CINEASTAS E IMAGENS DO POVO

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traz e porque não sabe de sua própria inovação tende a ocultála nas máscaras do já sabido. É, pois, a dimensão histórica da experiência que é o não sabido por ela. Por ocultar o que há de novo nela, dificulta para nós uma visão do passado e do futuro, porque não conseguimos captar o presente como algo inédito, porque nossa tendência é vê-lo como repetição. A experiência é não-saber porque nos impede de avaliar a diferença real entre o presente e o passado, e a diferença possível entre o presente e o futuro. Talvez um dos melhores efeitos destas máscaras que nos impedem de perceber o novo que a experiência está trazendo, e de estabelecer a sua diferença ontológica com relação ao passado e com relação ao futuro, está na ideia do progresso. Não há ideia melhor do que essa para mascarar o presente, pois na perspectiva do progresso o presente é um anel da continuação do passado e um anel da preparação do cálculo do futuro. O presente, no que tem de perturbador, de inédito, de novo, de exigência de pensamento fica obstruído. Não é por acaso que Marx inicia o Dezoito Brumário com o tema da repetição. Se na primeira vez em que algo acontece, acontece como tragédia, é justamente porque nunca fora vista, nunca fora pensada, nunca fora feita. Somente depois há uma tendência a querer que o mesmo acontecimento se repita, porque repetido infunde tranquilidade e conhecimento. Ocultar-se o fundamental: cada presente como insubstituível. O presente, tomado como repetição de um passado ou como um elo na continuação de um certo passado, faz com que seja vivido na forma de uma farsa. Teatralizada como tragédia ou como comédia, as máscaras da experiência impedem o trabalho próprio do pensamento que consiste em elevar a experiência ainda indeterminada à sua determinação pela compreensão de sua origem e de seu sentido. O advento do sentido da experiência: eis o trabalho da reflexão. E esse trabalho não deixa o sujeito intacto porque, do mesmo modo que a compreensão do sentido da experiência não deixa o mundo tal como era (pelo menos no plano da compreensão do seu sentido, mesmo que permaneça tal como era no plano da ação) também o sujeito, por ter realizado esse trabalho, também não permanece tal como era antes. O movimento 150

pelo qual a experiência é compreendida na sua inteligibilidade e na sua origem, suprimida, portanto, com uma experiência abstrata e imediata, transformada pelo menos no trabalho do pensamento, é o movimento de constituição do objeto do saber e, simultaneamente, constituição do sujeito do saber. O sujeito não existe antes desse trabalho, como ocorria na representação, mas vai se efetuando com o seu objeto. O terceiro sentido do pensamento entendido como trabalho da reflexão é essa efetuação simultânea do sujeito e do objeto. O pensamento como trabalho de reflexão é um movimento e é um processo. É um movimento de interiorização da experiência externa e de exteriorização do sentido obtido pela reflexão. Isto é, a experiência compreendida não possui o mesmo estatuto que a experiência abstratamente posta e a reflexão realizada não possui o mesmo estatuto que a reflexão como mera possibilidade prévia do sujeito. Sujeito e objeto vão se constituir reciprocamente, negando-se um no outro e um pelo outro, na medida em que aquilo que o sujeito era antes dessa experiência compreendida não é aquilo em que se tornou (foi negado por esse trabalho da compreensão) e nesse mesmo movimento a experiência tal como ela era foi negada para transformar-se naquilo que ela não era. O trabalho da reflexão faz com que o sujeito, para saber, negue o não-saber da experiência elevando-a ao que ela não é, ou seja, a um saber; simultaneamente, esse trabalho faz com que a experiência, conteúdo oferecido ao sujeito, instaure neste a necessidade de compreender esse conteúdo, de sorte que o sujeito da experiência e o sujeito que sabe a experiência não é o mesmo sujeito. Saber do objeto. Saber do sujeito. Saber do próprio saber. Uma outra determinação do pensamento como trabalho de reflexão é o da interioridade entre verdade e saber ou da verdade como imanente ao pensamento. Isto é, na medida em que o pensamento vai em busca da gênese, do modo como alguma coisa é produzida, a exposição dessa gênese, desse modo de produção, carrega dentro de si mesma como exposição a sua validação, sua própria verdade. Não precisa de critérios externos. Mais do que isto: vai produzindo sua própria

