A Ponte # 13

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Cotidianos

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Beira-Mar Encontro de mundos diferentes na avenida

Noturnos Trabalhadores que trocam o dia pela noite

Particulares

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Autismo Vida de uma mãe que teve um filho autista

Presídio Mães convivem com seus bebês no cárcere

Transtorno Difícil vida de um bipolar

Coletivos

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Diferentes Pessoas que optaram por um estilo de vida alternativo

Contracultura Movimento underground em Fortaleza

Ceará O paradoxal mundo dos cearenses

Fixos

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Ensaio fotográfico Estudantes retratam seus mundos

Artigo Individualização na sociedade


cartas

Dinamismo A edição “Mundos” foi, para mim, a mais surpreendente. Textos descontraídos e fáceis de ler, mesmo com algumas reportagens longas. A matéria que aborda distúrbios bipolares é incrível, já li e reli algumas vezes. Parabéns, realmente é uma revista de ótima qualidade. Italo Pontes Estudante de Direito/ Unifor

Sincronismo

EXPEDIENTE Revista do Curso de Jornalismo da Universidade de Fortaleza Centro de Ciências Humanas - Universidade de Fortaleza Fundação Edson Queiroz Diretora do Centro de Ciências Humanas: Erotilde Honório Coordenador do Curso de Jornalismo: Wagner Borges Conselho editorial: Alejandro Sepúlveda, Eduardo Freire e Erotilde Honório Coordenação editorial e de produção: Alejandro Sepúlveda Gerente do Laboratório de Jornalismo: Alejandro Sepúlveda Supervisão de produção gráfica: Aldeci Tomaz Diagramação e tratamento de imagens: Bruno Barbosa Supervisão de fotografia: Júlio Alcântara Edição de Fotografia: Fabiane de Paula Revisão: Gabriela Ribeiro e João Paulo de Freitas Suporte técnico: Aldeci Tomaz Supervisor da gráfica: Francisco Roberto Impressão: Gráfica da UNIFOR Colaboradores: Professora Liduína Figueiredo, Cleoneide Rodrigues, Allan Diniz, Georges Gomes, Débora Morais e Eduardo Buchholz ESTUDANTES DE COMUNICAÇÃO SOCIAL / UNIFOR: Coordenação de equipe: Gabriela Ribeiro e João Paulo de Freitas Editores assistentes: Viviane Sobral e Camila Marcelo Capa: (xxxxxxxxx) Foto da Capa: (xxxxxxxxxx) 2ª e 3ª Capa: Agência de Publicidade - NIC Projeto gráfico: Eduardo Martins Fotografias/Reportagens: João Paulo Correia, Daniel Alves, Priscila Farias, Fabiane de Paula, Camila Marcelo e Bruno Barbosa, Rebeca Marinho e Waleska Santiago Fotografias/Ensaio: Patrícia Mendes, Hanna Moreira, Lucas Dorini, Luiza Costa, Fabiane de Paula, Criselides Lima, Hyana Rocha, Camila Holanda, Waleska Santiago, Rebeca Marinho, Lia Fragoso, Jáder Santana, Erika Zaituni, Karen Oliveira, Lívia Marques, Alexandre Guzman, Lyzia Hanna, Aline Veraz e Rayla Vidal Redação: Alunos da disciplina Princípios e Técnicas de Jornalismo Impresso II de 2009.2 (João Paulo Correia, Marta Cruz, Filipe Dutra, Daniel Alves, Wolney Batista, Priscila Farias, Bruno Barbosa, Mhahyara Valente, Taís Lopes, Indira Arruda, Jaqueline Longatti, Rebeca Nolêto, Camila Marcelo, Fernanda Vieira, Renata Maia, Thamyres Heros, Marina Alves, Carlos Augusto)

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A 13ª edição da revista A Ponte não poderia ter sido melhor. Os diversos assuntos despertam a curiosidade dos leitores. Com um desing muito bem projetado, as cores encaixam-se perfeitamente aos temas. Gostei muito dessa edição e parabenizo a todos que fazem parte da criação da revista. Patrícia de Holanda Estudante de Jornalismo/Unifor

Criatividade A revista “A Ponte” com o tema “Mundos” ficou muito boa e criativa, com reportagens bem articuladas. A matéria que me chamou atenção foi sobre “transtorno bipolar” . Parabéns à equipe da revista pelo excelente trabalho. Cleoneide Rodrigues Estudante de Psicologia/Unifor

Naturalidade A revista A Ponte, da última edição, me surpreendeu com a reportagem “Infinitos Particulares”, falou do autismo de uma forma muito natural. Ficou leve, dinâmico e com todas as informações necessárias para ficarmos por dentro do assunto. Parabéns, eu adorei. Kalil Lobo Estudante de Educação Física/Unifor


“Nenhum homem é uma ilha” que fingimos ignorar, ou que algum dia ouvimos falar, mas que, por estranhas e diferentes, impedimos que elas entrem em nosso mundo – ou, melhor, optamos por algo como um auto-exílio -, mas elas reaparecem a todo instante, como nas páginas a seguir, mesmo que depois continuemos a fechar olhos. Enquanto editávamos as reportagens para a revista, nos primeiros meses de 2010, vimos como o mundo de milhares de pessoas, em poucos minutos, literalmente desabou diante da força irracional e incontrolável dos terremotos no Haiti, no Chile e na Turquia. Também vimos famílias inteiras sumirem em deslizamentos de terra nos morros cariocas, vítimas das fortes chuvas que atingiram o estado. Imagens da televisão mostraram pessoas desesperadas vasculhando escombros com as próprias mãos, à procura de seus parentes e tentando salvar o que restara de suas vidas; e imagens de multidões vagando desorientadas por ruas totalmente destruídas, sobre mundos soterrados. Como ficar indiferente, protegido entre as paredes do nosso mundo, como se as tragédias acontecessem apenas com os outros? Com profundo sentimento humanista, Donne, ao refutar a concepção do “homem-ilha” - muito em voga hoje na figura de indivíduos autocentrados -, escreve: “a morte de qualquer homem me diminui, porque eu sou parte da humanidade; e por isso, nunca procure saber por quem os sinos dobram, eles dobram por ti”. Foto: Waleska Santiago

O tema desta edição é “Mundos”. Não os mundos que possam existir fora do planeta em que habitamos, mas os nossos próprios mundos, aqueles representados por histórias de vidas particulares e coletivas, tão iguais ou mais complexas e difíceis quanto as nossas. Histórias como a de Lília, que teve que reaprender a vida quando soube que seu filho João Paulo era autista, e a de dona Zeneide, que só descobriu que o filho era bipolar quando ele não conseguia passar da 4ª. Série, ou ainda o drama de Helena, mãe presidiária que cria a sua filha em uma pequena cela, onde cumpre a pena junto com outras mães detentas. E histórias de vidas alternativas, como a de Alexsandro Araújo, o Tigrão, que por falta de oportunidades fez de uma galeria fluvial a sua morada, e a da jovem publicitária Paloma, que deixou a segurança da sua morada para viver nas ruas um mundo alternativo. Cada um ao seu modo, conta a sua história, vai tecendo o mundo como se fosse um novelo. A frase que dá título a este editorial, proferida primeiro pelo poeta inglês John Donne (1572-1631) em suas meditações, foi várias vezes utilizada em livros, poemas, discursos e letras de músicas que falam da impossibilidade do homem viver sozinho em si mesmo, fechado em seu próprio mundo. Creio que ela também pode ser empregada aqui para sintetizar o sentido das reportagens reunidas nesta edição de A Ponte. Elas nos instigam a estender o olhar para os outros, além das fronteiras da nossa própria ilha, a (re)conhecer que o mundo não se limita ao nosso horizonte, que há outras formas de existir, de ver e sentir o mundo. Em geral, tratam-se de realidades

Prof. Alejandro Sepúlveda Coordenação Editorial

ao leitor

Vitais


Mundos ·

texto

· aryanne cavalcante · joafrânia nogueira ·

fotos

· waleska santiago ·

A avenida Beira-Mar de Fortaleza é um palco de muitos mundos. De um lado, de frente para o mar, faraônicos e luxuosos edifícios de apartamentos um por andar. Do outro, no calçadão, barracas de bebidas, feirantes de artesanato, vendedores ambulantes de todo tipo e uma multidão de anônimos que transita diariamente entre o asfalto e o mar. Nesse ambiente onde mundos se misturam, alguns personagens se destacam. Eles não ostentam produtos caros. Trazem consigo apenas histórias da vida de quem vive à beira do mar e da sociedade


Cotidianos


Tudo parece imenso. De um lado, grandes estruturas de concreto enfileiradas desenham o que para alguns é a modernidade. Do outro, a imensidão do mar agita as suas verdes águas com majestosa beleza. É entre a vastidão do mar e o enorme conglomerado de prédios luxuosos que encontramos uma diversidade de mundos. Lá tem de “um tudo”, como definem alguns cearenses. É o reduto das variedades, o simbolismo explícito da tolerância das diferenças de uma Fortaleza cheia de luzes e cores. Por ali circulam pessoas das mais variadas classes sociais, nacionalidades, etnias, idades, e que fazem da Beira-mar um universo particular. Os motivos que levam milhares de pessoas à orla todos os dias são os mais variados. Uns vão para passear, namorar, fazer compras, praticar exercícios físicos ou mesmo para ficar sentados a olhar os passantes. Muitos vão para trabalhar: o calçadão é o seu ganha-pão. Vendedores de milho se misturam aos de tapioca, acarajé, água de coco, roupas, arte-

Na Beira-Mar há pessoas das mais diversas classes sociais e origens. É um lugar onde os mundos se misturam

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sanato, brinquedos, obras de arte e a tantos outros. Um homem-estátua prateado imita um anjinho, uma mulher equilibra na cabeça uma garrafa pet cheia d’água, o trenzinho das crianças passeia alegre com a turma da Mônica, o Pica-pau, o Bob Esponja e muitos outros personagens do mundo infantil, um sanfoneiro deficiente e desafinado toca sentado no chão à espera de alguns trocados, palhaços convidam todos para shows de risadas, jovens capoeiristas dançam ao som do berimbau, um grupo toca pagode, outro oferece santinhos. À noite, a movimentação cresce. O calçadão fica pequeno para tanta gente. A multidão caminha de um lado para o outro, esbarrando nela mesma. Passos mais apressados se misturam aos mais lentos numa sincronia que parece imitar as ondas do mar. Surfando sobre a multidão, coopistas indiferentes passam exibindo seus corpos sarados numa espécie de quase narcisismo. Protegidos por iPhones e iPods, sem olhar para ninguém, correm pelo


calçadão fechados em seus próprios mundos. Nada ali é isolado. Vozes das conversas se misturam às buzinas dos carros, ao som das ondas do mar, aos gritos dos vendedores ambulantes, às propagandas que ecoam dos carros-de-som, ao choro estridente de crianças, aos apitos que imitam miados, aos risos dos que se divertem nas rodinhas. Tudo, ali, reúne, em um só espaço, simplicidade e sofisticação, drama e comédia.

Um olhar sobre os diversos mundos da Beira-Mar “Só existe mundo da ordem para quem nunca se dispôs a ver. [...] O olhar deseja sempre mais do que o que lhe é dado a ver. Foi também necessário que o indizível se tornasse prosa”. Adauto Novaes, do livro O Olhar

Tigrão em um trecho da galeria onde mora

Tigrão

Da porta de sua “morada” dá para ver a água sumir no horizonte. Bastam alguns passos em direção ao mar para ter os pés beijados pela suavidade das ondas. Ao redor, areia, muita areia. Trata-se do reduto boêmio da cidade: A Beira-Mar. Precisamente entre o aterro da Praia de Iracema e a estátua de Iracema - a índia guerreira que ajoelhada protege a cidade, escultura do artista plástico cearense Zenon Barreto. É impossível evitar que a água chegue até seus joelhos. Nos dias de maré alta, então, o mar acaba invadindo a sua “casa”. O morador em questão responde pelo apelido de Tigrão, mas o seu nome de batismo é Alexsandro Araújo da Silva, 30 anos, e a sua “moradia” fica fundos de uma galeria de esgoto que desemboca no mar.

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Tigrão saiu de casa ainda criança para trabalhar na casa de conhecidos. Hoje é flanelinha e manobrista

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Da entrada da galeria até sua “morada” é preciso penetrar quase 50 metros no túnel com a cabeça agachada e o tronco curvado para não se arranhar com a aspereza da superfície de concreto. O buraco fica no subsolo do cruzamento da avenida Historiador Raimundo Girão com a rua Ildefonso Albano, local de condomínios de luxo. Tigrão é um homem magro, baixo, de olhar triste e muito sério. Ele ganha a vida na BeiraMar como flanelinha e guardador de carros. Apesar do lugar em que mora, gosta de andar sempre limpo e cheiroso. “Agora tenho uma piscina na minha casa, sabia? É uma piscina natural. A água é tão limpa que eu bebo. É uma delícia”, conta, referindo-se a um cano da Cagece que estourou e lhe fornece água potável. Lava e seca as suas roupas dentro da galeria, no mesmo espaço estreito e escuro. Na região, é respeitado por todos. “Odeio

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vagabundo”, informa. Se pudesse seguir uma profissão, seria policial. A história da vida de Alexsandro Araújo da Silva é construída por vários dramas. Saiu da casa dos pais quando ainda era criança para trabalhar e morar na casa de conhecidos abastados, aonde ia com frequência pegar restos de comida para alimentar os porcos que a família criava. Deixou a nova residência, onde lhe davam abrigo e emprego, para ir embora com uma moça de 15 anos porque, segundo ele, a família, com a qual morava, dizia que era muito cedo para um garoto da idade dele, 13 anos, namorar. Ele conta que fugiu de sua segunda casa numa noite, deixando apenas a chave do estabelecimento comercial em que trabalhava e um bilhete escrito pela namorada que conhecera no colégio onde estudou por poucos anos. Sobre o conteúdo do bilhete, ele o desconhece:


fazê-lo adormecer”. Só quem experimentou o tal cafuné sabe dos arrepios que ele provoca. Em um passeio rápido pela Beira-Mar, somos tentados a imaginar que ele é mais um na multidão de anônimos que vemos passar diante de nós. Embora o homem do cafuné ganhe a vida do que vende, ele tem um sonho: ser cantor. “Cantor profissional”, acrescenta. Silva saiu de Recife há poucos meses com um objetivo: gravar um CD de música gospel. Veio para Fortaleza porque acredita que o Ceará é o único estado do Nordeste que oferece esse tipo de oportunidade para calouros evangélicos, referindo-se ao programa Paz e Amor, exibido pela TV Diário. Diz que o propósito que Deus tem para a sua vida está nesta cidade. Ele mora com uma irmã, que também é sua parceira no trabalho. Abandonou a vida de trabalhador comerciário e estudante de Turismo, enfrenta dificuldades financeiras e as saudades da esposa e da filha que ficaram em Pernambuco, tudo para realizar o seu sonho: melhorar de vida por meio da música. Garante que já produziu quarenta e seis composições. Só falta gravar o CD. Enquanto o sonho não se realiza, Alexandre tenta vender seus “cafunés” na Beira-Mar, cantando “Desistir pra quê?”, música que ele gravou em vídeo e publicou no YouTube.

