Revista ArtFliporto N.3

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Sobre olhar através. CARTA DO EDITOR

No processo de reunir pautas para uma revista, nem sempre temos a perspectiva de um grande tema, um guarda-chuva em que irão se amparar todos os textos, ou boa parte deles. Foi justamente o que aconteceu com o terceiro número da ArtFliporto. O conceito parece que é sempre o depois, o olhar para a construção já erguida. Quando a revista começou a ser montada, passei a perceber que muito do material reunido falava sobre brechas, sobre fissuras na estrutura, algumas perceptíveis; outras quase invisíveis, mas que nos possibilitam um olhar através. É o caso do ensaio do fotógrafo Chico Ludermir, que flagra o encontro de corpos resumidos ao mínimo de suas formas geométricas, construções inusitadas, alienígenas. As fissuras estão ainda na insônia narrada no segundo volume do nosso “alfabeto de horas” e no depoimento de Néstor García Canclini sobre o momento em que vive hoje a América Latina. Estão ainda na lembrança de que O jogo da Amarelinha é uma espécie de rachadura, ou ruptura, com o status quo da literatura e na Lygia Fagundes Telles, inquisidora e afiada, por trás da sua imagem de grande dama. Mas talvez tantas fissuras e brechas sejam apenas impressão pessoal, a minha forma de ler (e de reconhecer) a revista. E espero que você, leitor, encontre a sua.


sumário É PARA VOCÊ Dedicatórias que podem ser resumidas num nome: “bandidas”

CONSUMO Um repórter vai ao “âmago” de um shopping center e das suas promessas

ÍNDIA A experiência de ouvir o clássico de Gal Costa 40 anos depois

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3H Nesta edição, o alfabeto de horas traz o relato de uma prisioneira da insônia

LYGIA FAGUNDES TELLES Os 90 anos da grande dama da literatura por Silviano Santiago

GOURMETIZAÇÃO Ainda é possível ver o mundo sem o uso da palavra “gourmet”?

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+ MAIS

70 ENTRECORPOS Corpos se encontram e se perdem formando novos mundos

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EXPEDIENTE

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LATINOS DIANTE DO SEU ESPELHO Néstor García Canclini

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TODOS NÓS TEMOS NOSSOS LUGARES Entrevista: Marc Augé

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A LITERATURA É UM JOGO Kelvin Falcão Klein

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MORRER DE AMOR NO AMAZONAS Pedro Lemebel

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ENSAIO OU ESTAR ENTRE SABERES Denilson Lopes

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MARIO VARGAS LLOSA SORRI Schneider Carpeggiani

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EXÍLIO Cristhiano Aguiar Capa Chico Ludermir

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A Revista ArtFliporto é uma publicação quadrimestral da Editora Carpe Diem Edição 3 – Ano 2 Número 1 / agosto 2012 Tiragem – 1 mil exemplares | ISNN - 2238-5444 Os textos assinados são de responsabilidade dos autores. Proibida a reprodução parcial ou total dos textos, fotos e ilustrações por qualquer meio, sem autorização prévia. Todos os direitos reservados

expediente DIREÇÃO Antônio Campos EDIÇÃO Schneider Carpeggiani DESIGN Karina Freitas FOTOGRAFIA Chico Ludermir REVISÃO Maria Helena Pôrto EDITORA Carpe Diem DIREÇÃO EXECUTIVA Lívio Meireles Capeleto GERENTE OPERACIONAL Veronika Zydowicz AUTORES E COLABORADORES PUBLICADOS NESTA EDIÇÃO Fernando Monteiro Fábio Ramalho Luís Fernando Moura Mariana Lacerda Kelvin Falcão Klein Bia Abramo

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Marcelino Freire Pedro Lemebel Carol Almeida Denilson Lopes Fabiana Moraes Silviano Santiago Renata do Amaral Cristhiano Aguiar Xxxxxxxxxxxx Xxxxxxxxxxxx Xxxxxxxxxxxx IMPRESSÃO Gráfica Facform

* Sugestões e críticas devem ser encaminhadas para livio@fliporto.net * Textos desta edição estão adaptados à nova ortografia.


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DEDICATÓRIAS BANDIDAS

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Texto FERNANDO MONTEIRO “DEDICATÓRIAS... BANDIDAS”? CARECE EXPLICAÇÃO? ACHO QUE NÃO. UMA DEDICATÓRIA É BANDIDA APENAS POR DIFERENTES MOTIVOS – E AQUI ESTÃO QUATRO “DBS” DE DIVERSAS ORIGENS, COM ESPECÍFICOS MOTIVOS PARA A BANDIDAGEM DAS PALAVRAS ESCRITAS E DEVIDAMENTE FIRMADAS (ARRISCANDO QUE ELAS, AS PALAVRAS, PERMANEÇAM EXPONDO ÉPOCAS, INTENÇÕES E SITUAÇÕES).

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A PRIMEIRA Do sociólogo-antropólogo Gilberto Freyre para Getúlio Vargas, então presidente do Brasil (Estado Novo). Ela diz, isto é, ela reza ou declara-se assim para o caudilho gaúcho então ditador todo-poderoso: “Ao Presidente Getúlio Vargas, com a velha sympathia e a admiração de Gilberto Freyre Rio 1940” Essa dedicatória se encontra num raro exemplar da primeira edição de O mundo que o português criou, o livro que, por sinal, abriu as portas da ditadura salazarista, em Portugal, para o autor e sua obra. A data – 1940 – antecipa-se em pouco mais de cinco anos antes de surgir o “Deputado dos Estudantes”, isto é, o mesmo Freyre como figura antigetulista, consagrada politicamente por um discurso, na sacada do Diario de Pernambuco, contra os “esbirros a mando da ditadura” que assassinaram o estudante Demócrito de Souza, na pracinha em frente ao velho jornal. Um novo Marco Antonio? Há sérias dúvidas. E, detalhe, esse volume sequer foi lido pelo ditador presenteado (pessoalmente? “RIO, 1940”?), pois o volume ainda espera por uma espátula....

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A SEGUNDA Esta é a mais lacônica dedicatória que jamais encontrei – e assinada por um nome tão importante, nacional e internacionalmente, quanto o de Gilberto. Porém vai na direção contrária deste, e hostiliza (com ou sem razão) o destinatário, o crítico e cineasta Jean-Claude Bernadet. Quem a firma? O grande cineasta Alberto Cavalcanti: “Obrigado, Sr. Bernadet. Cavalcanti, 62” Apenas isso. Quase nem é uma dedicatória, mas uma espécie de curtíssimo protesto escrito por um cineasta consagrado “lá fora” e, aqui, no Brasil, objeto das companhas mais torpes. Não precisa dizer muito mais, é melhor ser lacônico como Cavalcanti foi nesta “DB” curta e (quase) grossa... Em tempo: ela está num sólido estudo do alemão Wolfgang Klaue sobre a obra de Alberto, publicado na então Alemanha Oriental (por Staatlichen Filmarchiv der Deutschen Demokratischen), em 1962. Nunca foi traduzido no Brasil, é claro.

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A TERCEIRA A terceira, eu encontrei em Le vin blanc de la villette, de Jules Romains, num exemplar da primeira edição (Nouvelle Revue Française, 1923), com o autógrafo do autor, e que pertenceu ao sisudo Graça Aranha. Das delicadas mãos de Nazaretty, amiga íntima do eminente pré-modernista João Pereira da Graça Aranha, o livro ganhou uma dedicatória que escancarava a relação da moça com o diplomata e membro da Academia Brasileira de Letras (“Para a Fundação, em lembrança do meu Graça – Nazaretty de G. A, 1926”), nem mais nem menos. Moderníssima, a Nazaretty.

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A QUARTA A QUARTA dedicatória é esta: uma confusão só. De Salvador Dali para Luiz Jasmin, o pintor baiano radicado em Itamaracá (PE) e falecido em março deste ano. Alguém entende alguma coisa do que foi “escrito” e assinado por Dali, aqui? O bom Jasmin nunca pôde saber o que dizia tal intricado de riscos ariscos do grande catalão que ele conheceu em New York, em circunstâncias tão bandidamente surreais, que valeria contar em artigo à parte... FERNANDO MONTEIRO é autor de, entre outros, A cabeça no fundo do entulho (Editora Record) e Mattinata (Sol Negro Edições)

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LATINOS DIANTE DO SEU ESPELHO

Com exclusividade para a ArtFliporto, o antropólogo Néstor García Canclini revela os impasses da américa latina hoje Depoimento cedido a FÁBIO RAMALHO

A América Latina foi condicionada, desde o processo de colonização, pelos modelos de desenvolvimento histórico provenientes primeiro da Europa e depois dos Estados Unidos. No entanto, parece-me que há também diferenças importantes e desenvolvimentos endógenos que precisam ser considerados. Já sabemos que, nos anos 1960 e 1970, a teoria da dependência e do desenvolvimento industrializado na América Latina propôs internacionalmente modelos de desenvolvimento alternativos. Essa etapa ficou um pouco para trás, devido ao impacto do neoliberalismo e de todas as políticas que, mundialmente, foram subordinando o desenvolvimento produtivo à especulação financeira. Igualmente a América Latina, desde os anos 1970, passou pela reorganização das economias e das sociedades, como pelo impacto de algumas

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ditaduras que aceleraram esse processo. Nela, ocorreram em períodos anteriores as crises que agora vive, por exemplo, a Europa. Estou pensando nas chamadas crises da dívida ou do ajuste econômico, que tiveram início nos anos 1980. No México, em 1982, e em outros países posteriormente; na Argentina e no Brasil se foi experimentando a incapacidade desse modelo neoliberal para impulsionar o desenvolvimento endógeno e promover uma inserção global próspera. E também houve algumas experiências de promover o desenvolvimento endógeno com certa independência dos ditames do Fundo Monetário Internacional e de outros programas internacionais. Argentina e Brasil foram alguns dos países mais consequentes neste intento de promover, não sei se um desenvolvimento alternativo, mas, sim, certa independência dos imperativos, dos slogans neoliberais. É preciso considerar que, se é verdade que muitas cidades latino-americanas foram moldadas pelas concepções europeias e estadunidenses de desenvolvimento urbano, também houve processos distintos das cidades europeias. Um dos fatores mais influentes foi a migração acelerada do campo à cidade, ou de umas zonas a outras. Isso gerou um crescimento demográfico desordenado e uma grande heterogeneidade na composição multiétnica das cidades, em parte pelo atrativo da industrialização ou pelo crescimento do setor de serviços, e em parte, também, devido às políticas equivocadas de desenvolvimento agrário. Isso é importante para entender as cidades, porque no período em que esteve no auge o pensamento pós-moderno, que foi muito influente nas concepções urbanísticas, pensava-se que a fragmentação das cidades era positiva e que a solução não deveria ser integrar a estrutura urbana, mas atender as necessidades particulares de diferentes setores, promovendo focos de irradiação do desenvolvimento. Essa concepção pós-moderna, que também impactou o urbanismo na Europa e nos Estados Unidos, teve um efeito parcialmente positivo naqueles países, porque promoveu uma descentralização na gestão das cidades, dos países ou das regiões culturais. Já na América Latina, onde o cres-

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cimento tem sido tão veloz – penso em cidades como México, São Paulo e Caracas, que cresceram em milhões de habitantes em 30, 40 anos – eram necessários planos reguladores que não existiram. Por exemplo, na cidade do México, que tinha 1,6 milhão de habitantes em 1940, em 1980 havia 15 milhões de habitantes e o primeiro plano regulador foi criado nesse momento, em 1979, quando o desenvolvimento descontrolado já tinha transbordado as estruturas históricas. Então, parece-me que precisamos ver como se foram encarando alguns desses processos na América Latina, com suas especificidades. Há exemplos mais bem-sucedidos que outros, por exemplo, na Colômbia, em cidades como Bogotá ou Medellín, que puderam gerir, com movimentos sociais independentes ou parcialmente independentes dos partidos políticos tradicionais, projetos de cidade que geraram o tecido urbano, no que pesem as dificuldades da violência. A relação entre formas mais institucionalizadas de gestão e de governo, como seriam os partidos políticos e, por outro lado, os movimentos sociais, é um velho tema das ciências sociais e da politologia. Mas, sem dúvida, os movimentos sociais de muitos tipos diferentes – feministas,

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étnicos, ecologistas etc. – foram se radicalizando ao terem acesso a formas de comunicação transnacional e transversal que potencializam suas comunicações, suas capacidades para se informar e argumentar. Não obstante, segue presente, ainda que reestruturada, a pergunta sobre a eficácia desses movimentos e sobre sua durabilidade, sua sustentabilidade. Porque vemos, ainda, que muitos deles duram pouco tempo, decompõem-se, burocratizam-se ou são cooptados por partidos políticos ou governos em alguns países. Evidentemente, esses movimentos até agora têm sido os mais capazes de denunciar a inconsistência das políticas governamentais, a corrupção que é cada vez mais difícil de ocultar. Podem também lograr a associação em solidariedade de setores que estavam dispersos, mas não há uma passagem automática, para dizer de maneira rápida, do wikileaks a uma transformação das estruturas de médio e longo prazo. Talvez estejamos entrando em outra etapa do desenvolvimento social e político, mais instável, com estruturas menos duráveis. De todo modo, é interessante pensar essa instabilidade em relação à tendência que se deu na América Latina de que os presidentes se reelejam, que certos partidos consigam se instalar no governo por


mais de um período, por mais de quatro ou seis anos. Parece haver uma tensão entre a necessidade de certas formas de estabilidade, de continuidade na gestão do público, e por outro lado este conjunto de fatores tecnológicos, movimentais, que criam muita instabilidade surgida do descontentamento pelo fracasso das políticas sociais. Vivemos uma época de cidadanias de alta intensidade com efeitos de curto prazo. O desenvolvimento das tecnologias digitais e da conectividade, como sabemos, vem transformando, nos últimos 20 anos, a produção e a circulação dos bens e das mensagens, bem como os modos de ter acesso à informação e ao entretenimento. Tornou-se, portanto, um fator decisivo para a reestruturação da sociedade, e a América Latina apresenta um certo atraso internacional, se comparamos a cobertura destas tecnologias recentes, especialmente o déficit de acesso à banda larga, com países como Finlândia ou Estados Unidos, dentre os mais avançados nessa cobertura. Porém, são interessantes as pesquisas sobre jovens, para entender que não podemos tomar as cifras globais como único indicador para medir o que está acontecendo nos países. Porque, já em 2005, na pesquisa nacional sobre jovens, feita no México, além de outras semelhantes, de outros países, víamos – cito os números do México porque são os que conheço melhor – que 31% dos jovens diziam ter computador em casa, porém mais de 70% diziam ter acesso à internet. Para além da propriedade do aparelho, há outras formas de sociabilização geracional, de usos escolares, laborais, que ampliam o acesso a esses novos recursos comunicacionais e informacionais. Nesse ponto, cabe destacar que muitos países latino-americanos estão empreendendo de maneira precursora programas de entrega de computadores às crianças: em alguns países, como o Uruguai, para a totalidade dos alunos da escola primária; no caso argentino, para amplos setores de alunos dos primeiros anos do secundário; no Peru, na Colômbia e, agora, no México estão iniciando experiências nesse sentido, e isso está gerando

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não somente uma familiarização com as novas tecnologias desde muito cedo e uma capacitação nova para formas digitais de produção e consumo, mas também uma implosão na vida familiar, porque os alunos levam aos seus lares os computadores. Um grande número de pais que não tinham acesso, que não haviam considerado os novos dispositivos na sua vida cotidiana sentem-se interessados, começam a aprender com os filhos. Isso também traz uma desierarquização das relações familiares, do mesmo modo que a das relações escolares e sociopolíticas, porque os estudantes entendem mais rápido do que os professores como aproveitar esses recursos. Assim, há uma série de consequências qualitativas que estamos apenas começando a estudar e que não podemos medir somente pelo número de possuidores de computadores, ipads e iphones, mas por outros modos de difusão, treinamento informal e acesso a essas novas tecnologias. Esse uso estendido começa a modificar o exercício da cidadania.

América Latina) sejam os que mostram mais nos últimos anos, desde 2007, 2008, que os jovens na América Latina apresentam um nível educacional maior que o de seus pais, um maior acesso às novas tecnologias e, não obstante, têm menor acesso a emprego, mostram um grau muito maior de desocupação e de participação na decomposição social. É muito dramático, porque expõe a incapacidade das políticas de desenvolvimento que estamos seguindo – de proporcionar trabalho, segurança e bem-estar aos jovens. Há, pelo contrário, políticas de exclusão, às vezes voluntárias, como as políticas explicitamente neoliberais, e outras vezes mais complexas em suas motivações, quando os governos não entendem as demandas e exigências dos jovens. Isso tem gerado contradições graves, como sabemos, com um alto grau de violência e insegurança. Porém, em meio a essa situação dramática, vemos que também crescem agrupamentos e redes de jovens criativos. Estamos estudando, nos últimos anos, na cidade do México, movimentos de jovens artistas visuais, Os jovens constituem uma das zonas editores independentes, músicos, proem que mais se evidenciam as contra- dutores digitais, entre 20 e 35 anos, dições das condições de desenvolvi- que revelam extraordinária criativimento múltiplo, combinado e desigual dade para criarem empregos para si, em que estamos. Talvez os estudos da situarem-se em nichos de mercado CEPAL (Comissão Econômica para a que não estão ocupados, inventá-los,

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promover seus trabalhos criativos com formas de comunicação inovadoras. E é importante que grande parte dessas atividades criativas seja feita em grupo. Importa menos a noção de autor, de gênio ou criador excepcional e há muita disponibilidade para trabalhar em rede, para redefinirem-se como prossumidores, quer dizer, enlaçando o momento da produção e da criação com o momento do consumo, da recepção e da apropriação. Parece-me que a experiência que o Brasil tem com os pontos de cultura, ainda que seja um movimento complexo, muito heterogêneo, representa em parte essas novas formas de criatividade. Em meio a tudo isso, há uma noção pouco equívoca que se costuma mobilizar: a de economia criativa. Nos anos 1990, houve, em países como Inglaterra, Austrália, Espanha, uma idealização das potencialidades da economia criativa como forma de gerar emprego para os jovens que não eram atendidos ou recebidos pelo mercado de trabalho formal. Elogiaram-se os empreendedores, mas como viram bem alguns estudos franceses que inventaram a noção de intermitentes, para referirem-se a esses jovens que trabalham apenas durante uma parte do ano, que não têm garantias sociais, de saúde, que não podem desenvolver seus trabalhos em modo contínuo, esses intermitentes mostram que os empreendimentos realizados, aparentemente com tanta liberdade, também têm condições de contexto que conspiram contra um desenvolvimento cultural mais seguro e de longo prazo. Desde o ponto de vista das sociedades, do conjunto de cada país, não se pode pensar que a economia criativa vai substituir a ordem econômica e social geral, que vai resolver as crises ou as fraturas sociais geradas pelas políticas neoliberais.

