, o confronto com o rapa naquele período era bastante frequente, assim como a presença policial nas ruas no sentido de coibi-los. Sobre este aspecto, podemos nos remeter também às narrativas anteriormente apresentadas, onde verificamos alguns exemplos dos conflitos ocorridos naquele período, como é o caso de Seu Raimundo que teve suas mercadorias jogadas na rua e que só não perdeu tudo por conhecer alguém influente. Ao realizarmos as entrevistas do questionário de aprofundamento perguntamos aos trabalhadores sobre os momentos críticos que já vivenciaram e sobre o que eles pensam que está acontecendo hoje com relação às novas propostas de ordenamento. As respostas dos trabalhadores não revelam um consenso na aceitação das propostas, evidenciando, inclusive, dificuldades no entendimento das propostas pela linguagem que a prefeitura utiliza. Há, entre os trabalhadores, aqueles que acreditam que haverá benefícios reais com o novo projeto e aqueles que não as vêem como algo bom para ninguém. Alguns citaram que já existem problemas com o que foi implantado, como o calor que foi intensificado pela cobertura em policarbonato, apesar de agora terem alguma proteção contra a chuva (Figuras 23 e 24). Esta proteção, contudo, não é total, devido a ausência de calhas nas laterais dos telhados, o que é resolvido com diversos tipos de improvisos pelos trabalhadores.

Figura 23: Improvisos para proteger-se da chuva e do sol na Rua da Forca Fonte: Foto da autora, 2014.

Figura 24: Improvisos para proteger-se da chuva e do sol na Rua Coqueiros da Piedade Fonte: Foto da autora, 2014.


151

É importante salientar que, apesar de termos visto na seção anterior que 73% dos trabalhadores de rua possuem licença, isso não significa que não estejam submetidos à ação do rapa. Isto ocorre porque a licença, além de ser para o ponto, é também para o tipo de mercadoria que é comercializada. A mercadoria, por sua vez, também como vimos, sofre uma variação sazonal na medida em que os interesses pelos produtos variam no tempo. Assim, por vezes determinados produtos considerados ilegais podem se tornar populares num determinado período do ano e os trabalhadores os adquirem para aumentar suas vendas, ficando desta forma também sujeitos à ação do rapa. Além disso, pudemos sentir durante a aplicação dos questionários uma forte resistência ao ordenamento da Prefeitura pelo fato de nos pontos propostos pelo planejamento as vendas serem mais fracas. Isto faz com que muitos trabalhadores, embora licenciados para pontos nas transversais, desloquem-se para seus locais de origem, localizados principalmente na Avenida Sete de Setembro, onde também podem ter sua mercadoria apreendida. Os motivos apontados pelos trabalhadores para os casos de ter ou não ter a licença, por sua vez, revelam um pouco das tensões que existem hoje e estão presentes nos Gráficos 15 e 16. 28,6% entre os que possuem licença disseram que a tiraram porque é algo obrigatório, sem o qual não se pode trabalhar. Motivos como “porque é mais seguro”, “porque pode ficar em paz, despreocupado”, “para estar legal / ter respeito” e “para não perder mercadoria” somam 28,7% das respostas e deixam evidente a sujeição dos trabalhadores à necessidade da licença, que é tirada com o intuito de assegurar o seu direito de trabalhar. Entre os que não possuem licença, verifica-se que 38,9% já deu entrada e possui protocolo, aguarda apenas pela oficialização de sua autorização ou que ainda não deu, mas deseja dar entrada no pedido de licença, ou seja, verifica-se que há uma grande pressão para sua formalização. Há ainda 13,9% que disseram nunca ter conseguido tirar a licença ou pelo tipo de mercadoria que comercializa, ou pela indisponibilidade do local onde desejam ficar. Os que rejeitam o licenciamento seja pela falta de interesse, por vender mercadoria não autorizada, porque acham que não adianta em nada, não querem trabalhar nos becos, não tem tempo de tirar a licença e outros motivos somam 29,3% das respostas dadas.


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Pesquisa sobre trabalhadores de rua em Salvador Gráfico 15: Caracterização da Mercadoria – Porque tem licença 50,0%

28,6% 16,1% 8,8%

8,8%

8,3%

6,9%

6,5%

6,5%

3,2%

3,2%

2,3%

0,9%

0,0% Porque precisa ter, é obrigatório / Senão não pode trabalhar Sem resposta Porque ajuda a organizar / precisa ter controle Porque é mais seguro Outros

Fonte: Pesquisa de campo da autora, realizada entre os meses de setembro e outubro de 2014.

Pesquisa sobre trabalhadores de rua em Salvador Gráfico 16: Caracterização da Mercadoria – Porque não tem licença 40,0%

20,0%

36,1%

13,9% 9,7%

8,3%

5,6%

5,6%

4,2%

4,2%

2,8%

2,8%

2,8%

2,8%

1,4%

0,0% Tem protocolo, deu entrada, está aguardando Outro Não tem interesse Vende produto que não é licenciado Não, mas tem autorização da loja Não, mas quer ter Não, porque acha que não ajuda em nada

Nunca conseguiu Sem resposta Não, senão tem que ficar no beco Perdeu a licença Falta tempo Não sabe

Fonte: Pesquisa de campo da autora, realizada entre os meses de setembro e outubro de 2014.

No âmbito do novo ordenamento, sobre o qual não podemos nos aprofundar por estar acontecendo concomitantemente com a realização da pesquisa de campo, podemos evidenciar algumas questões relativas aos conflitos e disputas pelo espaço. Um exemplo é o caso ocorrido no bairro Dois de Julho em janeiro de 2014, conforme relatado pelo presidente da Assindivan quando entrevistado, em que ele conta ter havido a retirada de todos os trabalhadores de rua de seus pontos de trabalho independentemente da posse da licença, o que foi revertido posteriormente. Neste sentido, podemos destacar também, entre as narrativas anteriormente apresentadas, o caso de uma trabalhadora que informou se privar de ir ao


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banheiro por medo de haver uma ação do rapa no momento que deixar sua mercadoria para alguém olhar, embora tenha protocolo e esteja aguardando sua licença chegar junto com a reforma do local para onde será relocada. Esses são casos de trabalhadores que teoricamente terão seus pontos de trabalho preservados com a entrega e completa implantação do novo projeto. No dia 24.09.2014, ao caminhar pela Avenida Sete, a pesquisadora presenciou uma ação do rapa nas proximidades do Relógio de São Pedro. Ao tentar saber dos trabalhadores o que ocorreu, foi relatado que pessoas se recusaram a deixar suas mercadorias serem apreendidas e apedrejaram o carro da fiscalização e as viaturas da guarda municipal. De acordo com notícia divulgada no site do G1 Bahia sobre o fato ocorrido neste dia, lideranças das associações informaram tratar-se de um conflito com pessoas que não possuem licença para trabalhar e que não fazem parte do reordenamento. Os registros da ação constam nas Figuras 25 e 26 a seguir.

Figura 25: Ação do rapa com presença policial em 24.09.2014 Fonte: Foto da autora, 2014.


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Figura 26: Ação do rapa com presença policial em 24.09.2014 Fonte: Foto da autora, 2014.

Durante a reforma das transversais que viriam a abrigar os trabalhadores licenciados, houve várias situações de deslocamento dos mesmos para áreas provisórias, o que causou alguns transtornos, tanto para o segmento, pois os trabalhadores não tiveram como informar sua clientela sobre o lugar onde estariam, como para os transeuntes, pois os passeios ficaram ainda mais obstruídos. Nas Figuras 27 a 32 temos o registro dessas situações, onde podemos notar o grande volume de pessoas transitando em locais estreitados ou em reforma.

Figura 27: Reforma da rua Portão da Piedade. Fonte: Foto da autora, 2014.

Figura 28: Reforma da Rua do Cabeça. Fonte: Foto da autora, 2013.


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Figura 29: Trabalhadores provisoriamente deslocados para a Praça da Piedade. Fonte: Foto da autora, 2013.

Figura 31: Trabalhadores provisoriamente deslocados para a lateral do Mosteiro de São Bento. Fonte: Foto da autora, 2013.

Figura 30: Trabalhadores provisoriamente deslocados para Avenida Joana Angélica. Fonte: Foto da autora, 2014.