Alexandre trabalha para um dia tornarse cantor profissional

Foto: Branca Sobrera

“Não sei. Foi ela quem escreveu. Não tenho inveja de nenhum estudante, são todos uns acanalhados”, confessa num xingamento que parece querer compensar a frustração de não saber ler nem escrever, de quem gostaria de ter tido uma história diferente. Amante da profissão de manobrista, ele confessa que já recebeu convites para trabalhar de carteira assinada, mas recusou. “Esse meu trabalho é muito bom, eu trabalho a hora que eu quero”. Ele passou a trabalhar como “flanelinha” e manobrista depois que teve a sua barraca de água de coco destruída por um ônibus, no bairro Montese. Perguntado sobre suas paixões, Tigrão revela que já teve um grande amor. “Ela é uma moça muito complicada, não quero mais nem saber dela. Quero é distância”, fala virando o rosto para o outro lado para que eu não perceba suas lágrimas. “Assim, gostar eu gosto, né? Mas não dá certo não. Ela bebe muito e faz muitas coisas erradas. Aí eu prefiro não querer”, confessa. Hoje ele está solteiro, mas de vez em quando encontra alguém para dividir a cama improvisada - uma porta com um colchão em cima. Apesar de não pertencer à elite do País e de não possuir sequer um local decente para morar, Tigrão tem orgulho da sua vida. Um orgulho sem soberba. É com a mesma valentia impressa no apelido que ele põe a salvo da humilhação a decência do seu caráter e reinventa o seu lugar no mundo da forma que lhe é possível.

O vendedor de “cafunés”

Ele é um rapaz simples, de sorriso tímido, olhar triste e voz branda. Com essa definição, fica difícil acreditar que Alexandre Silva seja um dos vendedores ambulantes que circulam pela Beira-Mar. Sem estardalhaços, o ambulante de 28 anos percorre o calçadão oferecendo, em silêncio, o produto fabricado por ele mesmo e batizado de “cafuné”. Trata-se de meia dúzia de hastes de arames presos em uma extremidade e curvos, em forma de garras, que servem para massagear o couro cabeludo. Faz sentido. De acordo com o dicionário Aurélio, cafuné é o “ato de coçar levemente a cabeça de alguém para

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O mestre da paz

Victor Maia, o mestre da paz, é professor voluntário de Kung-fu na praia, lugar que

Foto: Aryanne Lima

considera seu lar

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Lua cheia ao fundo, brisa do mar batendo no rosto, areia fria e muitos curiosos observando atentamente a quebra de cocos pelos discípulos do Mestre da Paz. Sob aparência calma e sublime, como se estivessem quebrando palitos, eles quebram os cocos um a um. “Não está doendo nada, é meditar e toda a dor é esquecida”, assegura Victor Maia, 33 anos, nascido em Salvador, que dedica suas noites para dividir seus conhecimentos, como ele insiste em ressaltar, para ensinar às pessoas a arte do Kung Fu. Professor voluntário, Maia começou a ensinar Kung Fu na Beira - Mar para aliviar o estresse que sentia quando ficava trancado em casa. “Meu lar é a praia. Aqui eu encontro a paz”. No início eram apenas dois alunos, hoje são 20 os “discípulos” que recebem seus ensinamentos sobre a prática das artes marciais japonesas. Ao ser chamado de professor, ele me olha desconfiado e responde que não é professor, apenas multiplica aquilo que aprendeu. Ele co-

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nheceu o Kung Fu aos dez anos com seu avô que o escolheu como discípulo. Segundo a tradição, o mestre precisa escolher o seu discípulo para lhe ensinar tudo o que aprendeu. “Devemos escolher nosso discípulo e passar a ele tudo o que aprendemos. É muito egoísta morrer e levar tudo o que aprendeu consigo. Precisamos dividir o nosso conhecimento e ajudar as pessoas. O melhor não é aprender, é ensinar”. Com os olhos cheios de lágrimas, relembra o que o avô lhe dizia sobre ser um homem da paz. “Meu filho, você levará a paz por onde for, todos que te conhecem irão sentir a paz”. Maia fica emocionado, cala-se por alguns instantes e depois retoma a fala relembrando a importância de ajudar ao próximo, de levar a ele um pouco de paz e esperança por uma vida melhor. Sob uma salva de palmas, a aula chega ao fim e o Mestre da Paz se despede de todos os presentes em forma de reverência. “Obrigado aos presentes, sigam em paz e multipliquem a paz e o amor”.


O homem-anjo já viajou o Brasil inteiro com os frutos de seu trabalho

O homem-anjo adora voar

Impenetrável, ele possui asas de isopor de quase dois metros de pura brancura, longas vestimentas que caem até o chão, rosto oculto pela maquiagem, adornos na cabeça, adereços que dão forma ao personagem conhecido como homem-anjo. Com um sorriso discreto e as mãos quase sempre juntas e próximas ao peito, como se estivesse a orar, ele fica petrificado a noite toda como uma estátua. O homem-anjo já faz parte da paisagem viva da Beira-Mar. Ele ganha vida quando depositamos algumas moedas na latinha que fica aos seus pés. Ou quando adultos e crianças param ao seu lado para fazer algumas fotos. O curioso é saber que as imaculadas asas desse homem, que mede pouco mais de um metro de altura na vida real, já o levaram para quase todos os estados brasileiros, com exceção do Acre. Ele exibe um punhado de tickets de viagens para mostrar por onde andou. Foi em 2005 a sua última viagem de ônibus. “Agora só viajo de avião”, garante de olhos

arregalados e peito inflado. Em suas andanças pelo Brasil, esse homem-estátua fez sempre o que mais gosta: ser um homem-anjo. Por essa razão, nunca volta de mãos vazias. Aonde chega, vai logo tratando de se arranjar em uma praça para viver o seu personagem. É um anjo que desperta a atenção de todos. Não do tipo que atrai apenas as mulheres, mas também os velhos, jovens e, principalmente, crianças. É difícil não notar os olhares de encanto e carinho de quem o observa. Uma criança toca-lhe as mãos revestidas com brancas luvas cirúrgicas e arrisca um diagnóstico: “Mãe, ele é de plástico!”. Ele sorri delicadamente e retribui oferecendo-lhe um pirulito vermelho em forma de coração. Ele se chama Francisco Raimundo, mas seus amigos o chamam de Neto. Sempre trabalhou representando algum personagem. E é assim que sustenta a família. Seja na avenida Beira-Mar, seja pelo Brasil, vive da paixão de fazer o que lhe apetece a alma. Ser anjo e gente ao mesmo tempo é um privilégio que Neto diz desfrutar com intensidade, pois o faz com dignidade e sabedoria.

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Companhias da ·

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NOITE

· daniela araújo · suzane lima ·

Passar a noite em claro pode significar bem mais que ficar sem dormir. Para algumas pessoas, trabalhar de madrugada é uma oportunidade de ajudar o próximo ou contribuir para uma vida melhor. Essa é a rotina, por exemplo, de gente como Rose, voluntária do Centro de Valorização da Vida (CVV); do capitão Tallys, do Corpo de Bombeiros; e de Sílvio Augusto, radialista da emissora Verdes Mares. Conversamos com cada um deles para conhecer um pouco dessa realidade

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· waleska santiago · fabiane de paula ·


Quando pensamos nos bombeiros, os associamos imediatamente a incêndios, pessoas fugindo de prédios em chamas ou heróis resgatando velhinhas e crianças. Engana-se quem acha que o Corpo de Bombeiros vive só essa rotina diariamente. Dentro da corporação, há inúmeras funções, entre elas, a prevenção a incêndios, buscas, salvamentos e socorros públicos. Ou missões bem mais simples, como o extermínio de um enxame de abelhas em algum condomínio da cidade. Seja o que for, em todo o mundo, esses profissionais inspiram crianças e conseguem a admiração de toda a sociedade.

Sirenes em alerta

Noite de domingo. Céu estrelado. Mar tranquilo. Calma. O relógio marca 22h35. Entramos na avenida Leste-Oeste e, ao longe, avistamos o posto do Corpo de Bombeiros onde passaremos algumas horas acompanhando a rotina de um grupo de bombeiros. O barulho do nosso carro chama a atenção daqueles poucos homens que enganavam o tempo assistindo ao Fantástico na tevê. Antes de descermos do carro, eles já estavam a postos para saber que visita inesperada era aquela, em pleno domingo à noite. Com um ar de cansaço, alto, gordo, com olhos azuis, mas vermelhos pelo sono, sai da cabine de vigilância o sargento Cabral para saber o que desejávamos. Avisa-nos que o capitão Tallys, com quem havíamos acertado a nossa visita, logo voltaria de uma ocorrência. Da entrada do Posto é possível observar o interior da pequena cabine. Há algumas cadeiras de plástico, telefones, um quadro com a foto da única mulher que atuou na área operacional dos bombeiros e que tragicamente faleceu em serviço. Do lado de fora, a sensação é de insegurança. Por precaução, as janelas têm vidros fumê

para impedir que os bombeiros sejam vistos por quem passa pela avenida. Em frente ao Posto, há uma favela cheia de castanholas, onde bandidos se escondem, à espera de alguma vítima. Um carro de resgate estaciona perto de nós. Descem alguns bombeiros, entre eles um homem de baixa estatura, magro, pele queimada pelo sol e sorriso largo, de uns 30 anos. É o capitão Tallys. Ele retorna de uma ocorrência de extermínio de abelhas. Explica que a ocorrência é atendida à noite, pois o risco de picadas é menor devido à escuridão. O capitão está na corporação há nove anos e meio, e há dois anos cursa veterinária. Tallys nos convida a conversar perto do mar, do lado de fora da pequena cabine. O posto continua tranquilo, a cidade aparenta descansar. Ele nos conta que o fantasma do toque da sirene o persegue até mesmo nas férias ou nos dias de descanso. “Se eu tiver viajando e escutar uma sirene, já acordo assustado. Quando você está aqui, por mais cansado que esteja, já dorme atento à sirene”. Entramos no pequeno Posto. É quase meia-noite. Para alegrar os colegas, o sargento Cabral se aproxima e lembra umas histórias engraçadas sobre a caça de animais na cidade: – Bicho danado é macaco! Nesse dia, a gente colocou até tranquilizante na banana, mas pensa que ele comeu? Ele jogava a banana na gente. Passamos por cada ocorrência! Teve um gavião que dava rasante nas pessoas no Hospital Militar, ele quase que pega minha cabeça. Tallys e Cabral se levantam. É hora de dormir e dar lugar a outros dois bombeiros no plantão. Aproveitamos também para partir. Despedimo-nos desses profissionais que arriscam suas vidas para prestar serviços à população, seja em uma simples operação para pegar gatos em árvores, seja em exaustivos resgates.

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próprios voluntários colaboram para pagar as contas. No Brasil está presente desde 1962; no Ceará, atua há 22 anos.

Amigos momentâneos

O CVV é uma organização não-governamental (ONG) que atua, desde 1936, na prevenção ao suicídio em vários países. Utiliza a Abordagem Centrada na Pessoa, teoria da psicologia humanista defendida pelo psicólogo norte-americano Carl Rogers, segundo quem toda pessoa é capaz de superar seus problemas. O objetivo do Centro é oferecer, por meio de agentes voluntários anônimos, apoio emocional a pessoas solitárias, angustiadas por algum problema ou sem vontade de viver. O CVV atende por telefone todos os dias da semana, 24 horas por dia. Mantêm-se por meio de contribuições, doações e promoção de bazares para arrecadar dinheiro. Às vezes, os

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Localizado em um bairro tradicional de classe média, o CVV de Fortaleza ocupa uma casa que em nada se destaca das outras do local. Cercada por árvores na entrada, seus portões de ferro permanecem fechados a cadeado todo o dia. Lá dentro, o imóvel é bastante simples, mas muito bem organizado. Na sala principal há uma pequena mesa onde ficam os panfletos. Na secretaria, há vários avisos em painéis e uma foto autografada pelo cantor cearense Raimundo Fagner. Todas as paredes estão cobertas com pôsteres relacionados às campanhas do Centro. Uma escada leva ao escritório onde são atendidas as ligações telefônicas e a uns quartos onde os voluntários costumam descansar. Atualmente, o CVV conta com 31 voluntários e uma única linha telefônica. Paramos em frente da casa depois das 22 horas. Quem nos convida a entrar é uma senhora simpática, de cabelos curtos e castanhos, óculos de grau, de uns 40 anos e que veste uma blusa com uma estampa de uma campanha do Centro. Ela abre e fecha rapidamente os dois portões. Com uma voz doce, Rose, funcionária pública e voluntária há cinco anos, se apresenta como coordenadora do CVV. Lá dentro, encontramo-nos com um estagiário que está em treinamento supervisionado por ela. Ao sair do escritório de atendimentos, ele respira fundo e sorri, revelando certo alívio. Ao termino do seu plantão, o estagiário se despede com um “até logo!” e, mais uma vez, Rose abre e fecha os portões com a mesma rapidez de antes. Ao voltar, senta-se à mesa para conversar. Com um jeito calmo, diz que gosta muito de trabalhar no Centro. Afirma não sentir cansaço com os plantões, mesmo tendo que acordar cedo no outro dia. Garante que o amor ao próximo e


a satisfação de ajudar alguém compensa. O trabalho de Rose é cansativo, não só pelo desgaste físico dos plantões na madrugada, mas, principalmente, pelo desgaste emocional. Uma das formas de distração é conversar com os colegas nos intervalos dos turnos. A vontade de ajudar ao próximo é o que motiva essa voluntária a passar dias e noites falando ao telefone com desconhecidos, escutando desabafos, choros, silêncios e, muitas vezes, até desaforos. Noites em claro escutando um desconhecido que jura que vai tirar a própria vida, uma pessoa triste, deprimida, angustiada. “O que ela precisa é de um pouco de atenção”, diz Rose. O turno de madrugada é bem mais intenso do que durante o dia. Em média, são oito telefonemas por noite. Os telefonemas não têm uma duração certa. Podem durar até uma hora, dependendo do caso. As pessoas ligam por causa de todo tipo de problema, até os que possam parecer mais simples. Elas querem alguém para compartilhar o sofrimento. “Tem casos de pessoas que perderam um animal, uma paixão não correspondida”. Mas a maioria dos telefonemas é para reclamar da solidão. Rose recorda de um em especial que a marcou. “Uma pessoa ligou falando da solidão que sentia no dia do seu aniversário. Disse que seu irmão não apareceu, mas tinha mandado um presente. A pessoa se sentia muito triste, porque tudo que ela queria não era o presente e sim a presença do irmão. Hoje, a presença é mais importante que o presente. Achei interessante a importância do ser humano”. Os próprios voluntários do CVV precisam enfrentar plantões solitários. Durante os treinamentos, acompanhados por outros voluntários, tudo é mais fácil. Mas, depois, é preciso estrutura para encarar as jornadas ao telefone tentando amenizar a solidão de outras pessoas. Rose se habituou a ficar sozinha na casa. No começo, para ela também foram difíceis os plantões à noite, inclusive por causa do relógio biológico. Apesar disso, não se sente mais sozinha, pois sempre está com alguém do outro lado da linha. A voluntária se declara uma amiga momentânea das pessoas que ligam para o CVV.

