Blanchot, maurice o livro por vir

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o LIVRO POR VIR

A QUESTÀO LITERÀRlA

tória, O Jean-Jacques cômico suceda ao Jean-Jacques trágico, para que a falta de cuidado, o à-vontade e a tagarelice ocupem seu lugar na literatura, em companhia de Restif de la Bretonne; o resultado não será convincente. O que atrapalhou Rousseau em seu projeto de entregar a matéria bruta de sua vida, deixando a cargo do leitor fazer desses elementos uma obra - desígnio essencialmente modernd~ - foi que, involuntariamente, no processo incompreensível em que sua existência se transformou, sob a ameaça de uma condenação inaceitável, ele não podia deixar de defender e de usar as qualidades oratórias da literatura clássica (quando se está diante de um juiz que se quer convencer, é preciso usar a linguagem desse juiz, que é sua bela retórica). A menos que, no caso de Rousseau, tão dotado para a eloqüência, seja preciso inverter a situação e dizer que - em certa medida, claro - a idéia de um processo intentado contra ele, de um julgamento ao qual está sujeito e de um tribunal diante do qual ele precisa se justificar constantemente, contando sem parar, lhe seja imposta pela forma da literatura em que ele é peri-

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A fascinação dos extremos Um dos melhores livros consagrados recentemente a Rousseau é o de Pierre Burgelin 9 A dificuldade encontrada por todos os comentadores - alegrando-se ou procurando resolvê-la - em dar coerência a um conjunto de pesquisas que tem apenas a aparência de ser sistemático explica-se, corno se vê nesse livro, de muitas maneiras.

Creio que uma das explicações é que os pensamentos de Rousseau ainda não são pensamentos. Sua profundidade, sua inesgotável riqueza e o ar de sofisma que neles via Diderot se devem ao fato de provirem, no nível de literatura em que se afirmam, do momento mais original, ligado à realidade literária, a exigência de anterioridade que os impede de se desenvolverem em conceitos, que lhes recusa a clareza ideal e, cada vez que eles tentam organizar-se numa síntese feliz, detém-nos e entrega-os à fascinação dos extremos. Sentimos constantemente que uma interpretação dialética das idéias de Rousseau é possível: no Contrato [social], em Emz1io e até mesmo em JuZie. Mas pressentimos sempre que a revelação do imediato e a desnaturalização da vida refletida só têm sentido pela oposição em que elas se definem, num conflito sem saída. Dirão que é a doença que imobiliza o pensamento de Rousseau numa antítese imóvel. Direi que essa doença é também a literatura na qual, com uma firme clarividência e uma grande coragem, ele discemiu todas as pretensões contraditórias, absurdas quando pensadas, insustentáveis quando as acolhemos. O que pode ser mais insensato do que desejar fazer da linguagem a sede do imediato e o lugar de uma mediação, a captura da origem e

to, e cujas exigências processuais seu pensamento sofre

até a obsessão. Nesse sentido, trata-se realmente da duplicação, da discórdia entre a palavra literária, ainda clássica e ciceroniana, justificativa, ciosa e orgulhosa de ser justa - e a palavra original, imediata, injustificada mas independente de qualquer justiça, por isso fundamentalmente inocente, que expõe o escritor a se sentir ora Rousseau, ora Jean-Jacques, e depois ao mesmo tempo um e outro, numa dualidade que ele encama com uma admirável paixão. 8. "É ele [o leitor] que deve juntar esses elementos e determinar o ser que eles compõem: o resultado deve ser obra dele."

9. Pierre Burgelin, La Philosophie de ['existence de f.-f. Rousseau.

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