Figura 32: Trabalhadores provisoriamente deslocados para canteiro central da Av. Joana Angélica Fonte: Foto da autora, 2013.

Uma questão que nos interessou também foi o que teria sido feito daqueles que não conseguiram obter a licença? As lideranças das entidades dos trabalhadores de rua que entrevistamos informaram que esses companheiros foram encaminhados para a SEMOP, para que regularizassem sua situação legal junto à prefeitura, o que não significa que poderão continuar comercializando na região da Avenida Sete e do bairro Dois de Julho. De acordo com o coordenador de licenciamento e fiscalização da SEMOP, o critério para definir quem continuaria atuando nas novas áreas destinadas aos trabalhadores de rua na Avenida Sete, os chamados “becos”, foi estabelecido ao priorizar aqueles que já possuíam a licença nessa área e tinham mais tempo na atividade. Os trabalhadores que continuaram irregulares, por sua vez, não podem continuar na referida área, que tem sido fiscalizada todos os dias, das 8h00 às 19h00, de acordo com a prefeitura. Aqueles que foram contemplados a continuar na região da Avenida Sete foram deslocados para os becos de acordo com a proximidade destes com relação ao local


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onde tinham seu ponto na Avenida Sete. No caso do bairro Dois de Julho, todos os trabalhadores de rua, com exceção do mercado das flores, serão deslocados para o novo mercado na Praça General Inocêncio Galvão, quando as obras forem concluídas. O coordenador de licenciamento e fiscalização informou ainda que há uma média entre 980 e 1.600 trabalhadores na região da Avenida Sete, onde também realizamos nossa contagem, número que não pode ser precisado devido ao fato de cotidianamente aparecerem novas pessoas trabalhando nas ruas. O cadastramento atualizado dos trabalhadores de rua que atuam nessa área, entretanto, está sendo atualizado concomitantemente com a nova ação de ordenamento, motivo pelo qual não pudemos dispor de informações mais precisas. O principal problema enfrentado pela prefeitura na questão do trabalhador de rua, segundo o coordenador, é justamente o excesso de trabalhadores em locais indevidos. Segundo ele, a maioria das pessoas quer trabalhar nos locais mais centrais e isso dificulta o trabalho da prefeitura, pois não há como alocar todos no mesmo lugar. Para solucionar a questão está-se pensando em criar áreas fora do centro para que essas pessoas possam trabalhar. Há propostas de deslocar trabalhadores para locais como: Iguatemi, Calçada, parte baixa do Bonfim e Comércio, nas proximidades do porto que está sendo reformado. Buscamos saber ainda o entendimento dos próprios trabalhadores entrevistados com relação aos que ficaram de fora do projeto de ordenamento. Alguns informaram que aqueles que não receberam licença não são de Salvador, “não são camelô”, segundo a fala de uma das entrevistadas, o que nos revela um conflito interno da classe e uma disputa pelo lugar, onde aqueles que são da cidade reivindicam o seu direito de permanência baseado em sua naturalidade e não na sua condição de pertencimento a uma mesma classe. Em contraponto há também aqueles que acreditam que todos devem poder trabalhar, já que não há espaço no mercado formal para todos, desde que não lidem com mercadorias ilegais. Nesse sentido podemos destacar a fala de um dos trabalhadores entrevistados: “um homem trabalhando não é problema, é solução porque ele consegue dar educação pros filhos, saúde e uma habitação melhor”. Uma outra trabalhadora também coloca que quem optou por ficar na “correria”, ou seja, submetendo-se ao risco de ter a mercadoria apreendida pelo rapa, não tira a licença porque não adianta ficar legal e não ter lucro. Ela, que está numa nova área ordenada, relata que uma colega desistiu do ponto porque “aqui não vendia nada. Tem pessoas que moram de aluguel, que tem conta pra pagar. Não dá pra ficar parado”. Tais relatos trazem à tona os conflitos entre a atividade e o uso do espaço público. Nas Figuras 33 e 34 podemos notar a permanência do exercício da atividade em diversos trechos da Avenida Sete de Setembro.


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Figura 33: Trabalhadores que permanecem ao longo da Avenida Sete. Fonte: Foto da autora, 2014.

Figura 34: Trabalhadores que permanecem ao longo da Avenida Sete. Fonte: Foto da autora, 2014.

Como a relação entre o exercício da atividade e o uso do espaço público pelos transeuntes é percebida por esses trabalhadores? Para tentar responder esta questão perguntamos aos trabalhadores de rua entrevistados através do questionário de aprofundamento, o que eles pensavam com relação as seguintes afirmações veiculadas em jornais: “Comércio desordenado invade calçadas”; “Pedestre é expulso das calçadas em Salvador por todo tipo de tranqueira” e “Excesso de camelô na Calçada causa acidente e fere idosa” 31. Três dos dez trabalhadores entrevistados responderam que nunca viu pessoas se machucarem por causa da atividade e acreditam tratar-se de perseguição, pois as notícias pegam casos isolados e destacam como regra. Por outro lado, sete trabalhadores reconhecem que a situação acontece, mas discordam quanto a justificativa. Dois deles já viram pessoas caindo e se machucando, porém um acredita que isso é devido a não haver espaço para andar na calçada, e outro atribui o fato à própria execução do projeto, onde há diferença entre os níveis do piso assentado. Os cinco trabalhadores restantes se dividem entre três que acreditam que este tipo de problema é causado pelo “outro tipo de camelô”, que coloca a mercadoria exposta no chão de qualquer maneira, sem pensar no pedestre; e dois que acham que há exagero nas notícias, onde é preciso ponderar no porquê deles estarem realizando esta atividade, para muitos única opção de trabalho possível. Algumas pessoas nos falaram ainda sobre comerciantes que vêm de outros lugares da cidade para vender mercadorias utilizando automóveis. Nas Figuras 35 a 38 temos registros de vendas realizadas em automóveis nos anos de 2012 e 2014, porém não sabemos quem são aqueles comerciantes. É possível notar nessas respostas que a maioria dos trabalhadores reconhece que sua atividade interfere diretamente no uso do espaço público, porém os problemas são 31

Matérias publicadas pelo jornal Tribuna da Bahia entre os anos de 2010 e 2013, período antecedente às ações de ordenamento iniciadas em 2013 pela recém empossada gestão da prefeitura.


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colocados em outras instâncias, contrapondo os trabalhadores licenciados e antigos contra os não licenciados, novos e “outros”.

Figura 35: Comercialização de realizada com o uso de automóveis. Fonte: Foto da autora, 2012.

mercadorias

Figura 36: Comercialização de mercadorias realizada com o uso de automóveis. Fonte: Foto da autora, 2014.

Figura 37: Comercialização de mercadorias realizada com o uso de automóveis. Fonte: Foto da autora, 2014.

Figura 38: Comercialização de mercadorias realizada com o uso de automóveis. Fonte: Foto da autora, 2014.

Podemos associar as questões levantadas com uma pergunta do questionário básico sobre a relação entre o entrevistado e os outros trabalhadores de rua, onde 95,8% dos entrevistados disse que esta relação é boa. A contradição que esse percentual de respostas coloca pode ser desfeita se considerarmos que, para eles, os outros a quem nos referíamos eram os seus semelhantes, ou seja, aqueles licenciados e antigos e não aquele “outro tipo de camelô”. Entre aqueles que disseram ter uma relação ruim, foram apontadas como justificativa a falta de união da classe e a existência de intrigas.