NÉSTOR GARCÍA CANCLINI é autor, entre outros, de Culturas híbridas (Edusp) e Consumidores e cidadãos (UFRJ). FÁBIO CARVALHO é pesquisador e doutorando em Comunicação.

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Certo dia, ainda pequeno, fui carregado para um shopping center. Diziam que era o maior do país, quiçá da América subequatorial. Algumas vitrines depois, talvez um espírito do mal tenha me erguido pelo colarinho e sussurrado com voz cavernal: “Vai ser gauche no shopping”. Ali, devo ter ficado tonto pela primeira vez. A visão do interior de um shopping sempre me foi de difícil assimilação. Fisiologicamente violenta. Um espartilho nos olhos, o cerebelo enfiado num salto alto. Talvez porque ali eu tivesse encontrado um espelho virtuoso para todas as imagens do mundo. Ali, os homens haviam levantado um palco figurativo tão vasto, tão randomicamente sedutor, que só me restava a visão turva de um fajuto Monet com catarata, para quem o impressionismo da luz neon foi cegando até o completo abstracionismo. 22 | artfliporto #3 • 2013


Fazer parte do shopping era uma maravilha para a minha classe meio média. Havia no shopping a eterna esperança de que se descortinasse algo novo ou maior a ser encaixado na despensa do meu coraçãozinho. Mas, maldito domingo em família, lá estava eu tonto outra vez: era eu um James Stewart apaixonado pelo duplo malicioso de Kim Novak deslumbrante, mas difícil de salvar do abismo. Até então, não tinha descoberto o Shopping Cidade Jardim, no Morumbi, em São Paulo, rei entre os ditos shoppings mais luxuosos do Brasil. Desvelado por este modesto consumidor no Censo Brasileiro de Shopping Centers 2012/2013, livrão editado pela Associação Brasileira de Shoppings Centers (Abrasce), um dado por si só estonteante derruba o queixo: que a Barra da Tijuca ou o Itaim Bibi sejam esquecidos , o Cidade Jardim é o único shopping do país no qual 100% dos visitantes são expressamente enquadrados na classe A. Um arredondamento sociológico extraordinário, sem afim entre os outros 456 estabelecimentos catalogados. Resolvi ter, eu mesmo, um domingo de passeio no dito cujo. Imaginei que ali encontraria o suprassumo do conceito compras-lazer, o shopping dos shoppings, a quintessência da experiência do consumo. Encontrei o reduto das imagens que recalcava numa memória de imagens vividas e, nos bastidores, uma história social silenciada. Além de, como se pode presumir, sair de mãos abanando. Primeiro, sem dispor de um automóvel, lidei com o desafio moral. O Cidade Jardim não tem entrada para clientes pedestres. Na internet, usuários perguntam ao Yahoo! respostas sobre como encontrar uma porta de entrada no paraíso e outros relatam, uma vez caminhando com suas próprias pernas até um eventual portal, terem sido recebidos por um detector de metais. No meu caso, precisava ainda descobrir o melhor itinerário para o transporte público, a fim de não ser engolido pela Marginal Pinheiros, via tão expressa quanto avassalada por carros. Encontrei bem fácil a porta dos fundos, para onde pedestres devem seguir e onde seguranças me recepcionaram. Nenhum detector de metais me assediou, mas o elevador de serviço ao qual fui direcionado brincou com alguns solavancos. Saí num corredor

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bege e mal-iluminado até ser expurgado por uma porta de emergência na alameda de serviços. Aquele parque muito arborizado, habitado por lojas e atravessado por cães de estimação empetecados é aquilo o que se chama, entre entendidos, de lifestyle center, estilo arquitetônico-social que tem dominado parte da indústria de ponta de shoppings e que, em geral, tem definições publicitárias cuja base são palavras como “diferenciado”, “qualidade de vida” e “responsabilidade ambiental”. Presidente da Abrasce, Luiz Fernando Veiga faz mais simples para nos explicar: “O shopping lifestyle tem o todo ou uma parte dele mais ao ar livre. Traz uma sensação de liberdade e convívio com a paisagem natural. Nos EUA, há shoppings completamente lifestyle. No Brasil, há alguns com essa conotação, como o Cidade Jardim”, cita, antes mesmo que eu o insira na conversa. A sensação é de que, de dentro, estamos sempre entre quedas d’água e sabiás, numa rua inventada para o desfrute. Não se trata de uma rua para qualquer um, no entanto, e a descrição institucional do estabelecimento espanta as dúvidas como a mosquitos: “Shopping Cidade Jardim, um centro de compras inspirado nas ruas mais elegantes do mundo. Não por acaso, as lojas ficam todas de frente para jardins modernos, criando, assim, um clima que mistura

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charme e sofisticação. Os clientes escolhem o Shopping Cidade Jardim porque ele oferece lazer, gastronomia e uma seleção criteriosa e completa de lojas”, diz o texto. Eis o único centro de compras que oferece aos brasileiros o portentoso grupo Big 5, alcunha para a reunião das cinco grifes “mais prestigiadas do mundo”, explica o release. Um reduto parisiense-texano em que pipoca de cinema é tratada por “pipoca gourmet” (diz-se que sai no azeite) e há um hall especial para as salas de cinema VIP, no qual se serve champagne. Um parque repleto de restaurantes, mas sem praça de alimentação e onde não há sequer uma, aqui popularesquérrima, McDonald’s. Uma vez lá, caminhei até o mais profundo em que pudesse chegar, talvez demais para a minha labirintite. Persegui o luxo com a humildade de um tênis Adidas surrado e descobri um piso mais difícil de pôr os meus pés: no subsolo do Cidade Jardim, no qual o shopping, enfim, parece se proteger de eventuais mísseis, esconde-se o Éden dos nossos desejos ocidentais: Gucci, Dior, Chanel, Cartier, Rolex, Armani, Hermés, Louis Vuitton – um ao lado da outra, iluminando a presença de dezenas de guardas. Com toda a resistência à entrada de suspeitos maltrapilhos, o local sofreu dois assaltos nos últimos anos.


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Eu, que não portava armas de fogo, procurei refúgio do olho dos seguranças, sob o risco de que me percebessem infiltrado, e quase não consegui encarar as vitrines. Aos poucos, admiti ser visto. Procurei os valores por trás dos vidros e senti que o gato sapato masculino da Prada era talvez uma pechincha de R$ 1.800. Ali, no cantinho, estava a gloriosa Tiffany’s e seu santuário-vitrine, ensandecendo a Audrey Hepburn dos meus ombros com um colar insuportável de R$ 250.000. O luxo que resplandece sobre o Cidade Jardim talvez seja o de um altar no qual as imagens mortas pelo espetáculo são veladas em corpo presente. Como se Moon river fosse uma canção digna do toque da minha mão. Como se eu pudesse fazer parte das palavras ditas, das paisagens fotografadas. Talvez queiramos que o shopping nos veja porque ali estamos mais próximos de salvar a Kim Novak dos nossos sonhos. Como se pudéssemos nos aproximar, bobos pedestres que somos. Talvez seja mesmo para poucos. É uma revisão de inclinação marxista para o dilema do ser ou não ser: fazer ou não fazer parte de uma comunidade de devir-luxo em que a cidadania nos é cada vez mais apregoada como a capacidade democrática de comprar. Foi no país que estandardizou o nocaute na miséria como trunfo de

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uma política social – e onde somos cativados pelo nobre slogan “país rico é país sem pobreza” – que a socióloga Valquíria Padilha escreveu uma tese de doutorado para esmiuçar o papel dos shopping centers como rota de desejo e lazer no capitalismo. E também as contradições que poderiam dar uma rasteira na noção de que o cartão de crédito nos faz cidadãos melhores. Professora da Universidade de São Paulo (USP), Valquíria defendeu o trabalho em 2003, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e publicou versão revisada do texto no livro Shoppings centers: catedral das mercadorias (Boitempo, 2006). “Fiz, no meu mestrado, um estudo sobre o tempo livre e o capitalismo, e deste então fui percebendo que o shopping center aparece para todas as classes sociais, mas especialmente para a classe média, como o lugar, por excelência, de aproveitamento do tempo livre”. Mas seria esse tempo verdadeiramente livre?, provoca. Assim como para os meus olhos preguiçosos e um tanto lascivos, o shopping center é percebido aqui como o lugar último de uma cultura de consumo: nas palavras de Valquíria, algo que se concretiza quando o consumo é “não apenas a compra de bens materiais para a satisfação das necessidades, mas também o consumo de imagens e de


valores”. O consumo, diria Lacan, é uma relação machucada de constantes perdas entre o desejo e o gozo, que nos deprime até que consumamos um pouco mais. A reboque da prosperidade macroeconômica no país, o crescimento dos shopping centers em 2012 foi o maior dos últimos 13 anos, segundo a Abrasce. Em comparação com o ano anterior, as vendas do setor aumentaram em 10,65%, chegando a R$ 119,50 bilhões, e a expectativa de crescimento é de mais 12%, em 2013. No total, 27 empreendimentos foram inaugurados no ano que passou, 48 devem ser abertos até o fim do corrente e já é previsto o surgimento de mais 30 em 2014. No senso comum internacional, o mercado brasileiro de shopping centers entrou no seleto grupo de emergentes promissores e tem atraído investidores estrangeiros com muita saliva para derramar. Segundo relatório de 2012 da Cushman & Wakefield, uma das maiores consultorias imobiliárias do planeta, a recessão econômica dos últimos anos minguou o desenvolvimento do setor na Europa e na América da Norte, garantindo não mais que a estabilidade desses mercados. “Por outro lado, na Ásia e na América Latina, o ressurgimento econômico tem alimentado uma recuperação da atividade varejista ao longo dos últimos dois anos”, diz o texto. Segundo o relatório, “o resultado é um mercado de varejo enraizado em uma base de consumidores próspera e em uma classe média emergente, enquanto novas políticas econômicas e o fluxo contínuo de marcas internacionais estão revolucionando e fortalecendo o setor nessas regiões, manifestando-se também no surgimento de centros comerciais voltados para a classe A”. O boom, que no Brasil costuma encontrar justificativas no desemprego nanico e no alargamento da incensada nova classe média, como reitera o presidente da Abrasce, Luiz Fernando Veiga, arranja fôlego também em problemas estruturais da esfera pública, como o próprio aponta. “O shopping center é uma resposta ao caos urbano que estamos vivendo”, diz Veiga. “O governo acabou de prorrogar a redução de IPI da indústria automobilística, por exemplo, mas sabemos que não cabe mais carro nas ruas. É o primeiro ponto que favorece os shopping

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centers, que oferecem muitas vagas de estacionamento. Além disso, o shopping passa uma sensação de segurança muito grande. E, em terceiro lugar, tem uma climatização perfeita. Faça chuva ou sol, frio ou calor, você mantém a temperatura agradável. Num shopping, você faz em três horas o que levaria uma semana para fazer na rua. Ora, diante disso tudo, a gente só faz prosperar.” O nó do problema, sugere Valquíria, reside exatamente no senso compartilhado de uma substituição forjada de papéis sociais, como se os shoppings fossem equipamentos essenciais ao bom funcionamento de uma cidade – e democráticos, como presume a noção mais básica da cidadania ocidental. “Se os shopping centers parecem ser espaços agradáveis, seguros, práticos e bonitos, é preciso procurar ver também o que eles não são ou não parecem ser”, escreve em Shopping centers: a catedral das mercadorias. “Com olhos viciados na racionalidade econômica do capital, os gestores dos shopping centers redesenham cidades e suas praças públicas, recriando-as mais limpas, mais bonitas, mais modernas, mais práticas e mais seguras, de forma que as pessoas sintam mais prazer no mundo artificial ‘de dentro’ que na realidade real ‘de fora’. Esse prazer provocado artificialmente, mesmo ilusório, acaba por dificultar a tomada de consciência dos conflitos sociais e econômicos”, escreve Valquíria. Com a assimilação comum das soluções de urbanismo propostas pelos shoppings, passamos a confundir, diz, centro de compras e centro de lazer, consumidores e cidadãos, miscigenando os princípios de dois espaços de naturezas distintas, regidos por estatutos diferentes. De um lado, estão as leis, vistas como decrépitas. Do outro, as regras privativas de cada estabelecimento, escondidas sob as vitrines que alimentam um desejo de partilha de sonhos. E então deixamos a questão escorregar por nossas mãos: nesse cenário em que liberdade é ter conta no banco, quem garante o bem comum? “Já que o Estado é falido e tem uma realidade de insegurança e de pobreza, vamos criar uma cidade artificial. Sendo que o espaço do cidadão é o espaço público. O espaço privado é o espaço do consumidor”, diz a pesquisadora. “O shopping aparece como sintoma

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de um conjunto de valores que estão sendo propagados pela sociedade de consumo e compromete qualquer projeto de emancipação do ser humano”, adverte com pessimismo crítico. “É um espaço que leva ao estranhamento do ser social. E o ser social é aquele que não tem condições de se reconhecer como sujeito coletivo que é. É o princípio da alteridade: a capacidade de olhar para o outro e reconhecer um sujeito, como você. Todo mundo que frequenta o shopping é igual: não há espaço para o diferente”. Christian Dunker, psicanalista e pesquisador da USP engajado em destrinchar relações entre sujeito e capitalismo, ajuda-nos com uma arqueologia do consumo como produtor de desejos, mas também como agenciador de tensões entre subjetividade, espaço público e alteridade. A incursão derradeira do modelo a que nos acostumamos dataria do fim do século XIX, décadas antes da abertura dos primeiros shoppings, em 1920. “Com o surgimento das primeiras lojas de departamento, os fatores que tornavam o consumo um fato determinado por elementos coletivos, como a tradição e a fidelidade, são lentamente substituídos pelo consumidor que cada vez mais deve definir, construir e reconhecer individualmente o desejo que é induzido pelo objeto”, diz

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o pesquisador. “É assim que o ato de compra vai se tornando uma forma de construção de identidades, o que foi impulsionado pela oferta de suportes para o desejo formada pelas narrativas e imagens da propaganda.” Dunker afirma que o shopping center é “um novo capítulo desta relação de individualização do desejo pelo consumo. Ele é parte do que se pode chamar de vida em forma de condomínio no Brasil, que toma força a partir dos anos 1980. Ao contrário das gated communities inglesas ou dos bairros de subúrbio americanos, são estruturas fortemente baseadas na segurança e na defesa. O shopping protege o consumidor dos perigos da compra a céu aberto em uma sociedade tensa do ponto de vista da relação entre diferenças sociais e diferenças de estilo de consumo. Deixamos nossas crianças sozinhas nos shoppings e duas ou três gerações passaram ali seus melhores momentos de socialização”. Retomando a ideia de estranhamento lançada por Valquíria, Dunker lembra que a exteriorização é também uma acepção corrente para a noção crítica de alienação. Enquanto o shopping é um lugar de “mesmos”, como diz também Valquíria, é por outro lado um lugar de “síndicos que organizam nosso fluxo, informam e controlam os gestos esperados para o comportamento nos shoppings, que é curiosamente homogê-


neo, se comparado ao comércio de rua ou aos mercados abertos”. “Tudo funciona como se, na tranquilidade atualmente arborizada dos shoppings, vivêssemos as condições perfeitas para a ‘exteriorização’ do desejo”, diz Dunker. “O sujeito que anda pelo shopping sente-se um seduzido. Esse conjunto de dispositivos de sedução aliena o desejo no duplo sentido de que faz com que o consumo seja sentido como um ato de suprema liberdade – exteriorização – e ao mesmo tempo de diferenciação frente aos outros – estranhamento.” “Há, no entanto, uma espécie de patologia da lei que nos obriga a seguir nossos impulsos de prazer e de satisfação até que estes se invertem em desprazer e insatisfação. O verdadeiro consumidor ideal é um decepcionado contumaz”, continua Dunker, retomando a noção lacaniana de gozo como clave para entender o consumo. E reitera: “Gozo e segregação andam juntos”. De um lado, o shopping nos concede uma “certidão de acesso e antídoto contra a vergonha das origens” – ou um espelho onde desbravamos nossos “iguais”, diz Dunker. Ou, ainda, como prega o filósofo Slavoj Žižek, canaliza o momento de um capitalismo imaterial “no qual o self branding (automarca) torna-se mais importante que o produto em si, e as experiências têm mais-valia”. De outro lado, encena um “sistema das invejas e definição correlativa de nosso coeficiente de felicidade pelo potencial de exclusão que nossa forma de vida representa em relação às demais”. O que faria tão afetuoso, afinal, um shopping como o JK Iguatemi, não há nem um ano o mais novo shopping-luxo de São Paulo? Na página institucional-publicitária do empreendimento, o escritor Inácio Loyola de Brandão o descreve, amoroso, como um recanto de experiências únicas e, “sendo únicas, são emoção, consequentemente, devoção. Um sentimento espontâneo, que nasce na maneira de se ver envolvido, sentir-se correspondido”. Galpão branco de porcelanato de genealogia tradicional, como 87% dos shoppings do país, ali me aproximo de uma paisagem mais nostálgica de shopping de estimação, a infância ressuscitando nos cercadinhos em que crianças são depositadas durante as compras. Despisto logo as Guccis da vida, para não ser tragado por abismos, e,

