O Fazedor de Velhos - Rodrigo Lacerda

Page 76

Terminamos o sorvete nos olhando, amorosamente nos estudando. À noite ela iria reencontrar uma velha amiga, e não me convidou para ir junto. Quando a deixei em casa depois da sorveteria, e nos despedimos, não parecia tão animada com o programa. Gostei de pensar que sentiria a minha falta. Marcamos um almoço no dia seguinte. Eu estava decidido a grudar nela o máximo de tempo, até aparecer uma chance de dizer o que estava sentindo. E ela parecia estar achando isso bom. Nos encontramos por volta do meio-dia. Fomos a um restaurante simpático e baratinho. Aproveitei para perguntar mais sobre o seu trabalho. Queria de fato entender. Queria sentir aquela profissão da mesma maneira com que eu admirava os animais e as plantas do Jardim Botânico. Não consegui inteiramente, confesso, porque era racional demais, tecnológica demais para essa minha cabecinha lesada. Mas, ouvindo-a falar das pesquisas que fazia, não odiei química e biologia pela primeira vez na vida. Num certo momento, senti até uma onda de gratidão pelas ultrassonografias computadorizadas; eram uma invenção inestimável para as ambições imortalizantes da espécie humana. Eu queria viver toda aquela parafernália científica também como uma maravilha da natureza. Eu queria igualar os nossos mundos, evitando qualquer ruído na comunicação. Não que tivéssemos alguma discordância problemática, mas eu queria afinidade ainda maior do que a da boa convivência entre nossas diferenças. Eu queria apagar as distâncias. A colmeia das abelhas não é uma coisa inacreditavelmente linda e bem bolada? Então por que a ultrassonografia computadorizada não pode ser? Ambas são igualmente criações de criaturas da natureza. Na terceira noite, fomos ao Teatro Municipal. Sim, pois, apesar das diferenças, tínhamos gostos em comum. Sorvete era um deles. Nós dois achávamos sorvete, sem favor, a melhor sobremesa da história da humanidade. Das hecatombes em homenagem aos deuses gregos, passando pelas orgias dos imperadores romanos, até os menus-degustação dos milionários do mercado financeiro, nenhum produto do hedonismo humano jamais ficou tão gostoso quanto sorvete. Sorvete, no nosso modesto entender, era compulsão. Outro gosto que eu e a May umi tínhamos em comum: literatura. Tudo bem que ela não era de ler os clássicos, meus preferidos, e se interessava mais por escritores novos. Uma bela hora, num daqueles primeiros dias, recitei de cabeça, por mera provocação, o começo d’O Guarani, do José de Alencar: É o Paquequer: saltando de cascata em cascata, enroscando-se como uma serpente, vai depois se espreguiçar na várzea e embeber no Paraíba, que rola majestosamente em seu vasto leito. ... ela riu e disse que sempre tinha achado José de Alencar uma coisa de outro


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.