Golpe de 64 e Ditadura Militar

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Política, história e a questão da atualidade do golpe de 1964 – Cicero Araujo

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que deve ser e o que poderia ser. Ora, essa tensão se expressa num feixe de expectativas, a ser articulado de diversas maneiras, inclusive na dimensão temporal. E a história, ou as histórias, entendidas como o espetáculo da experiência humana disposto ao longo de um tempo, são tantas matérias disponíveis para que a forma política elabore as expectativas engajadas em sua construção. É o que faz o tópico da filosofia da história tão importante no pensamento político moderno. Mas quando se fala que a história tem “épocas” – por exemplo, a “Era Clássica”, a “Era Cristã” ou a “Era Moderna” –, subentende-se que uma época é um período finito e delimitado da história humana, geralmente estruturado a partir de um fato aglutinador ou desencadeador: o advento de Jesus Cristo ou da Reforma Protestante, da Revolução Francesa ou da Primeira Guerra Mundial, etc. Isso envolve uma crença: a crença de que a história, ou que nós chamamos de ‘História’, é uma sucessão de eventos, porém suscetível à ‘descontinuidade’. A sucessão do tempo histórico condiz com a ideia de um encadeamento ordenado de eventos, livre de sobressaltos; mais complicada é a racionalidade do descontínuo, ao introduzir justamente a ruptura, que parece impor um vazio desconcertante à sucessão. Mas é o que temos de admitir em nossa apreensão do tempo vivido, quando aceitamos que a história humana é estruturada em ‘épocas’: uma época é separada de outras exatamente por uma descontinuidade, condensada num fato desencadeador, que marca um antes e um depois, uma separação radical. Por isso se diz que a Revolução Francesa ou a Primeira Guerra Mundial são fronteiras de época: são eventos que fazem pensar que o mundo antes deles acontecia dessa ou daquela maneira e passa a não mais sê-lo; ultrapassadas essas fronteiras, o mundo “tal como costumávamos percebê-lo” (vejam a mistura de objetividade e subjetividade que tais expressões trazem consigo) como que se esvai, e em seu lugar se ergue um outro modo de acontecer. O fato desencadeador é o signo por excelência de uma nova época. Contudo, exatamente por causa da descontinuidade que assinala, nunca sabemos de antemão ou de imediato se um fato é ou não um demarcador de época: só podemos sabê-lo a posteriori, e não sem o recurso a um juízo avaliativo, isto é, não isento de controvérsia, pelo menos durante um bom tempo depois que aconteceu. Falou-se aqui de um conceito “moderno” de constituição, ao qual se poderia adicionar outras categorias – por exemplo, o conceito “moderno” de Estado, de representação política, etc. – estreitamente vinculas umas às outras. Quer dizer, estamos atrelando o conceito de uma forma política a uma época, ou, para usar o


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