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antes de ficar tonto, resolvo comer um sanduíche no vida real Burger King. Há uma imensa fila que dura 30 minutos para se dissipar, a única em toda a praça de alimentação. Divido a espera com funcionários, lojistas e crianças. Algumas mulheres enviesam olhares para a aglomeração dos que se matam por um whopper mais barato que seus tipos gourmand. O meu é muito bem-vindo pela minha anemia, mas alguém me observa estranho e a paranoia danada tasca uma tira de catchup na minha camisa. Sofro bullying do mistério. Algo transgressor. Penso que há, sim, uma transgressão pueril num clássico quadrinho do Chico Bento, bem datado dos anos 1990, no qual o protagonista é levado para o shopping pelo primo da cidade. Toma banho na fonte central, troca as escadas rolantes e pergunta ao parente, aborrecido e ácido, por que é que inventaram de botar um teto ali, se está um solzão lá fora. Chico é quase expulso pelos seguranças. E o quanto não subverteu, como uma massa hacker, certo sistema de visibilidades, a multidão que se atropelou na inauguração do RioMar Shopping, megaempreendimento recifense aberto no ano passado? Queriam, claro, chegar primeiro ao local e participar de grandes saldões das novas lojas de departamento, enfim agentes efetivos da

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história que o Jornal Nacional nos disse serem novos tempos de prosperidade: no registro da cena, publicado no YouTube, foram chamados de “pobres”, “mal-educados”, “nordestinos”, “nova classe média”. Bem ou mal, uma perscrutação coletiva da cidadania se ensaia nos shoppings, sugere Dunker: “A cidadania passa pelo acesso ao cuidado de si em uma relação muito mais complexa do que parece. É na relação a si que se pode medir o embrião da relação a outrem e, principalmente, é na relação de poder a si que se experimenta uma forma de poder que possui valor constitutivo para a esfera púbica na qual se exerce a cidadania. Um poder que não é dominação, mas que depende de modos de relação com a ‘coisa pública’ com substâncias simbólicas como justiça, equidade (e diferença) e liberdade”. Enquanto a cidadania tiver o shopping como horizonte de conquistas, no entanto, “nosso horizonte será o condomínio, não a coisa pública”, conclui. “E o shopping é um espaço de ‘falso público’, pois tudo funciona como ‘deveria funcionar’ sem que a lei apresente seus excessos e sua força, sem que a insegurança revele sua face opressiva, sem que os regulamentos sejam sentidos como formas exteriores ao sujeito.”


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Não escapo do dilema e, na praça de alimentação, sou assombrado, enfim, pela vertigem. Um mal-estar bressoniano põe o pé para fora do filme mais nauseado pelos trejeitos da modernidade, O diabo, provavelmente, e então pergunta (e responde errático), como se fôssemos modernos arrependidos, desiludidos ou tontos: “Quem nos arrasta pelo nariz?” Para mim, sobrou apenas uma imagem, finalmente encaro com algum foco seguro, sinto o cheiro: a camisa que visto, ensanguentada de catchup, é a bandeira de um whopper vitorioso. Não sei assobiar, mas sussurro Moon river, enquanto vou embora, direto na chuva paulistana, fugitivo.. .

LUÍS FERNANDO MOURA é jornalista.

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ENTREVISTA: MARC AUGÉ

“Todos nós temos nossos lugares” Texto MARIANA LACERDA Fotos CHICO LUDERMIR

“Eu vivo em Istambul há 60 anos e não consigo imaginar um só habitante desta cidade que não tenha pelo menos uma lembrança relacionada à Praça Taksim.” Em texto publicado na New Yorker, no dia 5 de junho, Orhan Pamuk conta sobre de que forma o lugar se relaciona com a história pessoal e coletiva de cada morador da capital turca, motivo pelo qual uma “brava gente” esteve nas ruas “ lutando contra a polícia e sendo sufocada com gás lacrimogêneo” para impedir a construção de um shopping na única reserva de área verde que resta no centro da metrópole. No Recife, pessoas reunidas no grupo Direitos Urbanos discutem, na internet e em eventos programados em locais públicos, a destruição da paisagem que compõe o Cais José Estelita. São jornalistas, artistas, filósofos, cientistas sociais, economistas, arquitetos, pais e mães de família, jovens e nem tão jovens que questionam o projeto chamado de Novo Recife, que prevê a destruição de galpões da rede ferroviária Refesa, construídos na década de 1970 para a construção de três torres de até 40 pavimentos para abrigar centros comerciais, flats, hotéis e residências. Em comum, os dois grupos, no Recife e em Istambul, articulam movimentos pelo direito à cidade, cidades possíveis, renovadas, sim, mas reerguidas a partir de um debate público que não apague o passado contido nela e não seja socialmente excludente. Fazem isso ao interpelar o poder público sobre um modelo de desenvolvimento que parece apenas abrir espaços para investimentos imobiliários, com conexões com o mercado de consumo e pouquíssima generosidade urbana com quem vive nessas cidades. E só. Destrói-se uma paisagem, faz-se sumir do mapa um lugar. Nele, vão-se lembranças, narrativas de vida passadas que ajudam a entender o presente e a

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projetar o futuro. No caso de Istambul e do Recife, a destruição de seus espaços simbólicos, se de fato acontecerem, dar-se-á para a construção daquilo que o filósofo francês Marc Augé definiu como sendo “não lugares”. Em “não lugares”, nossa vida passa a ser outra. Os usuários dos “não lugares” não são identificados por seus nomes mas, antes, por números: da carteira de identidade, do passaporte, do cartão de crédito, do chave magnética de acesso a um quarto de hotel. Sozinho e semelhante a todos que ocupam o espaço do “não lugar”, nossa existência ali, não raro, nos é lembrada apenas por códigos. “O espaço do não lugar não cria identidade singular nem relação, mas, sim, solidão e similitude. Ele também não concede espaço à história”, escreveu o antropólogo Marc Augé, em seu livro Não Lugares – introdução a uma antropologia da supermodernidade (Editora Papirus, 2010). Coordenador de pesquisas na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS, em Paris), que ele presidiu entre 1985 e 1995, Augé propõe uma observação etnológica não mais voltada às pequenas organizações sociais, como fez no começo de sua carreira em comunidades africanas. Desde 1980, ele dedica-se à observação atenta voltada ao mundo cada vez mais veloz, menos identitário, pouco convidativo aos encontros. Assim, nasceram ensaios simpáticos sobre, por exemplo, o Parque Luxembourg (La traversée du Luxembourg, 1985), o metrô de Paris (Un ethnologue dans le métro, 1986), e ainda um relato em defesa do uso da bicicleta (Éloge de la bicyclette, 2008), pontuando autonomia e intimidade que ela nos traz em relação ao território. “Por trás da ideia da bicicleta existe a ideia (...) de uma cidade possível”, escreveu ele. É dessa forma que Augé vem explorando a vida cotidiana que se desenha no mundo contemporâneo, pontuada por um excesso de imagens, velocidade das informações e dos descolamentos, das vastas conexões com circuitos financeiros globais – o que ele explica como sendo alguns dos efeitos da então “supermodernidade”.

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Os seus trabalhos, contudo, embora nos apontem em uma direção global, referenciam-se no gesto de olhar para outro, o próximo, o indivíduo, como conta na entrevista abaixo, concedida por e-mail.

Isso é o que eu chamei de lugar antropológico. Naquela época, eu estava viajando muito e frequentava bastante os aeroportos que, de alguma forma, eram o oposto do lugar antropológico em que eu tanto vivia.

Como definir a ideia de supermodernidade, palavra presente no título de seu livro? E qual a sua relação com o conceito de não lugar?

É possível pensar que o desenvolvimento econômico e o que você chama de supermodernidade, que incluem ideias de globalização do espaço e valorização da individualidade, necessariamente se vinculam com a extensão de espaços denominados não lugares? Poderíamos fazer diferente?

A supermodernidade (e falo “super” no sentido da palavra over) é marcada pela aparição de grandes espaços de circulação, consumo e comunicação. Esses espaços têm o sentido de não lugares. É sempre possível pensar na vida social de um espaço urbano e resistir E qual seria a definição de um não ao alargamento da matriz da cor glolugar e sua relação com um “lugar”? bal que passa pela uniformização das Um lugar é um espaço sobre o qual concepções da arquitetura. Afinal, conseguimos ler e sentir as relações manter e preservar o cenário local é sociais que ali acontecem, a história também uma das características da coletiva e seus símbolos partilhados. cultura global, que é uma cultura de Um não lugar é um espaço sobre o consumo. qual essa leitura não é possível, um espaço em que passamos sem criar As relações humanas podem ser relações. Empiricamente, não exis- definidas em função do espaço? te, evidentemente, nenhum lugar Não, mas elas podem ser decifradas e ou não lugar que obedeça ao senso melhor entendidas a partir da sua relaabsoluto do termo. ção com o espaço no qual se inserem. Por muito tempo eu trabalhei em aldeias africanas, onde havia regras O senhor acha que, se passarmos a estritas de residência e, em geral, uma conviver cada vez mais em espaços simbolização de todo o espaço social. que se tornaram “não lugares”,

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podemos pôr em risco, então, nossas formas atuais de convivência interpessoais nas cidades ?

Mudar de lugar significa mudar de relações. Ou perdê-las. Mas perdê-las não é uma fatalidade. Nesse sentido, aqueles que migram são os heróis do mundo contemporâneo, posto que eles não se fixam em pequenos grupos. No Brasil, se alguém deixa sua cidade natal por algum período, percebe, em seu retorno, o desaparecimento de casas, de quintais que, não raro, estão cedendo lugar a shoppings e prédios de arquitetura questionável. O sentimento é de perda de referência.

Sim, claro. As lembranças pessoais, de cada um de nós, estão referenciadas no espaço. Todos nós temos nossas paisagens da infância no coração. Os lugares que levamos em nós mesmos são nossas ilusões de eternidade. As mudanças bruscas nessas paisagens, nesses lugares, nos arranca a nossa identidade pessoal. No livro A poética do espaço, Gastón Bachelard escreve sobre a dialética entre interior/exterior/casa/gaveta/armário. Isso leva a pensar que, quando nós saímos de casa, nós entramos na cidade – e não, necessariamente, saímos de casa. A cidade é nossa, é uma extensão da casa. Quando pensamos em cidades que se tornaram não lugares, como imaginar essa relação?

Os não lugares existem numa outra escala, numa escala planetária. Há algumas pessoas para quem todo o planeta começa a ser percebido com um único lugar. Outros estão praticamente em prisão domiciliar. Esse é um aspecto da divisão de classes da sociedade global que é profundamente desigual.

MARIANA LACERDA é jornalista. Agradecimentos: Claudio Marinho e Karina Legrand.

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A LITERATURA É UM JOGO

Texto KELVIN FALCÃO KLEIN

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Em 1963, Julio Cortázar lança Rayuela, seu Jogo da amarelinha transfigurado em ficção. A coreografia dos corpos quando saltam de uma casa à outra, o gesto da mão que risca o chão com giz, o lançamento da pedra e a chegada ao céu – com seu imediato retorno à Terra (ou ao inferno?). Como num tabuleiro de xadrez, a leitura da amarelinha de Cortázar é imprevisível: capítulos aparentemente independentes são entrelaçados em uma ordem dada pelo autor na introdução, com a ressalva de que qualquer um pode reordenar a sequência como parecer melhor (com mais sentido ou com menos sentido?). 1a) O Jogo de Cortázar tem uma história, sem dúvida – a história do argentino Oliveira, apaixonado pela Maga, perdido em Paris. Mas esse é só o lançamento da pedra, porque assim como o personagem está perdido no labirinto de Paris, também o leitor de Rayuela está perdido no labirinto de sua montagem errática. Ao jogar a amarelinha de Cortázar, o leitor incorpora a movimentação de seus modelos: a flanagem sem rumo de Charles Baudelaire, Walter Benjamin, André Breton e Louis Aragon pela mesma cidade. O livro só se torna jogo com as presenças desses fantasmas – e com a consciência de que o livro é também um mapa da terra deles, os fantasmas. Exatamente como Borges escreveu de Joyce: “Posso dizer que conheço o Ulisses como conheço uma cidade, sem a necessidade de percorrer todas suas ruas, becos e vielas”. 2) Volte 30 anos: início da década de 1930, Walter Benjamin, empenhado na construção de seu projeto mais ambicioso, o Livro das Passagens. Um livro gigantesco, feito só de citações e de citações de citações, traduzidas de um idioma para outro e depois a um terceiro, um organismo parasitário monstruoso.

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Agora é a biblioteca que se mostra como uma cidade obscura, e o jogo consiste em saquear o que já está pronto, remover várias partes do caos do arquivo e montá-las seguindo um desejo pessoal. Benjamin recusa a produtividade do mundo burguês em favor de uma ociosidade regida pelo acaso objetivo – e seu projeto é a documentação desse percurso, com sua justaposição e sua desordem. Ele faz com as citações e com os livros o que já fazia com os objetos heterogêneos da cidade moderna (fotos, cartões-postais, velhos brinquedos, recortes de jornal, bilhetes de teatro, rótulos, autômatos, caixinhas de música). 2a) Quem mais faz esse jogo da coleta, da coleção e da classificação? O Oliveira de Cortázar, sem dúvida. É o jogo daqueles que estão sempre em movimento, às vezes em fuga, às vezes em inquietação, aqueles que narram suas vidas a partir dos objetos e das paisagens que capturam. Aconteceu com o próprio Cortázar, nascido na Bélgica, criado no interior da Argentina e autoexilado em Paris. Aconteceu com Vladimir Nabokov, em fuga da Rússia, passando por Londres, Paris, Berlim, até chegar a Nova York. Aconteceu com Samuel Beckett, o irlandês que lutou na Resistência em Paris e fugiu da Gestapo pelo sul da França. Jogo dos corpos no espaço e jogo da ficção

em torno das línguas, das traduções e das interdições. 3) Avance 40 anos: outubro de 1974, Georges Perec está sentado em um café na Place Saint-Sulpice, em Paris, observando as pessoas. Dessa experiência, nasce o romance Tentativa de esgotar um local parisiense – a totalidade do cotidiano durante dois dias, trajetos, rostos, conversas, tudo articulado pelo jogo do acaso. Em 1969, o mesmo Perec havia lançado La disparition, livro escrito sem utilizar uma única vez a letra “e”. Em 1978, sai A vida: modo de usar: romances, o grande volume que condensa a atividade de Perec em torno de uma ficção alimentada dos problemas que cria para si. Trocadilhos, referências veladas, citações sem fonte, atribuições errôneas, lapsos, repetições: a matéria do romance desnaturaliza, exacerba e potencializa tudo aquilo que faz a linguagem funcionar, mas que, de tão automático, passa desapercebido. 4) Na ficção, assim como na linguagem cotidiana: o jogo está em olhar por debaixo das saias do pensamento, observar seus bastidores, seus mecanismos, seus segredos. Um jogo de espelhos – aquele que usa a linguagem é usado por ela e ambos voltam ao início, infinitamente. Nos primeiros anos da década de 1960, Claude Lévi-Strauss e Roman Jakobson desmontaram um

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poema de Charles Baudelaire, Os gatos. Segmentaram suas partes, suas frases e seus vocábulos, conferindo funções específicas para cada pedaço, mostrando a complexa interdependência entre os elementos sintáticos – a montagem – e os elementos semânticos – os sentidos. Nascia a análise estrutural da literatura, o início de sua dessacralização: a ficção já não era mais o reduto inefável da Alta Cultura, e, sim, um corpo inerte, aberto à investigação dos cientistas, como naquela célebre pintura de Rembrandt, A lição de anatomia do Dr. Tulp (1632). 5) Num estúdio precário em Paris, no início da década de 1950, o compositor Stockhausen estava mexendo em mesas de som rudimentares, decompondo, cortando e colando sons, montando ruídos eletrônicos com barulhos das ruas. Outro compositor, Iannis Xenakis, na mesma cidade e na mesma época, usava modelos extraídos das ciências exatas para estruturar espacialmente os sons. Linhas em onda, distribuídas em papel milimetrado, eram convertidas em partituras desconcertantes, como Metastasis (1953-55). Pierre Boulez e Olivier Messiaen exploravam o Serialismo – experimentações com técnicas matemáticas de composição usando formatos abstratos (grades de tempos, níveis e diapasão). Para eles, a música não é uma continuidade melódica feita para esvaziar as mentes e elevar os espíritos; é um tabuleiro, um laboratório, um experimento. 5a, 3a, 1b) Cortázar jogou com a mescla de música e literatura, jogou com o improviso do jazz como procedimento de despiste literário: 62 modelo para armar, romance de 1968, é uma continuidade possível para o capítulo 62 do Jogo da amarelinha – e a mistura se repete em contos como O perseguidor, do livro As armas secretas (de 1959), ou Manuscrito achado num bolso, de Octaedro (1974). De alguma forma complexa, a geografia atravessa a arte, o mapa da cidade invade a composição de sons e de textos, e se dá o jogo da criação: artistas que não se conhecem chegam a soluções semelhantes para problemas que ainda não existiam.