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Buscamos também evidenciar os conflitos entre os trabalhadores de rua e os lojistas, questionando os 289 trabalhadores entrevistados sobre esta relação, onde 92% disseram ter uma relação boa e 4,5% não pode comentar sobre o assunto por trabalhar em locais onde não há lojas próximas. Assim, apenas 3,5% comentou ter uma relação ruim com os donos das lojas, o que contradiz uma ideia frequentemente propagada de que há um grande conflito entre o comércio formal e a atividade dos trabalhadores de rua nas proximidades dos estabelecimentos. Por fim, no que se refere aos conflitos e disputas, podemos destacar ainda a relação entre os trabalhadores de rua e suas entidades de representação, em que 85,5% dos entrevistados disseram não fazer parte de nenhuma associação ou sindicato, contra apenas 14,5% que disseram estar associado. Desses que disseram estar associados, observa-se no Gráfico 17, que 24,4% não souberam informar qual o nome da associação ou sindicato de que faz parte. 22% se referiu ao Sindicato de Ambulantes e Feirantes e 14,6% mencionaram a Assindivan e a Assinformal. O fato de muitos trabalhadores não saberem informar de qual associação fazem parte pode ter a ver com o fato de muitas das associações terem sido criadas recentemente e atuarem mais próximas da prefeitura do que efetivamente de sua classe. Assim, os trabalhadores podem se sentir pertencentes a essas associações, no sentido de tê-las com algum nível de referência no que se refere à sua competência de representar os direitos comuns da categoria, mas sem estar verdadeiramente associado ou fazer parte da associação.

Pesquisa sobre trabalhadores de rua em Salvador Gráfico 17: Caracterização da Mercadoria – De qual associação/sindicato faz parte? Não soube especificar o sindicato ou associação de que faz parte Sindicato dos ambulantes

30,0%

25,0%

24,4%

Não respondeu

22,0%

Assindivan 20,0%

15,0%

Associação dos vendedores ambulantes 14,6%

Associação dos moradores do Dois de Julho

12,2%

Associação dos feirantes

10,0%

Assinformal 7,3%

5,0%

0,0%

Associação de peixeiros

4,9%4,9% 2,4%2,4%2,4%2,4%

Asinderp Movimento populacional dos moradores de rua

Fonte: Pesquisa de campo da autora, realizada entre os meses de setembro e outubro de 2014.


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Entre os motivos para não fazer parte das entidades destaca-se: a falta de interesse dos trabalhadores, apontada por 12,5% deles; a baixa credibilidade que há no trabalho das associações mencionadas por 11,3% dos entrevistados; e a falta de conhecimento sobre o trabalho das associações, apontada por 10,9% dos entrevistados (Gráfico 18). Podemos inferir que tanto o baixo interesse pelas associações quanto o baixo reconhecimento delas enquanto representantes dos interesses globais da categoria contribuem para fragilizar os trabalhadores de rua enquanto classe e provavelmente diminuem seu poder de barganha frente às determinações do poder público sobre seu trabalho e seus direitos.

Pesquisa sobre trabalhadores de rua em Salvador Gráfico 18: Caracterização da Atividade – Se não faz parte de nenhuma associação, qual o motivo? Não respondeu

30,0%

Não se interessa 25,0%

Acha que as associações são fracas / não acredita nas associações Não conhece / não tem associação Outro

20,0%

Não sabe o motivo 12,5% 11,3% 10,9% 10,5%

10,0% 6,5% 5,2% 4,8% 3,6% 3,2% 2,8% 2,0%1,6%

0,0%

Ainda não procurou / não foi procurado por nenhuma entidade Não gosta / não quer Não vê melhora / utilidade Não tem tempo Já faz parte, mas saiu. Não sabe mais como está É novato / não sabe se continuará na atividade

Não tem dinheiro

Fonte: Pesquisa de campo da autora, realizada entre os meses de setembro e outubro de 2014.

Perguntamos aos trabalhadores quais as suas três principais dificuldades com relação ao seu trabalho (Tabela 11) e verificamos que sobressai o conflito com o rapa. Surgem também questões como a precariedade dos recursos para realização do trabalho, desgaste físico e o sentimento de desvalorização. São apontadas ainda questões sobre a falta ou precariedade da infraestrutura de suporte à atividade, sobretudo no que se refere a proteção às intempéries e a inexistência de banheiros públicos. A dificuldade em seu trabalho no que se refere à organização da produção também é mencionada quando o trabalhador diz que não consegue


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repor a mercadoria na medida em que ela sai, porque não tem capital para produzir a mercadoria nos momentos em que tem tempo sobrando para se dedicar ao seu negócio. Pesquisa sobre trabalhadores de rua em Salvador Tabela 11: Questionário de aprofundamento – Quais as três coisas que gosta no trabalho / quais as três dificuldades / quais os planos para o futuro Questionário 1

2

3

4

5

6

7

8

Quais as três dificuldades? Equipamento precário Ter um depósito/quartinho próprio Guardam drogas na cobertura da barraca Falta de respeito com o trabalhador Grande desgaste físico Falta de apoio dos gestores Não consegue repor à medida que a mercadoria sai quando o movimento está forte Quando tem tempo sobrando, não tem capital para produzir mercadoria O ponto não é bom O rapa Classe desunida Não há estudos do que precisa melhorar para a categoria, só do que precisa melhorar para a cidade Mercadoria é desvalorizada só por estar na rua Relacionamento entre os colegas, mas faz parte. "mora" mais na rua do que em casa. Sol e chuva Falta de banheiro O rapa Chuva -

9

Nenhum problema -

10

Cobertura mal feita O rapa -

Fonte: Pesquisa de campo da autora, realizada entre os meses de fevereiro e março de 2015.

Se por um lado temos um aspecto que evidencia os conflitos e disputas, onde pesam as questões contraditórias e os tensionamentos estabelecidos em sua relação com o espaço, com


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o poder público, com os transeuntes, lojistas ou entre os próprios trabalhadores, por outro há um oposto que os complementa, ao qual nos deteremos a seguir.

3.3.3 A pedra: circuitos de cooperação, pertencimento e solidariedade

Como o próprio nome indica, neste eixo pretende-se explorar os aspectos mais subjetivos que compõem a atividade, ou seja, aqueles que estão ligados ao sentimento das pessoas com relação ao trabalho que desenvolvem, ao lugar onde ele acontece e com aqueles que com ele estão envolvidos. “A pedra” é um termo que serve para designar a relação de um trabalhador com o lugar, ou a rua, no qual se estabelece. No caso das entidades que representam os interesses coletivos dos trabalhadores de rua, por exemplo, se anteriormente tínhamos chamado a atenção apenas para o seu enfraquecimento, agora podemos também perceber o fato de, mesmo com sua imagem desgastada, ajudarem-se solidariamente nos processos de negociação, defendendo os interesses coletivos, ou pelo menos aqueles menos nocivos para o segmento como um todo. Assim, nesta seção trataremos de aspectos dos circuitos de cooperação, pertencimento e solidariedade envolvidos na realização da atividade. Nas Figuras 39 a 42 temos exemplos de uma situação cotidiana entre aqueles que frequentam, trabalham ou moram na Avenida Sete e seu entorno: a presença dos carregadores contratados pelos donos dos depósitos, pessoas que usam sua força para empurrar pesados carrinhos com as mercadorias dos trabalhadores de rua, por repetidas vezes durante o dia. Essa situação é uma pelas quais se revela a complexidade do sistema que estamos estudando, já que também está relacionada com uma das escalas de subordinação anteriormente apresentadas, mas também nos remete às cadeias de reprodução da informalidade que ocorrem dentro da própria informalidade, onde diferentes circuitos de cooperação32 se evidenciam e operam. Os carregadores se configuram, portanto, como um elo importante entre os trabalhadores de rua e os donos dos depósitos, realizando a tarefa diária de armazenar e entregar, em cada ponto, as mercadorias que serão comercializadas. Se por um lado há trabalhadores que precisam pagar aos donos dos depósitos, e estes por sua vez remuneram os carregadores, numa situação em que a subordinação e a cooperação se relacionam por outro lado temos também importantes relações de solidariedade

32

Azambuja (2009), fundamentando-se em Paul Singer, define a cooperação como a soma de esforços individuais coordenados em torno de um objetivo comum.


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estabelecidas com alguns lojistas, que guardam mercadorias gratuitamente, como é o caso de Fábio que apresentamos na narrativa, dos peixeiros da Rua do Cabeça, que armazenam aquilo que não conseguem vender num açougue existente na mesma rua, e de outros tantos trabalhadores com quem conversamos.

Figura 39: Carregador levando mercadoria para o ponto de um trabalhador. Fonte: Foto da autora, 2012.

Figura 41: Carregadores levando mercadoria na Rua do Cabeça. Fonte: Foto da autora, 2012.

Figura 40: Trabalhadora montando sua guia no início da jornada de trabalho. Fonte: Foto da autora, 2012.