O rádio tem sido sempre um fiel companheiro para aqueles que precisam passar a noite em claro trabalhando, seja para os quem têm problemas de insônia ou ainda para aqueles que são fãs de programas radiofônicos noturnos. Em uma madrugada de segunda para terça-feira, acompanhamos no estúdio da Rádio Verdes Mares, a “Verdinha”, a transmissão do “Show da Madrugada”, produzido pelo jornalista e radialista Sílvio Augusto, que vai ao ar de segunda a sexta-feira, da meia-noite às 5 horas da manhã. O programa também é feito pelo radialista Moreira Brito. Eles intercalam as apresentações. Às vezes, o programa é apresentado pelos dois, sempre com o apoio do operador de áudio Augusto Assunção.

Nas ondas da madrugada

Passa das 22h quando chegamos ao Sistema Verdes Mares de Comunicação. Quem nos recebe é o porteiro da Rádio Verdes Mares, Eronildo Brito do Carmo, um simpático rapaz de seus 30 anos, de estatura mediana e cabelos castanho claro. Enquanto aguardamos a chegada de Sílvio Augusto, ele nos conta que trabalha há sete anos como porteiro na madrugada. Mas informa que está estudando para um concurso: – Quero melhorar, sabe? Na noite, a gente fica velho mais rápido. Logo chega à recepção da emissora um homem alto e parcialmente calvo. É o nosso entrevistado, o locutor Sílvio Augusto, há quase 14 anos trabalhando na madrugada. Já no estúdio, ele nos conta um pouquinho da sua rotina: – Eu saio daqui cinco horas da manhã, vou pra casa, dou uma dormida rápida e, umas sete horas da manhã, entro na Rádio Assembleia. Saio de lá por volta de umas 14 horas. Mesmo com todo o cansaço, o radialista garante que não se vê fazendo outra coisa: – Desde criança, eu quis trabalhar em rádio. A comunicação está na minha vida pra sempre. Perguntamos se já pensou em trabalhar de dia. Ele pensa, olha pra cima e responde com um ar de prazer: – É gostoso trabalhar de madrugada. É um horário especial, porque acho que o ouvinte fica mais atento às informações. É difícil de acreditar que tantas pessoas ficam acordadas ouvindo um programa de rádio durante toda a madrugada. Mas logo nos damos conta de

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Apesar do horário, o “Show da Madrugada” tem muitos ouvintes. Os telefones da rádio tocam a noite inteira

que a audiência é grande, pois as onze linhas telefônicas do estúdio não param de tocar. Quando o relógio bate a meia-noite, o programa “Show da Madrugada” vai ao ar e pilhas de papéis começam a se acumular na mesa de Sílvio Augusto. São inúmeros recados para familiares, beijos para namorados, gente querendo companhia, fazer amizade, encontrar um amor, ouvinte pedindo música e muitas pessoas reclamando da solidão. Durante o programa, entra no estúdio um rapaz trazendo, em primeira mão, a edição do dia do jornal Diário do Nordeste. Sílvio lê as manchetes de todos os cadernos para os ouvintes. Apesar da agitação, foi difícil não bocejar várias vezes, mesmo quando as onze linhas telefônicas pareciam tocar todas ao mesmo tempo. O locutor, orgulhoso, diz: – Tem gente que dorme mais cedo para acordar na hora do programa. Tem gente que grava para ouvir durante o dia porque não aguenta esperar a madrugada. Sílvio Augusto anuncia a hora: são 04h05. É o momento mais agitado da madrugada. Nesse horário, a cidade começa a acordar. Os aparelhos telefônicos parecem tocar ainda mais forte no estúdio. Líder de audiência na madrugada, o “Show da Madrugada” possui ouvintes que vão

de grandes empresários e políticos da cidade a trabalhadores como taxistas, porteiros e, na grande maioria das vezes, pessoas solitárias. O relógio marca 05h. A noite passou meio lenta no início, mas muito rápida depois. A sensação é de que vamos encontrar um sol a pino do lado de fora do estúdio. O trabalho na noite e na madrugada pode ser desgastante e de difícil adaptação. As pessoas que optam por esse tipo de função abrem mão de uma noite de sono, mas ganham a oportunidade de ajudar outras. Os trabalhadores da madrugada estão sempre suprindo a solidão noturna. Seja daqueles que não têm quem os ajude em um resgate ou problema com animais, dos solitários, dos que têm de permanecer acordados em função de um trabalho ou até dos insones. Desde o ato que parece mais simples, como atender a um telefonema, às mais complexas ações, como resgatar acidentados, a doação de noites de sono salva vidas e faz a diferença em nossa sociedade.

Centro de Valorização da Vida: (85) 3257.1084 www.cvv.com.br Corpo de Bombeiros de Fortaleza: (85) 3101.2211 Rádio Verdes Mares - AM 810: (85) 3266.9000



Infinitos ·

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· jacqueline nóbrega · lauro pimentel · viviane sobral ·

fotos

· waleska santiago ·

Eles não vivem em outra dimensão. Têm contato com a mesma natureza e elementos do nosso mundo: vivem sob o mesmo sol, respiram o mesmo ar e habitam a mesma terra. A capacidade que eles possuem de se relacionar com a realidade é que acontece de maneira distinta da nossa, com outra sensibilidade. Nem melhor, nem pior, só diferente


Particulares


Quando teve um filho autista, as pessoas da família de Lilia Jambartolomei se afastaram

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Não olhar ninguém nos olhos, não interagir socialmente, nem emitir emoções: o autista, para muitos, é aquela pessoa que habita um universo particular. Esse estereótipo, na verdade, refere-se a casos mais extremos e severos de autistas que tiveram diagnósticos tardios e que talvez nunca receberam algum tipo de tratamento. A verdade é que a síndrome – por se tratar de um conjunto de sintomas, de um transtorno do desenvolvimento em termos qualitativos que não possui um diferencial no físico - se apresenta em diferentes fases. Apesar de não possuir cura, nenhuma doença, síndrome ou preconceito consegue ser maior que o amor daqueles que aprendem a superar dificuldades. É o caso da experiência vivida pela carioca Lilia Jambartolomei, mãe de um autista. Como muitas outras mães, ela aguardou ansiosa pela chegada do primogênito. Em 2000, ao final da gravidez, pressentiu que havia algo errado. A hiperatividade que sentia na barriga não parecia ser algo comum a outras mães – disso ela tinha certeza. Após dar à luz João Paulo, nos primeiros meses de vida, Lilia reparou, como ela mesmo descreve, em algumas “esquisitices” do bebê. Chorava demais e só mamava de cabeça para baixo,

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“que nem morcego”. O fato excêntrico não passou despercebido aos mais próximos. “Todo mundo falava assim: ‘que absurdo! Você deixa seu filho mamar de cabeça pra baixo? Seu filho vai ter um troço! Você é uma mãe relapsa”, acusavam-na. Acontece que ele só ficava bem daquele jeito. Fisioterapeuta, Lilia lidava com crianças especiais em seu trabalho. Entre os quadros de deficiências múltiplas que chegavam até ela, havia casos de algumas crianças que possuíam algum comportamento autístico. O mundo do autista, portanto, não lhe era estranho. Devido a essa vivência profissional, sentia que havia algo diferente com seu filho. “Não trabalhava especificamente com autistas, mas já tinha uma ‘anteninha’ ligada. Sabia que mais tarde algo ia se revelar”, conta. Com essa sensação, procurou muitos médicos em busca de uma resposta. Todos diziam que aquele pressentimento de algo estar errado era uma fantasia. Aquela criança seria absolutamente normal, garantiam. Uma psicóloga, certa vez, foi além. “Ela falou que eu precisava fantasiar que havia algo no meu filho para eu ter uma bandeira para me sentir importante”, lembra indignada.


“Transcendência”

Muitos pais, quando recebem o diagnóstico, preferem não acreditar, buscam outras respostas. Com Lilia foi diferente, ela teve que lutar para algum médico admitir a síndrome – indo na contramão da maioria das escolhas dos pais. Seu filho precisava entrar em uma escola, buscar tratamento – precisava ser aceito em lugares que só o admitiriam caso tivesse um laudo afirmando o que ele tinha. Mas ninguém queria dar o diagnóstico. “Diziam haver algo de errado com ele, só não admitiam o autismo. ‘Algo tem, mas, o quê, é que ninguém sabe’. E eu não podia ficar esperando passar os primeiros anos da vida dele sem poder estimulá-lo”, recorda. O diagnóstico só chegou quando João Paulo já tinha completado um ano e dez meses. O laudo trouxe profundas mudanças em sua vida pessoal e profissional. Estava com 30 anos e cursava mais uma graduação, Psicologia. Tomou a decisão de especializar-se na síndrome do autismo. “Eu lutei pra conseguir o diagnóstico. Consegui. E aí? Estudos dizem que quando você recebe o diagnóstico de uma criança de uma deficiência qualquer, e, principalmente, o autismo, é a mesma coisa de você passar por uma morte”. Aquela criança, para quem a fisioterapeuta traçou planos e imaginou todo o trajeto de vida, “morreu”. “Acabou”. A partir de então, precisava lidar com aquele outro ser que ali estava. Não foi o que ela idealizou. Com o passar do

tempo, porém, foi percebendo que podia ser feliz. “Mas isso leva vários processos. Em primeiro lugar, a negação. Você diz: ‘não, não é possível! Por que tá acontecendo isso comigo?’. Depois, a raiva: ‘por que Deus fez isso comigo?’. Depois, a fase da barganha: ‘meu Deus, me ajude. Se você curar meu filho, eu serei devota para sempre’. Após, vem a depressão. Mas, nesse caso, a depressão não é vista como uma coisa ruim, e sim como uma coisa boa, pois é uma evolução. Primeiro, eu me desesperei, neguei, e isso tudo não adiantou nada. Então eu tenho que cair na real. E depois da depressão é algo que nós não podemos chamar nem de sublimação, porque sublimação é quando você atura uma coisa e vive assim mesmo. É mais que sublimação, é a transcendência. Porque você passa por aquilo e se torna uma nova pessoa. Quando isso acontece, é muito feliz”. Lília tem consciência de que, apesar de sua maneira de perceber o caso do filho, o autismo é uma síndrome, um distúrbio do desenvolvimento humano caracterizado por desvios qualitativos na comunicação, na interação social e no uso da imaginação. Não tem a pretensão de negar a realidade. Por outro lado, percebe também o autismo como um jeito de ser, uma forma muito especial de ser. Lilia, hoje, tem consciência de que essas pessoas só precisam ser entendidas no seu modo de viver. Enxergar a questão dessa forma possibilita também um diagnóstico precoce, aumentando as chances


da criança desenvolver o cérebro e estimular um convívio social estável. A experiência tem mostrado que eles são capazes de ter progressos no campo emocional e intelectual. Isto é, eles não estão destinados ao isolamento.

“Isso se chama coragem”

Para que João Paulo fosse tratado, a mãe conseguiu inscrevê-lo no Centro de Atendimento Psicossocial (CAPS) do Rio de Janeiro. Ao invés de boas expectativas, estar ali só trouxe angústias, desde a primeira entrada no local. “Era tudo misturado: dependente químico com crianças de três anos, pessoas que tomavam pico, com crises de abstinência, junto com um bebê desconhecido de dois anos, completamente inocente”. Em 2006, o marido de Lilia, pai também do segundo filho, uma menina “normal”, resolveu se separar. A família também já tinha se afastado. “Porque a verdade é essa, quando você tem um filho autista, as pessoas da família se afastam”. Pela Internet, a presidenta da Casa da Esperança (ler quadro ao fim), Fátima Dourado, convidou a fisioterapeuta carioca a participar de um congresso que aconteceria em Fortaleza. Ao chegar à capital cearense, Fátima perguntou se ela não gostaria de trabalhar na Casa e matricular João Paulo. “Como vocês dizem no Ceará, não contei pipoca”, brinca. Voltou para o Rio de Janeiro, fechou o apartamento e veio com as crianças, João Paulo, então, com 6 anos e a irmã com 2. Só quando chegou aqui é que avisou a família. “Dizem que isso se chama coragem, mas eu não acho que seja. É não ter mais o que perder. Eu já tinha perdido quase tudo”. Mesmo com tantos obstáculos, Lilia não quer que sua história juntamente com seu filho seja lembrada com tom pessimista, deprimente. Em meio a limitações, barreiras, abandono, também houve coragem, novos começos e novas perspectivas. Com a esperança de descobrir novas pessoas que representassem uma nova família e amigos, encontrou no Ceará um novo marido e pai para seus filhos. “A minha família de sangue está lá no Rio, mas a de verdade está aqui”, confessa.

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O mundo de João

Atualmente com nove anos, João Paulo possui uma rotina intensa na Casa da Esperança. Mesmo sem cura, vários são os tratamentos utilizados para melhorar a qualidade de vida dos portadores. Das sete da manhã até cinco da tarde, ele se mantém ocupado com muitas atividades. Tanto que, às oito da noite, invariável e pontualmente, já está dormindo, exausto. João está em uma sala chamada PréOficina, da qual participam alunos que já conseguiram certa independência, ou seja, sabem se cuidar, ir ao banheiro, tomar banho sozinhos, mas ainda possuem dificuldades nas tarefas cognitivas, como estar numa sala de aula. Realiza ainda atividades na piscina, que, de acordo com o que se queira trabalhar naquele dia, podem ter um enfoque relacional. Por exemplo, ele está na piscina e tem outro colega. O objetivo é que ele perceba aquele colega, faça alguma coisa com a água e o chame para ele. Depois, o colega deve fazer o mesmo. Pode parecer algo muito simples, mas para eles têm todo um sentido. João Paulo também desempenha aulas de música, uma arte que se tornou determinante na sua vida. “Ele conversa por música: canta e se expressa por meio de canções. Quando está com sede, ele não fala ‘Eu quero água’, mas diz: ‘Bebeu água? Tá com sede? Olha, olha, olha a água mineral’. Outro exemplo, quando eu casei com o meu atual marido, que é psicólogo da Casa, ele começou a cantar direto ‘Vai trabalhar vagabundo’, do Chico Buarque, e depois de um tempo ele repetia: ‘Vagabundo, vagabundo’. Era a questão de um macho dentro da casa dele. Ele não sabia expressar que alguém havia invadido o espaço dele e por isso chamava meu marido de vagabundo”, explica Lilia. Hoje em dia, a família ri e brinca com isso, mas foi a forma dele se comunicar. João e sua irmã, hoje com cinco anos, possuem um bom relacio-

namento. Segundo a mãe, eles se adoram. Tanto que, quando era chamada a atenção da menina – “que é uma pimenta e vive fazendo milhões de traquinagens”, – João logo vem brigar com Lilia. Já a menina tem ciúmes do irmão. “A gente tem que manter essa relação equilibrada, senão causa um problema sério. Eu tenho dois filhos e não se compara uma pessoa à outra, mesmo criadas na mesma casa elas têm vivências diferentes, sentem as coisas de forma desigual e se impressionam de forma distinta com o mundo”. Lilia conta que a filha dá mais trabalho que João. A mais nova seria “como uma criança igual a muitas, que quer ganhar tudo que passa na televisão”. Já João Paulo não. Ele só quer ficar bem no mundo. “Se chega uma pessoa, ele dá um cheiro, ele dá um beijo. Ele quer curtir as músicas dele, que são ótimas. É a alegria da casa. Ele acorda sempre de bem, cantando. Não é manipulado por nada, não mente. Eu acho muito mais fácil que uma criança normal. O que não foi fácil não tem a ver com ele, tem a ver comigo, com as minhas expectativas que foram frustradas. Mas ele é uma pessoa muito melhor do que a que eu esperei. A que eu esperei seria aquela manipulada pela sociedade, certinha, que talvez fosse crescer e se tornar um bancário chato. Ele não, ele é uma criatura que me permite fazer loucuras: largar o Rio de Janeiro e vir para o Ceará sem conhecer uma alma viva aqui. Foi meu filho que me ensinou isso”. Para a mãe orgulhosa, é pouco falar de alegrias pontuais. “A vida que eu tenho hoje eu devo a ele. Eu era uma ‘terapeutazinha’ de posto de saúde, que não enxergava muita coisa além do próprio umbigo. Eu não tinha a visão que eu tenho hoje. A vinda do meu filho e as experiências que ele me deu possibilitaram que eu seja hoje uma profissional especialista em um assunto. João tem tudo que Deus pensou pra uma pessoa. Ele não precisa de mim, eu é que preciso dele. Eu sei que é complicado de entender, só convivendo mesmo. As pessoas é que se incomodam com ele”, reflete.