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4a, 2b) Montagem e desmontagem, abrir aquilo que está dado como canônico e intocável, refazê-lo, colocá-lo à prova. Em 1970, Roland Barthes publica S/Z, uma leitura minuciosa de um conto de Balzac, Sarrasine. O que permanece produtivo na intervenção de Barthes não são as categorias de análise criadas por ele, a nomenclatura que lhe permite fazer o contraste entre os níveis da narrativa, os códigos que organizam a desmontagem. O que permanece produtivo é o gesto inicial, a profanação do texto de Balzac, sua abertura para a intervenção crítica. A tradição está dada para ser usada, e não para ser entronizada, colocada em um pedestal. Assim como Barthes, Javier Marías também fez um uso oblíquo de Balzac em seu último romance, Os enamoramentos, de 2011. O texto é O coronel Chabert, que Marías cita extensivamente, comenta, glosa, deforma e adapta ao espaço de sua narrativa. Se Barthes visava a totalidade do conto Sarrasine, abarcando em sua análise todos os elementos da história, Marías, por sua vez, desmonta Balzac e resgata apenas aquilo que lhe serve. As peças extraídas de Balzac são enxertadas por Marías no tecido contemporâneo de seu romance. 6) Num de seus cadernos de notas, Tchekhov registra uma cena: “Um homem em Montecarlo vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, suicida-se”. Literatura e jogo, literatura e o jogo de desviar do previsível, de apresentar o paradoxo no limiar do senso comum. No diário dos moedeiros falsos (1927), André Gide comenta a progressiva deformação do caráter de um dos personagens: “Embotamento progressivo de sua personalidade – e de seu irmão Vincent também (acentuar a derrota de sua virtude, no momento em que começou a ganhar no jogo)”. Dostoiévski, cheio de dívidas, escreveu O jogador entre 4 e 29 de outubro de 1866. Se não entregasse um romance com determinado número de folhas, o editor teria o direito, por nove anos, de publicar o que ele produzisse, sem qualquer remuneração. Trinta anos depois, em 1897, Mallarmé escreverá: “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”. 6a, 4b) Em O mestre de Petersburgo (1994), J.M. Coetzee encontra Dostoiévski em 1869, três anos depois da produção de O

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jogador. Mistura de fato e invenção, o romance segue Dostoiévski em sua busca por informações sobre a morte misteriosa de seu enteado, Pável. Como fizeram Marías e Barthes com Balzac, Coetzee desmonta Dostoiévski – vida e obra – e reposiciona as peças segundo sua leitura anacrônica da história da literatura. Esse jogo de reescritura da tradição literária é constante na poética de Coetzee: está não só em O mestre de Petersburgo, mas também em Foe (1986), que saqueia a figura de Daniel Defoe e o contexto de criação de Robinson Crusoé, e Juventude (2002), que revisa as premissas do gênero do romance de formação. 6b) Mas o jogo formal mais interessante de Coetzee está em Diário de um ano ruim (2007), no qual ele mescla ensaio e ficção em uma narrativa dividida em três blocos, que se deslocam independente e paralelamente no tempo e no espaço. No primeiro bloco, densos comentários teóricos e reflexivos. No segundo, uma voz em primeira pessoa, responsável pela escrita dos comentários, relata sua rotina de envelhecimento e de crescente paixão por uma mulher mais jovem que o ajuda, Anya. O terceiro bloco é narrado por essa mulher, que ora admira, ora ridiculariza o escritor. O jogo desse Diário é também um jogo de espelhos, de pistas falsas, de extravios: um diário impuro, feito de várias vozes, de visões heterogêneas e conflitantes, uma dissonância que Coetzee consegue plasmar tanto na forma quanto no conteúdo. 6c, 2c) Volte 10 anos: é com David Markson que esse corte em blocos de Coetzee encontrará a poética da citação de Walter Benjamin, gerando o inclassificável Reader’s Block (1996). Não há trama, não há ação, personagens ou narrador que, aos poucos, se dá a conhecer – só o encadeamento progressivo de sentenças informativas. “John Stuart Mill leu a tradução de Alexander Pope da Ilíada 30 vezes”; “Gilles Deleuze cometeu suicídio”; “Por natureza, todos os homens desejam saber”; “Bachelard. Baudrillard. Blanchot. Barthes. Bataille”; “Lautréamont nasceu em Montevidéu”. É no encadeamento das repetições que o romance vai se formando, na dinâmica das sombras que cada fragmento lança em direção ao anterior e ao seguinte. Uma subjetividade muito

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rarefeita vai se anunciando por trás das citações, dos nomes alheios e das menções aparentemente neutras. Seguindo o andamento das páginas e o desenrolar dos blocos de sentido, aquilo que parecia aleatório ganha definição – as regras do jogo vão surgindo. 7) A arte nasceu do jogo de sombras: auxiliada pela luz de uma lanterna, uma mulher risca o contorno feito pelo corpo de seu amado na parede, antes que ele parta para a guerra. Do mesmo jogo, nasceu a filosofia: os habitantes da caverna de Platão só conseguem enxergar as sombras do mundo exterior, e acreditam que aquelas imagens são a vida. Fora dali, um menino brinca com um pedaço comprido de madeira – pode ser um cavalinho de pau, uma espada, uma lança, um cetro. Nas três cenas, as obsessões da literatura: refutação do tempo e da morte, representação, verdade, completude, vazio. Quando se anuncia o jogo, a realidade se transforma em ritual, as formas de convivência se transformam em estratégia e a arte acontece, em seu puro movimento.

KELVIN FALCÃO KLEIN é crítico literário e autor de Conversas apócrifas com Enrique Vila-Matas (Editora Modelo de Nuvem).

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TUDO SOLTO NA PLATAFORMA DO AR

OS 40 ANOS DO ÁLBUM DE GAL COSTA QUE FORMALIZOU O DESEJO DA MPB DE NADAR CONTRA A CORRENTE, NUM PAÍS DIVIDIDO ENTRE A REPRESSÃO E CONTRACULTURA Texto BIA ABRAMO

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Não, Índia não é o MEU disco da Gal. Como poderia, se ele é imediatamente posterior ao (quase) definitivo Fa-Tal – Gal a Todo Vapor? Definitivo, digamos, para mim. Fa-Tal foi uma das minhas primeiras expariências, digamos, completas com música. Vi o show, ouvi o disco, aprendi letras e melodias de cor e salteado. Tinha ido ao show, na temporada do TUCA em São Paulo em 1972. Era ridiculamente jovem; não tinha 9 anos completos. Naquela época, as temporadas de shows eram longas, duravam algumas semanas, e os ingressos eram relativamente baratos. Quem ia ao show e gostava, voltava. Alguém dos meus irmãos mais velhos resolveu me levar em sua segunda ou terceira vez e eu fui. Acho que sentamos bem perto do palco; não sei. Quando o show estava nas últimas músicas, virava Carnaval: a platéia invadia o palco para dançar Chuva, suor e cerveja e Luz do sol, junto com Gal e banda. Depois, o disco apareceu em casa. E não saía da vitrola, a ponto de, um dia, minha mãe, chegando do trabalho, reclamar que não aguentava mais os gritos da Gal. Eu gostava de todas as faixas mais roqueiras, Vapor barato, Dê um rolê e Quero ver de novo a luz do sol e ficava, muito, muito, tocada com a brutalidade e a tristeza de Assum preto. No ano seguinte, veio Índia e minha primeira impressão foi: que disco estranho. Todo mais lento e com menos “música” do que Fa-tal. Canções mais enigmáticas, letras mais obscuras. Começava com uma canção, que parecia, aos meus ouvidos de então, “velha” – me fazia pular a faixa, como em Tropicália eu dispensava a versão-deboche˙de Coração Materno, de Vicente Celestino. Terminava com Desafinado, que para mim, parecia, à época, uma canção muito, mas MUITO, chata (na minha formação familiar-musical, eu tinha saltado dos sambas dos anos 30/40 de que meus pais gostavam direto para a Tropicália aprendida com os irmãos; só fui ouvir bossa nova muito mais tarde. E conseguir gostar, mais tarde ainda).

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Mas, naquela época, insistia-se num disco. Insistia-se coletivamente, debatendo (irmãos, primos mais velhos, primos da mesma idade) sobre tudo: a capa, o encarte, as letras, o jeito de cantar. E, então, eu fui sendo capturada. Milho verde e Presente cotidiano, primeiro. Depois Relance. Eram as letras, no começo; uma criança tentando ler o mundo atenta primeiro às palavras (ou era eu criança, sei lá). Mas é música, a melodia vai entrando e as batidas vão se inscrevendo na pele – and the beat goes on. Milho verde, com a narrativa repetitiva do folclore e imagens campônias, e a voz rasgando a batucada minimalista. Depois, Gal dando corpo, mais uma vez, a Luiz Melodia, recém-descoberto, numa espécie de manifesto freak existencialista: “Tá tudo solto na plataforma do ar”. Do outro lado (lembrando, era um LP), era o jogo de palavras de Relance, uma quase brincadeira concreto-tropicalista, de canto-resposta de verbos que vão construindo as asperezas de uma relação, com a sanfona de Dominguinhos a comentar as idas e vindas. Deste lado, ainda tinha Pontos de luz, com o sarcasmo de Jards Macalé levado a sério por uma Gal quase desesperada. Foram essas a minhas prediletas, nos primeiros tempos. Às vezes, deixava Passarinho, por sua beleza nostálgica e, talvez, a mestria dos agudos da Gal. Ainda pulava as mais vagarosas, como a lindíssima Volta, de Lupcínio Rodrigues, e Da maior importância, talvez a letra mais inextrícável para mim nessas primeiras audições – a história de amor confusa que contava era, ainda, incompreensível. Demorei, claro, a entender melhor Índia, pois me faltavam duas experiências essenciais para entrar no “pique” do disco: sexo e drogas. “Pique” é uma das palavras-destaque selecionadas por Wally Salomão, então Sailormoon, que fazia parte da arte interna do álbum -- as outras duas eram “sangue tupy”, em cada lado do álbum aberto, aplicadas sobre uma foto meio desfocada da Gal. E, de certa forma, era do pique hedonista, sexualizado & narcotizado da contracultura que tratava o disco.

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À brasileira, no entanto, daí a presença tropicalista de Gilberto Gil, na direção musical, e dos arranjos do maestro Rogério Duprat, para “recriar” Índia. Não à toa, se o disco começa com uma guarânia nostálgica, encerra com a canção-manifesto da bossa nova – gaiatamente acompanhada pelo acordeom de Dominguinhos, num arranjo irônico e ultratropicalista. Índia, no entanto, é o começo do fim da Gal desbundada, experimental, que se revela nos últimos momentos da Gal tropicalista – notadamente, a partir de Divino maravilhoso – em direção à Gal tropical da sua maturidade como cantora. Ainda haveria Cantar no ano seguinte, para fechar a trilogia do “barato” (Vapor Barato, de Fa-Tal, Barato Modesto, lançada em compacto, e Barato Total, de Cantar). Sai algo da estridência tropicalista, portanto, e entra uma certa malemolência intimista. A direção musical de Gilberto Gil, nada menos que brilhante, pontua e comenta as variações da voz de Gal, que oscila de um recém descoberto lirismo delicado à intensidade em momentos precisos. Quarenta anos depois de seu lançamento – e, sim, das primeira vezes que ouvi –, Índia continua me parecendo um disco “estranho”, mas não pelas mesmas razões de então. Ou melhor, talvez o longo, sinuoso e, muitas vezes, chatíssimo processo de ficar adulta consista, justamente, em abandonar a ingenuidade e acolher a estranheza.

BIA ABRAMO é jornalista.

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MEU CORAÇÃO PARA LEMEBEL Pedro Lemebel é um dos grandes autores latino-americanos. E, misteriosamente, ainda não traduzido no Brasil. Foi Roberto Bolaño, seu conterrâneo, quem já disse da influência que recebeu de Lemebel e da grandeza do que ele escreve. Lemebel é apocalipticamente demolidor. Sua prosa não tem papas nem pompas na língua. Sempre polêmico, tem equivalência, no Brasil, a ícones como Roberto Piva, João Silvério Trevisan e Glauco Mattoso. Sem contar sua militância homossexual e suas crônicas, homoeróticas, que rodam pelo mundo, celebrando a diversidade e a liberdade. Lemebel também é performático e apresenta shows interpretando suas palavras. Lá, onde sempre vou buscar inspiração. Sonho em trazê-lo para a Balada Literária. No ano passado, por motivo de doença, ele não pôde vir. Estamos agendando para este ano, quem sabe ? O furação Lemebel sacudirá o Brasil. Que bom que esse abalo sísmico comece aí pelo Recife. Vibro com isso. MARCELINO FREIRE

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Morrer de amor no Amazonas Texto PEDRO LEMEBEL | Tradução ALEJANDRA ROJAS COVALSKI

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Pouco antes de afundar no oceano esmeralda da selva, o avião sofreu uma paraplégica sacudida que congelou o sangue. É apenas um tremor de alerta que avisa a chegada na mítica Iquitos, o arraial seringueiro, a rainha dos rios, onde se retorcem os lagartos prateados no barro. A babilônia vegetal derramada ali, na comarca de Loreto, no meio do Mato Grosso, com seu precário perfil de edificações pintadas e casebres com chapéu de palha. Ao anoitecer, o calor pegajoso é intenso, enquanto a maré sombria da plantação emite um incerto zumbido de coral sussurrante. Confunde-se com o barulho dos mototáxis que, como enxames, a toda velocidade voam pelas ruas esburacadas. Há pessoas em todas as esquinas, há vida em todos os quarteirões, nas mesinhas que oferecem donzelas ou torresmo de lagarto. O mototáxi quase se desmancha em cada curva, em cada corrida, as mil motos e seus carrinhos acoplados de tetos amarelos, laranjas, azuis, de luzes acesas, invadindo as ruas como vaga-lumes zumbindo, motos guiadas pelos garotos iquitenhos de olhar direto e pernas musculosas torneadas pelo exercício do pedal. Como é seu nome? Pergunto ao meu motorista que transpira um aroma vegetal. Mario Davi, responde olhando para trás no momento em que outro carro quase nos atinge. Cuidado! grito, e ele ri com seus dentes reluzentes. Está tudo bem, não se preocupe, aqui é assim. Fugazes passam os olhos das crianças amazônicas que pedem um sol. Apenas um sol para entregar sua carne morna à pedofilia turista. Apenas um sol para deixarem manusear suas pequenas coxas raquíticas enquanto oferecem lembrancinhas com as pupilas úmidas. Mario Davi pede que não lhes preste atenção porque andarão atrás de nós a noite toda. Ele sabe o que essas crianças oferecem e se faz de desentendido, quando lhe pergunto sobre os rabiscos que anunciam na parede: Não ao abuso de crianças. Mario Davi não quer falar disso e me conta que a moto é sua e que cuida dela como se fosse uma noiva. O mototáxi me deixa no hotel, e enquanto ele desce com a minha mochila me pergunta o que farei mais tarde. Comer em algum lugar, você quer me acompanhar? Insinuo. Vamos ao Fitzcarraldo, no cais, para que conheça, exclama alegre, pensando que já ganhou a noite.

