FRITZ LANG: O HORROR ESTÁ NO HORIZONTE

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A mão  sobre Suplício de uma alma Jacques Rivette

Publicado originalmente sob o título “La main” em Cahiers du Cinéma no 76, novembro de 1957. Traduzido por Bernardo Versiani. Revisado por Calac Nogueira. (N.E.)

O primeiro ponto que impressiona o espectador desprevenido, após alguns minutos de projeção, é o aspecto de diagrama, ou quase de exposição, instantaneamente assumido pelo desenrolar das imagens: como se o que assistíssemos fosse menos a mise en scène de um roteiro e mais a simples leitura deste roteiro, apresentada a nós como tal, sem ornamento. Sem, tampouco, qualquer comentário pessoal por parte do narrador. Assim, ficaríamos tentados a falar de uma mise en scène puramente objetiva, se tal mise en scène fosse possível: mais prudente, entretanto, é acreditar que se trata de algum estratagema, e aguardar o que se segue. O segundo ponto, em princípio, parece confirmar a primeira impressão: é a proliferação de recusas que sustentam a própria concepção do filme, e que possivelmente a constituem. A recusa, flagrante, da verossimilhança, tanto na trama quanto nesta outra verossimilhança, mais artificial, da construção das situações, da preparação, da atmosfera, que usualmente permite aos roteiristas do mundo inteiro incluir, sem dificuldade alguma, peripécias dez vezes mais gratuitas do que as daqui. Nenhuma concessão é feita aqui ao cotidiano, nem ao detalhe: nenhum comentário sobre o clima, sobre o corte de um vestido, sobre a graciosidade de um gesto; se tomamos consciência de uma marca de maquiagem, é pelo propósito da trama. Estamos mergulhados num universo da necessidade, ainda mais sensível porque ela coexiste harmoniosamente com a arbitrariedade da premissa. Lang, como se sabe, sempre busca a verdade além do verossímil, e aqui ele a busca desde o início no inverossímil.1 Outra recusa, a par com a primeira: a do pitoresco; os amadores não encontrarão aqui nenhuma destas silhuetas prazerosamente desenhadas, destes diálogos penetrantes ou destes traços nos quais a surpresa toma o lugar da invenção, que atualmente fazem a reputação de diretores como Lumet ou Kubrick. Todas essas recusas, aliás, são acompanhadas por um certo desdém que alguns sentem tentados a ver como o desprezo do diretor por sua tarefa; mas por que não um desprezo por este tipo de espectador? Depois, à medida que o filme prossegue, essas primeiras impressões encontram sua justificativa. O tom expositivo prova ser o correto, já que se trata de um problema, que nos é apresentado com todos seus elementos, e mesmo um duplo 1  Em francês, o filme foi intitulado L’Invraisemblable vérité, o que explica o recorrente uso da expressão verossimilhança (e suas derivações) pelo autor. (N.T.)

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problema: o primeiro deriva do roteiro, e, estando bem claro, não precisa ser tratado no momento; o outro, mais secreto, pode ser formulado assim: sob dadas condições de temperatura e pressão (aqui, de uma ordem transcendental da experiência), o que pode subsistir de humano nesta atmosfera? Ou, mais modestamente, qual parte da vida, mesmo desumana, pode subsistir num universo quasi-abstrato que está, todavia, dentro de uma extensão de universos possíveis? Em outras palavras, um problema de ficção científica. (A qualquer um que duvide dessa suposição, sugiro uma comparação deste filme com A mulher na lua [Frau im Mond, 1929], no qual a trama era para Lang, sobretudo, o pretexto para sua primeira tentativa de um universo totalmente fechado.) É então que a reviravolta intervém: cinco minutos antes do desenlace, os dados do problema são bruscamente invertidos, para o escândalo dos espíritos cartesianos, que dificilmente admitem a técnica da inversão dialética. Ora, se as soluções parecem igualmente modificadas, é apenas na aparência: as proporções permanecem as mesmas e, todas as condições sendo atendidas, a poesia faz sua aparição. Como queríamos demonstrar. O termo poesia surpreende aqui; certamente não é aquele que se esperaria. Eu o deixo provisoriamente, entretanto, já que não conheço outro que exprima melhor esta brusca fusão numa única vibração de todos os elementos até então mantidos separados pela vontade abstrata e discursiva; passemos então às consequências mais imediatas. A uma delas já fiz alusão: as reações do público. Um filme como este é evidentemente a antítese absoluta da ideia de uma “noite agradável”; e, por comparação, Um condenado à morte escapou (Un condamné à mort s’est echappé, 1956) e O homem errado (The Wrong Man, 1956) são divertimentos de sábado à noite. Aqui se respira, se eu ouso dizer, o ar rarefeito dos cumes, mas correndo o risco da asfixia; não se poderia esperar menos da superação última de um dos espíritos mais intransigentes de hoje, cujos filmes recentes já nos tinham preparado para este “golpe de estado” do saber absoluto. Uma outra objeção eu levo mais a sério: este filme seria puramente negativo e tão eficaz em seus aspectos destrutivos que acabaria no fim das contas destruindo a si mesmo. Isso não é inverossímil: eu falava agora há pouco de recusa; fui muito tímido. É de destruição que é preciso falar. Destruição da cena: não sendo qualquer cena tratada em si mesma, subsiste apenas um encadeamento de momentos puros, dos quais se retém somente


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