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O que é o autismo

A síndrome é de difícil diagnóstico, pois os sintomas não são os mesmos em todos os casos

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O Autismo foi descoberto pela psicologia em 1943, vem do grego autos. Significa “o comportamento de voltar-se para si mesmo” e é uma síndrome estudada até hoje. Segundo a Organização Mundial de Saúde, para cada mil crianças nascidas vivas, duas podem ser autistas. A probabilidade é de que ocorra em quatro meninos para uma menina. No caso das meninas, segundo Adriano Pordeus, psicólogo especialista, o comprometimento é sempre mais grave. Autistas não foram feitos em série, não são todos iguais. É por isso que os especialistas insistem em afirmar que “existem autistas e autistas”. Todos já nascem com a síndrome, você não pega autismo. A criança que nasce com o autismo leva até os três anos para manifestar os sintomas. Estudos recentes revelam que, em 75% dos casos, a síndrome pode estar associada a algum tipo de retardo mental. O autismo não escolhe configuração étnica, racial e social, ou seja, qualquer um pode nascer com essa inadequação no desenvolvimento que acaba por prejudicar a interação social, a imaginação e a comunicação do portador. Quanto mais rápido o diagnóstico, melhor para a não evolução do transtorno. O autismo se manifesta de maneiras e em graus diferentes, pode ir de um grau leve a um severo. Basicamente, todos possuem três dificuldades básicas: na comunicação, na interação e em um padrão repetitivo e restrito

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de interesses e atividades – isso irá variar de acordo com cada caso. “Aquele mais grave vai entrar na sala e vai querer se isolar, ficar num canto, não te olhar no olho, não ter nenhuma iniciativa de interagir com vocês. Aquele com um grau mais leve pode entrar na mesma sala, sentar, ficar quieto no canto aguardando que você entre em contato com ele. A qualidade da interação muda, em níveis qualitativos diferentes, mas o transtorno continua”, descreve o psicólogo Adriano Pordeus. Em relação ao padrão de interesses, ele explica que “para alguns, o interesse mais restrito é para determinados temas, como informática, astronomia, física, matemática. Já para outros meninos, o interesse pode ser uma garrafa de Coca-cola, uma caixa, um carrinho, um fio”. Para cada paciente, existem diferentes propostas de tratamento - não há uma fórmula fixa. Até o presente momento, desconhecem-se as causas do autismo, mas com o tratamento devido tem melhoras notáveis e imediatas. Em alguns casos, ocorrem tratamentos médicos em áreas como pediatria, neurologia, psiquiatria e odontologia, mas ocorre também de se restringir o foco a apenas algumas delas. Um fator essencial para os cuidados é o envolvimento da família. O uso de medicamentos é feito apenas para atenuar possíveis sintomas, como a hiperatividade


e a agressividade. Quem lida com o autismo, entre profissionais e familiares, acredita que não existe remédio mais poderoso que o afeto da família e da sociedade. A família acaba aprendendo como dar esse afeto. A sociedade precisa aprender também.

Apoio no mundo virtual

Desde quando recebeu o diagnóstico de que tinha um filho autista, Lilia logo encontrou apoio por meio de contatos na Internet. “Quando se descobre que existe um autista na família, ao mesmo tempo em que tua família pode estar te abandonando e você tem que abandonar tua carreira pra cuidar daquele filho, você fica em casa sem janela nenhuma pro mundo. Aí, você se depara pelo computador com milhares de pessoas que estão na mesma situação que você. Isso é de uma importância fundamental”, explica. Com a carência de campanhas oficiais sobre o assunto, os próprios pais estão criando redes de relacionamentos. São sites em que podem ser encontrados depoimentos repletos de sinceridade e emoção, tópicos de discussões, que permitem a troca de experiências, informações sobre tratamentos, remédios, além de relatos do cotidiano. Juntos, trocam histórias, comemoram vitórias e transmitem a emoção de não estarem sós. O casal de fisioterapeutas de Campinas (SP), Felipe Mascarenhas, 33, e Mariana Bu-

ratti Mascarenhas, 27, pais de Alexandre, 4, enfrentou drama semelhante ao de Lília ao obter o diagnóstico da síndrome. “Depois de algumas horas de choro dentro do nosso carro, engolimos nossas lágrimas e decidimos que iríamos buscar um tratamento e uma cura para nosso filho, nem que isso custasse nossas vidas”, conta Felipe. Por isso, resolveram fazer um blog mostrando para pais e profissionais boas perspectivas sobre tratamento de autismo. A página na Internet (veja serviço) tem a função de informar e inspirar aqueles que estão na mesma busca que eles. “E que por mais incrível que isso possa parecer, passaram por histórias semelhantes ou até piores que a nossa”. Hoje, ele considera que os blogs estão cumprindo seu papel. Tem recebido mensagens do Brasil todo e de diversos outros países (Argentina, Chile, Portugal, Japão), agradecendo pela existência do site, e dizendo o quanto ele é inspirador. “Também tenho recebido alguns relatos em que os pais dizem que o blog foi indicado pelo médico do filho, médicos esses que não os conheço, pois ficam em outros estados”. Desta forma, por meio dos blogs e grupos na Internet, o fisioterapeuta avalia que o “movimento pró-autista” tem crescido consideravelmente e que boas informações chegam mais rápido para os pais, além do fato de que essas informações já estão chegando também a alguns consultórios médicos.


A Casa da Esperança

As portas estão sempre abertas, mas antes de entrar é necessário agendar uma visita, sempre às terças-feiras. Na chegada, um certo estranhamento natural por adentrar em um lugar novo. Era manhã e muitas pessoas caminhavam pelo local. – “Você tá paquerando comigo, é?”, pergunta a recepcionista a um rapaz cheio de sorrisos, que chega lhe dando um abraço. “Não, não há de ser um autista. Ou será?”, nos perguntamos. Entramos guiados pela assessora de imprensa da Casa, Gabriela Dourado. – “Por que vocês escolheram o autismo mesmo?”, questiona a assessora. – “Bom, é uma reportagem para uma revista temática sobre Mundos. E o autismo poderia representar a ideia daqueles que vivem em um mundo paralelo”, respondemos. – “Bom, então eu só posso dizer que vocês vão se surpreender...”, revela Gabriela. Logo entendemos o que ela quis dizer. Um jovem se aproxima de nós e cumprimenta cada um com um abraço. Não fala nada, não nos encara nos olhos. Simplesmente estende seus braços, repete o movimento com todos e sai. Estamos na Casa da Esperança, local fundado por Fátima Dourado, “mulher nordestina, nascida e criada na luz e nas dificuldades que caracterizam a minha terra”, como ela mesma se descreve em seu livro “Amigos da diferença – uma abordagem relacional da problemática do autismo”. Médica, a princípio dedicou-se à pediatria comunitária. Aos vinte e um anos, casou-se e teve quatro filhos. Dois deles, Giordano Bruno e Pablo, mostraram-se crianças diferentes, “inquietas, ensimesmadas, com grandes dificuldades para expressar sentimentos e emoções”, escreve no livro. Após muitas procuras, uma resposta: autismo - “um nome, um rótulo, um caminho também para entendê-los e ajudá-los a crescer com suas peculiaridades”, relata. Fátima, juntamente com outras mães de autistas, criou a fundação que hoje é um dos mais importantes centros de difusão de conhecimento e tratamento do autismo no mundo. A entidade atende ao maior número de autistas do Brasil e é uma das maiores da América Latina, segundo informações da Assessoria de

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Imprensa da Casa. Em 2003, se credenciou ao Sistema Único de Saúde (SUS) para realizar procedimentos de alta complexidade em pessoas com autismo, a primeira no Brasil. De uma pequena casa na rua José Vilar a uma extensa área hoje com 10 mil metros quadrados, no bairro da Água Fria, recebe cerca de 330 pessoas, entre crianças, jovens e adultos. E ainda possui 500 na lista de espera. Lá, eles têm acesso a oficinas de informática, serigrafia, artesanato em papel, sala de música, de vivência terapêutica, consultórios médicos, refeitório, áreas de lazer com piscina, além das salas de escolarização. São acolhidas crianças desde a estimulação precoce até jovens para inserção no mercado de trabalho. Como repercussão das atividades na música, surgiu a banda Cadesp, composta por dois vocalistas, um no teclado e dois na percussão.


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Trechos da música “Esquadros”, de Adriana Calcanhoto

Eles se apresentam na Casa quando tem algum evento, visita de uma autoridade ou quando tem algum tipo de feira ou exposição. Alguns funcionários que trabalham na fundação são autistas. “Tem, por exemplo, o Hafiz, que trabalha na área administrativa e já terminou a faculdade. Ele uma vez foi contar para a doutora Fátima que estava apaixonado por uma colega da faculdade, e descreveu tudo: bumbum, seios, boca. Disse que a mulher era uma verdadeira gata. Quando questionado sobre a cor dos olhos da moça, respondeu: ‘não sei, nunca vi’. Tudo porque tem uma dificuldade enorme de olhar nos olhos. O Vicente, que trabalha no agendamento, não conversa olhando para você. Quem não conhece acha extremamente estranho, esquisito, que ele não está dando importância, mas não é necessariamente o caso”, conta o psicológo Adriano Pordeus.

Os diferentes comportamentos dos frequentadores da Casa ilustram quão variado esse mundo é. Nas visitas, muitos passaram por nós e sequer notaram a nossa presença. Outros perceberam, alguns cumprimentaram, outros não. O próprio João Paulo, na hora de fotografar, não respondia aos chamados da fotógrafa. “João! João!” Mas nada dele parar. Só queria saber de correr pelo parquinho da Casa. Apenas quando Lília o abordava e o cativava é que ele diminuía o passo e se deixava clicar. Num período quase mágico, João faz duas coisas que pareciam ser impossíveis até ali: olhou diretamente para a lente da câmera e sorriu. Se João por vezes parecia não nos perceber, um jovem loiro, com óculos e trajando a camisa da Casa, abordou-nos e perguntou para onde eram aquelas fotos. Logo ele pede para ser fotografado, mas não sozinho. A intenção ali é de posar com as meninas da equipe, inclusive a fotógrafa, que tem a câmera tirada de suas mãos. Ele checa se a foto ficou boa, avalia positivamente e segue tranquilo pelo caminho entre o jardim. Há ainda quem passe cantando alto. Um dos meninos chega a batucar no móvel de madeira da recepção enquanto entoa uma melodia conhecida, porém diferente, com um ritmo próprio. Depois ele mesmo explica: “é da Sandy a música, Sandy e Júnior”. Outro rapaz, com traços evidentes de alguma deficiência mental, chega animado à recepção. Ainda próximo à porta, olha as moças sentadas no sofá, como quem quer se aproximar, mas não sabe como. Alguém o interroga: – Você tá com medo delas, é? – Medo? Não, tenho medo não! – responde. Como quem foi provocado, o rapaz se aproxima, olha de relance para a dupla, sorri tímido, mas fica parado próximo, sem interagir diretamente. – Quer dizer que você tá com medo da gente? - uma delas instiga. – Eu não tô com medo não, não é medo não – responde sem fixar os olhos nas jovens. E sai rindo, como se naquele momento, por ter estabelecido contato, ele tivesse vencido um desafio. Mais uma peculiaridade, como tantas outras no mundo, em meio aos infinitos particulares.

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MÃES

Presidiárias ·

texto e fotos

· mayara matos · mayara teixeira ·

Elas registram em suas vidas histórias de abandono, violência e crimes. Condenadas a cumprir penas pelos mais diversos delitos, mulheres presidiárias sofrem a privação da liberdade em dobro quando têm de cuidar e amamentar seus bebês atrás das grades. No entanto, para elas, os seus filhos, em alguns casos, são a única razão para acreditar em mudanças e na perspectiva de uma vida melhor

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Ambiente limpo, calmaria, bebês sorrindo, jovens amamentado seus filhos. Pode não parecer, mas estamos na Penitenciária Feminina Desembargadora Auri Moura Costa, no município de Aquiraz, localizado na BR-116, a 27 km de Fortaleza. Na primeira de muitas outras visitas que realizaríamos à Penitenciária, logo nos deparamos com uma cena comovente. Duas meninas, de aproximadamente 15 anos, com uma criança de colo, filha de uma delas, tentam preencher um cadastro para que na próxima visita seja permitida a entrada do bebê. Elas querem que ele conheça a avó materna, que cumpre pena na Auri Moura Costa. Não conseguimos saber há quanto tempo estavam ali com o bebê, aguardando. Elas parecem não nos ouvir. Eufóricas, falavam repetidamente para a criança: “Tá ali, nenê. Olha! Aquela ali é tua vovó”. E acenavam sem parar para alguém que se encontrava a uns 30 metros, mas que nós não conseguíamos sequer ver a cor do cabelo. Em seguida, fomos chamadas para a vistoria. Depois de passarmos pelo detector de metais, recolheram nossas bolsas, celulares, e nos encaminharam para o interior de um prédio anexo à unidade, identificado como Creche Irmã Marta. Lá é a ala da penitenciária onde ficam as mães que estão amamentando os seus filhos recém-nascidos. Na entrada da Creche, conforme já havíamos combinado, encontramo-nos com as presas Helena, 22 anos, Júlia, 21, Sandra e Shauany, ambas com 24, e Paula, 30. A maioria cumpre pena por tráfico de drogas, com exceção de Paula, que, além do tráfico, foi condenada por homicídio. No Presídio Auri Moura Costa, elas têm o direito de ficar com seus bebês

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durante todo o período de amamentação. Pelo aspecto das quatro, não há dúvidas que são mulheres sofridas. Todas aparentam ter mais idade, têm dentes maltratados pelo uso do crack. Como era de esperar, no primeiro encontro, o clima inicial foi de constrangimento mútuo. Elas não se sentiram à vontade com a nossa presença e mantiveram uma distância prudente. Da nossa parte, ficamos com receio de começar logo a entrevista sem antes criar um clima de confiança. Temíamos a reação delas às nossas perguntas. Aos poucos, começamos conversando com elas sobre seus bebês e as dificuldades que deviam estar enfrentando para criá-los na prisão. Reparamos que quase todas as crianças apresentavam uma espécie de alergia nas pernas. Elas nos contaram que era por causa dos tamanhos das fraldas, pois não correspondiam ao peso dos bebês. Antes de encerrarmos a nossa primeira visita à Creche Irmã Marta, marcamos o dia do próximo encontro e, para criar um laço de confiança com elas, prometemos fazer uma campanha para conseguir fraldas.

