Adorno, theodor w teoria estética

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que melhor seria um exercício escolar do conservatório do que uma paródia ou uma cópia miserável do Cravo Bem-Temperado. Os choques extremos e os gestos de distanciação da arte contemporânea, sismogramas de uma forma de reacção universal e inelutável, são mais próximos do que o que simplesmente aparece perto unicamente em virtude da sua reificação histórica. O que a todos parece inteligível é o que se tornou incompreensível; o que os indivíduos manipulados repelem é-lhes apenas demasiado compreensível; analogamente à afirmação de Freud segundo a qual o inquietante é inquietante como aquilo que é intimamente demasiado familiar. Eis porque é repelido. O que é consagrado para lá do véu da herança cultural, e aquém da tradição ocidental é aceite, experiências simplesmente disponíveis e já postas em marchas. Conhecem demasiado bem a convenção; o que é excessivamente conhecido não mais pode ser actualizado. Essas experiências morreram no mesmo instante em que iam ser imediatamente acessíveis; a sua acessibilidade sem tensão constitui o seu fim. Poder-se-ia demonstrar igualmente isso no facto de que as obras obscuras e totalmente incompreensíveis são expostas no panteão da classicidade e repetidas obstinadamente (76) e que as interpretações das obras tradicionais, com excepções de algumas delas, cada vez mais raras, reservadas à vanguarda exposta, são falsas, absurdas e objecti vãmente incompreensíveis. Para reconhecer este estado de coisas, é necessário resistir em primeiro lugar à aparência de inteligibilidade, que confere a essas obras e interpretações uma espécie de patina. A tal respeito é altamente alérgico o consumidor estético: sente, com alguma razão, que aquilo que guarda como sua posse lhe é roubado, só que ignora que já lhe foi roubado logo que o reclama como sua propriedade. A estranheza ao mundo é um momento da arte; quem não percebe a arte como estranha ao mundo de nenhum modo a percebe. O espírito nas obras de arte não é um elemento acrescentado, mas estabelecido pela sua estrutura. Isso é em não pequeno grau responsável pelo caracter feiticista das obras de arte: ao resultar da sua constituição, o espírito aparece necessariamente como um ente-em-si, e elas são obras de arte só enquanto ele aparece como tal. Contudo, elas são, com a objectividade do seu espírito, algo de fabricado. A reflexão deve tanto compreender o caracter feiticista, sancionar por assim dizer a expressão da sua objectividade, como analisá-la criticamente. Nesta medida, mescla-se com a estética um elemento anti-artístico de que a arte suspeita. As obras de arte organizam o não-organizado. Falam em seu favor, e fazem-lhe violência; colidem com ele ao seguirem a sua constituição como artefacto. A dinâmica, que toda a obra de arte em si encerra, é o seu elemento lingüístico. Um (76) Cf. Th. W. Adorno, Moments musicaux. Neu gedrukte Aufsatze 1928-1962, Francoforte 1964, p. 167 ss.

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dos paradoxos das obras é que, dinâmicas em si mesmas, elas são em geral fixadas, ao passo que é através da fixação que as obras de arte se objectivam. Assim como, quanto mais insistentemente se observam, tanto mais paradoxais se tornam: toda a obra é um sistema de contradição. O seu próprio devir não poderia representar-se sem fixação; as improvisações costumam simplesmente justapor-se e, por assim dizer, ocupar o mesmo lugar. A escrita e a notação, vistas do exterior, desconcertam pelo paradoxo de um existente que, segundo o seu sentido, é devir. Os impulsos miméticos que movem a obra de arte integram-se nela e de novo a desintegram, são uma expressão provisoriamente privada de linguagem. Tornam-se linguagem mediante a sua objectivação enquanto arte. Salvação da natureza, a objectivação protesta contra a efemeridade da arte. A obra de arte torna-se semelhante à linguagem no devir da ligação dos seus elementos, sintaxe sem palavras mesmo nas obras lingüísticas. O que elas dizem não é o que dizem as suas palavras. Na linguagem sem intenções, os impulsos miméticos transmitem-se ao todo que os sintetiza. Na música, um acontecimento ou uma situação podem posteriormente constituir em algo de monstruoso um desenvolvimento precedente, mesmo se este não existisse em si. Semelhante metamorfose retrospectiva é exemplarmente uma metamorfose pelo espírito das obras. As obras de arte distinguem-se das formas subjacentes à teoria psicológica pelo facto de que nelas os elementos - como isso também nelas é possível - não se conservam com qualquer autonomia. Tanto quanto aparecem, eles não são imediatamente dados como o devem ser as formas psíquicas. Enquanto mediatizados pelo espírito, inserem-se numa relação contraditória recíproca, que se apresenta como se tentassem resolvê-la. Os elementos não se encontram em justaposição, mas friccionam-se entre si ou atraem-se mutuamente, um quer o outro ou um repele o outro. Só isto constitui o contexto das grandes obras ambicionadas. A dinâmica das obras de arte é o elemento que nelas fala; mediante a espiritualização, elas conseguem os traços miméticos que o seu espírito primeiramente submete. A arte romântica espera conservar o momento mimético ao não mediatizá-lo pela forma; através do todo diz o que um singular dificilmente é capaz de dizer. Apesar de tudo, não pode ignorar-se sem mais o constrangimento à objectivação. Ela reduz à dissociação o que se recusa objectivãmente à síntese. Mas se se dissocia em pormenores, não se inclina menos, contrariamente às suas qualidades superficiais, para o abstractamente formal. Num dos maiores compositores, Robert Schumann, esta qualidade liga-se essencialmente à tendência para a decomposição. A pureza com que a sua obra exprime o antagonismo irreconciliado confere-lhe o poder da sua expressão e da sua classe. Precisamente por causa do para-si da forma é que a obra de arte romântica regride para trás do ideal classicista que ela rejeita como formalista. Aí era buscada muito mais expressamente a mediação do todo e das partes, certamente não sem os traços resignativos tanto do todo, que se orienta pelos tipos, como do indi-

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