verdade à medida que vai se realizando. E não porque haveria uma instância externa qualquer que verificaria o verdadeiro ou o falso, mas porque, o sujeito do conhecimento sendo constituído ao mesmo tempo que seu objeto, o movimento de compreensão da produ­ção desse objeto é simultaneamente o de autocomprecnsão do sujeito. A reflexão não é apenas o pensamento acerca do objeto, mas é, a cada passo, um pensamento acerca de si mesma. O movimento é sempre um movimento de reflexão no sentido absoluto da palavra. Há uma volta sobre si incessante na qual o saber do objeto e saber de si, simultaneamente saber da coisa e saber do próprio saber, e por isso não pode haver critérios externos a ele, pois que vai engendrando os seus próprios critérios, sua própria verdade. A diferença entre saber e ideologia passa por aí. O saber é a reflexão capaz de pensar a si mesma, de pensar sua própria origem, de pensar seus próprios fundamentos. A ideologia é exatamente aquele tipo de conhecimento que está impossibilitado de pensar sua origem e seus fundamentos, porque se o fizesse se autodestruiria como ideologia. Para o pensamento o real não surge como a positividade de um fato ou de uma ideia, mas como um campo de significações práticas e simbólicas constituintes do sujeito e do objeto e constituídas por eles. E o que se opõe ao real não é um irreal positivo, mas o imaginário cuja operação fundamental consiste no deslocamento das significações práticas ou teóricas da sua dimensão simbólica para uma dimensão empírica. Se o real é um campo de significações práticas e simbólicas e de suas representações imaginárias, se constitui o sujeito e o objeto e é por eles constituído, o real se define como ausência de positividades e de identidades, como movimento incessante de diferenciação interna e de contradição. O real, portanto, não é coisa nem um conjunto de coisas, não é fato nem um conjunto de fatos, não é uma ideia nem um sistema de ideias; o real é processo, histórico, o vir-se-a-ser do possível. Quais são os pressupostos da reflexão? Em primeiro lugar, abolição do conceito de determinação completa e afirmação da indeterminação radical do ponto de partida do pensamento, isto é, a experiência como não-saber que pede reflexão. E a 151

indeterminação racial do ponto de chegada do pensar, na medida em que a teoria pode ou não suscitar uma prática transformadora da experiência. Esse poder transformador, contudo, não pertence à teoria, mas à prática. Teoria e prática são dois momentos diversos do real, de tal modo que a teoria pode ou não desembocar num outro momento do real que é a prática, mas não pode, enquanto teoria, fazer-se prática porque se destruiria como teoria. Uma das maneiras de destruir uma teoria, fazê-la tornar-se prática, consiste em tomar o possível não como possível, mas como provável. Quando transformamos o possível em provável, quando passamos da significação do possível à imagem do provável, transformamos o futuro num dado objetivo calculável, e previsível para o qual estabelecemos uma tecnologia de ação que nos leve até ele. Com isto destruímos não apenas a teoria mas também a prática, como práxis, como relação com o possível reduzindo-a a técnicas de agir perfeitamente controladas e con­troláveis, manipuladoras do real. Em segundo lugar, a abolição da determinação completa se realiza em nome da contradição, isto é, da negação interna entre termos que se efetuam num processo. Eu gostaria de dar aqui um exemplo para marcar a diferença entre representação e reflexão, entre a determinação completa e a contradição examinando a maneira como Kant e Hegel tratam a loucura. Operando com representações e, portanto, com a determinação completa, Kant define a loucura como o outro lado da razão. Loucura e razão, cada qual dotada de positividade e de identidade, se opõem como dois termos separados e autônomos. A razão se caracteriza, enquanto lógica universal de todos os seres racionais, como algo público e comunitário. A loucura, em contrapartida, é privacidade absoluta, autarquia subjetiva, fechamento do sujeito sobre si mesmo. A loucura é criação de uma lógica própria, sistemática, coerente, ordenada e inteiramente privada. O louco é guiado por uma relação de pura alteridade: quanto mais se encerra em sua lógica própria, quanto mais sua lógica é outra que a da razão pública e comunitária, tanto mais ele se separa das regras gerais do pensamento para assegurar-se de uma regra


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