Figura 42: Carregador na Rua Carlos Gomes. Fonte: Foto da autora, 2012.

Não podemos deixar de mencionar a percepção dos trabalhadores sobre a contrapartida de suporte que a cidade dá para a realização deles, até mesmo para compreendermos em que medida a ausência de determinadas estruturas nos projetos elaborados pela prefeitura afetam a atividade. Para isso, perguntamos como essas pessoas costumam se alimentar e beber água no dia a dia. Ao somar os percentuais de resposta daqueles que disseram trazer o alimento de casa ao daqueles que compram quentinha, temos que 50,9% dos


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trabalhadores se alimentam no próprio local de trabalho. Dona Maria, por exemplo, comentou que tinha vergonha de almoçar na rua logo quando começou a desempenhar a atividade, mas à medida em que fez amizades, se sentiu familiarizada com os outros colegas e não precisou mais se esconder para se alimentar. Isso significa uma relação forte de pertencimento, pois é apenas a partir do momento em que se identifica com os demais que estão em sua mesma situação, que é pública, que ela consegue aderir a esse comportamento. Há ainda 39,8% dos entrevistados que disse se alimentar em restaurante próximo do local onde trabalha e 8% que, por morar no centro antigo da cidade, almoça em sua própria casa (Gráfico 19). Não podemos deixar de mencionar ainda a cadeia de negócios que são movimentadas no centro em função da atividade estudada, como podemos observar no caso dos diversos restaurantes existentes no centro da cidade e que servem de apoio à atividade, pois 59,2% dos trabalhadores de rua compra e alimenta-se nesses locais.

Pesquisa sobre trabalhadores de rua em Salvador Gráfico 19: Caracterização da Atividade – Como você bebe água e se alimenta? em restaurante próximo ao local onde trabalha

50,0% 40,0%

39,8%

traz de casa e consome no mesmo local onde trabalha

31,5%

30,0% 20,0% 10,0%

compra e consome no mesmo local onde trabalha

19,4%

em sua própria casa

8% 1,4%

0,0%

em casa de amigos ou parentes próximo ao local onde trabalha

Fonte: Pesquisa de campo da autora, realizada entre os meses de setembro e outubro de 2014.

Perguntamos também como essas pessoas fazem para ir ao banheiro durante o dia enquanto estão trabalhando e a grande maioria, 94,5% informou que utiliza banheiros de estabelecimentos próximos ao local onde trabalham. Esses estabelecimentos pertencem ao comércio formal como é o caso da Fundação Politécnica e dos shoppings Center Lapa e Piedade, mas são também pequenas lojas e restaurantes. Assim, a ausência de sanitários públicos construídos pelo poder público é compensada pela solidariedade dos donos dos estabelecimentos comerciais, o que pode não durar a longo prazo, pois o aumento na demanda nos sanitários desses estabelecimentos implica em custos para seu proprietário mantê-lo. Com relação ao lixo, constatamos através do Gráfico 20 que 52,6% dos trabalhadores de rua informam acumular resíduos durante o dia, descartando na própria rua no


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final do dia, em local próximo ao ponto de trabalho ou no próprio ponto. 42,3 % diz que descarta o lixo em lixeiras públicas ao longo do dia ou acumula para o gari recolher durante o dia. Apenas um trabalhador disse separar os resíduos produzidos para a reciclagem. Como vimos na apresentação dos projetos, em geral são ofertas apenas lixeiras de pequeno porte no percurso da área de estudo, embora haja pontos onde há um volume grande de descarte de resíduos e que precisam de estruturas maiores como contêineres, por exemplo.

Pesquisa sobre trabalhadores de rua em Salvador Gráfico 20: Caracterização da Atividade – O que faz com o lixo produzido? 60,0%

acumula durante o dia e descarta na própria rua joga em lixeiras públicas ao longo do dia

52,6%

50,0% 40,0%

acumula e gari recolhe durante o dia

33,6%

30,0%

outro

20,0% 10,0%

8,7%

leva consigo para descartar em outro local 4,2%

0,7%

0,3%

separa para reciclagem

0,0%

Fonte: Pesquisa de campo da autora, realizada entre os meses de setembro e outubro de 2014.

Quando perguntamos aos trabalhadores o que eles consideram ser a coisa mais agradável de seu trabalho, a grande maioria menciona os vínculos de amizade criados com os outros colegas e o prazer de lidar com o público, cativando os clientes. Na Tabela 12 trazemos de forma sintetizada as respostas que foram obtidas. Através delas podemos notar que a satisfação com relação ao trabalho, além de estar relacionada com os clientes e amigos feitos nos pontos, está também na possibilidade de honrar os compromissos através do trabalho realizado e de ter uma maior flexibilidade para cuidar dos outros aspectos da vida que não somente relacionados ao trabalho. Considera-se ainda a possibilidade de obter maiores rendimentos e dinheiro sempre na mão. Com relação aos planos para o futuro, a realização dessas pessoas está, sobretudo, através do desejo de um futuro melhor para os filhos. Aproximadamente 50% dos entrevistados mencionou que gostaria de se formalizar, ainda que reconheçam que isso poderá não ser possível por sua idade ou grau de escolaridade. A outra metade, por outro lado, parece não ver muita perspectiva no mercado formal, pois pretendem continuar desempenhando essa mesma atividade. Assim, afirmam que gostariam de abrir seu próprio negócio.


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É importante notar que a parcial falta de interesse por entrar no mercado formal possa se justificar por diversas questões. Dentre elas está o fato de, apesar das inúmeras dificuldades na realização desse trabalho, como o fato de estar exposto às intempéries do dia ou de ter a mercadoria apreendida pelo rapa, para muitas pessoas essa ainda é uma perspectiva melhor de obter sustento e garantir a sobrevivência, pois mesmo com os lucros incertos ainda é possível obter uma melhor renda através dessa atividade do que com alguns empregos no mercado formal, com carteira assinada. Além disso, como vimos, boa parte dos trabalhadores que entrevistamos estão em idade adulta e possuem baixa escolaridade, o que significa ainda mais dificuldade de entrar no mercado formal.

Pesquisa sobre trabalhadores de rua em Salvador Tabela 12: Questionário de aprofundamento – Quais as três coisas que gosta no trabalho / quais as três dificuldades / quais os planos para o futuro Questionário 1

2

3

4

5

6

7

Quais as três coisas que gosta no trabalho? Os clientes As amizades A confiança das pessoas Os clientes Honrar os compromissos com o trabalho Poder tomar conta do filho Ganhar um pouco mais Poder fazer as coisas com mais liberdade Trabalhar e passar o dia todo na rua Coisa boa é estar aqui, conhecer todo mundo, ter amizade É apaixonado pelo que faz A clientela Fazer o próprio salário Fazer crochê Toma café e almoça na rua Gosta do trabalho na rua Tem controle do próprio horário Dinheiro sempre na mão Contato com o público, faz amizade, alivia o estresse e conversa

Quais os seus planos para o futuro? Ver os filhos formados Continuar desempenhando o mesmo serviço Abrir uma loja, se formalizar Procurar o mercado formal se as vendas não melhorarem Pretende continuar na atividade Sair da rua Quer continuar na atividade mesmo com problemas de saúde Sonha em ter uma loja -


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8

9

Sair do cansaço e ir para casa dormir Descansa a mente vendo as pessoas passarem Os clientes

Os colegas 10

A amizade Conhecimento adquirido Dinheiro

Continuar na atividade Gostaria de ter um emprego formal, mas acha que não vai mais conseguir por causa da idade Pretende continuar na atividade Não quer ter emprego formal, mas quer sair da área -

Fonte: Pesquisa de campo da autora, realizada entre os meses de fevereiro e março de 2015.