Confiança

O segundo encontro foi mais amistoso. Ao pararmos o carro no estacionamento, que fica em frente ao portão principal da creche, Shauany já estava nos aguardando. Assim que nos viu, correu para avisar às outras detentas, que logo se amontoaram na estreita grade da cela para ver a nossa entrada. Ficaram muito felizes quando entregamos a elas os pacotes de fraldas que havíamos conseguido arrecadar na campanha de doação que fizemos uns dias antes. Preparamos um lanche para comemorar o sucesso da campanha. Foi uma tarde de alegria na Penitenciária Feminina. Em clima de descontração, promovemos, na própria cela, um desfile para eleger a Miss Presidiária Auri Moura Costa. Para Helena, foi o dia mais animado que ela teve na prisão. “Se tivessem pessoas como vocês, o mundo estaria melhor. Não é porque cometemos um erro que não podemos mudar. Somos seres humanos”, desabafou. A partir desse encontro, a nossa relação com elas foi mais de confiança. Com exceção de


No presídio, as detentas se ajudam nos cuidados com os bebês

Júlia, nenhuma das presidiárias recebia visitas. Por essa falta de convivência com familiares, de amigos e de atenção, elas nos transformaram em suas fiéis confidentes. Tratavam-nos com carinho, como quem trata o próprio filho. Por um momento esquecemos que algumas delas eram mais jovens do que nós. As presidiárias mães são muito unidas, na creche é como se fossem uma grande família. Todas elas cuidam de todos os bebês. Umas brincam com os filhos das outras e também dão banho. Da mesma forma que as presas comuns, devem obedecer ao toque de recolher às 18h. E só podem sair das celas para andar pelas dependências do presídio a partir das 8h da manhã.

Vida de incertezas

As internas só podem ficar acompanhadas dos seus bebês durante o período de amamentação. Ou seja, nos primeiros seis meses de vida. Depois, elas devem entregá-los aos cuidados de familiares. Caso não exista nenhum parente que possa assumir a responsabilidade, a criança é encaminhada para um abrigo público. Só em pensar nessa possibilidade, as mães se desesperam, temem perder totalmente o contato com os filhos, até mesmo porque não sabem quando voltarão a recuperar a liberdade.

Sandra é uma das que viveu esse drama. Em uma das visitas que fizemos à Penitenciária, contou-nos que sua filha já havia completado seis meses e poderia ser levada a qualquer momento. “Tenho muito medo que minha fia vá pra um abrigo desses, errem o cadastro e acabem botando minha filha pra adoção. Num gosto nem de pensar, queria muito sair daqui com ela. Minha nenê é minha companheira”, revelou, na época, emocionada. Na última visita que realizamos tomamos um susto. Não encontramos Sandra e sua filha. Mas, para nossa alegria, fomos informadas que, há duas semanas, ela havia conquistado a liberdade e pôde sair junto com a sua filha. Mal elas tinham partido, logo chegaram três novas presas com seus bebês. Lili, 25 anos, natural de Cabo Verde, na África; Capitu, 31 anos, nascida em Fortaleza; e, Leila, 27, natural da Espanha. As mães presidiárias recém-chegadas foram logo informadas pelas outras sobre a reportagem que estávamos realizando. No início, ficamos temerosas porque uma das novas internas estava muito irritada, parecia querer brigar com qualquer pessoa. Em um certo momento, ela falou para a agente penitenciária: “Tem alguém gritando por ti”.

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No entanto, nós, que estávamos ao lado dela, não tínhamos ouvido nada. Percebemos que a ideia era afastar a agente para que ficássemos sozinhas com as presas. A agente tentou se comunicar por rádio com outras funcionárias para saber se alguém a estava procurando. Não conseguiu, pois, coincidentemente os rádios de comunicação estavam apresentando um defeito de frequência, o que obrigou a funcionária a sair da creche para ir até o outro prédio. Antes de sair, ela trancou a cela em que nós estávamos com as outras presas. Ficamos, aproximadamente, 15 minutos trancadas com elas. Aproveitando a situação, a presa mais irritada nos exigiu a doação de uma peça íntima. Pediu que uma de nós doasse o sutiã que estava usando. Com jeito, conseguimos convencê-la de que não seria possível, pois estávamos usando roupas de cores claras e, se tirássemos a peça íntima, ficaríamos com uma transparência exagerada. Por sorte, a agente voltou em tempo para abrir a cela. Fora esse pequeno incidente, não há como não perceber que as mães detentas possuem sonhos, desejos, vaidades, paixões, assim como qualquer outra mulher. Mas sofrem mais porque não podem demonstrar atitudes de raiva, estresse, ansiedade ou até mesmo externar os efeitos da TPM (tensão pré-menstrual), pois o descontrole emocional é considerado um desrespeito às leis por elas estabelecidas. Embora saibam que o mundo feminino é galvanizado pela emoção, principalmente na condição de presidiárias, quando elas são tomadas por preocupações existenciais sobre sua restrita liberdade. A prisão é fator emocional de constante estresse na vida de qualquer carcerária.

A história de Helena

Ela não é uma heroína épica como no poema de Homero. Helena, uma das mães presidiárias, é gordinha, tem 22 anos, cabelos cacheados e pele morena. Em uma das tantas conversas que tivemos durante as nossas visitas à Penitenciária Feminina, ela nos contou a história da sua vida, desde a adolescência até o momento em que foi presa. Apesar de sua situação atual, ainda tem sonhos e espera reconstruir sua vida ao lado de sua filha. A seguir,

a transcrição do relato sem retoques. “Até completar 12 anos, eu me considerava uma menina boa, normal. Frequentava o Clube AABB [Associação Atlética Banco do Brasil] da minha cidade, Canindé. Lá eu fazia natação, teatro, futebol e aulas de canto, mas com tantas discussões com minha mãe e muita violência, já estava me tornando rebelde. Sempre me dei mal com minha mãe. Apanhava dela, ela achava que ‘peia’ resolvia tudo. Já vi de tudo. Quando eu era criança, peguei minha mãe dentro de casa com vários homens. Ela fazia programa depois que eu dormia. Com 12 anos, conheci um rapaz. Ele dava voltinha de moto comigo, me dava presente e, como eu era muito nova, acabei me iludindo e me entregando. Quando cheguei em casa, contei pra minha mãe que eu tava namorando e que o cara mexeu comigo. Aí, ela, mais uma vez, me bateu. Bateu muito, fiquei toda roxa. No outro dia, ela queria dar parte do cara, mas eu não aceitei. Porque tudo que eu fiz foi porque eu quis. Depois dessa briga, fui morar com minha tia, a Alessandra. Ela me acolheu, porque minha mãe só me batia, me deixava trancada em casa e saía para festas. Eu fiquei rebelde por causa das porradas. Aos 13 anos, engravidei da minha primeira filha, Maria Vitória, e quando ela completou dois anos de idade resolvi vim pra Fortaleza, em busca de alguma coisa. Deixei a bebê com minha tia, em Canindé, onde eu morava, e saí desorientada. Pedi carona a um e a outro, até chegar em Fortaleza. No primeiro dia dormi na calçada da Igreja da Sé, vim só com a roupa do corpo. No outro dia, estava morrendo de fome. Foi o jeito começar a vender meu corpo. As putas pegavam o meu dinheiro e, no final, eu ficava com quase nada. Eu escondia o dinheiro na calcinha, elas tiravam minha roupa, me roubavam. Dormia na rua ou em algum motel, no centro da cidade. Foi quando conheci a Didia, uma cafetina das antiga. Ela passou a me ajudar muito e me apresentou a um cara, o ‘De menor’. O nome dele mesmo é Airton. Ela disse que ele era o dono da situação. No terceiro dia que nos encontramos, ele já me pegou pra morar junto com ele. O ‘De menor’ me dava tudo, me tratava bem, mas era muito


ciumento, por isso me batia. A gente morava num quitinete e lá eu comecei a vender as coisas dele. Era cocaína, crack, maconha, mas nunca gostei de usar. Lembro como se fosse hoje. No dia do meu aniversário de 15 anos, passei na casa da minha mãe, aqui em Fortaleza. Tivemos uma discussão grave. Com tantos problemas juntos, como a depressão, revoltas, traumas, peguei acetona, cachaça, álcool e acendi um isqueiro. Eu achava que a morte seria a melhor opção naquele momento, tava acontecendo muitas coisas ruins na minha vida. Depois dessa loucura que eu fiz, passei oito meses internada no IJF [Instituto Dr. José Frota]. As únicas pessoas que me deram apoio, que cuidaram de mim, foram o meu marido, “De menor”, e minha sogra. Sou muito grata a Dona Lúcia, ela ficou comigo no hospital os oito meses, nem minha mãe fez isso. Aliás, minha mãe, depois da briga, não foi me visitar nenhuma vez. Quando ela ficou sabendo que eu tinha me queimado, disse que eu tinha era que ter morrido. Num sabe ela que as marcas não ficaram só no meu corpo, mas ficaram também na alma. Depois que eu recebi alta, voltei para casa. Aí, como se não bastasse, descobri que meu marido tava me traindo. Morei com ele um ano, até quando eu descobri que ele pegava veado também. Segui e vi com meus próprios olhos. Aí não quis mais e, para me vingar, peguei todo o dinheiro dele e voltei para Canindé. Lá, eu consegui um emprego numa fábrica de calçados. Quando tudo parecia que ia melhorar, perdi o emprego, porque a fábrica fechou. Tive que voltar a fazer programa. Como ia me sustentar? Foi quando me envolvi com pessoas erradas e fui presa, por tráfico de drogas. No dia 1º de Abril de 2009 vieram me dizer que tinha uma visita pra mim. Achei até que era mentira, porque todo esse tempo aqui, nunca ninguém se importou comigo. Fazia seis anos que não falava com minha mãe, desde a época que tentei me matar. A visita era a pessoa que eu menos esperava, era minha mãe. Fiquei em estado de choque. Eu estava grávida, quase para ter minha filha. Quando vi que era minha mãe, pedi perdão por tudo que eu tinha feito e ela também. Nós conversamos e fizemos as

pazes. Hoje, eu posso dizer que aprendi uma lição: antes eu vivia o agora sem me preocupar com as consequências, não dava valor a nada. Hoje, tudo eu dou importância, principalmente depois que nasceu essa minha segunda filha, do Diego, um namorado que tive depois do meu marido”.

Sonhos livres

Dois meses depois do primeiro encontro com Helena, na Penitenciária Feminina Desembargadora Auri Moura Costa, em 2009, ficamos sabendo que ela recebera a notícia que o seu alvará de soltura estava pronto, à espera de uma carta de emprego para que ela pudesse, de fato, ser liberada. Quando realizamos a última visita ao Presídio, perguntamos o que ela pretendia fazer quando fosse libertada. De imediato,

Helena tinha uma relação difícil com a mãe, o que a levou a sair de casa ainda adolescente

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ela respondeu que, se pudesse, iria atrás do Diego, pai da filha dela. No entanto, alguém contou a ela que Diego tinha se mudado, que agora estava morando em Mossoró. Ela respirou fundo, tentou se conter, mas as lágrimas foram inevitáveis. Mesmo emocionada, Helena optou por continuar a entrevista. “Eu era bem feitinha, aqui eu engordei demais. Vou buscar minha foto para vocês verem o quanto era bonita...”, disse levantando-se para pegar a fotografia. Voltou trazendo uma foto meio amassada dela ao lado de Diego, seu amor, de acordo com suas palavras. Mesmo prestes a deixar a penitenciária, ela acredita que ainda está muito longe da felicidade. “Para eu sair daqui, só falta a assinatura do juiz. A carta de emprego já conseguiram para mim. Vou trabalhar na parte de limpeza da Secretaria de Segurança Pública. Lembra que da última vez ainda faltava a carta de emprego? Pois é, agora só falta ele autografar meu documento lá de soltura. Não tenho nem como ir pra Mossoró, porque vou passar a semana trabalhando e sábado de manhã tenho que estar aqui muito cedo. Vou ficar em regime semi-aberto, então, tenho que ficar vindo dormir aqui. Só saio no domingo. Queria muito poder fazer uma surpresa a minha tia Alessandra, afinal ela cuidou mais de mim do que a minha própria mãe. Mas, infelizmente, não posso sair de Fortaleza. Ia ser uma grande alegria pra minha tia se eu chegasse lá com

Helena sempre esteve à margem da sociedade. Hoje ela procura melhorar sua vida

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minha filha. Vou ter que morar novamente com minha mãe. No dia que ela veio trazer o comprovante de residência aqui pro presídio, não demorou nem cinco minutos aqui comigo. Eu sinto que ela tem uma indiferença comigo, ela me despreza, sabe? Não tem aquele carinho de mãe, perguntou nem como eu tava. Mas, também, só morei com minha mãe até 12 anos”. Helena relembra que sua mãe, quando bebia, agredia-a física e psicologicamente. Ela teme a atitude da mãe e reconhece que não pode mais procurar meios de escape emocional, nem fugir da realidade, pois, agora, ela tem de se preocupar com sua filha. “Agora é diferente, tenho minha filha pra cuidar e criar, só tenho ela e ela depende de mim. Quero que ela seja alguém”, afirma. Helena sempre lembra o tempo em que era criança. É uma nostalgia que lhe faz mal, pois pensa que a sua vida poderia ter sido diferente, que a culpa de estar nessa situação é sua, por não ter aguentado a violência da mãe. Hoje, ela é uma mulher arrependida e cheia de autocomiseração. “Se eu pudesse voltar atrás, hoje eu teria uma vida diferente. Quando eu penso, me considero pior que minha mãe, porque ela tem os defeitos dela, mas nunca se envolveu com droga e nunca foi presa. E olha como eu estou: nem roupa pra sair daqui eu tenho. Hoje, eu não tenho nada na vida pra oferecer pra minha filha. Mas acho que tenho o principal: tenho muita fé, não quero mais passar pelo o que eu já passei”, diz pensativa. Ainda emocionada, Helena nos confidencia: “Sabe, meninas, eu fiz uma promessa pra Deus. Quando eu sair daqui e começar a trabalhar, do meu primeiro salário, vou pegar uma parte e fazer uma doação pra cá. Não é muita coisa não, mas é o que eu posso. Deus vai me ajudar. Tenho muito medo de uma coisa: cair nas drogas de novo. Mas tenho fé e sei que vou realizar o meu sonho de sair daqui e trabalhar, ser alguém na vida. Ainda dá tempo, né? Sei que não parece, mas só tenho 22 anos”.


