46
A POÉTICA DO DEVANE10
Ia montre (o relógio) fiel e le chronomètre (o cronômetro) exato, Ia feuille(a folha) da árvore e le feuillet (a folha) do livro, le bois (o bosque) tlaforêt (afloresta), líiwe(anuvem) elenuage (anuvem), Ia vouivre (a serpente fabulosa) e le dragou (o dragão), le luth (o alaúde) e Ia lyre (a lira), les pleurs (os choros) e les larmes (as lágrimas)... Às vezes, cansado de tantas oscilações, busco refúgio numa palavra, numa palavra que começo a amar por ela mesma. Repousar no coração das palavras, enxergar claro na célula de uma palavra, sentir que a palavra é um germe de vida, uma aurora crescente... O poeta diz tudo isso num verso 3I: Uma palavra pode ser uma aurora e até um abrigo seguro.
Então, que alegria de leitura e que felicidade para o ouvido quando, lendo Mistral, ouvimos o poeta da Provença colocar no feminino a palavra berçol Seria agradável contar a história na beleza das circunstâncias. Para colher "flores de glais", Mistral, com quatro anos de idade, caiu no lago. A mãe o retira de lá e lhe veste roupas secas. Mas as flores sobre o lago são tão bonitas que a criança, para colhêlas, dá outro passo em falso. Na falta de outras roupas, torna-se necessário vesti-lo com seu traje domingueiro. Assim vestido, a tentação é mais forte que todas as proibições: o menino volta ao lago e cai na água mais uma vez. A boa mãe o enxuga no seu avental e, diz Mistral, "com medo de novo susto, tendome feito beber uma colherada de vermífugo, deitou-me na minha berço, onde, cansado de chorar, ao cabo de um instante, adormeci"32. É preciso ler no texto toda a história que resumi acima para reter apenas a ternura que se condensa numa palavra que consola e ajuda a dormir. Na minha berço, diz Mistral: que sono maravilhoso para uma infância! Numa berço conhecemos o verdadeiro sono, porque dormimos no feminino. 31. Edmond Vandercammen, La porte sans mémoire, p. 33. 32. Frédéric Mistral, Mémoires et récits (traduzidos do provençal), Plon, p. 19.