Golpe de 64 e Ditadura Militar

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294 O Golpe de 1964 e a Ditadura Militar em Perspectiva

Outra intervenção alegórica, de significado mais transparente, aparece no final do romance. O golpe de 1964 já aconteceu, a escola de alfabetização popular a que fizemos referência no início deste artigo já foi desmantelada, e Francisca largou seus alunos, fugindo para a Europa. Vivendo numa cabana à beira-mar, Nando se transformou numa espécie de professor de sexo para as mulheres pobres do local. A situação é, novamente, das menos plausíveis no Brasil de 1967, especialmente numa comunidade pesqueira no litoral de Pernambuco. Justificase, entretanto, pelo que representa de outra realidade, a vivida na mesma época pela classe média alta da Zona Sul do Rio de Janeiro. Seja como for, Nando reencontra alguns velhos companheiros de luta política; resolvem fazer um banquete em memória de Levindo, o ativista assassinado. Seria, como no quarup indígena, uma cerimônia fúnebre. No quadro de um romance realista tradicional, o almoço se daria em tom de derrota, fechando o ciclo da narrativa. A opção do autor, entretanto, é diversa, escapando do que seria a vida e a psicologia real dos personagens para assumir proporções alegóricas. A refeição vira um evento quase que nacional, com dezenas e centenas de pessoas aderindo à cerimônia, como se fosse um protesto gigante do qual as palavras de ordem política, naturalmente, estavam proscritas. Antônio Callado incorre em novas expansões de estilo: Nas geladeiras improvisadas pelos quatro cantos do quintal se acumulou depressa o fruto das pescarias e mariscagens de Amaro, Zeferino, Quimango e Margarida, das ostras e lagostas e lagostins à traíra cor-de-salmão; ao jacundá amarelo de listras pretas; ao sapé vermelho-escuro de bolinhas pretas; ao camorupim brancocinza-dourado, de escamas medalhonas que serviam para fazer flores [...] camorim, agarajuba, aracimbora, xaréu, xinxarra, anchova, acaratina azul e preta. E vieram as pimentas, malagueta, do reino, pimenta d’água, pimentinha, pimentão ardido, o azeite-de-dendê, o açafrão, gengibre, gergelim, tachos de goiaba, de marmelo, de jaca, de mangaba, de caju. Metediço, intrometido, aguardando o momento de entrar em tudo, coco, coco verde, coco seco, leite de coco aos baldes, laminha de coco, coco de ralar, coco de espremer, coco para entrar no escabeche com cebola e coentro e para amolecer feijão de corda, fradinho, rajado para cocada, babade-moça, papo-de-anjo, perna-de-freira, ambrosia [...] Dois dias


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