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porque ele ra elogiada e u e , e ch e cr erto”, ele tava na ligente, esp te in o it u m r nino unceiro, po era um me nte, era bag e sc le o d a a d s Já e reclamaçõ diz a mãe. igos. Recebia m a s o d vezes. a ci n influê e algumas ri sé ª 4 a u repeti a acontecia diretoria e a repetênci ss e e u q ia a menA escola diz um problem lg a r te a ri e pod ente. porque ele completam a rd co is d r Júnio atividades tal, do que articipa de p le e , ia d lntais. O No hospita ssivas e me re p ex , is ca s, usi r psiquiatra corporais, m isionado po rv e p s su ta é u e to ra p tratamen s so ci a is , te te n te is ss a a áre s p si có lo g o s, s de várias o ri iá g a st e e is e fisioterapia ocupaciona fermagem, n e o o m ci co a ocup da Saúde de terapia s e d a id v ti a ia s Corre , farmácia. A or Nágela p s a d a n e ord tidiano dos nal (TO), co rganizar o co o o v ti je b o alhando têm como social, trab o sã u cl in a su ança. pacientes e e autoconfi a im st e to u o a a ades de TO pontos com m as ativid ce te n co a e ados nas A sala ond murais preg e s ra u g fi s, fia deira tem fotogra esas de ma m s a u D s. lorida uinhos ao paredes co vários banq m co , a ss escura e gro Maio 2010

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redor, armários, tinta guache, pincéis e papéis lembram uma sala de jardim de infância. Em um desses exercícios, observamos Fábio Júnior costurando um chaveiro de pano em forma de um trevo de quatro folhas cor-de-rosa. Em seguida, oferece-o para um dos amigos que também estava na mesa, desejando-lhe sorte.

Nascido em Fortaleza, mudouse com a família para São Paulo, em 1985, por decisão da mãe, que precisava trabalhar para sustentar ele e os dois irmãos mais velhos, Mário e Alzeneide. Voltaram à cidade natal há quase nove anos. Localizada em um dos conjuntos do bairro José Walter, com paredes amarelas, a casa de Júnior é uma daquelas pequenininhas, com sofás maiores que a sala e onde cada canto e cada vão faz referência a algum santo. De pé, entre a sala e a cozinha, encostada na parede, dona Zeneide relata, de forma dramática, as crises do filho. Quase todos os comentários da mãe são rebatidos impacientemente por Fábio, sempre com a mesma frase: “Nam, mãe, tem nada a ver isso aí”. Em seguida, provavelmente tentando aliviar as tensões, ele se levantava para beber água ou fumar um cigarro no quintal. (Leia, mais adiante, o diálogo que tivemos com a mãe e o filho) “Ligaram pra mim da escola Ari de Sá dizendo que meu filho tava acabando de matar um aluno, lá dentro”, recorda a mãe. Diz que lhe faltaram pernas para tomar alguma atitude. “Minhas pernas ficaram parecendo vara verde. E eu pensei: ‘Meu Deus, como é que eu faço pra correr até lá?’ Mas eu corri. E cheguei lá e tava tendo agressão”. Fábio rebate a história na hora com um debochado: “Que exagero!”. Ele também fala do seu transtorno. Mas, em alguns momentos, demons-

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O diagnóstico

tra certo desconforto, não se sabe se por receio ou vergonha do que os outros possam pensar. Ele tem consciência que tem manias de grandeza e poder, e sabe que isso é reflexo da bipolaridade. Também sabe que o uso diário da maconha, vício que manteve dos 15 aos 17 anos, foi uma das principais causas das crises bipolares. “Eu perguntei pra médica o diagnóstico e ela perguntou se tinha alguém da família com essa doença. E [disse] que o uso da droga não piorou ou complicou, mas desencadeou o problema”, lembra. Entre as várias crises que teve, ele chegou a ser internado oito vezes, a maioria delas no HSMM, em Fortaleza. A internação mais longa foi de dois meses e meio. Nas primeiras crises nervosas, ofereceu resistência para ir ao hospital. Nesses momentos, ele chegou a ter as mãos e os pés amarrados, devido à agressividade e à relutância em tomar medicamentos. “Teve uma madrugada engraçada, quando um colega de quarto me desamarrou e eu fui [sentar] no banco, lá fora. E o enfermeiro ficou branco, quando me viu desamarrado falando com ele”, recorda, achando graça. Silvana e Adriano, esquizofrênicos, Jaime, que sofre de depressão e alucinações auditivas – diz que é atormentado por uns cãezinhos na cabeça -, e Sandra, esquizoafetiva, são alguns colegas de Júnior que também frequentam o hospital-dia. Lá, as atividades vão das 8 às 16 horas e são interrompidas pelos intervalos do lanche da manhã, do banho, do almoço e da merenda. A área é composta por várias salas, bancos, alpendre e uma vasta área verde a céu aberto. Em um dos passeios externos, na trilha do Parque do Cocó, os pacientes andam cerca de dois quilômetros acompanhados pelo psicólogo Érico Valente e a assistente social Liduína Benevides Franco. Usam roupas leves - camiseta, tênis, chinelo, boné ou chapéus protegendo a cabeça - e aproveitam as sombras das árvores para descansar e tomar água, suco de cajá e comer biscoito de morango. Durante o passeio, Júnior acendia alguns cigarros e cuspia a todo momento. “É por conta dos mosquitos que eu engulo”, diz, enquanto abana freneticamente as mãos, tentando afastá-los do rosto. Claro que o seu ato de cuspir nada tem a ver com os


mosquitos. É evidente que o pigarro carregado é de um fumante assíduo. Fábio Júnior não tem emprego fixo e vê essas atividades terapêuticas, dentro ou fora do hospital, como uma forma de fugir do ócio, embora ache a rotina casa-hospital/ hospital-casa um pouco cansativa. Às vezes, passa o dia inteiro sem fazer nada. Dia sim, dia não, nos últimos dois meses, toma o ônibus Parangaba/José Walter, desce no terminal da Parangaba e pega o Messejana/Parangaba, salta no Terminal de Messejana, sobe no Circular 2, e, finalmente, chega no HSMM para suas atividades rotineiras. O caminho é longo e causa enfado, mas ele diz que vale a pena, porque prefere fazer alguma coisa a não fazer nada.

Já trabalhou em mercantil, foi tapioqueiro, trocador de Topic e hoje faz uns bicos de vez em quando, como ajudante de pedreiro. Ajuda a subir um muro aqui, pintar outro ali, mas não é nada certo. As coisas aparecem vez ou outra. Diz que tem vontade de voltar a estudar, depois de ter largado a escola na 5ª série. Mas acha tudo mais complicado e difícil para um quase trintão. Ele não teria mais tanta paciência. Fábio conta que tem planos de construir uma família, cuidar e dar a ela tudo do bom e do melhor. Hoje, aos 27 anos, já concluiu o tratamento bipolar. Continua sob medicamentos, mas, durante a produção dessa reportagem, teve alta, o que significa que não precisa mais frequentar o hospital, nem de acompanhamento médico diário.

“Não tem nada a ver tudo isso aí” Foi complicado falar com Fábio Júnior sobre assunto, na presença da mãe dele e da namorada - embora esta mal tenha falado. Nas visitas em que fizemos ao hospital, ele parecia ser atencioso e comunicativo, sabia a hora de falar e calar. Diferente de sua mãe, que falava alto e o tempo inteiro, tendo ou não a atenção de alguém. Durante toda a conversa, Fábio interrompe e questiona insistentemente a mãe, às vezes de forma exaltada e controversa, outras, beirando o cômico. De um pouco mais de uma hora de gravação, ele repetiu 34 vezes a expressão “nada a ver”. A seguir, parte da conversa sem retoques. – As primeiras vez, ele chegou a sair de casa à força. Teve crise nervosa, violência... – Violência, mas vamo explicar. Violência não de agredir os outros – diz Fábio. – Nas duas primeiras vez, chegou a ser amarrado dentro de casa, com a ajuda dos bombeiros – garante a mãe. – Amarrado dentro de casa não, mãe! Eu fui do lado deles, mas amarrado não. – É difícil, né, de falar? Porque a gente sempre nunca tem razão. – Tem! A senhora tem que falar direito,

como exatamente é. Uma vez foi na escola, que meus vizinhos foram comigo. E outra vez, eu lembro, foi aqui em casa, que os bombeiros vieram, mas eu não saí amarrado. Saí normal. Nem me puxaram à força, assim – mostra segurando o braço. – Lá da escola, você saiu amarrado com a ajuda dos bombeiros. Tem que aceitar a gente falar, Fábio. – Eu não saí amarrado da escola! Eles seguraram no meu braço. Ainda fiquei um tempão sentado lá - diz, com a expressão já cerrada, visivelmente exaltado. – Agora ele não tá mais ficando, assim, agressiiivo. Durante as crises, ele ficava nervoso, agitado. – Foi só duas vezes. Às vezes não tenho controle, é mais forte do que eu. Mas eu lembro tudinho como acon-

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teceu, com detalhes. Desde a primeira, até a última vez. – Não é normal a pessoa ficar agressiva com outra sem motivo. Porque, as vezes que ele ficou agressivo com os outros, não teve motivo – explica ela. – Teve, mãe, teve motivo. Todos os motivo teve – rebate Fábio. – Não é normal. Você tem que aceitar que não é normal. Cê tem que aceitar eu falar. – Mas fale direito. Explique direito – exige o filho. – Eu vou explicar direito. Lá em São Paulo, quando ele tinha 13 anos, eu fui chamada na

“Não me sinto mal em minha mãe falar, mas ela fala nos extremos. Exagera um pouco. Só queria que vocês entendessem isso, que quero explicar faz é tempo”

escola pra uma reunião com o diretor e ele falou assim: “O Fábio não é uma pessoa normal pra estudar, porque...” – Pula essas partes, que não tem nada a ver isso aí, não! Porque o problema começou depois dos 17, 18, certo? Isso aí da minha infância não tem nada a ver, não. Tem que falar do começo do problema – interrompe novamente. – Fábio, vamo falar a verdade? Tu esqueceu aquela tua primeira psicóloga? Neide... Eloneide... o nome dela, que não queria nem ser chamada de doutora, lá na Itaquera, em São Paulo. – Isso aí não tem nada a ver, não. Fábio Júnior levanta-se para beber água, enquanto a mãe continua falando sobre as visitas à psicóloga de Itaquera, aumentando ainda mais o tom de voz nas duas vezes em que ele passa ao seu lado. – ...aí a escola falou que ele tinha que ter um tratamento psiquiatra, porque tinha alguma coisa que atrapalhava a mente pra poder repetir a 4ª série três vez seguidas. No primeiro ano, eu aceitei. No segundo, perguntei por que ele tinha que repetir novamente e disseram que ele não tinha aprendido nada. Aí, quando foi na terceira vez, fui lá perguntar de novo: “Por quê?” – Mãe, tem nada a ver isso aí, não, mãe! Isso aí não interessa agora. – Interessa – insiste a mãe. Fábio não parava de discordar, nem a sua mãe de insistir em falar de algo que ele queria evitar. Falava da antiga psicóloga, das opiniões dos diretores da escola, das reuniões do hospital-dia, do vestido da neta, enquanto Fábio reclamava e pedia espaço para falar. – Não tem nada a ver tudo isso aí. Essas coisas de índice de aprendizagem, nada a ver. Eu não aprendia porque eu bagunçava, bagunçava, bagunçava e num estudava. O problema foi desenvolvido por causa do uso da droga, da maconha. – Fica tão difícil. Quando eu começo a conversar, que ele começa a dirmintir... – Eu não tô começando a desmentir. Eu tô dizendo realmente o que é – tenta esclarecer. – Você acha que eu vou falar mentira? Eu


só falo a verdade. Não aumento nem nada. Falo o que passou. A primeira psicóloga perguntou sobre a vida dele todinha. A gravidez, o marido, se eu tinha alguém na família com esse tipo de poblema. Meu irmão tinha, ele vegetou, não viveu, durante 25 anos. Enquanto ela falava, agora sobre a vida do irmão, Júnior se entretia em outra conversa. Ao ouvi-la dizer “ele nunca saiu da casa do abc”, no mesmo instante, perguntou “quem?”, achando que ela se referia a ele, mas, na verdade, era referente a seu tio. Depois contou sobre a ida a São Paulo, em 1985, mas foi interrompida antes de falar o motivo de retornar 16 anos depois à Fortaleza. – Aí é outro motivo que também não tem nada a ver falar não, viu? É desagradável. – Aqui tem trabalho, mas pra minha idade não. Lá eu tava com o meu emprego seguro. Você acha que eu vinha embora assim pei-bufo, perdendo emprego e tudo? – pergunta ela. [Ficamos em silêncio por uns instantes] – Ei! Pode perguntar mais alguma coisa intervém Fábio desfazendo o silêncio. – Quantas vezes vou ter que falar que eu lembro mais de detalhes que a senhora? Nada melhor do que eu mesmo falar. Se passar alguém na rua, não vou agredir ninguém, não, vou ficar na minha, normal. – E por que tu agrediu o sobrinho da Ana, naquele tempo? – Que sobrinho da Ana? Ah, ali a senhora não sabe o que foi que aconteceu. Toda a conversa foi assim, tensa, cheia de afirmações e desmentidos. Às vezes, os dois falavam ao mesmo tempo, cada um alegando que falava a verdade. Durante todo o tempo, Fábio Júnior não parecia à vontade, como nas vezes em que o encontramos no hospital. Não é possível saber se as suas reações durante a conversa são reflexos da bipolaridade, de antigas crises familiares ou puro fingimento. Talvez, uma das últimas frases dita por Fábio, antes de partirmos, seja reveladora: “Não me sinto mal em minha mãe falar, mas ela fala nos extremos. Exagera um pouco. Só queria que vocês entendessem isso, que quero explicar faz é tempo”.