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Mario Davi confessa ter 23 anos. Mas, sob o boné, parece ter mais, seu olhar de pantera fala de sua infância, mussita um idioma de sinais e piscadelas sexuadas através das quais a candura terceiro-mundista joga seus tristes tentáculos. Quando saio do hotel, está me esperando, pisa no acelerador e saímos na selva da noite pela ribeira da avenida por onde desfilam as meninas de minissaia e saltos muito altos para seus franzinos corpinhos morenos. Por um sol entregam a estrela negra e reluzente que guardam entre as pernas. Por um sol, os gringos gordurentos as lambuzam com sua baba sob as luzes da praça. Mario Davi finge que não vê. Sente vergonha do comércio de sua gente. Chegamos, diz, e estaciona oferecendo-me sua mão para descer. O Fitzcarraldo é simples, do lado de fora a garoa da chuva que se aproxima molha as mesas, um relâmpago ilumina e recorta a selva sob o céu carregado. Parece que vem uma tormenta, diz Mario Davi, empurrando a mesa para debaixo de um telhadinho. Degustamos o dourado do rio com palmitos frescos. O temporal esvazia o terraço que beira o barulhento rosnar da floresta. Parece um filme dos anos 50. Mario Davi come calado, afundando seus olhos de longos cílios no prato. Olho para ele, levanta o olhar e rimos com pudor de adolescentes. Como é o Chile? Pergun-

ta repentinamente. Longo e estreito como uma serpente cordilheirana. E você não quer conhecer os animais daqui? Para isso temos que sair pelo rio Nanay navegando até o lugar em que o Napo se junta com o Amazonas, leva uma hora rio acima. É preciso embarcar antes do amanhecer por causa do calor, falava desanimado, como se de tanto repetir a mesma coisa, o cartaz turístico tivesse desbotado. O sol ainda não aparecia, mas o zunir do bosque úmido pressagiava o alvorecer. Uma claridade brumosa incendiava o horizonte quando Mario Davi, de cabelo molhado e vestindo uma camisa florida bem passada, me deu bom-dia com seu mototáxi ligado. Dormiu bem? Muito calor? Demais, é preciso dormir sozinho, falei bocejando. Olhou para trás e com um sorriso afiado comentou: só porque você quer assim. Falta muito ainda para o sol sair? Aqui em Iquitos se trabalha cedo, comentei olhando para os barqueiros que sacudiam as redes, os barcos fumegantes carregando toneladas de bananas. Vendedores de tudo quanto há ofereciam cigarros, chicletes e artesanato para os poucos carros que paravam nas esquinas. Depois de uns quarteirões, chegamos até o embarcadouro de onde saíam as excursões. Conheço alguém que cobra barato, espere-me aqui, não

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saia, disse Mario Davi e se perdeu entre os guias que ofereciam tours pela selva. De dentro do carro vi que cumprimentava um homem e me fez um sinal para que me aproximasse. Descemos até o rio no meio de centenas de pescadores que iam trabalhar. Na lancha com telhado de lona relaxei quando o motor deixou um rastro de espuma branca nas águas turvas do Nanay. Mario Davi sentou do meu lado e me entregou um colete salva-vidas fluorescente. Sabe nadar? Como uma sereia, não preciso dele. É por causa da fiscalização, gritou o barqueiro. Nunca se sabe, mas já naufragaram barcos grandes carregados de passageiros que vão para Manaus. Do lado, deslizava uma grande barcaça cheia de homens, mulheres e crianças que abanavam com suas mãozinhas cumprimentando. Viajam vários dias e dormem nas redes. E os mosquitos? Isso é preocupação apenas dos turistas porque, para nós, o repelente é muito caro. A gente passa álcool com erva amarga, eles nem chegam perto. O barulho do motor alvoroçou a folhagem e uma garça rosa apareceu sobrevoando nossas cabeças. O Nanay se alargava na medida que em que sua lenta correnteza mudava de cor. A mão nodulosa de Mario Davi apontou uma linha verde na planície fluvial. Lá fica o Amazonas, disse. Percebe que é maior? Tudo era imenso, as águas cor de canela, o mato entrelaçado pelos cipós carnosos, o celofane das folhagens em diferentes tons de verde que deixavam transparecer a brasa solar que ascendia. No meio da grenha murcha das folhagens balançadas pelas águas do Napo, às vezes num rotundo tom de preto, de repente crivado por um raio turquesa, pulava um dourado chapinhando na água. Olhe, essas são as palmeiras andantes. Caminham? Quando não recebem luz espicham as raízes e se seguram em outro lugar, um dia estão aqui, outro lá. Não servem como referência. Uma nuvem de borboletas amarelas se enfiou na lancha e o Mario Davi as afastou abanando. Ficou uma em seu cabelo, peguei-a com delicadeza e a deixei voar em direção ao bafo do matagal. Obrigado, disse tímido. Olhe, já estamos no Amazonas, estamos chegando. Dez minutos depois, a canoa atracou num pequeno trapiche de troncos e descemos para uma ilha onde nos recebeu o caseiro. Próximo a ele, um cartaz anunciava: 10

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soles a visita. Sempre sorridente e com seus dois caninos, nos acompanhou por uma senda densa até as jaulas feitas de bambu que, mais que jaulas, era um grande cercado, fechado com arame de galinheiro. Esta é a Fujimori, a maior ratazana do mundo, e era verdade, num canto um enorme roedor de olhos puxados penteava seus bigodes. Ao tocá-la, seu pelo assemelhava-se a uma lixa. Em um tanque ficava Montecinos, uma tartaruga pré-histórica e carnívora que parecia um grande rochedo preto. Um macaquinho nos acompanhava gritando. Repentinamente pulou no meu pescoço e se agarrou ao meu peito com força. Quer teta, falei, acariciando sua cabecinha de criança. Do teto penduravam os sonolentos preguiças, que mal abriam seus olhinhos para olhar a gente. Agora vamos ver as nossas rainhas, falou o caseiro. Nas piscinas estavam embaralhadas três volumosas sucuris de seis metros. E esta, como se chama? Perguntei, tocando sua camuflada pele alaranjada e preta. Chama-se Ana e seu sobrenome é Conda, Anaconda, e soltou uma gargalhada brincalhona. Olhe, disse indicando um inchaço, recém comeu uma galinha viva e agora está digerindo-a. A imensa serpente constritora não me causava medo, o homem pegou uma de médio porte e a colocou em meu

ombro, não sentia medo, nem era tão gelada assim. Lembrei que ao vê-las na TV sentia pânico, mas ali, em seu habitat pareciam enormes bichos inofensivos. Pensei que na realidade era a TV o que me causava horror. Adeus, Aninha, falei para a menor, que ruminava sua galinha com sono. Estão dopadas, me disse Mario Davi no ouvido, por isso não atacam. Achava que tinham simpatizado comigo, você quebrou o encanto. Ficam um tempo aqui, mas depois são levadas de volta para a selva, falou com seriedade e indicou que passássemos para um espaço maior, onde a mulher do caseiro descascava bananas verdes jogando-as para os macacos amarrados pelo pescoço. Por que estão amarrados? São novos aqui, acabaram de chegar, respondeu a mulher sem interromper seu trabalho. Sentei-me junto aos macacos e a mulher me advertiu que tivesse cuidado. Mas eles se aconchegaram me abraçando com depressiva ternura. Parece a mãe macaca, disse o caseiro ironizando. Ele é um escritor, tenha mais respeito, o repreendeu Mario Davi, franzindo a testa. Não se preocupe, você tem razão, alguma vez já fui macaca, lembrem que o hábito não faz o monge. Nesse instante todos se descontraíram rindo, e a mulher serviu um suco por conta do calor

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que nos maltratava, mas logo voltamos ao barco, enquanto o macaquinho berrante nos insultava em seu agudo dialeto. Já era a metade da manhã quando regressamos a Iquitos navegando pelo Nanay. Mario Davi estava calado, sério, com o olhar submerso na água escura. Você quer conhecer onde moro? Agora quero ir embora, está muito quente e gostaria de voltar para o hotel, respondi, encharcado de suor. Mas é aqui, pertinho, em Belém. Olhe lá, onde se enxergam esses telhados de palha, é ali. A embarcação entrou por um braço do rio. Era o Rio Itaya e em sua ribeira se levantava uma aglomeração de palafitas e casas flutuantes, onde os moradores fazem sua vida à vista das canoas que vão e vem com seu comércio ambulante. Sem luz elétrica, nem água encanada, nem esgoto, era trágica e gloriosa a beleza podre de Belém, à deriva de sua florida reprodução. Ao ver as crianças seminuas chafurdando no lamaçal, lembrei do Zanjón de la Aguada 2 da minha infância. Eu nasci num lugar como este, falei. Mario Davi levantou o boné e me olhou incrédulo, sorrindo. Da beira nos cumprimentavam as mulheres lavadeiras na sujeira da correnteza. As casas eram andaimes de bambu de vários andares onde penduravam redes e tralhas domésticas. Eu gosto de morar aqui, disse Mario Davi com orgulho. Mas a minha casa não se enxerga, fica lá atrás, explicava com os olhos brilhando. Com quem você mora? Com minha mãe, ela trabalha no rio vendendo comida. Sou filho único, falou sem tirar os olhos das raízes eretas do manguezal. E seu pai? Ele respondeu levantando os ombros com indiferença. Era seringueiro e chegou de Manaus pelo rio, engravidou minha mãe e depois foi embora por onde chegou. Nunca o conheci. E você gostaria de conhecê-lo? Não, falou com determinação. E se ele um dia voltar? Eu mato, cuspiu a frase e me olhou fixo nos olhos. Depois, um silêncio desconfortável invadiu a travessia e Mario Davi foi engolido pelo zunido da água verdejando seu sombrio olhar. Quero conhecer Belém do alto, falei para aliviar a tensão. Você me levaria em seu mototáxi voador? Sorriu novamente, indicando ao barqueiro que nos deixasse na beira. Subimos por umas ruas buscando o mototáxi de Mario Davi e, exatamente na hora de me abrigar debaixo da capota de lona, desabou

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uma chuva torrencial que alagou tudo. Mesmo assim, Mario Davi colocou um plástico no para-brisa e se lançou contra a cortina chuvosa. Descíamos e a frágil moto pulava pelos charcos. Ficamos ensopados e a camisa florida de Mario Davi colou em seu peito. Através do celofane aquoso, seu peitoral acobreado pulsava sob a tormenta. Todo seu corpo era tensão; seus bíceps inchados pelos movimentos ao conduzir a moto, suas costas morenas curvando-se ao virar nas esquinas alagadas. Pingava a tempestade pelos seus braços índios quando entramos em Belém por uma selvática feira onde berrava um javali que estava sendo degolado, o sangue fumegava com a chuva e o calor no derramamento de seus cheiros acres. As sucuris penduradas sem couro nas barracas do comércio local, lagartos enrolados entre os bananais verde escuro, peixes fosforescentes, azuis metálicos, lavados pelo aguaceiro. Os mamões enormes e o suor dos corpos perfumavam de vida a quizumba da feira de Belém quando falei para o Mario Davi: pare, quero descer. Quero andar suas ruas e me encharcar nos sabores do seu bairro. E caminhamos muito próximos, ensopados, por esse dilúvio de cores. Entendi porque Mário Davi gostava de morar ali, pulsando a plena humanidade na aquarela vital do que chamam miséria. Quem será Mario Davi na cidade

onde a natureza é uma desconhecida ameaça? E caminhamos por entre as barracas cambaleando pelas pedras. Mario Davi era cumprimentado pelos vizinhos, acostumados à torrente dos céus desabando. E Mario Davi se sentia afortunado, era um príncipe em seu território amável e violento. Assim o sentia, quase feliz, oferecendo-me seu braço para me segurar. Cuidado com a água, falava, mas nada importava se já estávamos com os pés encharcados. Que sorte que a chuva e o calor são irmãos nestas latitudes, pensei quando subimos no mototáxi e voltamos para o hotel. O aguaceiro tinha passado e entre as nuvens nacaradas se filtrou um raio de sol. Iquitos resplandecia num tafetá brilhante quando Mario Davi deteve o mototáxi no cais e me pediu um cigarro que acendeu de frente para o Amazonas que ardia brilhante como cetim de festa. Agora você vai embora? Disse sem me olhar. Sim, daqui a uma hora sai meu voo, respondi afogado por uma chuva interna. Mas nem sequer nos acariciamos, murmurou com fracasso. Você acha pouco? Ficará para outra vez, respondi acariciando seu cabelo, onde aninhava a lembrança amarela de uma borboleta triste.

O texto faz parte do livro Háblame de amor (Editorial Planeta).

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entrecorpos Ensaio fotogrรกfico por CHICO LUDERMIR Texto CAROL ALMEIDA

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Le premier bonheur du jour C’est un ruban de soleil Qui s’enroule sur ta main Et caresse mon épaule (...) Le dernier bonheur du jour C’est la lampe qui s’éteint Meu corpo tocar no seu. Febre sem paraquedas. Não vejo o chão, só sinto o salto. Seu corpo tocar no meu. O mundo inteiro corre. O mundo inteiro, menos nós. Quando as estátuas se deitam, quando Lauren Bacall assovia, quando a cantora desafina porque lembra. São neles que nossos corpos se acham. E se puxam em um tango tão violento quanto manso. A i’mansidão de nossa pele. Tudo uma coisa só, dois igual a um, matemática pras cucuias. Teatro da fundição.

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Me tem, te tenho. Vontade sem freios de consumir você. De sumir com você. Sumidouro do que desaguamos. Esse pertencimento sem razão do outro como seu. Do outro sendo seu. Quem é você? O outro. O outro quem? O outro eu. Te protejo na mesma medida em que te projeto. Como parte de mim. Porque os corpos não conhecem a política das fronteiras. Relações intranacionais. A tua diferença me toca e, quando as placas tectônicas colidem, quando as cortinas se abrem, quando cai o véu, a tua diferença faz mais de mim e me cria um pouco. E do que há em mim, te dou uma parte daquilo que é você. Escambo da carne a da alma. Consumo viciado dessa liberdade de ser tudo. À vista, sem parcelamentos. Mas se a política dos corpos é a


política das diferenças, dos limites entre as plataformas e ideias que carregamos, nesse imbróglio de nossas cascas juntas, a política dos corpos é a política que retorce e pisa nessa herança histórica do sexo categoria, o sexo social, a politização da anatomia. Quando nossas pernas se cruzarem e nossos olhos se acharem, sangraremos a História com foice e martelo. E destruiremos sem piedade a representação do sexo como poder-sobre. Poder nada para poder tudo. Só você pode tudo. Faz frio neste momento. Vejo alguns poros se abrindo, alongando nossos pelos. O edredom lilás se veste de você. Eu me visto de edredom. Você se veste de mim. Em nosso casulo, um balé de movimentos minúsculos, aquele que se baila sempre antes de acordar. Vamos dançando cheek to cheek, devagar que é pra não assustar o contato de

seu iminente fim. Do momento em que voltaremos ao núcleo original do que somos. Meu corpo se separar do seu. Seu corpo se separar do meu. Céu branco, água parada e livros fechados. Mas o sol há de brilhar mais uma vez, a luz há de chegar aos corações, a água vai escoar e os livros serão abertos em páginas de dedicatórias. Seremos nós, seremos jovens, seremos distintos. Até a hora da última alegria do dia. Quando a luz se apaga e nos consumimos nesse corpo estranho que parece ter nascido em nossa pele.

CAROL ALMEIDA é jornalista.

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ENSAIO OU ESTAR ENTRE SABERES Um elogio ao texto ensaístico e à sua proposta fundamental de travar um diálogo entre os universos da arte e da teoria Texto DENILSON LOPES

De que crítica sinto falta? Em outro momento, abordei a importância de uma crítica transcultural e cosmopolita que, menos interessada em análises detalhadas de obras e autores, atravessa e constrói constelações inusitadas entre culturas. Crítica que tenha a potência de ir além do nacional. Estratégia fundamental, se queremos nos inserir no mundo, hoje, não só como potência ou fruto cultural exótico, e sem ficarmos no lugar abstrato da teoria. Mas gostaria de falar de outro aspecto da crítica que tento praticar. Farei um modesto elogio do ensaio. Espaço de aventura e de risco. Nem teoria nem arte. Arte e teoria. Arte como teoria. As imagens são tão ou mais importantes que conceitos. Numa sociedade marcada pela espetacularização do sujeito, a experiência do ensaísta não deve ser reduzida a mero gesto de narcisismo. Ela é uma possibilidade de

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apreender a cultura e a história na materialidade do cotidiano, dos afetos e das sensações. Sem barreiras disciplinares, o ensaísta vai até onde as suas questões, que são também desejo, o levam. O ensaísta escreve sobre o que não sabe ou sobre o que descobre ao escrever. Há um bom tempo que se acentuou na universidade brasileira um processo geral de profissionalização e institucionalização, no que isso tem de crescente aparato de avaliações. Processo que, no seu melhor, pretende estimular a pesquisa como prática regular e o uso, em tese, mais democrático do dinheiro público. Contudo há certos saberes que se veem um pouco à margem, diante de um paradigma de conhecimento que vem de setores mais conservadores das chamadas ciências duras, rapidamente assimilados por setores de ciências sociais, defensores de metodologias exclusivamente quantitativas, em que a experiência do pesquisador é, no máximo, um empecilho. Não algo que deva ser discutido, que mereça a atenção. Certamente, não uma possibilidade de conhecimento. Em meio ao tempo demasiado gasto em relatórios e pedidos de recursos, a experiência da escrita como saber vivenciado parece ser algo que pouco interessa. São necessários métodos e metodologias, normas, fórmulas e slogans no frágil mercado intelectual brasileiro. Nesse caminho hegemônico, a escrita é, sobretudo, um meio de informação para que se produza mais e mais rapidamente. É, portanto, nesse panorama favorável a certa mediania e competência de comentadores e divulgadores na universidade, que deve ser entendida a provocação do ensaísta, um amador na terra dos que querem ser cada vez mais profissionais. Sem dúvida, a crítica literária e as ciências sociais no Brasil foram marcadas profundamente pelo ensaísmo. Talvez, muito mais do que tentativas de trabalhos mais sistemáticos, foram os ensaístas que criaram discípulos e mais repercutiram no pensamento nacional, com leitores que ultrapassaram seu campo de especialidade, como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda, Antonio Candido, entre outros. Com desculpas aos colegas filósofos brasileiros, foi o ensaio que gerou nosso pensamento mais potente, fecundo e profícuo, em que a posição do sujeito diante do mundo, dos embates de sua época se mistura indissoluvelmente com o objeto de estudo

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e de reflexão. Por ensaio não entendo apenas uma forma em que o sujeito tem mais liberdade diante de seu tema, retomando a lição de Montaigne, colocando sua experiência como articuladora de ideias. Trata-se de um posicionamento teórico, que vai tentar ser sufocado por diferentes desejos de cientificização estreita na universidade brasileira, como se aí residissem solos mais seguros e capazes de fala e compreensão do Brasil. Trato de uma leveza que não abdica da reflexão, e ela tem uma longa história. Não pretendo aqui fazer um mapeamento de uma genealogia de uma crítica criativa que inclui o ensaio – mas vai além dele. Entre a crítica-escritura de Roland Barthes e a leitura devaneante de Gaston Bachelard, dos fragmentos desde os pré-socráticos, os românticos, passando por Nietzche e o Livro das passagens de Walter Benjamin. Do uso da narrativa na história, recuperada pela Escola dos Anais à autoenografia e outras experiêncisa da antropologia pós-moderna. Da crítica que articula o privado e o público, pesquisa e militância, no contexto dos estudos culturais, pós-coloniais, étnicos e de gênero ao New Jornalism, à imprensa marginal, aos zines e blogues da internet. O campo é vasto. E há, de fato, uma tradição tão rica e longa, e até mais antiga, do que do uso distanciado ou instrumental da escrita.