Vimos brevemente no Capítulo 1 que a leitura sobre o circuito inferior da economia aproxima-se da economia dos setores populares, cuja racionalidade estaria mais associada a reprodução da vida. Esta reprodução da vida de acordo com Kraychete (2000), entretanto, ocorre de maneira precária, pois não há nenhum tipo de assistência técnica ou jurídica destinada a esses trabalhadores, que precisam se virar da maneira como podem. Assim, apesar de haver momentos de repressão, eles retornam para as ruas “proibidas”, mesmo sem possuir licença e correndo o risco de perder sua mercadoria; se não há cobertura adequada para proteger a si e a sua guia, criam eles mesmos diversos tipos de improvisos com plásticos, ganchos e cordas presos aos postes de energia; organizam seu próprio sistema para o armazenamento de mercadorias; subcontratam-se e movimentam um mercado próprio; a sua maneira, dão um jeito de manter a si e às suas famílias. E um aspecto que não podemos deixar de considerar é que por trás de cada trabalhador há uma unidade familiar, doméstica. Para Coraggio (2000) as unidades domésticas são compostas por trabalhadores, entendidos como as pessoas que dependem da realização permanente de sua força de trabalho para se manter, onde não cabe enquadrar aqueles que vivem de rendas ou pensões oriundas de trabalhos realizados no passado. Mesmo nos casos em que o empreendimento se encontra separado do domicílio do trabalhador, ele funciona como uma unidade doméstica, cujo objetivo não é propriamente a acumulação, mas o de manter-se a si e a qualidade de vida dos membros da unidade a qual pertencem. De acordo ainda com Coraggio (2000), um equívoco recorrente entre as agências que prestam apoio a estas unidades, é o fato de tratarem os empreendimentos populares como se fosse possível transformá-los em pequenas empresas capitalistas. Querem ensinar aos


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trabalhadores que eles devem separar a economia da empresa, da economia do lar, no que é possível resgatar o depoimento de Diana que disse precisar reverter rapidamente tudo que lucra em novas mercadorias, pois se entrar num mercado pode gastar sem pensar todo o dinheiro que obteve. Ela preocupa-se mais com a necessidade de prover a sua subsistência e a dos seus, do que com a lucratividade do seu negócio, o que é abominado por muitos técnicos que não conseguem captar esta racionalidade da reprodução da vida. A categoria dos setores populares inclui em si formas de trabalho realizados solidariamente para produzir bens e serviços de consumo muitas vezes desenvolvidos pelos próprios membros da família, seja na execução do produto a ser comercializado, como é o caso de Adriana que produz em casa costurando com a mãe a mercadoria que vende na rua, seja na realização do trabalho para o autoconsumo, como é o caso das atividades realizadas para reprodução da unidade doméstica. Através do que foi exposto então, podemos entender com mais clareza a relação da atividade com a cidade e evidenciamos uma pergunta que fizemos aos trabalhadores com relação a este tema. Perguntamos a eles qual a importância que consideram que o trabalho que desempenham tem para a cidade, no que cabe a transcrição de suas respostas: “A pessoa tem uma manicure, um cabeleireiro e também um sapateiro de confiança. É uma pessoa que você sabe que o trabalho é bom e que confia. Além disso, tem pouco sapateiro na cidade. A coisa mais importante é a confiança que as pessoas têm no meu trabalho”, Seu Raimundo. “Numa escala de 0 a 10, acho que a importância é de 7, 8. Salvador não tem muitas ofertas de emprego. Onde a pessoa consegue emprego aqui? No comércio, nos serviços e no governo. Mais de 40% vai pro comércio informal porque não acha outro emprego pra sustentar a família. Muitos caem no comércio informal e nele é possível crescer, mudar de vida”, seu Francisco. “Acho que colabora com o comércio”, Adriana. “Quando a pessoa não tem estudo, não tem jeito. Não tem emprego pra muita gente. A importância é poder trabalhar”, seu Antônio. “Todo trabalho honesto é importante para a cidade porque a clientela volta. Meu preço é melhor do que o da loja. Além disso dou emprego pra outras pessoas. Sou microempresário”, Fábio. “Sem nós enfraquece as vendas. O mesmo que tem na loja, tem aqui. A gente é microempresário sim, somamos com o lojista”, dona Maria.


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“O preço é mais em conta, tá mais a vista a mercadoria da gente. É uma coisa que a pessoa não liga, quando vê a mercadoria vai e compra. A mercadoria tá mais a vista, por isso que ir pro beco foi ruim pra muita gente”, Diana. “Sei lá! O povo compra chá, compra folha, não é uma mercadoria fácil de achar. As pessoas compram, melhoram e voltam pra cá”, dona Lindinalva. “Trazer alimento saudável pra barriga das pessoas. É coisa saudável, coisa boa, o alimento é bom. É seguro pra eles (clientes) e pra gente”, dona Valdenice. “Financeira. A gente vende coisas baratas, que às vezes não tá no mercado e quando tá, é caro. A gente vende barato aqui”, Jeferson.

Percebemos que, à sua maneira e com suas palavras, os trabalhadores compreendem o seu papel no mercado de trabalho e na economia, pois parecem cientes de que contribuem para a circulação das mercadorias (e para a reprodução do capital), frequentemente oferecidas a preços mais em conta do que aquelas do setor formal. Podemos perceber ainda que o preço do produto sobressai em suas respostas. Além disso, eles evidenciam os benefícios de sua mercadoria, sobretudo quando se trata de produtos naturais ou que fazem parte da cultura e do saber popular. Aspectos como a honestidade e a confiança com relação ao serviço que oferecem também reforçam a importância da autovalorização do seu trabalho. As respostas obtidas revelam um sentimento de pertencimento e contribuição com a cidade que apenas pode ocorrer se a atividade desses trabalhadores ocorre nas ruas, no espaço público. Isso pode nos levar a refletir sobre o próprio conceito de espaço público presente atualmente no urbanismo. Será que este espaço deve apenas ser funcional para o ir e vir, asséptico e vazio, concebido para repelir uma diversidade maior de usos? Será que é possível conceber uma política urbana que possibilite um espaço público mais humano, capaz de compatibilizar uma maior diversidade de usos e torne outros diferentes tipos de apropriação possíveis, além dos previamente planejados?


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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O mercado de trabalho brasileiro é marcado pelos efeitos de uma industrialização tardia, que destruiu as ocupações tradicionais de boa parte da população. Se no campo a estagnação ou a mecanização diminuíram as possibilidades de trabalho das pessoas por substituí-las, nas cidades, passou-se a aglutinar uma grande massa populacional que não foi absorvida pelo mercado de trabalho que começava a se consolidar. Um mercado que, portanto, sempre foi excludente, e que traz as cicatrizes de um passado baseado num regime escravista, sobretudo considerando a cidade de Salvador. Às margens desse mercado e com poucas perspectivas de inserção provocadas por desigualdades históricas, como o acesso precário à educação, saneamento básico, saúde, habitação, etc., temos indivíduos que buscam a sobrevivência através de formas criativas, porém também frequentemente bastante precarizadas. Assim, vimos brevemente no início do primeiro Capítulo desta dissertação, como esses traços foram aprofundados, sobretudo na década de 1990, quando a globalização e a reestruturação produtiva pela qual o mundo capitalista passou contribuíram para um agravamento da situação. Diversos teóricos tentaram entender o fenômeno e sua polarização simbolizada na discussão sobre os setores formal e informal da economia. Francisco de Oliveira e Milton Santos, dentre outros autores, nos mostraram que essa dualidade era mais complexa, pois tratava-se de duas faces de um mesmo processo. Numa retrospectiva bastante sucinta sobre a leitura de Santos (2008), temos que num mesmo sistema coexistem e se retroalimentam dois circuitos da economia: um superior, no qual é possível satisfazer todas as necessidades de consumo, e o inferior, em que se tendo as mesmas necessidades não há o mesmo poder de consumo. Neste circuito inferior movimenta-se toda uma cadeia de trabalho, que se reproduz sob diferentes relações, inclusive as informais. Os termos formal e informal para nós, portanto, adquirem significado semelhante ao que Santos propõe para os circuitos: formal para nos referirmos a quem tem acesso aos benefícios sociais garantidos pelas leis trabalhistas e informal para quem não tem o mesmo acesso garantido, por não conseguir se inserir no mercado de trabalho formal devido a sua impermeabilidade estrutural em cidades como Salvador, sobretudo para aqueles sem acesso à educação. Em um momento recente de nossa história, mais precisamente nos anos 2000, uma melhora na situação do trabalho e do emprego é verificada no país, porém por um período muito breve. Essa frágil melhora não se sustenta face à crise financeira mundial de 2008, que só