Transtorno bipolar O Transtorno Bipolar do Humor (TBH) ou Transtorno Afetivo Bipolar (TAB) é um problema em que a personalidade varia entre um quadro depressivo e outro de mania. Na depressão, são comuns pensamentos depreciativos, apatia, falta de interesse por qualquer assunto, alterações alimentares e no sono, podendo desenvolver intenções suicidas e sintomas psicóticos. No quadro de mania ou euforia, há alterações no humor, aceleração da psicomotricidade, aumento de ideias e de energia, podendo haver pensamentos de grandeza que levam ao delírio. A doença é de difícil diagnóstico, pois nem todos os pacientes desenvolvem os dois quadros de maneira clara. Alguns têm mais quadros de depressão e outros, de mania. Os dois quadros, nem sempre, apresentam os mesmos sintomas. O Transtorno surge, geralmente, na fase adulta e não tem cura. No entanto, é possível controlar as alterações e manter uma vida normal com auxílio de medicação. Fonte: Psiqweb – Portal da Psiquiatria (http://virtualpsy.locaweb.com.br/)

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O Arqueiro Zen Um fotógrafo é mais do que alguém operando uma câmera fotográfica. Pode parecer surpreendente, mas o fotógrafo e a câmera são uma coisa só, da mesma forma que o ciclista e a bicicleta ou o cozinheiro e os ingredientes do prato que prepara. Mais surpreendente ainda pode parecer o fato de que o fotógrafo, a câmera e o objeto que fotografa, seja ele o que for - um objeto inanimado, um inseto impertinente, uma paisagem encantadora ou um outro ser humano -, também são uma coisa só. Ao contrário do que depreende o senso comum, nos meios acadêmicos ou fora deles, uma fotografia não é exatamente o recorte de uma presumida realidade exterior. Esta, seja lá o que venha a ser, o mundo visível, é tão somente a informação bruta - a matéria-prima - por meio da qual o fotógrafo se projeta em uma superfície bidimensional. Uma fotografia é uma realidade em si mesma e nela, antes de qualquer outra especulação, está a presença irremovível do fotógrafo. Henri Cartier-Bresson, um dos maiores expoentes de toda a história da fotografia, senão o maior, tinha como livro de cabeceira A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen. Eugen Herrigel, o autor, viveu por seis anos no Japão como professor da Universidade de Tohoku nos anos 20 do século passado e, neste período, dedicou-se ao aprendizado do arco sendo aceito como discípulo de um mestre Zen. Herrigel conclui com clareza cristalina e extraordinária precisão que o arqueiro alcança a plenitude de sua arte quando ele, o arco, a seta e o alvo se enlaçam tornando-se uma coisa só. A obra de Cartier-Bresson e de tantos outros fotógrafos são a confirmação viva da experiência de Eugen Herrigel. No tema da presente edição - Mundos - solicitou-se para este ensaio que estagiários de fotografia do Laboratório de Jornalismo e alunos das disciplinas de fotografia do curso de Jornalismo externassem em imagens seus universos pessoais. Pura tautologia. Um fotógrafo, por mais que tente o contrário, jamais pode fazer outra coisa. Todos os que aqui se apresentam, se ainda não, são com toda certeza futuros arqueiros. Júlio Alcântara Supervisor de fotografia do Laboratório de Jornalismo da Unifor


Waleska Santiago

“Lá fora tem, um lugar que me faz bem. E eu vou lá".

Fernando Catatau


Hannah Moreira

“O destino dos homens ĂŠ a liberdade". Vinicius de Morais


Paulo Neto

"Não sei o que é conhecer-me. Não vejo para dentro. Não acredito que eu exista por detrás de mim". Alberto Caeiro

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Glaydson Galeno

“O ataque vem de onde menos se espera”. Lia Girão

Glaydson Galeno

“Quantos objetos serão necessários para que essas mãos toquem e, enfim, algo mude?” Lia Girão


Danielle Rotholi

"Mundo, mundo, vasto mundo...se eu me chamasse Raimundo... seria uma rima, não uma solução". Danielle Rotholi

Carlos Drummond de Andrade


Rebeca Marinho

“Veja colorido, viva colorido. Sorria bonito�. Rebeca Marinho

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Gabriela Ribeiro Gabriela Ribeiro

"Gostaria, querida, de ser inesperado Como a madrugada amanhecendo À noite E engraçado também, como pato num trem". Millôr Fernandes


Camila Marcelo

“Para os céus que me inspiram às letras, aos sonhos e à poesia da vida”. Camila Marcelo


Fabiane de Paula

"Novos dias tristes, noites claras Versos, cartas, minha cara". Chico Buarque


Lucas Menezes Lucas Menezes

"Nossos rostos, meu coração, breves como fotografias". Jonh Berger


Otávio Nogueira

"A arte existe porque a vida não basta e é muito chata!"

Otávio Nogueira

Ferreira Gullar


Arthur Viana

“Natureza a toda prova”.

Alexandra Sánchez

Arthur Viana

Arthur Viana

“Te quiero recta como la espada o el camino”.

Pablo Neruda


Arte e Beleza

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· adriana rodrigues · amanda santos · joão josé quixadá ·

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· adriana rodrigues ·


Coletivos

Da mesma forma que os hippies tentaram, na dÊcada de 1970, formar comunidades distantes da atribulada vida dos centros urbanos, do consumismo desenfreado e da concorrência para alcançar o sucesso, nos dias atuais ainda podem ser encontrados jovens e adultos que perseguem o mesmo sonho: a busca de uma vida alternativa

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A avenida Broadway, em Canoa Quebrada, é o ponto mais movimentado da cidade

É em busca de um modo de vida “alternativo” que muitas pessoas deixam para trás a casa e a família para viajar pelo mundo, largando o mundo material e buscando um contato mais próximo com a natureza. Na maioria das vezes, a melhor forma encontrada para unir trabalho, mobilidade e liberdade é a produção de artesanato. A venda de colares, brincos, bolsas, enfeites de cabelos feitos pelas mãos e criatividade dessas pessoas, sustenta o ideal de “sair do sistema”. Canoa Quebrada, uma vila de pescadores localizada em Aracati, Ceará, a 164 quilômetros de Fortaleza, é um dos destinos escolhidos por esses aventureiros. Pelas belezas naturais de suas praias, pela simplicidade do seu cotidiano e seu ar místico, Canoa, como é mais conhecida, tem sido um porto seguro para muitos hippies de todas idades e latitudes, desde o início dos anos 1970. Famosa pelos seus encantos naturais e seu clima de liberdade, ainda hoje, o lugar atrai pessoas que buscam uma vida mais tranquila. Caminhando pela rua principal da vila, apelidada de “Broadway” pelos seus frequentadores, mesmo mal iluminada à noite, podem ser vistas pessoas andando sem pressa, observando os produtos expostos em vitrines ou sobre as mesinhas dos artesãos montadas no calçamento de pedras portuguesas. Nesse ambiente, é possível

esbarrar com algumas figuras alegóricas, artistas, escritores, poetas e boêmios.

Mochila nas costas

Daqueles que vieram de longe, um dos mais antigos residentes de Canoa Quebrada é Juan José. Ele chegou em 1988, quando diz ter montado a sua base. “Não busco mais nada na minha vida, encontrei um lugar com paz e beleza”, acredita. Nascido na Galícia, Espanha, Tchetcho, como prefere ser chamado, saiu muito cedo de casa. Colocou uma mochila nas costas e buscou conhecer países que tivessem natureza exuberante. Aqueles que mais lhe atraíam eram os que ainda possuíam povos indígenas. Nesse longo percurso, ele aprendeu novas línguas, diversos costumes e a fazer o que hoje é o seu trabalho. “Aprendi a mexer com artesanato em viagens para


Turquia, Irã, Grécia, sendo aprendiz, tendo mestres”. As características de cada país visitado o inspiram em suas artes. Assim como Tchetcho, a alagoana Paloma Augusta, de 23 anos, é artesã, mas chegou na vila há apenas um mês. Sentada em um banco da Broadway, com um visual descontraído e fazendo crochê, ela conta por que decidiu fazer artesanato. “Eu me casei e precisava pagar o aluguel de uma casa junto ao meu marido, mas poderia fazer isso em qualquer outro lugar e aproveitar para conhecer novas culturas, então decidi viajar”. Não foi tão fácil, no entanto. Recém-formada em Publicidade e Propaganda, nascida em uma família de classe média, ela não recebeu o apoio dos pais quando resolveu mudar de vida. “Minha mãe ainda fala comigo, sempre liga perguntando se eu preciso de alguma coisa. Ela acha que estou passando fome, mas não estou. Uni o trabalho com viagem. Trabalhar com artesanato é mais do que uma fonte de renda. Não tenho patrão, nada que me prenda, então posso trabalhar viajando”, explica a artesã. Já o pai de Paloma evita falar com ela, pois reprova o seu estilo de vida. Mas ela fez da liberdade parte de sua filosofia de vida, mesmo sabendo que a alegria de viver livre é sempre ameaçada pela insegurança financeira. “Ao mesmo tempo que fico livre, também fico limitada devido ao fato de não ter dinheiro suficiente. Se, por acaso, sofrer de uma doença grave, ou se eu quiser comprar um móvel novo, por exemplo”.

Preconceitos

Ao chegar à Canoa Quebrada, a jovem alagoana passou por situações incômodas, como quando entrava nos restaurantes ou subia nos ônibus. “Pensavam que eu era hippie, daqueles que não tomam banho. Acho que hippie é um estilo um pouco mais diferente. Alguns acham que existe o hippie-artesão, mas no meu caso sou apenas artesã. Gosto de ser moderna, sabe? Tenho um celular, MP4, Orkut, onde faço a maior parte das minhas vendas...”, diz sorrindo. Na sua opinião, identificar alguém com o termo “hippie” é uma designação “meio forçada”, já que várias pessoas vêm de classes média e alta e adotam uma postura mais natural, contrária ao “sistema”, mas não de modo radical.

Paloma Augusta enfrentou o preconceito da família e da sociedade quando decidiu fazer artesanato

Caminhando mais um pouco, encontramos, sentado também na calçada da rua principal, “Sonhador” (como ele é conhecido). Ao mesmo tempo em que cuida das filhas e produz seu artesanato, ele arruma a mesa improvisada, de madeira e ferros, onde expõe o trabalho que faz com a ajuda de sua mulher, Marisa. Aos 33 anos, natural de Sergipe, “Sonhador” também já passou por situações desagradáveis por causa do estilo de vida que escolheu. Mais reservado e com aparente receio de ser mal-interpretado, questiona: “Quem nunca passou por perrengues, por situações difíceis? Prefiro deixar para lá”, afirma. Conta que gosta de “viajar através da arte”, pegando carona com desconhecidos que se tornam conhecidos, sem previsão de quanto tempo vai permanecer em cada estado. “Minhas estadias dependem de como estão as vendas dos artesanatos. Agora, que tenho duas filhas, fico um ou dois anos em cada local, devido à escola delas”, explica. “Sonhador” precisou abandonar a escola aos 12 anos para trabalhar e ajudar a família. Sentindo falta de “algo a mais”, ele resolveu viajar em busca de liberdade. “Eu nunca gostei de estudar e o trabalho da arte não precisa necessariamente do estudo, mas minhas filhas terão os estudos garantidos. Sei que é importante um diploma, mas pelas dificuldades que já passei, de morar na rua e passar por vários problemas, sei que a rua ensina muito mais do que uma faculdade”, garante.

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Roberto Carlos, o “rei da praia”, conseguiu largar os vícios com ajuda dos alargadores de orelha

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Fuga pela fé

Passado e futuro

Grande maioria dos andarilhos e artesãos encontrados na vila não pertence a uma religião, mas tem fé em algo espiritual que move o mundo. Roberto Carlos, outro personagem que pode ser encontrado em Canoa, carrega todo seu bom humor pelas areias da praia ao expor, de mesa em mesa, seus colares e brincos artesanais. Entre piadas e sorrisos, procura convencer turistas a levarem seus produtos. Quem olha para o “rei da praia” não acredita que os enormes alargadores pendurados nas suas orelhas foram a única forma que encontrou para largar os vícios. A fé foi depositada na natureza que, para ele, é representada pelos brincos que carrega. “Eu mesmo faço esses alargadores e [os] coloquei como promessa para largar as drogas”, explica. “Hoje em dia, fumo só uma pontinha para agradar as mulheres”, acrescenta brincando. Assim como Roberto, “Sonhador” também não esconde a sua devoção maior. “Sou protestante e acredito na Bíblia. Sou muito ligado à palavra de Deus”. Conta que, há três anos, resolveu largar o vício e pensar na sua segunda filha, que estava prestes a nascer.

Há muitos anos, em Canoa Quebrada, Tchetcho vem acompanhando as transformações de seu “porto seguro”. Ele recorda do convívio com os “hippies”, que admiravam a natureza e sempre estavam em comunidade. “Eram pessoas boas, tinham muita liberdade. Hoje não se pode fazer quase nada que é motivo de recriminação”, reclama. Não foram apenas os moradores da pequena vila que mudaram, ele também registrou mudanças na paisagem. “Quando cheguei aqui, Canoa era totalmente diferente de hoje. As belezas eram ainda maiores e as pessoas eram mais humanas, não pensavam apenas em investir, em ter dinheiro. Hoje perdemos a paz”, lamenta o espanhol. Apesar de valorizar a natureza, eles preferem conduzir a vida mantendo as ideias no presente, vivendo o agora. “Tenham humildade, respeitem, principalmente os mais velhos e as crianças; valorizem a natureza e a vida. Tenham muito amor à vida e à natureza. Se você puder fazer alguma coisa boa por ela, plantar uma árvore, por exemplo, já favorece o ambiente”, aconselha “Sonhador”.

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Urbano, independente, contestatório e sem fins comerciais. Essas são algumas das palavras mais usadas para designar o mundo underground (“subterrâneo”, em inglês), um movimento cultural que brotou e se propagou em bares e discotecas noturnas localizadas em passagens subterrâneas e galerias afastadas do metrô, cujos seguidores hoje formam um grupo isolado


Essa “cultura subterrânea” é uma forma contemporânea da Contracultura, um movimento que nasceu na década de 1960 por meio de jovens questionadores da ordem social conservadora da época. Com espírito libertário, eles se negavam a aceitar os valores difundidos pelos novos meios de comunicação de massa e buscavam novos valores, gostos e comportamentos. Ao longo das décadas, esse movimento foi se modificando, ganhando novos adeptos e sentidos completamente diferentes do original. Atualmente, costuma-se chamar de underground o ambiente cultural que não é tão conhecido pelo grande público, que está fora dos padrões comerciais e dos modismos, mas esse conceito também é bastante mutável. Quando se pensa em contracultura, geralmente, pensa-se em cultura underground também. No entanto, os dois termos não significam a mesma coisa. O termo contracultura é mais abrangente e alberga todos os movimentos que surgiram na década de 1960 e se posicionavam contrariamente à cultura predominante na época e ao conservadorismo. A contracultura abrange o movimento hippie e o próprio underground. Apesar de ser de difícil definição, o movimento underground pode ser pensado como a parcela mais extremista da contracultura. Ele pode se manifestar através de qualquer intervenção cultural urbana - seja na música, na moda, na literatura ou nas artes plásticas – para um público restrito. Em Fortaleza, flashes da cena underground podem ser observados em diversos lugares como o Hey Ho Rock Bar, a Galeria Pedro Jorge e a Praça Portugal, pois são pontos de encontro de jovens que curtem variados estilos musicais como o heavy metal, o hardcore, o punk, o emocore, o grunge, o indie, o hard rock e até o reggae. Diferente da cultura underground original, a cena aparece marcada por traços da cultura local que não se esconde, pelo contrário, se mostra e traz, consigo, um pouco da claridade da terra do sol.