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Também não pretendo fazer um mapeamento da crítica no Brasil, mas ressaltar um tipo de produção no Brasil que tensiona os limites do ensaio clássico, forma elegante de seduzir o leitor, em que muitas vezes mostra uma aparência de simplicidade e esconde um pensar sofisticado. Nessa abertura de possibilidades, poderíamos ver, entre a crítica literária e a história da cultura, esforços em produzir esse ensaísmo que se rende a momentos narrativos, sem perder o fio analítico e que tem em metáforas espaciais como a cidade e a viagem, possibilidade para um texto mais fluido, do olhar à deriva, como, para citar trabalhos no horizonte de uma crítica universitária, em Trem fantasma de Francisco Foot Hardman, O Brasil não é longe daqui de Flora Süssekind e Orfeu extático da metrópole de Nicolau Sevcenko. Também poderíamos voltar a uma geração anterior, em autores com referências teóricas tão distintas como Silviano Santiago e Davi Arrigucci, que construíram obras ensaísticas. No caso de Silviano Santiago, o diálogo entre sua ficção e seus ensaios ainda está por ser analisado de forma mais articulada, não só por livros seus, como Stella Manhattan, conterem ensaios, mas por responder pela ficção questões presentes na própria obra crítica, como nos romances Em liberdade e Viagem ao


México. Também Arrigucci tem seu interesse pela memória, pela experiência, pelo cotidiano, traduzido no seu livro mais lírico, Humildade, paixão e morte, acerto de contas com Manuel Bandeira, que o coloca talvez como melhor estilista entre os herdeiros de Antonio Candido. Para ficarmos na mesma geração, poderíamos citar a mistura de manifesto e ensaio, realizada por Jomard Muniz de Brito, reeditados em Atentados poéticos. Para pularmos de geração, lembro os microensaios de Evando Nascimento em Retrato desnatural. No campo dos estudos de cinema, área que tenho atuado mais nos últimos anos, essa abertura pouco consigo identificar. Falo também de outra constelação que radicaliza uma narrativa, não mais tanto marcada pelas inovações na história cultural, mas pela leitura de Borges e Calvino, pelo fascínio por jogos de espelhos, labirintos, que, sem perder a leveza do texto, podem ser incluídos neste mapeamento de uma crítica criativa. Aqui me refiro a Todas as cidades, a cidade de Renato Cordeiro Gomes, O século de Borges de Eneida Maria de Souza, no caminho para a ficção em livros como o Voo transverso de Maria Esther Maciel, que termina com uma entrevista fingida de um especialista de Borges, e Entre o cristal e a chama de Flávio Carneiro, que nos coloca na indissociabilidade entre leitura e escrita, ao fazer nascer o escritor do leitor. O escrever se traduz numa materialidade, a partir do exercício cotidiano da leitura, do corpo de quem escreve. Ler é uma atitude diante do mundo. Talvez a sombra de Borges seja demasiada no final, quando a personagem sem nome do Leitor ensaia sem resultado sair dos labirintos textuais, evocando a dimensão solitária, trágica e moderna, da escrita e da leitura. No entanto, há uma brecha frágil, uma possibilidade que talvez se realize para além desse livro, do fascínio do texto para a experiência do leitor, da crítica para a narrativa. Não esquecendo que tanto Maria Esther Maciel quanto Flávio Carneiro possui uma obra ficcional autônoma. Talvez falte, além de Borges e Calvino, lembrar a recepção de uma crítica pós-estrutural no Brasil, sobretudo o trabalho de Barthes, feito por Leyla Perrone Moysés, especialmente em Texto, crítica e escritura, por Roberto Corrêa dos Santos em Modos de saber,

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modos de adoecer e por Eneida Maria de Souza em Crítica cult. Barthes talvez seja a senha que nos faltava para passar da narrativa na crítica para a questão da autobiografia. Tema que há um bom tempo virou moda e clichê, com uma quantidade enorme de trabalhos sobre a memória, desde os modernistas a autores jovens, passando pelo interesse pela crônica, pelas lembranças da guerrilha e o interesse pela obra de Pedro Nava. Mas, como sabem os melhores entre nós, a autobiografia, e aqui seria importante lembrar Corpos escritos de Wander Melo Miranda sobre o jogo de espelhos entre Em liberdade Silviano Santiago e Memórias do cárcere de Graciliano Ramos; Os perigosos; Autobiografia e Aids de Marcelo Secron Bessa, e o mais recente trabalho de Eneida Maria de Souza, Janelas indiscretas – ensaios de critica biográfica, coloca de forma exemplar os impasses e limites do gênero. A autobiografia não pode ser pensada como simples confissão, mas estratégia textual e performativa que, mesmo na crítica, busca um jogo afetivo entre leitor e texto. Como nas canções de amor e nos programas de auditório de confissões públicas de anônimos, o afeto é forma de aproximação, não diria só de identificação ingênua, mas de jogos de sedução em que o fato de toda autobiografia ser uma construção, uma interpretação de si, não impede

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que nós leitores, especializados ou não, tenhamos um atitude entre o bisbilhoteiro da vida alheia e o companheiro emocionado de caminhada. Chegamos, então, ao nosso intento. Qual seria a resposta de nossa crítica a essa pulsão autobiográfica nos tempos em que o sexo rei, há muito, virou espetáculo de milhões, que a autobiografia de qualquer amante de celebridade se julga no direito de contar sua estória, que a internet é povoada por chats e diários públicos? Seria possível uma nova poética da expressão sem as ilusões românticas? Como Robbe-Grillet saudando o último Barthes como o futuro da prosa, estaria nesses textos ambíguos, entre narrativas de testemunho e autoficções, algo mais do que narcisismo? Penso em três repostas possíveis a esse dilema. Respostas vindas de tradições e práticas bem distintas. Ana Cristina César. Sangue de uma poeta de Ítalo Moriconi, lançado pela coleção Perfis do Rio, texto de encomenda que ultrapassa os limites de uma mera apresentação de Ana Cristina César e se traduz numa verdadeira autobiografia geracional, emocional, sem ser piegas, sem os limites do preciosismo factual que poderia se exigir de uma biografia, tendo como guia a memória pessoal, sem medo do escancaramento confessional que apresenta as próprias condições de escrita:


“É de noite. Deito-me. Me pergunto se serei capaz de conjurar os fantasmas, vencer a preguiça, realizar a evocação. A face de Ana aparece, vejo suas mãos que gesticulam. Ela me toma pela mão. Vamos passar a noite juntos, talvez. Por que será que este texto mexe tanto comigo?” (Ítalo Moriconi) Ao falar de Ana C., o mito, de Ana Cristina César, a contemporânea, Ítalo trata dos caminhos e descaminhos de uma geração entre o desbunde e a universidade, a aventura pelos desejos e o profissionalismo. Entre a tese em fragmentos, A provocação pós-moderna, o poeta que circulava em círculos estreitos e o antologista, hoje popular, o livro sobre Ana Cristina César tem perguntas ainda a serem respondidas. Para além dos dilemas de uma geração, de uma voz e de uma herança femininas que unem as interlocutoras de Ana a sua futura leitora, o que mais se ressalta é a dificuldade existencial da escrita para quem se expõe ao mundo, não se recolhe. O reencontro com os anos 1970, anos de formação do autor, se faz sem melancolia, mas com impasse. O suicídio não é uma resposta. “Esta é a minha vida./Atravessa a ponte./ É sempre um pouco tarde” (Ana Cristina César). Mas parece estar meio tarde, para quê mesmo? Fica uma última imagem proposta por Moriconi: “E lá ficou Ana, tão longe, tão perto. Acenando para sempre seu lenço branco, de chapelão azul de palha, loura, linda, piscando marota aqueles cílios descoloridos no olho esquerdo, por trás das grossas lentes de míope”. Também de Ana C. fala José Castello em seu Inventário das sombras. Fora da universidade, jornalista e biógrafo bem-sucedido, em contraponto a meras personalidades mediáticas, faz perfis biográficos de escritores, na maioria, brasileiros e contemporâneos. No entanto, esses perfis não escondem um personagem que se vai construindo pelas conversas e encontros com tantos escritores. É de si que José Castello fala, ora mais, ora menos. Seu livro é um romance de formação disfarçado, de leitor apaixonado, que transita entre obra e vida, entre a imagem pública e os momentos da entrevista, como o perfil de Manoel de Barros. Não raramente, o que acontece em torno da entrevista é mais importante do que é falado, recuperando procedimento do New Jornalism de contextualizar, dar um foco às

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narrativas em detrimento da mera informação seca e objetiva. Diferente do romance-reportagem, aqui é o jornalismo que se poetiza. O livro atrai o leitor pela curiosidade que este possa ter pelos biografados, mas de Clarice Lispector a Arthur Bispo do Rosário se constrói uma trajetória, um rito de passagem, uma necessidade: encarar o que se é. Clarice Lispector anuncia logo no início ao autor ainda jovem, com sua voz inconfundível: “Você é muito medroso. E com medo ninguém consegue escrever”. A luta com esse medo atravessa a companhia de pessoas da mesma geração – Caio Fernando Abreu e Ana C. –, até chegar à figura borgiana de João Rath, jornalista que o ensinou a perceber o mundo, com um olhar atento ao detalhe e com uma memória afetiva, mas nunca escreveu um romance. Este, o romance, viria para José Castelo, com O fantasma, ainda aqui assombrado por escritores (no caso, Leminsky). Também aqui é sabido o que fica do repórter, “que trabalha com fantasmas, não com fatos”, “um falsário”. Entre Clarice Lispector, a não escritora, e João Rath, o escritor sem livros, o corpo se faz texto, o livro se torna experiência. “Quando o leitor se apaixona por um escritor, o leitor se torna o escritor” (José Castello). Mas ainda haveria tempo para essa aposta tardia na escrita?

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Por fim, em Porta-retratos de Tereza Vara, cartas, trechos de diário, sonhos se misturam a leituras de Marilene Felinto, Adélia Prado e do filme A Festa de Babette de Gabriel Axel, num sutil trajeto no feminino. Ao tornar indissociáveis sua biografia e o interesse intelectual, ao conjugar seus dois mestres Antonio Candido e Roland Barthes, o que é afirmado, longe do mero narcisismo, é a visceralidade do ato de conhecimento. Não se trata de volta ao texto, mas um alargamento da literatura e da crítica como fontes de criação. “Ler o que não se sabe, ler o que não existe”, aventura-se Teresa. Sem temer os riscos, seu corpo se configura no texto, para resgatar “a experiência do leitor no ato crítico da leitura”, “capturar nas malhas da leitura esse sujeito desconhecido do ‘eu’, fora do tempo e do calendário, mas ao mesmo tempo presente como expansão das diferentes identificações do ‘eu’.” Ética na leitura, discurso melancólico no que tem de suavidade, de crepuscular, um caminho que escurece, devorando o caminhante, quando em breve não será mais nada. Diante da banalização da fala e do sexo, a intimidade pelo silêncio e pela sedução. O leitor, digo, eu me pego surpreso, já é de todo impossível evitar a intimidade, ao descobrir que também “gos-


tava da solidão e da minha companhia, sem ter que me ocupar com nada, apenas com o movimento do olhar para captar em pequenos flashes a mobilidade da paisagem que rapidamente se transformava, sem que eu pudesse, ao menos, esfregar os olhos para verificar se tudo era real, verdadeiro”. “Você sabia por experiência própria como eu gostava de viver as histórias que inventava, era isso que complicava, eu nunca sabia ao certo qual o limite.” Eu me apaixonara perdidamente e você sabia disso. Não podia evitar. Não posso evitar. Longe de surtos (pseudo)cientificistas, disciplinares, epistemológicos, porquês e justificativas, o que temos é o prazer do texto com sua fecundidade maior. Esses livros trazem um gesto maior de ficcionalidade à tradição conciliadora e elegante do ensaio e, em contraponto à espetacularização, fazem do desejo maior de autoexposição a possibilidade sutil da voz do sujeito na crítica e na autobiografia, um gesto de sedução para um público leitor consumidor voraz desse gênero. Trata-se de uma entrega ao leitor, como um presente demasiado delicado para ser falado, tocado, mas ainda assim compartilhado na distância da página, do livro, entre quem escreve e quem lê. Resta o fascínio do texto, e por que não dizer da estética, essa palavra que urge ser reinvocada. Por isso, talvez, o incômodo? Será sempre regressivo o discurso da beleza em meio a tantos temas que polarizam mentes e debates como multiculturalismo, exclusão social, globalização, virtualidade? “Por que sempre volto ao começo de tudo, aqui neste lugar, reduto de beleza, de afeto e de poesia?” A pergunta de Teresa Vara, também a minha, fica sem resposta, mas o caminho se fez, de toda forma.

DENILSON LOPES é professor da Escola de Comunicação da UFRJ, pesquisador do CNPq e autor de, entre outros, No coração do mundo: paisagens transculturais (Rocco), A delicadeza: estética, experiência e paisagens (EdUnB).

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NO NOSSO ALFABETO DE HORAS DESTA EDIÇÃO, A DESCRIÇÃO DE ALGUÉM QUE REAPRENDE SUA RELAÇÃO COM O MUNDO SEMPRE QUE SE PERCEBE SEM SONO E SEM ESPANTO EM PLENA MADRUGADA Texto FABIANA MORAES Ensaio fotográfico por CHICO LUDERMIR

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“Nesse tempo, já me dera conta de que procurar era a minha sina, emblema de todos aqueles que saem à noite sem qualquer finalidade exata, razão de todos os destruidores de bússolas.” Eu li isso e de certa forma me acalmei: me senti bem acompanhada no buraco negro em que sempre me meto quando acordo, sem sono e espanto, às três da manhã. Era uma maneira suave e não desesperadora (“se eu acordasse às 4h, faltaria só uma hora para o sol nascer”) de legendar minhas saídas noturnas quase diárias, àquela hora em que começo a caminhar pela sala, abajur, corredor, janelas, livros, geladeira. Quando passo, o cabelo assanhado, pelos vasos com plantas que finjo estarem vivas. É a hora-madrugada em que os espectadores dos meus espirros e alergias, da minha falta de paciência com garrafas de água vazias e certa afeição por comida gelada, estão dormindo, quietos e bonitos. Inicia-se roteiro diário íntimo que conheço bem: já são três da madrugada e é hora meu solitário show, passear sem destino pela casa à qual sou diariamente apresentada como se fosse a primeira vez. Eu li aquele trecho dos destruidores de bússola em Cortázar, ele morreu em 1984, nesse tempo eu gostava do Menudo. Eu li e me dei conta de que nunca usei uma bússola para minha vida, que vivi uma sucessão de sustos, abraços, tropeções e beijos, uns extremamente importantes, outros completamente dispensáveis, e aí – SURPRESA! - cheguei naquele sofá azul posto em um canto da sala. É a partir dele que observo um aparelho preto que marca em números amarelos: 3h14. Também é dali que vejo as coisas que fui amontoando ao meu redor, os objetos que ainda fazem sentido, os que sempre farão, os extremamente dispensáveis, os comprados por dispersão ou vaidade. A permanência no sofá azul, momento de descanso das viagens siderais pelo corredor (tem uma lâmpada queimada ali, há dezenas de meses), serve como momento de prática da apuração dos sentidos: escuto o porteiro do prédio ao lado regar as plantas, tento identificar o que ele assovia, também o que um vigia do edifício da frente ouve em seu rádio de pilha. Vejo uma antena colorida lá no horizonte, algumas estrelas brigando com a luz estridente dos postes, um carro passando

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lento na Agamenon Magalhães (o que será que alguém, dirigindo tão devagar, vai fazer àquela hora da madrugada?). São 3h25, talvez ligue a TV, me vem à cabeça aquele final lindo de uma música do Soft Cell, quando Marc Almond, a voz suave, me fala “See her eyes they are bright tonight/See the stars coming out tonight/See the moon looking down tonight/See how they light your way tonight”. Estranho é que eu sinto certa inveja desses olhos e desse deslumbramento, dessa entrega e dessa ingenuidade. Porque eu queria (você também, eu sei) ser aquela pessoa delicada, cujo olhar entrega os rins e a alma – ou melhor, queria ter sempre por perto aquele que percebesse quando esse brilho acontece. Às 3h38, eu percebo que esse autodrama de butique não convence nem a mim mesma, inicio outro passeio solitário pelo quarto andar, paguei o IPTU, mas esqueci a taxa de bombeiros, sinto sede, mas prefiro comer uva em vez de tomar água. Começo a refazer mentalmente a agenda do dia que eu já comecei a viver, a que horas eu vou conseguir correr, quem são as pessoas que eu ainda tenho que entrevistar, será que vai dar tempo de ir para a aula de inglês, tem as roupas que Assunção passou a ferro na última quinta ainda para guardar. É tudo tão prosaico e besta, quando eu queria apenas estrelas nos olhos, tudo prosaico e besta porque somos sempre muito inteligentes e sofisticados, tudo prosaico e besta porque nos dedicamos apenas aos grandes temas: o Amor, o Outro, a Reflexão, o Querer. Mas aí acontece que a montanha de coisas prosaicas e bestas começa a desabar, sublinhando aquilo o que todo mundo sabia, mas não teve coragem de dizer: você faz parte dela e está sapateando lá no cume. Aciono o shuffle mental e me vem outro querido Marc, agora o Bolan, que me socorre desse mundo de contas a pagar, roupas bagunçadas e trabalhos para terminar. Ele me leva ao confortável e necessário espaço do impossível, aquilo que eu tanto desejo às 3h38 (acho que o porteiro está ouvindo Aguinaldo Timóteo, lembro o meu pai). Penso nas perguntas fundamentais que o rapaz morto em um terrível encontro entre seu carro e uma árvore um dia fez. “Eu dançava, quando eu tinha oito anos/ É estranho dançar tão tarde?/ Eu dancei até entrar no túmulo/ É estranho dançar tão cedo?” Não sei, talvez seja mais estranho não dançar, não deixar o corpo falar, gaguejando, fluindo, lindo ou patético. O que eu não entendo é um corpo mudo. Tenho um amigo que não dança, é muito tímido, uma vez o puxei para o meio da pista e ele se partiu em dois, me arrependi, porra, Fabiana, isso não se faz. Mas espero sinceramente que ele dance sozinho, que escute algo como Dirty Dude, de Dizzy Gillespie, e sinta-se pesando 300g. Ou que consiga movimentar