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atingiu a economia brasileira anos depois, em 2015, levando a uma nova desestruturação do mercado de trabalho brasileiro, num mundo ainda mais globalizado, marcado pela acumulação flexível e pela precarização do trabalho, ou seja, por um trabalho que é muito mais instável e inseguro, pouco capaz de garantir alguma estabilidade no futuro. Tais acontecimentos têm diversos desdobramentos no espaço, como a ocupação de áreas inadequadas para a moradia e comumente distantes dos centros urbanos, por exemplo. Na perspectiva em que trabalhamos, esse desdobramento se dá numa escala de maior proximidade, na escala da rua e do cotidiano. Aos olhos de todos, ricos ou pobres. No olho da rua de um dos centros comerciais de maior importância para a cidade de Salvador. Situação, contudo, que não é exclusiva de nossa cidade: repete-se em muitas outras capitais brasileiras, de formas ao mesmo tempo particulares e semelhantes. Trocar produtos num mercado talvez seja a forma mais antiga de se obter recursos. A apropriação da rua pelo trabalho, por sua vez, provavelmente implica em disputa por esse espaço desde seu primeiro instante. Para que uma pessoa defina seu ponto num determinado lugar, é preciso minimamente que a mercadoria ofertada seja aceita pela população, que haja demanda. Na medida em que a demanda gerada agrada é possível que o ponto possa se estabelecer. Isso significa que uma apropriação inicial aos poucos se converte em uso e este uso, por sua vez, converte-se em conquista social na medida em que é reconhecido como um direito. Este reconhecimento ganha força principalmente quando o poder público passa a legislar sobre o assunto e cria normas específicas para ordenar a maneira como o uso do logradouro público pode se dar. A atividade do trabalhador de rua, nesse contexto, assume real importância tanto por questões sociais, uma vez que garante uma forma de sustento para aqueles que nela se ocupam, quanto pelo capital que movimentam, visto que contribuem para o escoamento de mercadorias que também são produzidas pelo circuito superior. A apropriação do espaço pela atividade se incorpora ao cotidiano e estabelece novas relações entre aqueles que usam este espaço. É importante ter em vista, nesse sentido, que a apropriação não deixa de ser tensionada mesmo quando convertida em um uso legitimado. Isto ocorre porque o lugar onde a apropriação que estamos lidando ocorre, a rua, é um lugar em permanente disputa. No passado, mesmo quando não haviam os veículos motorizados, o espaço da rua já era dividido entre pessoas, animais de carga, carroças e charretes. No momento em que os veículos motorizados se disseminam, o espaço de circulação dos pedestres nas ruas é reduzido e cada vez mais, até


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que normas são criadas para garantir que os passeios permitam minimamente a circulação a pé das pessoas. Assim, a calçada que já é uma porção reduzida da rua, agrega pelo menos a área destinada ao mobiliário urbano, o passeio do pedestre e a área acesso aos estabelecimentos e residências. Isso sem contar os demais usos e apropriações que se faz dela como, por exemplo, quando uma pessoa em situação de rua delimita uma porção deste espaço para dormir. Nesse sentido, a permanência nesse espaço limitado pressupõe um conflito constante entre diversos direitos, como o direito de ir vir, o direito à cidade e o direito ao trabalho, por exemplo. Podemos considerar que a rua enquanto lugar de disputa, é ainda mais tensionada quando o poder público lhe impõe normas e regras de uso. No caso da atividade dos trabalhadores de rua, a qual estudamos, pudemos perceber essa tensão constante sobretudo porque as pessoas não querem trabalhar em ruas onde não há movimento, ou seja, em ruas onde não há possibilidade de vender. A sua necessidade de sobrevivência se sobrepõe à ordem estabelecida. Desta forma, os locais onde a atividade não deveria mais acontecer sofrem pressões permanentes, assim como re-apropriações constantes, ocorridas durante e após cada intervenção tentada pelo poder público. Dentre as tentativas de ordenamento que estudamos nesta dissertação, pudemos notar que entre 1992 e 2014 houve basicamente três propostas no que se refere a atividade do trabalhador de rua em Salvador. A primeira delas foi realizada com base em estudos mais aprofundados sobre a temática, sintetizados em uma proposta que integrava a atividade com os demais usos do espaço público, porém sem se concretizar. Tal proposta sobressai por assimilar o trabalho de rua como fenômeno inerente à economia soteropolitana e passível de integrar a política pública urbana. A segunda proposta, apesar de partir da análise anterior, praticamente repeliu toda a atividade da rua onde se manifestava com mais intensidade, redirecionando-a apenas para alguns pontos específicos, o que foi desfeito na medida em que a fiscalização constante desses locais não foi praticada, sobretudo no intervalo entre a transição de uma gestão para outra. Neste caso, a normatização do uso não impediu que a apropriação voltasse a se manifestar em outros momentos. A última e mais recente proposta, apesar de também intencionar a retirada de todos os trabalhadores da rua principal, da Avenida Sete de Setembro, cria algumas condições para a sua permanência em locais determinados ao implantar algumas estruturas de suporte, o que não garante a efetividade da proposta. A adequação desses projetos, avaliada com base nas categorias de análise que elegemos mostra que apenas o projeto mais antigo, elaborado em 1992 possui um diagnóstico mais bem estruturado sobre a questão. Os demais elaborados em 1997 e 2013, se justificaram


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com base em necessidades urgentes e propuseram soluções pouco embasadas teoricamente e voltadas para uma ação de curto prazo. Com relação ao conforto ambiental, vimos que de 1992 a 2014 alguns avanços foram propostos, sobretudo no que se refere ao fato de se pensar em algum tipo de cobertura para os pontos de trabalho. Entretanto, podemos considerar que a proposta para as estruturas a que se chegou não se constituem como as melhores soluções que podem ser pensadas, sobretudo no caso da atual, onde a cobertura proposta foi executada com um material de baixa qualidade e que intensifica a sensação térmica para quem está exposto a ela. Além disso, é uma estrutura que praticamente não protege da chuva, levando muitos trabalhadores a improvisarem soluções pontuais para não molharem a si ou a suas mercadorias. Por sua vez, essas estruturas servem para ocultar a “desordem” causada pelo trabalhador de rua, sobretudo quando se visualiza o centro da cidade de Salvador utilizando imagens de satélite. Isto significa que para quem não conhece a cidade, vem de outro país ou estado e decide antes observá-la através de mapas, passa-se a impressão de uma cidade mais “limpa” e ordenada. A infraestrutura de suporte para a atividade também é pouco pensada pelo poder público, que limita suas ações à pavimentação e iluminação. A coleta de resíduos sólidos parece não levar em consideração o volume de resíduos gerados em algumas das transversais estudadas, sobretudo naquelas onde há a venda de hortifrúti, geralmente acumulados sem critério em grande quantidade em algumas esquinas no final do dia. Uma política voltada para a coleta seletiva dos outros tipos de resíduos gerados também não é problematizada pelos projetos estudados. A questão dos depósitos é outra que quase não é tocada pelas propostas apresentadas, ficando a cargo dos trabalhadores, que por sua vez se apropriam da ausência dessa estrutura para criar possibilidades alternativas de obtenção de renda, movimentando uma outra cadeia de informalidade. Ainda no que se refere à infraestrutura de suporte, podemos notar que nada é apresentado no que se refere aos sanitários, tanto os públicos que possam atender à população de maneira geral, quanto a específicos, destinados aos trabalhadores de rua, que, assim, dependem da solidariedade de lojistas ou dos sanitários existentes nas grandes superfícies comerciais, que são os shoppings centers. A relação entre as propostas e o entorno também foi um aspecto considerado para a análise dos projetos. Assim temos que o projeto de 1992 foi o que mais conseguiu criar uma