Galeria das tribos

A Galeria Pedro Jorge, fundada em 1965, está localizada no número 834 da rua Senador Pompeu, no Centro de Fortaleza. No prédio, um conjunto de pequenas lojas aparentemente escondidas e grudadas umas nas outras. Uma escada estreita e um elevador velho conduzem aos andares superiores. A partir do 2º andar, começa um mundo que é completamente diferente do que aquele que o cerca. Nada tem a ver com as próteses dentárias do 1º andar, muito menos com as livrarias evangélicas lá do térreo. E é por essa parte que a Galeria é mais conhecida. Ganha até um novo nome: a Galeria do Rock. Apesar do intenso calor, são poucas as lojas com ar-condicionado ou mesmo ventiladores. Adolescentes circulam nos apertados e antigos corredores com naturalidade. Algumas paredes, principalmente as próximas aos estúdios de tatuagem, são grafitadas ou pintadas com belos e coloridos desenhos. Um ambiente democrático, onde convivem emos, tatuadores e metaleiros das mais variadas tribos. “O mundo underground, em primeiro lugar, é uma questão de ética, respeito para todos os tipos de estilo, por mais absurdo que seja.”, esclarece Juscelino Rodrigues, gerente da loja Bronx, que tem como público consumidor skatistas, patinadores e jogadores de Street Ball (basquete de rua). Um dos pioneiros do que viria se tornar a Galeria do Rock é Tony Cochrane, o Alemão. Ele abriu sua loja, a Opus, em sociedade com um amigo, em 1984, época em que mal se via LPs de punk rock em Fortaleza. Os dois juntaram os vinis que tinham para vender, penduraram umas camisetas de bandas nas paredes e a loja estava pronta. Na sua opinião, “ser underground é viver realmente do jeito que você quer, não necessariamente ser do contra”. Atualmente, a Opus ocupa duas salas da Galeria, vende CDs, vinis, camisas, pôsteres, tudo relacionado à música dos mais diferentes artistas, desde Elvis, Beatles, Rolling Stones, passando por Ramones e Iron Maiden, até Offspring e Racionais MC’s.


Na galeria Pedro Jorge há grande variedade de representações de movimentos underground

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· waleska santiago·


Bar do Rock

Na esquina das ruas José Avelino com Senador Almino, próximo a outros espaços alternativos como o Reggae Club, o Music Box Bar, o Amici’s Sport Bar e o Órbita Bar, encontra-se o Hey Ho Rock Bar. Inaugurado em fevereiro de 2003 e bastante conhecido entre os jovens como “a casa da música independente de Fortaleza”, o espaço surgiu a partir da necessidade de um lugar para a divulgação de bandas locais. É uma espécie de grande galpão sem nenhuma placa de identificação externa, onde adolescentes se aglomeram, conversam, bebem, riem, alguns sentados às mesas, outros em pé. O ambiente torna-se escuro devido à tinta preta usada nas paredes e à pouca iluminação. Um clima obscuro de boate, misturado com bar e casa de show. A decoração é composta basicamente por cartazes de apresentações. O bar já abriu suas portas para mais de 4000 shows, incluindo bandas nacionais e internacionais. Por causa de sua popularidade entre os jovens, o Hey Ho Rock Bar já foi citado cinco vezes consecutivas pela “Revista Veja Fortaleza” como um dos lugares mais badalados da noite da cidade. Além de abranger os variados segmentos do rock, a casa também realiza shows de outros estilos como hip-hop, eletrônico, pop e reggae.

Moda independente

Apesar de ainda não possuir loja física, a marca “Fora da Rota” já é bem conhecida entre os jovens por retratar com originalidade e humor o universo nerd, sempre tão ignorado pela mídia. Criado há apenas quatro meses pelos amigos Kaio Anderson e Adams Rebouças, o estilo utiliza estampas que fazem alusão a personagens de séries de TV, filmes e jogos, em camisetas vendidas pelo preço fixo de 20 reais. As dificuldades para criar uma marca independente são inúmeras, principalmente devido ao preconceito. “Não existe uma rede desenvolvida para comercialização de artigos similares aos nossos. É um trabalho de formiguinha onde temos que tornar visível um produto novo em uma cidade viciada em consumir as mesmas marcas por anos”, explica Adams, 27

anos, designer gráfico e sócio responsável pela área de criação. As vendas das camisetas exclusivamente pela internet é um fato que chama a atenção. “Estamos seguindo uma forte tendência comercial, o E-commerce (comércio eletrônico). As pessoas podem ter acesso aos seus bens dentro de suas casas, a tecnologia está aí para nos servir, e as pessoas estão entendendo isso”, afirma Kaio, 22 anos, estudante de Administração. O gosto musical dos criadores também influencia na escolha dos temas das camisetas que abrangem desde Roberto Carlos, Madonna, Metallica até Michael Jackson.

Na garagem

O sonho de muitos adolescentes é montar uma banda de rock. Para alguns, que decidem investir nesse sonho, ele pode se tornar realidade. São inúmeras as bandas de garagem formadas por amigos que começam tocando nas festas de familiares e colegas sem cobrar nada. Algumas ficam só nisso, mas existem aquelas que conseguem crescer, fazer pequenos shows em bares e boates, e até participar de festivais. Esse é o caso da banda de hardcore Faina, formada em 2006, que já tocou em algumas casas de show de Fortaleza. “Ser underground é, sobretudo, fazer um som de atitude, que fuja dos padrões comerciais preestabelecidos e dos modismos tão habituais nos dias de hoje [Mainstream]. Organizar eventos por conta própria também é bastante válido [Do It Yourself]”, afirma Iago Barreto, 20 anos, vocalista da banda. Entre os problemas enfrentados pelas bandas da cena independente de Fortaleza, podem ser citados a elitização das casas de shows, a carência de festivais e de uma maior união entre os grupos. “O que falta é mais integração entre bandas, não apenas almejando uma união, como também visando fazer eventos por conta própria, muitas vezes considerados ausentes. Querendo ou não, algumas vezes, se submeter aos produtores não é favorável. Pois, alguns deles visam ao dinheiro, e não ao festival como uma integridade”, ressalta Iago. Entretanto, existem diferentes opiniões sobre o que é ser verdadeiramente underground.

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“Somos underground pelo fato de não sobrevivermos de música e muito menos temos perspectivas disso. Nossa música nunca vai tocar na programação regular das grandes rádios, nem tocaremos em grandes festivais como atrações principais”, explica Filipe Dias, 21 anos, da banda de heavy metal Cross of Fear, criada em 2005. Para o vocalista metaleiro, ser alternativo é nunca tocar por dinheiro ou para alcançar fama, mas apenas por diversão e prazer. Filipe traça um amplo panorama do ambiente musical da cidade. “A cena eletrônica, hoje, está no limiar entre o underground e o mainstream (que são os grandes círculos, por assim dizer), ou seja, está no auge. A cena indie está muito bem. A cena do hardcore/punk teve seu auge há cinco anos e, hoje, sobrevive graças à onda de emocore. Já a do heavy metal está no que eu chamo de ‘crise da abertura de importações’”. E esclarece em tom de crítica: “depois que Fortaleza virou rota internacional do heavy metal, as pessoas não se interessam mais em ver as bandas locais, embora elas ainda estejam na ativa e novas continuam surgindo, principalmente da periferia”.

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· waleska santiago·

O Underground é o movimento mais extremo da Contracultura e abriga diversos tipos de manifestações culturais


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· Marília Pedrosa · Elaine Quinderé ·

No meu mundo tem praia, tem serra e tem sertão. Sertão que já foi mar, como registra o Museu de Paleontologia de Santana do Cariri, com fósseis de répteis, anfíbios, peixes e vegetais do período Cretáceo. Onde um dia foi mar, hoje tem cacto, jurema e às vezes chão rachado. Minha terra tem também açudes, rios e um litoral de 578 km de extensão.

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· Rafael Gomes ·

Sobre o chão da minha terra moram mais de sete milhões de habitantes, sendo 3 milhões delas só na região metropolitana. Apesar do parque industrial desenvolvido, é preciso crescer ainda mais para que um dia possa ser uma terra mais igualitária. Minha capital é considerada a quarta maior do Brasil, embora precise desenvolver-se muito para fazer jus a essa colocação.

A capital, belo cartão postal, revela uma grande contradição. Lado a lado, convivem suntuosos prédios e miseráveis favelas. Pelas ruas das grandes avenidas crianças ainda pequenas, em situação de miséria, queimam a sua infância nas esquinas pedindo esmola aos que passam, pré-adolescentes dormem nos bancos da orla ou no chão, e adultos carregam na mente as consequências de uma vida sem destino.


Já descobriu qual é o meu mundo? Eu sou do Ceará! “Eu sou da América, sul da América, South America, eu sou a nata do lixo, eu sou o luxo da aldeia, eu sou do Ceará” (trecho da música Terral, de Ednardo). Estado nacionalmente conhecido como Terra da Luz, tanto por ter sido o primeiro do Brasil a decretar a abolição da escravatura como por ser abençoado 365 dias do ano pelo Astro Rei, o que dá uma média de 2,8 mil horas de exposição solar por ano.

Eu sou o cearense urbano e rural. “O problema do Ceará é que os literatos escrevem na capital, mas fazem retorno ao interior”, afirma José Batista de Lima, ex-presidente da Academia Cearense de Letras – a mais antiga do País. Por isso você conhece melhor o meu eu do sertão. Eu sertanejo, matuto. Eu que olho pro chão seco e tenho expectativa de que o verde vai aparecer depois das primeiras chuvas de dezembro, porque eu sou persistente. A minha esperança toma forma de fé: no São Pedro, no São José e no Padim. No meu Padim, Padim Ciço, padroeiro do Nordeste; no Pedro que manda a chuva e no José, que comemoro dia 19 de março. Se chover nessa data, é sinal de bom inverno no meu torrão. A ciência já comprovou!

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Eu sou o retirante e sou o vaqueiro. Eu sou o descendente de índio que veio sentar praça no exército. Sou o soldado amarelo de “Vidas secas” (obra de Graciliano Ramos), sou o soldado Trapiúna de “Luzia-homem” (livro de Domingos Olímpio). Eu sou o homem matador, valente, que maneja a faca e a peixeira (facão curto e muito cortante), que esfola o boi.

Eu também sou o jangadeiro, levanto quando ainda está escuro para entrar no mar, porque sei que os ventos da manhã facilitam o movimento da jangada na direção que traço todas as madrugadas. Sou o vaqueiro do mar, exploro com bravura as águas verdes. Eu mesmo faço minha tarrafa (rede de pesca) e sozinho guio a jangada. O Dragão do Mar, como ficou conhecido Francisco José do Nascimento, é o representante maior dos jangadeiros. Ele foi um ícone na luta pela abolição da escravatura.

Sou também a rendeira, costumeiramente associada à mulher do vaqueiro, que borda nas longas ausências do companheiro. De fato ajudo meu marido a completar a receita da família com a renda de bilros, uma herança dos portugueses. Cedo ensino minhas filhas a entrançar oito ou nove bilros, para que mais tarde elas saibam, como eu sei, entrelaçar até 64. Assim como as garrafas de areia colorida, a renda é um dos mais difundidos produtos do artesanato cearense. 72

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O humor é uma característica minha, mas mais vendida pela publicidade do que algo exclusivamente de mim. Apesar disso, meu mundo é um celeiro de humoristas. Já exportei Chico Anísio, Renato Aragão, Tom Cavalcante... sem contar nos que continuam aqui, como Adamastor Pitaco, Tiririca, Rocicléia e Raimundinha.

Assim sendo, Gilmar de Carvalho, importante pesquisador cearense, disse que “temos um jeito cáustico e debochado de ver o mundo. Por isso, temos um bode no Museu do Ceará, e rimos de nossa própria desgraça (...) Sobre esse perfil multifacetado do cearense, Carvalho salienta alguns aspectos no prefácio do livro “Bonito pra chover”: “Somos tão curiosos que achamos ‘bonito’ o tempo nublado, que outros consideram carregado e ameaçador. Estamos aqui por pura teimosia (...). Tomamos posse dessa ‘terra devastada’, um ‘areal’ que nem o donatário da capitania quis, e deixamos nossas marcas no charque, no algodão que a praga do ‘bicudo’ acabou e na lagosta que precisa do ‘defeso’ para ter uma sobrevivência”. E é isso que me fortalece, que me faz nunca perder a fé e ser persistente. É tudo isso que me faz um cearense autêntico, batalhador e irreverente.

Foi o mesmo, ainda, que fez o jornalista Walter Coe dizer: “somos resistentes e gaiatos – mais gaiatos que resistentes, é verdade – mas o que se sobressai é a teimosia de lutar contra uma natureza que não ajuda”. E foi o mesmo ainda que fez Patativa escrever “eu sou brasilêro fio do Nordeste/ sou cabra da peste, sou do Ceará”.

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artigo Quanto é o bastante? ·

por

· Camila Marcelo ·

estudante de Jornalismo da Unifor

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· Viviane Sobral ·

Foto: Waleska Santiago

É irônico morar em um mesmo mundo com outras pessoas e isolar-se num paralelo. Numa filosofia de vida mundial, onde se aplica a quebra de preconceitos, vive-se a indiferença. Cada homem e mulher na sua religião, política e aparência. Entre suas paredes ou em mundos virtuais, cada pessoa cria o seu perfil e a sua época e fixa-se nela. Compartilha-se ar, ambiente de trabalho, tradições, sonhos, superstições e gostos. O Orkut anuncia centenas de amigos, comunidades mostram outros que pensam semelhante, então por que o ser humano sente-se cada vez mais só? As pessoas expõem-se muito, na tentativa de se mostrarem um pouco mais, serem transparentes. Mas pensamentos, reflexões e desabafos são repartidos nas mídias eletrônicas

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para leitores ausentes. Fala-se de sentimentos e sonhos em palavras sinceras, mas não se atenta às revelações alheias. Nada disso é aproveitado e, assim, mantém-se a incompreensão do ser. Crianças abandonam bonecas e tabuleiros ao mofo nas prateleiras e entregam-se desde cedo a jogos virtuais que, muitas vezes, exploram a violência e atividades de censura adulta. Os adolescentes são tomados pelo excesso de conteúdo pragmático, quando não, pela atraente diversão noturna e por vícios da madrugada boêmia. Os adultos são os velhos de antigamente. A face cansada da exaustão do longo trabalho mostra a pressão diária do tempo, ou melhor, da sua falta. Trabalhar em cubículos isolados, fazer hora extra e doar-se por inteiro para mostrar conteúdo, competência e destacar-se, às vezes resulta num tapinha nas costas, reconhecimento de poucos e vários calos na juventude. Sim, a produtividade aumenta e, quando se tem sorte, o salário também. Entretanto, compensa a falta de sono acumulada, ultrapassar limites físicos e o desgaste mental? Procura-se mais estabilidade e promoções. Concursos são pautas de jornais e persegui-los torna-se estilo de vida de muitos. Comem-se páginas em função de ambições futuras. E, de repente, deixam-se reuniões familiares e reencontros com amigos de infância de lado, para ir ao encontro do livro renomado. Criam-se metas anuais para um planejamento que não inclui terceiros. Não se tem tempo para velhas amizades, ou até novas. Opta-se pela carreira ou pela ascensão profissional, para só então pensar em casamentos e filhos. Mas nunca é suficiente. Nada mais é suficiente.


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Universidade de Fortaleza - UNIFOR Comunicação Social

Jornalismo

Av. Washington Soares, 1321, Edson Queiroz CEP 60.811-905 - Fortaleza-CE, Brasil Fone 55 (85) 3477.3105 equipelabjor@gmail.com

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