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com certa graça os 500k que leva nos ombros. (Não era Aguinaldo Timóteo. É Evaldo Braga, mas, tudo bem, continua sendo meu pai). Às vezes, nem os livros, nem a música, nem uma série de TV com mais de 10 anos que eu vejo pela quinta vez são suficientes para espantar o meu maior medo, que é o de nunca mais voltar a dormir. Então, eu olho, é o que pode me distrair com menos esforço, olho as imagens da madrugada, as fotos das pessoas se divertindo na madrugada, as representações da felicidade da madrugada, geralmente traduzidas em olhos vermelhos da luz do flash necessário nas madrugadas. Vejo conhecidos e desconhecidos declarando para o mundo – e principalmente para eles mesmos – que são extremamente felizes, vejo reuniões de amigos que parecem ótimas, vejo festas que reafirmam minha correta decisão, mais cedo, de ficar em casa. Algumas dessas imagens que eu vejo agora, de volta ao sofá azul, são fotos de mim mesma, feitas há anos, nelas estou com uma roupa preta que deveria me deixar mais magra, estou sorrindo, abraçada com algumas amigas, uma cerveja na mão e o coração à espera de alguém. Outras são fotos minhas que nunca foram feitas, estou com meu filho na praia, estou com meu filho no parque, estou com meu filho no seu primeiro dia de aula. Me vejo ainda fotografada na frente de um espelho, estou bonita e

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quero congelar esse momento para mim e para todo mundo, principalmente para aqueles que não percebem como meus olhos brilham naquela noite. São 3h50 da madrugada e daqui a pouco vou ouvir o barulho do primeiro ônibus passando na Agamenon, em meia hora o céu vai começar a ficar rosa, laranja, azul, em uma hora a professora que abre a academia de ginástica aqui perto vai passar, a mochila nas costas, os olhos ainda quase fechados, enquanto deseja um bom-dia sorridente a todos os alunos. Me afasto da janela, decido me juntar a outro insone, aquele que me ajudou a começar a escrever e foi covardemente trocado pelo Instagram e a música pop. Seguro novamente a mão de Horácio, o amigo insone que Cortázar, sem saber, criou para me fazer companhia. Ele se vinga de mim, da minha traição, da facilidade com a qual foi deixado de lado, e, com olheiras tão exuberantes quanto as minhas, me diz: “As vidas que terminam como os artigos literários de jornais e revistas, tão portentosas no primeiro plano e acabando numa cauda desfeita, lá pela página 32, entre anúncios de liquidação e tubos de dentifrício”. É a morte, ou sair voando, Horácio. Você sabe que são 3h59. E que nunca mais voltarei a dormir. FABIANA MORAES é jornalista, ganhadora, entre outros, do Prêmio Esso de Jornalismo e autora de Os sertões (Cepe Editora).


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REVISTA DE CULTURA E ENSAIOS

Assine! VALOR UNITÁRIO: R$ 20 REAIS ASSINATURA ANUAL COM 03 (TRÊS) EXEMPLARES: R$ 50 REAIS + FRETE FONE: +55 81 32696134 E-MAIL: LIVIO@FLIPORTO.NET

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MARIO VARGAS LLOSA SORRI OS 30 MINUTOS QUE VIRARAM 12 E DEPOIS 14, COM O PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA PERUANO, QUE SE MANTEVE RESGUARDADO PELO ISOLAMENTO DO SEU SORRISO DURANTE UMA ENTREVISTA NO RIO DE JANEIRO Texto SCHNEIDER CARPEGGIANI

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Mario Vargas Llosa está esperando com as costas viradas para uma janela, no 7º andar de uma universidade do centro do Rio de Janeiro. Veste terno escuro, usa um lenço na lapela e permanece alheio à sedução da vista lá fora. Há tempos deve ter expulsado o turista dentro dele. A cidade é seu pano de fundo. E só. Mario Vargas Llosa estranhamente sorri para um canto indefinido de uma sala de aula esvaziada de alunos, ainda que tomada por uma equipe de TV e por mim. Mario Vargas Llosa, enquanto espera e sorri em silêncio, é idêntico ao Mario Vargas Llosa que me acompanha, já há alguns anos, naquela maldita foto de divulgação minúscula, acho que uma 3x4, que os editores insistem em repetir nas orelhas dos livros. A semelhança é tamanha, que me pego imaginando que a imagem 3x4 é agora um retrato de corpo inteiro, que insiste em sorrir para algo fora do meu campo de visão. O que atrai o sorriso de Mario Vargas Llosa não é visível nas 3x4 dos livros nem na sala parcialmente esvaziada, onde o homem e a imagem que guardo dele ocupam o mesmo lugar no espaço. Há quase um padrão para imagens de divulgação de escritores. A maioria olha fixo para a câmera, que, acredito, deve incorporar o futuro leitor. O olhar costuma ser sério, sem hesitação. O sorriso, imagino, atrairia a impressão de pouca seriedade diante do esforço tamanho que a construção da obra exige. Enquanto olham para

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nós, escritores ocupam o espaço das suas fotos com algum gesto ou objeto que minimamente revelará um traço da escrita. Vejamos: Roberto Bolaño, o desleixo do cigarro pela metade; Salman Rushdie, as sobrancelhas arqueadas da desconfiança; Emily Dickinson, no seu único retrato que se salvou, aparece vestida de negro, o cabelo repartido ao meio e nos encara apoiada num móvel da sala (Mas espera: Emily Dickinson jamais tirou foto de divulgação para editores, nem publicou enquanto vivia; ela mal saiu de casa. Sua foto solitária, desconfio, é também a máscara mortuária que tanto desejava usar enquanto escrevia). Só que Mario Vargas Llosa apenas sorri e eu não entendo para onde nem por quem ou para quê. O retrato 3x4, que agora aparece de corpo inteiro, só é desfeito, seus negativos rasgados e expostos ao sol, quando um assistente da equipe de TV empurra impaciente a cadeira em que ele esperava imóvel, como um pôster de divulgação. O gesto abrupto quebra por rápidos instantes a formalidade até então reinante. “Eu virei um objeto”, ironiza Mario Vargas Llosa, logo retomando o solitário ponto de fuga do seu sorriso, sem dar tempo ao assistente, agora visivelmente envergonhado, de terminar de listar as desculpas, as de sempre, a pressa típica das equipes de TV, o desejo de captar a melhor luz... (Será que o assistente também notara que o homem se prostrava tão igual à foto de si mesmo, a ponto de se tornar um objeto a mais naquela sala de aula parcialmente esvaziada, por isso a rispidez do seu gesto?) Após a equipe de TV, eu teria 30 minutos para entrevistar Mario Vargas Llosa, que logo passaram a ser 15 e depois 12 minutos, um estranho número impreciso na sua precisão fatal. A mulher loura, responsável por organizar a agenda com a imprensa, avisa que Mario Vargas Llosa está cansado e que vem desmarcando encontros com jornalistas desde o início da manhã. (E 12 minutos talvez seja a forma educada de dizer que você não vai conseguir nada, desista, leia o livro, esqueça o homem que sorri. Com 12 minutos ninguém fala sobre um romance. 12 minutos é haicai). A loura pergunta se eu gostaria de uma foto de divulgação para ilustrar meu texto. Sim. Mas a imagem oferecida é uma rápida

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variação daquilo que já possuía, vivo, ainda que imóvel, à minha frente naquele momento. Dispenso a oferta. De alguma forma, começava a compreender que escrever o nome Mario Vargas Llosa era também projetar essa imagem. O álibi da pauta é uma entrevista sobre “minha única obra a merecer resgate diante da possibilidade de um incêndio”, Conversa no Catedral, republicado há pouco no Brasil. Mas o haicai do tempo concedido não permitiria que se falasse de um romance. Inspirado pela miniatura concedida, apressadamente encontrei uma instância de salvação: decidi deixar a trama de lado e me concentrar numa só palavra: “Sua escrita é muito técnica, nada é fora do lugar ou sem propósito, então por que o senhor repete tanto o verbo foder nas primeiras páginas de Conversa no Catedral?”. Mario Vargas Llosa amplia o sorriso da 3x4 e diz que assim, fodidos, estavam o Peru e a América Latina das décadas de 1960 e 1970. “Fodidos”, ressalta uma última vez. “Mas o senhor voltaria a usar expressão ‘fodida’ para descrever a América Latina hoje?”. “Não”. 10 minutos. Nos últimos dois, tentei preencher com o velho “O que o senhor acompanha da literatura atual?”. Sua resposta foi tão vaga, que acabei nem guardando as palavras. Os 12 minutos passam a ser 14. Precisava terminar aquilo. Mario Vargas Llosa sustenta o sorriso, mas, agora, em minha direção, tenho certeza de que em minha direção. Nos despedimos. Fui embora sem perguntar o que sempre quis saber, “Mas o senhor sorri, mesmo, para onde, para quem, para quê ?” Na verdade, jamais teria coragem de lhe fazer minha única real pergunta. Ela continuará sem resposta, porque o que tenho são variações de 3x4 que reproduzem de forma tão precisa o Mario Vargas Llosa com quem conversei por 14 minutos, um homem que insiste em sorrir mesmo sabendo (e tenho certeza que ele sabe, no fundo sabe) que as fotos têm algo de triste na segurança do seu isolamento. É que fotos não aceitam visitas.. SCHNEIDER CARPEGGIANI é jornalista, curador, doutor em teoria literária, editor do Pernambuco e da ArtFliporto.

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UM OLHAR SOBRE A OBRA DE UMA AUTORA QUE ESCREVEU, ESCREVEU, E RASGOU, AH, RASGOU MUITO Texto SILVIANO SANTIAGO

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No dia 25 de janeiro de 1977, a escritora Lygia Fagundes Telles viaja a Brasília para entregar a Armando Falcão, ministro da Justiça, um manifesto assinado por 1046 intelectuais e artistas brasileiros. Está acompanhada da colega Nélida Piñon e do historiador Hélio Silva. No documento, pede-se o fim das restrições à liberdade de expressão e dos constrangimentos na criação artística. Estamos em pleno regime Geisel e, nos bastidores do Planalto, sova-se o “Pacote de Abril”, a ser imposto à nação por decreto. O ministro se mostra indiferente ao teor reivindicativo do manifesto e afirma que, “com serenidade e firmeza”, manterá o exercício da censura. Poucos conhecem essa faceta pública da notável ficcionista paulista. No Rio de Janeiro, Carlos Drummond de Andrade lê os jornais do dia e por eles espreita os passos atrevidos de Lygia. Em carta datada de 16 de fevereiro, o amigo e admirador felicita-a pela coragem: “Estou acompanhando pelos jornais o movimento desencadeado pelos escritores e artistas, no qual você desempenha um papel de responsabilidade consciente, indo a Brasília para entregar o papel à fera”. Em seguida, o mineiro matreiro matiza o ceticismo que lhe é proverbial (o poeta se abstivera de assinar o documento): “Era de se prever que o documento não modificasse a atitude do governo, mas um resultado positivo se alcançou: ele se sentiu obrigado a explicar-se, percebeu a importância do pronunciamento e pela primeira vez reconheceu a existência de uma opinião de classe contrária à censura”. Naquele início de ano, Drummond também acompanha a imagem de Lygia na telinha. Ouve suas palavras e, reminiscente das artimanhas do velho DIP, percebe o uso pelo arbítrio da tesoura e da mordaça. Ao final da carta citada, lamenta o exercício impune da serenidade e firmeza ministerial: “Incrível a mutilação do seu programa no Globo-Repórter!” E acrescenta: “Mesmo assim, o que sobrou deu para se divulgarem algumas verdades. Gostei. E ver você na TV é uma maneira de matar saudades”. Num século em que, com frequência, o gosto pela política na madureza asfixia o encanto juvenil pelas artes, é extraordinário

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que a destemida mensageira da classe seja defensora do artesanato artístico e uma apaixonada da arte literária. Com obra ficcional admirada pelos pares e pelas novas gerações, Lygia é ainda quem melhor soube se comunicar em público com o curioso das coisas literárias. Posso atestar que, em auditórios localizados nos quatro cantos do país e do mundo, sua presença física é luminosa e suas palavras, apesar de serem rigorosas e valentes, são apreendidas e sorvidas com espanto e deleite em virtude da paixão que as sustém. Ao microfone ou em entrevista, não se esconde em evasivas. Oferece a espinhosa receita da iguaria que oferece: ”Ler, ler, ler. Escrever, escrever, escrever, e rasgar muito. Eu rasguei muito”. E, fincada nos mitos do dia, aconselha aos aspirantes ao estrelato: “Se você pretende ser dançarina, ou se você quiser ser a Daiane dos Santos, vai ter que trabalhar muito”. À participante política e defensora do trabalho de arte se soma a intelectual que reconhece o caráter discricionário do “chamado à literatura”. Da perspectiva de quem quer ser autor, repetia, “escrever é uma vocação”. Chamados haverá muitos, no entanto, poucos serão os escolhidos, reza a letra do Evangelho. Manifestação obscura da humildade

e da esperança humanas, a vocação abre e acelera o mistério que une o caráter do escritor e suas palavras à sensibilidade e à mente do leitor. “Se não houvesse leitores, ainda assim você escreveria?” – pergunta-lhe Edla Van Steen em 1981. Lygia rebate. O leitor e seu compromisso com a boa literatura são cria do estofo do escritor, do seu sangue. Explica-se: “Se o autor está oco ou desesperado, não vai conseguir a cumplicidade do seu próximo. Fará um trabalho esvaziado, morno”. Lygia se perfila com Nietzsche. No capítulo Ler e escrever, de Assim falava Zaratustra, está dito: “De tudo o que se escreve, só gosto daquilo que se escreve com o próprio sangue. Escreve com o teu sangue e descobrirás que o sangue é espírito”. Ainda sobra alguma tinta na paleta do retratista, e não servirá para emprestar colorido apenas circunstancial à figura humana, embora assim se goste de creditá-lo. Lygia é mulher que, em sociedade patriarcal, adota três profissões de homem. Advogada, escritora e membro da Academia Brasileira de Letras. Modesta, a promotora pública destaca a preeminência das primeiras escritoras, elas, sim, “verdadeiras malditas a arrebentarem seus espartilhos”. Perspicaz, a artista de sucesso lembra como se desgastou o tópico crítico que julgava a escritora

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brasileira narcisista, preocupada com a própria face, com o umbigo. O desgaste do desdém crítico já transparece nas leituras consagradoras de Ciranda de pedra (1954) e não se justifica por a romancista ter adotado uma escrita objetiva, tradicionalmente masculina, mas por ela ter ido até às raízes históricas do patriarcalismo e por nelas ter encontrado “a razão do feitio monologal e intimista” da escrita feminina. Irônica ou autoirônica, a acadêmica acrescenta que não há que se ter vergonha de a “mulher-goiabada” ter sido estrela nas quermesses do interior paulista. E menos vergonha deve sentir a escritora por ter recebido dela a tradição de ensimesmamento no trato carinhoso com o alimento sob as chamas. Por pouco que a mulher-goiabada se distraísse, o doce pegava no fundo do tacho. O trabalho doméstico fundamentou as invenções do olhar criativo da mulher e as reenviava ao belo rosto afogueado pelo calor da invenção literária. Causa espanto o sucesso das adaptações da obra literária de Lygia pelos meios de comunicação de massa. Tanto nos contos quanto nos romances, ela traz para a literatura contemporânea brasileira o sentido do texto escrito de acordo com as formas de espetáculo privilegiadas pelas classes populares. Herdeira confessa de Machado de Assis, para quem o espetáculo da ficção se passa no palco da corte, onde se agigantam as emoções do drama burguês ou a mímica abusiva da ópera, Lygia decide eleger, à semelhança de peão afeito às lides agropecuárias, a arena de rodeio para surpreender os personagens humanos que, frente à fatalidade das forças espelhadas na fauna e na flora selvagens, se manifestam por trejeitos de desordem interior e por palavras e atos de rebeldia. O peão se faz, no entanto, pastor para conduzir os rebeldes à mão caridosa do bem, que os tornará ordeiros, mansos e disciplinados. Revolta frente às intempéries desonrosas da vida é a condição do ser na comunidade. Disciplina alcançada pelas artes fidalgas do amor é o destino da criação no planeta. Lembremos Clarice Lispector, sua contemporânea e amiga: “Não ter nascido bicho parece ser uma de minhas secretas nostalgias. Eles às vezes clamam do longe de muitas gerações e eu