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solução que integra a atividade do trabalhador de rua com o espaço. Apesar de não prever nenhum tipo de cobertura para proteção do trabalhador, podemos perceber essa integração quando a mesma permanece na rua mais cobiçada que é a Avenida Sete de Setembro. A solução encontrada suprime o espaço do automóvel e não do pedestre, buscando compatibilizar os três usos no mesmo ambiente. As demais propostas visam uma segregação da atividade com a rua principal e mais do que isso, propõe uma estrutura que visualmente se desconecta do contexto do lugar. Por fim, a última categoria de análise sobre a qual nos debruçamos é a densidade de ocupação na área de estudo. Através dela verificamos que não há estudos que investiguem a demanda pelo espaço que a atividade cria. Isso notadamente empobrece as propostas elaboradas, já que são mais baseadas em suposições do que em resultados sistematizados sobre a realidade. O método que encontramos para calcular a densidade de ocupação na área de estudo, embora não tenha a pretensão de ser uma referência, nos ajudou a avançar sobre a compreensão deste aspecto, de modo que podemos ter uma leitura mais apurada sobre quanto do espaço é realmente demandado pela atividade do trabalhador de rua e o quanto ela interfere no direito de ir e vir dos transeuntes. Com base em nosso estudo, consideramos que seria interessante, por exemplo, verificar se o projeto mais recente contribuiu para adensar áreas que já eram muito densas, o que pode ter implicado numa piora na qualidade da circulação de pessoas e vai de encontro, portanto, ao que deveria ser o objetivo do planejamento. Como realizamos nossa contagem num período em que o ordenamento dos trabalhadores de rua já havia sido iniciado não é possível afirmar isso com certeza. Contudo, podemos observar que 05 das 14 ruas apontadas pela prefeitura como os locais permitidos para a atividade já se encontram saturadas, com alta densidade de ocupação. No que se refere à legislação sobre o assunto, consideramos importante notar as incertezas e instabilidades dos trabalhadores de rua com relação ao trabalho de onde tiram o seu sustento, já que as licenças são concedidas em caráter precário, o que significa a perda do ponto a qualquer momento em que a municipalidade entenda a inviabilidade da atividade no local. Sob esta questão há uma contradição interessante, pois ao mesmo tempo em que a atividade é reprimida, o logradouro público é também considerado como local de desenvolvimento econômico pelo próprio Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Salvador. O conceito de logradouro público no PDDU/2008 agrega a ideia da funcionalidade do lugar para além dos aspectos referentes ao convívio e socialização, pois insere o aspecto do desenvolvimento econômico no conceito. Desse modo, o logradouro pode ser regulamentado e fiscalizado,


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submetendo seus usuários às sanções administrativas estabelecidas por lei. Podemos inferir diante das informações expostas no que se refere a intervenção do poder público, que o interesse sobre a atividade não é apenas daquele sujeito que a realiza, mas também da municipalidade que a reconhece sob diferentes perspectivas políticas, tanto do ponto de vista social quanto do ponto de vista econômico, já que, como vimos anteriormente, a mesma promove a circulação de mercadorias no circuito inferior da economia e gera impostos para serem arrecadados pelo município. Entre o poder público e os trabalhadores de rua há as associações e o sindicato que representam os interesses dos trabalhadores. Essas entidades, no entanto, são entidades fragilizadas tanto pelo seu pouco tempo de existência, quanto pelo pouco reconhecimento que possuem junto a classe. Conforme pudemos notar, das três associações existentes, duas tem sua data de fundação praticamente coincidente com o início da execução do projeto de ordenamento elaborado pela gestão da prefeitura iniciada em 2013, o que indica que provavelmente elas tenham sido criadas para dar suporte político a execução dos projetos elaborados pelo poder público. Desta forma, a legitimidade das entidades para responder pelos trabalhadores fica bastante comprometida, principalmente se levarmos em consideração o fato de que 85,5% dos trabalhadores entrevistados revelaram que sequer sabem o nome das associações às quais estão vinculados. De maneira geral ainda, essa circunstância torna delicada a relação entre trabalhadores e poder público, já que as decisões tomadas possivelmente não levam em consideração os interesses da maioria, nem são discutidas com um público mais amplo. Além disso, a existência de quatro entidades atuando na mesma área pode indicar uma sobreposição de interesses e problemas na capacidade de atuação, que precisa ser melhor articulada entre os trabalhadores de rua e as lideranças. Num primeiro momento, a fragilidade de direitos vivenciada pelos trabalhadores de rua, sobretudo no que se refere ao direito ao trabalho, cuja carência implica a negação de uma série de outros direitos, incluindo-se aí o direito à cidade. Nas falas dos trabalhadores provocadas em parte por nossas perguntas, a maioria deles revelou que a importância do seu trabalho se dá na medida em que contribuem para circulação das mercadorias, oferecidas a preços mais em conta do que aquelas do setor formal, e assim consequentemente, favorecem a economia na cidade. Vimos que a maioria dos trabalhadores entrevistados são adultos e que o número de homens é ligeiramente superior ao número de mulheres. O nível de escolaridade dessas pessoas varia do fundamental incompleto ao ensino médio completo. De maneira geral as


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pessoas com quem conversamos são pais e mães de família, ou seja, além de trabalhar para obter o seu próprio sustento, trabalham também para manter outras pessoas. Em sua maioria são oriundas de Salvador e Região Metropolitana, porém há quem tenha vindo de outros estados do Nordeste. Os dados apresentados indicam que parte dessas pessoas provavelmente ficou desempregada na década de 1990, momento de profunda crise no emprego e no trabalho no Brasil. A atividade realizada, como fica evidente através dos dados, não é realizada em caráter transitório, mas se constitui como forma permanente de ocupação. Além disso, o baixo grau de escolaridade e a idade em que muitos se encontram hoje são apontados como motivos para permanecer na atividade, sem perspectivas de inserção no mercado formal. Podemos, portanto, prever uma continuação do trabalho na rua, pois sendo esse trabalhador pouco qualificado e a precarização do trabalho em geral uma tendência, o mais provável é que continue realizando atividades informais. Os dados indicam ainda que a maior parte dos trabalhadores de nossa amostra residem no próprio centro de Salvador ou em bairros do Miolo e Subúrbio, sendo estas últimas áreas as mais empobrecidas e com maior carência de infraestrutura urbana. O fato de muitos trabalhadores residirem no centro ou nas suas proximidades aponta para a possibilidade dessas pessoas constituírem um público alvo potencial para programas de habitação de interesse social no centro da cidade, pois claramente têm um interesse em residir nessa área e provavelmente já possuem também um vínculo com ela. Verificamos também que cerca de 43% dos trabalhadores entrevistados exercem a atual atividade porque não encontraram outro emprego formal ou porque foram demitidos. Ser trabalhador de rua, portanto, foi a “opção escolhida” na falta de uma ocupação melhor. Essa situação por si só rompe com a ideia de grande autonomia que se pensa sobre a atividade, ainda que possamos perceber que há autonomia em certas circunstâncias como, por exemplo, quando entrevistados mencionaram optar por esse trabalho para ter tempo de cuidar dos filhos. O trabalhador de rua, em geral, está desprovido de seguridades sociais. Caso adoeçam, por exemplo, não têm direito ou proteção alguma. Muitos trabalhadores disseram durante as entrevistas que nunca adoeceram, o que é surpreendente, visto que trabalham numa jornada diária extensa, expostos à rua, muitas vezes utilizando a voz como ferramenta para atrair o cliente, sem poder ir ao banheiro e frequentemente alimentando-se mal. Em sua maioria, folgam apenas uma vez por semana e não podem tirar férias já que seu sustento depende do trabalho diário, de segunda a sábado.


