Adorno, theodor w teoria estética

Page 76

seria banida de toda a verdade. Na sua própria verdade, na reconciliação que a realidade empírica recusa, ela é cúmplice da ideologia e faz crer que a reconciliação já existe. As obras de arte, segundo o seu a priori ou, se se quiser, segundo a sua idéia, caem numa relação de culpa. Enquanto que toda e qualquer obra bem sucedida transcende a culpa, todas devem expiá-la e, por isso, a sua linguagem gostaria dej regressar ao silêncio: é, segundo uma expressão de Beckett, uma desacration of silence. A arte quer aquilo que não era; no entanto, tudo o que ela é, já era. É incapaz de ultrapassar a sombra do que foi. Aquilo que ainda não era é o concreto. O que mais profundamente radica o nominalismo na ideologia é ele tratar a concreção como dado, como indubitavelmente «existente» (Vorhandenes), e enganar-se a si e à humanidade ao pretender que o curso do mundo impede aquela determinação pacífica do ente, que apenas é usurpada ao conceito do dado e é, por seu turno, qualificada de abstracção. As obras de arte só com dificuldade tratam o concreto de um modo que não seja negativo. Só mediante o caracter não-cambiável da sua própria existência, e não através de um conteúdo particular, é que a obra de arte suspende a realidade empírica enquanto contexto funcional abstracto e universal. Toda a obra é utopia tanto quanto, pela sua forma, antecipa o que ela, em última análise, seria e isso viria ao encontro da pretensão de obliterar a proscrição do ser próprio (Selbstsein) disseminado pelo sujeito. Nenhuma obra de arte se pode transferir para outra. Isso justifica o momento sensível irredutível nas obras de arte que sustenta o seu hic et nunc, assim se preservando, apesar de toda a mediação, alguma autonomia; a consciência ingênua, que continuamente adere àquele momento, não é inteiramente a falsa consciência. Sem dúvida, o caracter não-cambiável assume a função de fortalecer a crença segundo a qual ele não seria universal. A obra artística deve mesmo absorver o seu mais mortal inimigo, a permutabilidade; em vez de se evadir na concreção deve, através da própria concreção, representar o contexto total de abstracção e resistir-lhe. As repetições nas autênticas obras de arte modernas não correspondem sempre à coacção arcaica da repetição. Muitas denunciam-na e tomam partido pelo que Haag chamava o irrepetível; o Play de Beckett, com a triste infinidade da sua repetição, proporciona o exemplo mais perfeito. O negro e o cinzento da arte moderna, a sua ascese das cores é negativamente a sua apoteose. Quando, nos extraordinários capítulos biográficos de Selma Lagerlõf, Marbacka traz à criança paralisada uma ave do paraíso empalhada, o «nunca visto», a cura, o efeito de tal utopia emergente não diminui, mas não mais algo de semelhante seria possível: o seu substituto é a obscuridade. Mas, porque a utopia, o não-ente, se encontra para a arte velada de negro, permanece, em todas as suas mediações, como lembrança, a lembrança do possível contra o real que a reprime,, algo como a compensação imaginária da catástrofe da história do mundo, liberdade que, sob a influência da necessidade, não existiu e acerca da qual

156

não se sabe se pode existir. Na sua tensão para a catástrofe permanente, a negatividade da arte está ligada à méthexis na obscuridade. Nenhuma obra de arte existente ou que aparece domina positivamente o não-ente. Tal facto distingue as obras de arte dos símbolos religiosos, que pretendem possuir a transcendência da presença imediata no fenômeno. O não-ente nas obras de arte é uma constelação do ente. As obras de arte são promessas através da sua negatividade até à negação total, da mesma maneira que o gesto pelo qual outrora se começava um conto, o primeiro som pulsado numa citara, prometia um «nunca ouvido», um «nunca visto», ainda que fosse o mais temível; e as capas de um qualquer livro, entre as quais o olho se perde no texto, são análogas à promessa da camera obscura. O paradoxo de toda a arte moderna é adquirir ao mesmo tempo o que rejeita, da mesma maneira que o início da Recherche de Proust, com o arranjo elaboradíssimo, introduz no livro sem o ruflar da câmara escura, sem o caleidoscópio do narrador omnisciente: renuncia ao encantamento mágico e só assim o realiza. A experiência estética é a de algo que o espírito não teria nem do mundo nem de si mesmo, a possibilidade prometida pela sua impossibilidade. A arte é a promessa da felicidade que se quebra. Embora as obras de arte não sejam conceptuais nem formulem juízos, são lógicas. Nada nelas seria enigmático, se a sua logicidade imanente não confluísse no pensamento discursivo, cujos critérios, no entanto, ela regularmente decepciona. É no pensamento concreto que elas se aproximam mais da forma do raciocínio e do seu modelo. Nas artes temporais, o seguir-se isto ou aquilo de outra coisa dificilmente é uma metáfora; que este acontecimento seja numa obra causado por outro deixa, pelo menos, entrever claramente a relação causai empírica. Uma coisa deve provir de outra, e não apenas nas artes temporais; as artes visuais têm necessidade de igual rigor lógico. A obrigação de as obras de arte se identificarem consigo mesmas, a tensão em que caem e que as liga ao substrato do seu contrato imanente e, por fim, a idéia tradicional da homeóstase a conseguir precisam do princípio de conseqüência lógica: tal é o aspecto racional das obras de arte. Sem a sua obrigação imanente, nenhuma seria objectivada; o seu impulso antimimético, tirado do exterior, associa-as a um interior. A lógica da arte, paradoxal segundo as regras da outra lógica, é um processo raciocinante sem conceito e juízo. Tira as conseqüências de fenômenos já naturalmente mediatizados pelo espírito e, em certa medida, logicizados. O seu procedimento lógico move-se num domínio de dados extralógicos. A unidade, que as obras de arte assim obtêm, põe-nas em analogia com a lógica da experiência, tanto quanto os seus procedimentos, os seus elementos e as suas relações se afastam dos da empiria prática. A relação com a matemática, que a arte entabulou na época da sua emancipação incipiente e que hoje, na época da decomposição dos seus idiomas, novamente emerge era a autoconsciência da arte da sua dimensão lógica. Também a matemática é aconceptual, devido ao seu caracter formal; os seus símbolos nada designam e, tal

757


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.