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não posso responder senão ficando desassossegada. É o chamado”. Em Lygia, a nostalgia de não ter nascido bicho tem como conseqüentes “a inquietação” e “a raiva”. Nesse alicerce dramático, a ficcionista ergue a rebeldia instintiva e a disciplina do amor como pilares da sua prosa. A rebeldia é a fome da nossa memória ancestral carente de verdade humana. Ela leva os humanos a competirem com a inclemência dos poderes infernais e divinos que modelam tudo e todos. Feita palavra, a rebeldia é motor da invenção ficcional. Recria artisticamente o mundo. É criação, no sentido absoluto do termo. “Lamber a cria, a gente dizia no mundo dos cachorros e gatos”, gosta de lembrar quando é inquirida sobre a natureza do trabalho de arte. “Minha infância é inteira feita de cheiros”, lê-se em As meninas (1973). Em Ciranda de pedra, Virgínia descobre: “Mais importante do que nascer é ressuscitar”. Se, em última instância, a revolta instiga e fomenta o caos na comunidade e no mundo, já a disciplina manifesta a soberania do amor no reajuste das relações entre a natureza e os homens, entre estes e ela e dos homens entre eles. Revolta e disciplina intercambiam seus papéis e seus valores em tramas ficcionais e se sucedem até na relação entre os vários contos

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duma coleção. Porque simbólicas são definitivas as palavras que Lygia coloca à abertura do livro A estrutura da bolha de sabão: “Fiz alterações nos textos, sou uma inconformada. As ficções desgarradas. Recolhidas e tosquiadas. O pastor junta o seu rebanho”. O Evangelho, acrescento eu, nos ensinou que a ovelha desgarrada é a única a inspirar a compaixão do Senhor. Como escreveu Gregório de Matos: “não queirais, Pastor divino, / Perder na vossa ovelha a vossa glória”. Cara: revolta. Coroa: disciplina. Revolta ou disciplina? Revolta e disciplina. A ambivalência. Em depoimento, a romancista esclarece: “Quero que meu leitor seja parceiro-cúmplice nessa ambigüidade que é o ato criador. Ato que é desespero e apaziguamento. Ansiedade e celebração”. Parodiando o poeta Murilo Mendes, digo que Lygia segura com sobrenatural elegância o fio que conduz da arena de rodeio ao Gólgota. Sem parodiá-lo, cito novamente Murilo: “Um ouvido resistente poderia perceber / o choque do tempo contra o altar da eternidade”. A ficção de Lygia Fagundes Telles não tem essência, a ser procurada pelo leitor. Há que se aprender a conviver com ela, como se convive com um gato, por exemplo. “O gato Astronauta me dava”, lemos em As


meninas, “aulas diárias de preguiça e luxúria. Todo feito de delicadezas perigosas, o meu gato. Ou Demônio?” Assim o livro de Lygia e seu leitor. Em conferência em Paris, na Sorbonne, confidencia: “Não espero ser compreendida, espero ser lida. Se possível, amada – confessei a um leitor que parecia preocupado, gostava dos meus livros, mas muita coisa não conseguia compreender”. Aparentemente excessiva, a demanda concreta da autora se explica. Existe na sua ficção, como na filosofia de Albert Camus e na prosa de D. H. Lawrence, um cristianismo sem Deus. Vale dizer: a alma reside na carne, o espírito no sangue. Em depoimento, afirma: “Levanto a pele das personagens que é a pele das palavras, quero o mais íntimo, o mais secreto, e nessa busca me encontro”. A escritora se encontra na pele que recobre a carne secreta da palavra ficcional e também a do personagem. Ela conhece o quilate do vocábulo e da cria e os reconhece como autênticos pelo que eles têm de pele que pulsa ao ritmo do coração. Todas as sensações e paixões dos seres viventes estão a nu e a descoberto na letra do livro. Estão à flor da pele. Na prosa de Lygia, a sensualidade felina programa a criação de inúmeros e inesquecíveis personagens de que a ficcionista é inventariante incorruptível e zelosa colecionadora. Lembremos uma vez mais Murilo Mendes. De versos do poema Ofício humano: “As harpas da manhã vibram suaves e róseas. / O poeta abre seu arquivo – o mundo −, / Vai retirando dele alegria e sofrimento / Para que todas as coisas passando pelo seu coração / Sejam reajustadas na unidade”.

SILVIANO SANTIAGO é escritor, ensaísta e autor de, entre outros, Uma literatura nos trópicos (Rocco) e Heranças (Rocco).

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CONTR A A

gourmetização DA VIDA

Qual a distância que separa o churrasquinho na laje da varanda gourmet? E as fotos do chambaril e do menu degustação? Texto RENATA DO AMARAL

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O anúncio surge em página inteira no jornal de maior circulação do Recife, com a assinatura de uma das maiores construtoras locais. É um apartamento de quatro quartos, dos quais duas suítes, surpreendentemente encaixados em 125 a 132 m2, no Bairro de Boa Viagem, perto da praia de mesmo nome. Mas não é nem o número de quartos nem a proximidade do cartão-postal da cidade o destaque da propaganda, mas, sim, a varanda gourmet, expressão grafada em letras enormes. Três fotos ilustram a página. A menor traz o prédio, de quase 30 andares. Em outra, um casal sorri enquanto segura taças de vinho tinto. Abaixo, uma pseudocozinha aberta, com direito a armário, pia e mesa de jantar para seis lugares, ilustra o que deve ser o destaque do imóvel. Se a expressão for levada ao pé da letra, a varanda acima é um “indivíduo que é bom apreciador e entendedor de boas mesas, de bons vinhos e se regala com finos acepipes e bebidas”, segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. É parente do gastrônomo, “aquele que aprecia com gosto e conhecimento os prazeres culinários”, e do gourmand, “aquele que ama a boa mesa” ou “aquele que come em quantidade e/ou com avidez; glutão, guloso”. Para a Wikipedia, menos confiável, mas talvez mais ligada ao espírito da época, gourmet “é o nome que se dá a uma cozinha ou produto alimentar (incluindo bebidas) que estejam associados à ideia de haute cuisine ou alta cozinha, evocando assim um ideal cultural, associado com as artes culinárias”. A enciclopédia colaborativa on-line ressalva que o termo também é usado, “mais raramente”, para pessoas de paladar apurado e com conhecimento da gastronomia. Para alguns, ressalta ainda, traz em si um teor negativo, ligado ao esnobismo. O pobre terraço, sabe-se, não é nada disso. Mas a “personificação” do espaço

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pode inspirar reflexões sobre o contexto da gastronomia, hoje, tantas vezes mais ligado ao status e ao “ver e ser visto” do que à comida em si. Não é em busca de um churrasquinho na laje que vai o público-alvo desses imóveis, mas provavelmente do “ideal cultural”, citado no verbete da Wikipédia. Não basta ter um apartamento caro em um bairro valorizado: é preciso ter um espaço adequado para receber os convidados e fazê-los perceber que, se você tem uma varanda gourmet, logo você é um gourmet. Não se trata, é claro, apenas de uma questão linguística ou etimológica. Muito menos a culpa pode ser atribuída apenas às coitadas das varandas. O adjetivo está em toda parte, até mesmo em uma grande livraria no shopping mais badalado da cidade, cujo espaço gourmet funciona para receber aulas experimentais com chefs de cozinha e lançamentos de livros sobre comida. Nem um simples hambúrguer ou cachorro-quente consegue mais se livrar do rótulo, pois já existem várias lanchonetes autoproclamadas gourmet, por aí. Até mesmo o brigadeiro, aquele docinho bem brasileiro, presente em toda festa de criança, hoje em dia só é digno de consideração se for gourmet. E ai de quem perguntar o que há, afinal, de tão requintado na tradicional (e irresistível) mistura de leite condensado, chocolate em pó e manteiga. A tentativa de valorizar o produto por meio do rótulo gourmet termina, ao contrário, por banalizá-lo. Num mundo em que tudo é gourmet, nada é gourmet. Se um leitor grifa todos os parágrafos de um livro, como saber para onde focar a atenção? Pouco importa, porém, o fato de um produto ser gourmet – talvez fosse mais apropriado dizer para gourmets – ou não. O que salta aos olhos é como funciona o consumo como porta de entrada para um estilo de vida (pretensamente) baseado no que vem sendo definido como bom gosto na contemporaneidade. Como acontece nas redes sociais, não basta degustar um prato, é preciso mostrar para todo mundo a foto em close do quitute. Que não pode ser confundido nunca com um kitut de boi enlatado, pois esse tipo de ingrediente é banido, em regras não escritas, por aqui.

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Por acaso, já se viu na rede social de compartilhamento de imagens Instagram ou mesmo no Facebook alguém postando fotos de rabada ou feijoada? Sarapatel ou buchada, talvez? A maioria das fotos com a hashtag #instafood traz, ao contrário, pratos difusos, indefinidos e com aparência ditada pela nouvelle cuisine. Aquela passada rápida no drive-thru de uma lanchonete de rede não é digna de ser registrada, mas somente as incursões tidas como verdadeiramente gastronômicas. Louças coloridas, receitas fotogênicas, ingredientes leves, de preferência divulgados perto da hora das refeições, para causar comentários famintos e elogiosos. Um ou outro internauta arrisca se espantar com o tamanho das porções diminutas, mas ainda assim poucos saem do padrão estético aceitável para as fotos de comida. Considerado o pai da gastronomia e com pretensões de fundar uma ciência gastronômica, o francês Brillat-Savarin, já em 1826, define-a como “um ato de nosso julgamento, pelo qual damos preferência às coisas que são agradáveis ao paladar em vez daquelas que não têm essa qualidade”. O hedonismo começa a ser valorizado e “os conhecimentos gastronômicos são necessários a todos os homens, pois tendem a aumentar a soma de prazer

que lhes é destinada”. Para ele, porém, não bastava querer ser gastrônomo: algumas pessoas simplesmente nasceriam predestinadas à gastronomia, outras não. Estatura média, olhos brilhantes, testa pequena, nariz curto, lábios carnudos e queixo arredondado seriam traços comuns aos gastrônomos, na avaliação sem qualquer embasamento científico do autor. Tais características externas sugeririam uma pessoa com órgãos mais delicados e maior capacidade de atenção para saborear os pratos que lhe são oferecidos. A regra teria suas exceções, pois existiriam também gastrônomos não por fisiologia, mas por condição. À época de Brillat-Savarin, os médicos, os religiosos e os homens de letras e de finanças eram presenteados com guloseimas sem fim. Impedidos de resistir a tais tentações, essas categorias profissionais acabariam por adentrar no campo da gastronomia justamente por causa desses presentes. É interessante notar que Brillat-Savarin confessa ter por objetivo fundar as bases teóricas da ciência da gastronomia, mas baseia suas hipóteses somente em observações específicas e pontuais. Sua defesa serve hoje apenas como curiosidade algo bizarra. Será indispensável, em breve, ser o feliz proprietário de uma varanda gour-

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met para ser aceito? Na sociedade de consumo atual, novas “necessidades” chamam a atenção. O sociólogo Don Slater resume: “Meus conhecimentos e necessidades serão completamente diferentes, dependendo de eu estar lidando com um meio ambiente em que eu caço e coleto alimentos (onde construo o mundo em termos de comestível e não comestível, perigo versus presa fácil, relativamente à necessidade da fome), ou com um ambiente onde posso ir jantar fora, ou fazer um lanche rápido, preparar uma refeição num forno micro-ondas, exigir ingredientes orgânicos e assim por diante. O que quero dizer é que não tenho simplesmente mais opções para satisfazer a mesma necessidade (fome); tenho necessidades muito mais numerosas”. A necessidade, porém, muitas vezes se constitui mais com base no outro do que em si próprio. O também sociólogo Pierre Bourdieu define o gosto com ênfase na distinção. Bourdieu vai de encontro à concepção de gosto como simples sensação física, para se ater à formação do gosto na sociedade contemporânea. Assim ele deixa de ser visto como uma espécie de “iluminação” destinada a poucas pessoas, para passar a ser compreendido de acordo com as dinâmicas sociais. O autor considera que nada confere mais distinção

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do que ser capaz de preocupar-se com as escolhas cotidianas, tais como o cardápio, o vestuário ou a decoração da casa. Nesse caso, o destaque vai além da matéria, ou seja, do alimento em si, para chegar à maneira de servi-lo e à etiqueta à mesa. Sua análise indica oposição entre as classes inferiores e superiores na escala social, sempre de forma relacional: enquanto as primeiras privilegiam a quantidade, as segundas prezam pela qualidade. É a oposição entre o “gosto de necessidade”, destinado a oferecer energia para o trabalho braçal, da forma mais efetiva e econômica possível, e o “gosto de liberdade ou de luxo”, apropriado para resultar em prazer de degustação. Cabe lembrar que o que mais determina o gosto de alguém é justamente a negação do gosto do outro, como se apenas o próprio fosse o correto, o adequado, o “bom gosto”, enfim. Eis porque, segundo Bourdieu, a aprendizagem na infância, no lar, não consegue ser substituída pelo ensino formal no caso da alimentação: o aprendizado seria forçado, e não natural. A cada posição no espaço social corresponde um estilo de vida diferente, que funciona como uma espécie de reflexo do capital social e econômico sobre o capital simbólico dos bens de consumo. Saber se determinado indi-


víduo bebe espumante, água mineral, vinho Bordeaux, champanhe ou uísque é suficiente, segundo o autor, para caracterizá-lo socialmente, até mais do que suas escolhas no universo artístico. Quando se fala do gosto de luxo, por exemplo, ocorre o que Bourdieu chama de estilização da vida, “decisão sistemática que orienta e organiza as práticas mais diversas, escolha de um vinho e de um queijo ou decoração de uma casa de campo”. As escolhas são pensadas não por serem as mais desejadas, mas por conferirem distinção a quem escolhe. No que depender da propaganda, existe, sim, uma nítida escala de valores entre quem opta pelo vinho tinto na varanda gourmet e quem prefere a cervejinha na praia, sem maiores luxos. Não podemos perder de vista, porém, o outro lado possível dessa história, justamente o mais instigante: a cozinha – ou seja lá que nome se dê a esse novo cômodo – passa a ser reconhecida como um espaço fundamental da casa, onde o preparo da comida se agrega à oportunidade de reunir as pessoas. Apenas mais uma prova do lugar central que a gastronomia ocupa hoje. Que as varandas sejam, pois, espaços de sociabilidade e convívio entre os comensais, antes de tudo, sem necessidade de rótulos demarcatórios de um estilo de vida pensado somente para impressionar.

RENATA DO AMARAL é jornalista, professora e doutoranda em Comunicação.

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Exílio

Texto CRISTHIANO AGUIAR | Ilustração KARINA FREITAS

Terminada a reportagem, peguei para ler a edição especial da New Yorker sobre ficção científica. A revista estava há meses dentro de uma gaveta, encarcerada na Zona Fantasma, bem ao lado do General Zod. Encontrei a imagem de um foguete escapando do planeta Terra em direção a Marte. O capítulo, escrito por Ray Bradbury e reproduzido naquela edição, relata a diáspora coletiva de todos os negros dos Estados Unidos, decididos a começar uma vida nova no planeta vermelho. E que formidável a imagem do próximo conto, de autoria de Clive Butcher, com um esverdeado ET de cabeça gigante, olhos meio reptilianos, as presas para fora – “um meta-arconte do Planeta Vogram”, informa a legenda. O alien tortura uma cowgirl espacial seminua, branca, cabelos volumosos, que se retorce tentando agarrar uma pistola laser. Já te contei, Natanael, que devo minha primeira experiência sexual aos discos voadores? Eu tinha 16 anos e era completamente virgem. Morava em Campina Grande, colecionava revistas de ufologia, assistia religiosamente Arquivo X e fazia parte de um grupo, todos da minha idade, que se reunia para conversar sobre conspirações, vidas em outros planetas e Isaac Asimov. Havia apenas uma menina (seres tão raros e misteriosos quanto os sobreviventes de Krypton) entre nós, que vou chamar aqui de “Lois”. Todos nós éramos filhos de professores e morávamos perto da então Universidade Federal da Paraíba. Naquele fim de semana, fizemos o que chamávamos de vigília. Acampávamos na laje da casa do líder e ficávamos observando o céu à espera de ufos. Nenhum apareceu. Mas eu gostava de

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contar as estrelas cadentes e de observar o território celeste com o telescópio que o líder possuía. Naquela noite, Lois estava estranha. Arisca, mas ao mesmo tempo disponível. Comentava tudo que eu falava – de modo geral, com ironia – e ficou perto de mim aquelas horas todas. Chegada a madrugada, eu não conseguia dormir e Lois propôs que dormíssemos juntos para nos aquecer. Éramos as únicas almas acordadas. Tremendo um pouco, disse que sim. Nos abraçamos. Então, com o braço envolvendo o meu ombro, Simone encostou os lábios e o nariz no meu rosto; com os lábios, acariciou lentamente o lóbulo da minha orelha; uma de suas mãos agarrava com força os meus cabelos. Soltei um gemido; ela também. Sua mão desceu até o meu púbis. Meus Deus, meu Deus, meu Deus – eu me perguntava se tinha chegado a hora do beijo, se era assim que eu queria beijar uma mulher pela primeira vez. Podia ser ela o grande amor da minha vida? A Escolhida? Era com ela, mesmo, que eu devia começar Tudo? Os dedos de Lois me apertavam tão forte e por todo o meu corpo, que eu quase sentia dor; não me segurei. Lois percebeu e colocou a mão por dentro da minha calça. Ao retirá-la, esfregou, diante dos nossos olhos, a substância alienígena entre os dedos. – Criança! – Ela disse, sorrindo. Me deu um beijo no rosto, virou-se e dormiu.

CRISTHIANO AGUIAR é escritor e crítico literário. O trecho publicado faz parte do romance inédito Exílio.

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