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Através da ação do poder público, da estrutura do mercado capitalista e da própria rede que fornece as mercadorias, por exemplo, que podemos identificar as situações de subordinação as quais estão submetidas este trabalhador. Apesar da maioria dos entrevistados ter respondido dispor de licença para trabalhar nos pontos onde estavam, isto não significa que não tenham receio das ações de fiscalização da prefeitura (o rapa), pois muitos dos que migraram para os novos pontos queixam-se da queda das vendas e frequentemente retornam para seus pontos de origem na Avenida Sete, correndo o risco de terem a mercadoria apreendida. Além disso, há os que mudam o tipo de mercadoria comercializada e passam a vender produtos considerados ilegais, que também podem ser apreendidos. Boa parte dos trabalhadores revelaram ter mudado de ponto no último ano, ou seja, tiveram seus pontos alterados. Foram muitos os relatos de trabalhadores que disseram ter precisado mudar ponto do dia para a noite, sem ter tempo de avisar sua clientela. O impacto dessa ação é bastante agressivo se pensarmos que algumas dessas pessoas ofertam uma mercadoria que dificilmente pode ser encontrada, que é produzida artesanalmente, ou que suas vendas dependem da relação antiga e amistosa que têm com seus clientes. Essas pessoas ficaram "perdidas" na multidão e algumas vezes foram relocadas mais de uma vez. Uma vez que a procura por produtos se dá quando a pessoa sabe onde encontrá-lo ou é atraído pela mercadoria no instante em que passa por ela, isto traz realmente sérios impactos para os rendimentos do trabalhador no final do dia e do mês. Como sabemos, há dias em que os trabalhadores podem receber bastante dinheiro e há dias em que passam sem conseguir vender nada. Nesses momentos, o pouco que conseguem obter frequentemente se destina ao transporte para ir trabalhar e voltar para casa, e para alimentar-se durante o dia de trabalho. A atividade do trabalhador de rua movimenta outras escalas de informalidade como pudemos constatar. Há casos em que os pontos são alugados ou que um mesmo trabalhador possui mais de um ponto. Além disso, os depósitos movimentam uma outra cadeia de ocupações. Por armazenar a mercadoria dos trabalhadores de rua, inserem na atividade a figura do dono do estabelecimento onde a mercadoria é guardada, carregadores que as transportam diariamente e até mesmo seguranças responsáveis dos locais onde a mercadoria é guardada. Em troca desse serviço, alguns trabalhadores pagam taxas semanais, mas há também aqueles que conseguem guardar a mercadoria na casa de amigos, parentes ou lojistas, assim também como há quem leve a mercadoria para casa todos os dias no final do expediente. Através dos dados que obtivemos ainda sobre as mercadorias, pudemos notar que há uma grande variedade delas sendo ofertadas na área de estudo, com destaque para as


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confecções, adereços, produtos de hortifrúti, eletrônicos, bolsas e alimentos. As mercadorias por sua vez são adquiridas em volume significativo no próprio centro da cidade, nas lojas de atacado e varejo que muitas vezes pertencem aos chineses, ou com atravessadores que levam mercadorias selecionadas diretamente para os pontos de trabalho. Uma parcela menos expressiva de trabalhadores revelou adquirir a mercadoria que comercializam pessoalmente através de viagens. Essas mercadorias, entretanto, não podem ser estocadas por muito tempo, sobretudo porque a venda delas comumente é incerta. Diante disso, os trabalhadores costumam adquirir os produtos num período de tempo menor, que varia de diariamente a quinzenalmente. Vimos ainda que os recursos para começar a atividade costumam ser adquiridos com poupança própria e com investimentos iniciais pequenos. Boa parte dos conflitos dos trabalhadores de rua pode ser percebido em sua relação com o poder público, com o rapa, sobretudo após as ações de ordenamento, o que é natural, visto que a situação nova lhes tirou da situação mais confortável em que se encontravam antes. Essa situação de impasse com as ações do poder público, por sua vez, já foi verificada em outros momentos e gestões, e sua natureza está justamente no conflito inerente entre a competência do poder público de buscar organização do espaço para permitir a efetiva circulação de pessoas e a atividade dos trabalhadores de rua que se apropriam e intensificam a demanda por espaço, obstruindo o fluxo do pedestre em alguns pontos. Contudo, as soluções adotadas pelo poder público, como pudemos constatar, são bastante empobrecidas, seja pelo fato de a prefeitura não ter dados sistematizados sobre a situação, seja pelos poucos estudos que embasam suas ações. Além disso, pudemos perceber que existem conflitos entre os próprios trabalhadores, entre aqueles que possuem e não possuem licença, que são de Salvador e de fora do município, por exemplo. A relação com os lojistas, por sua vez, contrariamente ao que se pode incialmente supor, parece ser bastante tranquila e amistosa. Podemos afirmar que certamente o cotidiano no centro de Salvador não seria o mesmo sem a atividade dos trabalhadores de rua. A dinâmica criada por sua atividade e as diversas instâncias que este trabalho movimenta, criam contradições ao mesmo tempo em que lhe enchem de vida. A atividade pode ser lida também como um resultado da diversidade de usos existente na área. É como se os trabalhadores sentissem a concentração dessa diversidade e a aproveitassem, dinamizando e ampliando ainda mais as possibilidades do lugar. Essas pessoas provavelmente contribuem significativamente para a existência de tantos e variados restaurantes e casas de lanches que existem no centro, por exemplo, que frequentemente


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ofertam almoço a preços bastante populares. Isso para citar apenas um dos diversos negócios que se beneficiam da atividade e se proliferam a partir dela. O espaço da rua onde o trabalhador exerce sua função não se esgota no trabalho, ele ganha contornos maiores. Estas pessoas desenvolvem uma relação de pertencimento com o lugar no qual fixam seus pontos, onde muitos deles permanecem durante anos e até mesmo décadas, o que faz surgir uma relação afetiva, comprometida e algumas vezes até mesmo conflituosa, como pudemos constatar. Percebemos ainda que há uma grande heterogeneidade, inclusive, nos próprios interesses dos trabalhadores com relação à atividade que desempenham, pois há entre eles os que não têm outro meio de sobrevivência e mesmo assim encontram nessa atividade maneiras de se divertir e ter prazer com o trabalho. Outro aspecto relevante é que, se por um lado há a flexibilidade de organizar os próprios horários e a possibilidade de cuidar dos filhos durante o trabalho, por outro lado há a incerteza da obtenção dos seus proventos diários e mensais, o que leva alguns trabalhadores a terem bastante dificuldade de garantir sua sobrevivência e até mesmo de prosperar em seus negócios. Não há como negar, portanto, que esta categoria absorve boa parte da mão de obra que não é aproveitada pelo mercado formal e está desempregada. O esvaziamento das ruas aqui estudadas nos períodos da noite e finais de semana, como comentado por um dos trabalhadores, revela ainda como a atividade comercial, incluindo-se aí a desenvolvida na rua, contribui para a vivacidade dos espaços públicos. O trabalho na rua aparece assim como uma alternativa de sobrevivência ao indivíduo socialmente vulnerável, através da qual lhe é possível viver com alguma dignidade, e sua presença nas ruas é capaz de proporcionar uma intensificação da experiência de estar, viver e pertencer à cidade. O lugar que a atividade ocupa é de interesse de todos, uma vez que se trata do espaço público. Este, por sua vez, não é escolhido aleatoriamente por cada um daqueles que dele se apropria. Para o desenvolvimento da atividade aqui estudada vemos que as características funcionais deste espaço perpassam por sua localização na cidade, nas quais diversos fluxos são articulados. Assim, ações do poder público podem ser concebidas, com o intuito de organizar, ordenar ou coibir os usos considerados não compatíveis com os interesses que se tem para o lugar. Vale ressaltar também que as recentes intervenções executadas promovem uma segregação da atividade do trabalhador de rua para transversais específicas, liberando a Avenida Sete, vetor principal de circulação entre o Centro Histórico com a Barra, da presença e imagem desse trabalhador, o que tornaria o lugar mais “atrativo”, sobretudo para o turista, como


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preconiza o planejamento estratégico que visa, dentre outras coisas, a competitividade entre as cidades. Ainda que as permissões para que os trabalhadores de rua possam explorar o logradouro público sejam precárias, ou seja, possam ser retiradas no momento em que este seja o interesse da prefeitura, isto não significa necessariamente que a atividade possa ser eliminada. Através dos projetos elaborados desde 1992 para cá ficou evidenciada a compreensão da funcionalidade desse setor da economia, cuja vivacidade se relaciona com a força social dos trabalhadores de rua que movimentam e contribuem para o escoamento das mercadorias no circuito inferior da economia, bem como a resistência desses próprios trabalhadores em permanecer ou retornar para os locais dos quais buscam se apropriar. Trata-se, portanto, de uma situação que não pode ser ignorada pelo poder público e que o planejamento possivelmente só será capaz de enfrentar a partir do momento em que busque compreender sua complexidade e proponha alternativas que compatibilizem os diferentes interesses envolvidos, sem a intenção de eliminar as práticas cotidianas dos espaços de representação, ou seja, do âmbito do vivido, utilizando aqui os termos de Lefebvre, pois estas tendem a voltar ou resistir, tensionando o espaço público, seus usos e apropriações.


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