Bachelard, gaston a poética do devaneio

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OS DEVANEIOS VOLTADOS PARA A INFÂNCIA

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uma imagem, um centro de imagens que atraem as imagens felizes e repelem as experiências do infortúnio. No seu princípio, todavia, essa imagem não é inteiramente nossa; tem raízes mais profundas que as nossas simples lembranças. Nossa infância testemunha a infância do homem, do ser tocado pela glória de viver. Em vista disso, as lembranças pessoais, claras e freqüentemente expressas, nunca hão de explicar completamente por que os devaneios que nos reportam à infância têm tal atrativo, tal valor de alma. A razão desse valor que resiste às experiências da vida é que a infância permanece em nós como um princípio de vida profunda, de vida sempre relacionada à possibilidade de recomeçar. Tudo o que começa em nós na nitidez de um começo é uma loucura da vida. O grande arquétipo da vida que começa infunde em todo começo a energia psíquica que Jung reconheceu em todo arquétipo. Como os arquétipos do fogo, da água e da luz, a infância, que é uma água, que é um fogo, que se torna uma luz, determina uma superabundância de arquétipos fundamentais. Nos nossos devaneios voltados para a infância, todos os arquétipos que ligam o homem ao mundo, que estabelecem um acordo poético entre o homem e o universo, todos esses arquétipos são, de certa forma, revivificados. Pedimos ao leitor que não rejeite sem exame essa noção de acordo poético dos arquétipos. Gostaríamos tanto de poder demonstrar que a poesia é uma força de síntese para a existência humana! Os arquétipos são, do nosso ponto de vista, reservas de entusiasmo que nos ajudam a acreditar no mundo, a amar o mundo, a criar o nosso mundo. Quanta vida concreta não seria dada ao filosofema da abertura para o mundo, se os filósofos lessem os poetas! Cada arquétipo é uma abertura para o mundo, um convite ao mundo. De cada abertura eleva-se um devaneio de alto vôo. E o devaneio voltado para a infância devolve-nos às virtudes dos devaneios primeiros. A água da criança, o fogo da criança, as árvores da criança, as flores primaveris da criança... quantos princípios verdadeiros para uma análise do mundo. Se a palavra "análise" deve ter um sentido quando nos referimos a uma infância, não podemos deixar de dizer que analisamos melhor uma infância por meio de poemas do que por meio de lembranças, por meio de devaneios do que por meio de fatos.


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